Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
325/17.6T8LAG.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: SIMULAÇÃO
PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
I – Considerando que na grande maioria dos casos, a prova da simulação se obtém de forma indireta (pela demonstração dos seus indícios), e que nestes a divergência entre o preço declarado e o valor real de mercado assume primordial importância, não podia o despacho recorrido considerar como redundante a perícia requerida pelos autores/recorrentes.
II - Assim, a prova pericial surge não só como idónea, mas até como natural ou preferencial para o apuramento do valor de mercado do lote de terreno em causa e constituir elemento de prova da simulação do negócio realizado entre as partes.
Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
BB e CC instauraram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra DD, pedindo que seja declarada a nulidade do negócio de compra e venda de um lote de terreno realizado entre eles, por simulação, com o respetivo cancelamento do registo de aquisição do imóvel.
Alegaram, em síntese, que tendo passado por dificuldades financeiras que os impediram de honrar compromissos para com certos credores e por haver risco de ser penhorado o respetivo património, acordaram com um seu amigo, por sugestão deste, transferir a propriedade de um lote de terreno que haviam adquirido para nome do filho desse amigo, o ora réu, outorgando escritura de compra e venda, num negócio simulado, em que o preço declarado nunca foi pago, nem o comprador tomou posse do terreno, o qual se mantém desde Janeiro de 1997 na posse dos autores.
O réu contestou, contrapondo que nunca privou com os autores, recusando que o negócio haja sido simulado, afirmando ter-se tratado de um investimento, por valor justo e cujo preço foi liquidado por acerto de contas entre os autores e pai do réu, concluindo pela sua absolvição do pedido.
Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, sem reclamação e foi logo designada data para realização do julgamento.
Posteriormente, em face da dispensa de realização da audiência prévia, os autores vieram apresentar o seu requerimento probatório, no qual, além de renovarem a prova testemunhal e documental indicada na petição inicial, requereram a realização de prova pericial, por um único perito, para prova do alegado nos artigos 15º e 26º daquele articulado (fls. 72).
Considerando não ser impertinente ou dilatória a perícia requerida pelos autores, o Sr. Juiz a quo determinou a notificação do réu para se pronunciar, vindo este dizer que nada tinha “a opor ao quesito formulado ao perito” (cfr. fls. 88 e 92).
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento sem que tivesse sido ordenada a realização da perícia requerida pelos autores, e após finda a produção de prova, o Sr. Juiz a quo proferiu o seguinte despacho:
«Face à prova já produzida a perícia requerida pelos autores é redundante, nada acrescentando ao vasto instrutório já reunido, pelo que se indefere a sua realização.
Notifique.»
Inconformados, os autores apelaram do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com as seguintes conclusões (transcrição):
«A) No âmbito da prova de uma simulação invocada, é importante determinar o valor real dos bens objecto da alienação, designadamente face ao valor declarado como preço no negócio de compra e venda.
B) A perícia ao prédio urbano – lote de terreno para construção urbana - é pertinente e imprescindível para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, pois irá permitir apurar se o preço declarado corresponde ou não ao valor real desse bem e se o Réu efectivamente pagou o preço deste bem aos Autores – cfr. arts. 411.º, 467.º, do CPC e arts. 341.º e 388.º do Código Civil.
C) A perícia requerida revela-se necessária, desde logo, para prova da inexistência de entrega de qualquer quantia por parte do Réu aos Autores a título de preço, e da emissão de declarações contrárias à real vontade do Réu aquando da celebração por intermédio do seu Pai da escritura de compra e venda do prédio urbano, por acordo entre os simuladores, com intenção de enganar os credores do Autor marido.
D) Pertencendo o ónus da prova da simulação alegada aos Autores, o indeferimento da perícia impedi-los-á de a produzir.
E) A não admissão da perícia requerida, impossibilita, pois, os Autores de fazerem prova em juízo da simulação do negócio de compra e venda – cfr. arts. 341.º e 342.º, do Código Civil.
F) A prova pericial surge, não só como idónea, mas mesmo como natural ou preferencial para o apuramento do valor de mercado do prédio urbano alienado pelos Autores ao Réu.
G) Em sentido similar, pronunciou-se recentemente o Tribunal da Relação de Guimarães, em Acórdão datado de 02/02/2017, proc. 6420/14.6T8VNF-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, onde conclui que “I. Sendo a prova da simulação quase sempre indirecta, por se reportar a eventos do foro interno dos simuladores (nomeadamente, à divergência entre a sua vontade real e a sua vontade declarada, ao acordo havido entre eles, e à sua intenção de enganar terceiros), fará comumente uso de presunções judiciais, alicerçadas em indícios condensados pela uniforme prática jurisprudencial. II. Entre os indícios/presunções da simulação avulta o pretium vilis, isto é, uma efectiva divergência entre o preço declarado na transacção de bens havida (inferior) e o real valor de mercado dos ditos bens (superior). III. A prova pericial é, não só idónea, como natural ou preferencial para se apurar com rigor o valor de prédios urbanos e de veículos automóveis (por esse apuramento pressupor conhecimentos técnicos subtraídos ao indiferenciado julgador); e, por isso, não deverá ser recusada num litígio que tenha por objecto a determinação da alegada simulação de uma venda de tais bens”.
H) Tendo presente que, na grande maioria dos casos, a prova da simulação se obtém de forma indirecta (pela demonstração dos seus indícios), e que nestes a divergência entre o preço declarado e o valor real de mercado assume primordial importância, não se pode deixar de discordar do Tribunal a quo, quando mesmo declarou que “a perícia requerida pelos autores é redundante, nada acrescentando ao vasto instrutório já reunido (…)”.
Termos em que V.Ex.as concedendo provimento ao recurso e alterando a douta decisão recorrida nos termos pugnados nas presentes alegações,
Farão inteira
JUSTIÇA!»

Entretanto foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu o réu do pedido.
Irresignados, os autores interpuseram recurso da sentença, finalizando as alegações com as seguintes conclusões:
«1 - Resulta pendente no tribunal “a quo”, um recurso de apelação autónoma, com subida em separado, interposto pelos Autores/recorrentes por requerimento com a ref.ª citius: 28796637, de 11/04/2018, relativo ao despacho de não admissão de prova pericial requerido pelos Autores, datado de 21/03/2018;
2 - Fundamentou o tribunal “a quo” na decisão recorrida o facto de não ressoarem na actividade instrutória levada a cabo em audiência, nem a sua afirmação se revelar possível com base em outros elementos que, ainda que indirectos, os revelassem isto porque não se sabe o que o EE disse ou não disse ao seu filho ou o que este sabia ou não sabia.
3 - Ora, sendo o réu DD filho da testemunha EE na altura amigo e pessoa da absoluta confiança dos autores, (a quem lhes foi sugerido que a venda fictícia se processasse com o seu filho), e, procurador do mesmo tendo actuado em todo o processo em nome, no interesse e por conta do Réu seu filho, bem como, dos autores na qualidade de procurador de ambos, ninguém acredita (atenta a relação de parentesco próxima entre ambos) que o Réu DD não tivesse tido conhecimento ou dado o seu assentimento no acordo simulatório, pois o facto do réu comprador ter sido representado pelo seu pai testemunha nos autos, não exclui a existência de concerto simulatório, se o conluio era do conhecimento do representante do comprador, sendo a situação, nos termos do art. 259.º, n.º 1, do CC, de equiparar a atitude dolosa do representado.
4 - Dos depoimentos prestados pelos autores/recorrentes ouvidos na sessão da audiência final de 01/03/2018, entre os minutos 01:00 e o minuto 21:49 e entre o minuto 0:21 e o minuto 12:32, que se mostra gravado, bem como, do depoimento confuso e algo contraditório da testemunha EE ouvido também na sessão da audiência final de 01/03/2018 entre o minuto 24:16 e o minuto 30:40, que se mostra gravado, não pode resultar sem qualquer hesitação no julgador quanto ao facto do Réu ter conhecimento e assentido no acordo simulatório acordado pelo seu pai em seu nome e por conta deste, na qualidade de seu representante.
5 - Por outro lado, nem o Réu nem o seu pai na qualidade de sua testemunha demonstraram que o preço da venda no valor de € 15.000,00 foi pago aos autores.
6 - O réu sabia e conhecia todos os termos e contornos do acordo simulatório combinado pelo seu pai e os autores, sendo certo que foi o pai do réu DD quem outorgou a escritura de compra e venda em representação de ambas as partes.
7 - Ora, reafirma-se havendo uma divergência intencional entre a vontade expressa no documento e a intenção das partes, com o objectivo de prejudicar terceiros, o facto do Réu/Comprador ter sido representado pelo seu pai pessoa que sugeriu aos autores para que estes transferissem o lote de terreno para o nome do seu filho, como forma de impedir ou dificultar a penhora por parte do fisco alemão, não pode excluir a existência de concerto simulatório, se o conluio era do conhecimento do pai do réu na qualidade de seu representante, sendo a situação equiparada a atitude dolosa do réu na qualidade de representado, nos termos do n.º 1, do art. 259.º, do CC.
8 - Sendo a prova da simulação quase sempre indirecta, por se reportar a eventos do foro interno dos simuladores (nomeadamente, à divergência entre a sua vontade real e a sua vontade declarada, ao acordo havido entre eles, e à sua intenção de enganar terceiros), fará comumente uso de presunções judiciais, alicerçadas em indícios condensados pela uniforme prática jurisprudencial.
9 - Assim, sendo necessário, no âmbito do instituto da simulação, apurar-se a intenção das partes ao outorgarem o negócio, não pode o Tribunal que a aprecie deixar de se valer das mais comuns presunções judiciais nesta situação (cfr. arts. 349.º e 351.º, do Código Civil).
10 - Dir-se-á que um dos indícios mais operativos em sede de simulação é o indício affectio, gerado pelas relações familiares, de amizade, de dependência, de negócios, profissionais ou de dependência, anteriormente firmadas entre o simulador e o seu co-autor e que vinculam esta àquele por um motivo de tal índole.
11 - Entretanto, e como intuito de reforçar a aparência de veracidade do negócio, é comum o simulador contratar primeiramente com um estranho para que, seguidamente, este contrate com o familiar ou amigo em quem o simulador deposita maior confiança, destinatário final do negócio (indicio interpositio). Ao agir desta forma, o simulador pretende esquivar-se ao indicio affectio.
12 - Acrescenta-se, neste percurso que, um preço irrisório ou abaixo dos valores de mercado constitui outro indício frequente da simulação (indicio pretium vilis).
13 - Pertence, porém, aos simuladores provar o efectivo pagamento e não ao autor provar o facto negativo do não pagamento pelo simulador sendo que competia ao réu a prova do pagamento aos autores o que não o fez nos presentes autos.
14 - Com efeito, para além do indício affectio (sendo o Réu filho da testemunha EE amigo de grande confiança dos Autores e a pessoa que atuou em nome e por conta do réu seu filho e que por sua vez sugeriu e acordou o negócio simulatório), do indício retentio possessionis (em que alegadamente os Autores se mantêm a ter o domínio de facto sobre o lote de terreno que declaradamente venderam ao Réu na pessoa do seu procurador e pai EE, e em que alegadamente os Autores continuam a utilizar e assumir-se perante terceiros como donos do lote de terreno que venderam ao Réu mediante procuração outorgada a favor do seu pai EE), os Autores invocaram ainda o indício pretium vilis (isto é, ter sido o bem em causa - prédio urbano (lote de terreno para construção urbana) - vendido por um preço declarado inferior ao seu real valor de mercado).
15 - Tendo em conta todo o lastro instrutório trazido aos autos, designadamente os depoimentos prestados pelos autores que explicaram de forma precisa e coerente e em pormenor todos os contornos e passos do negócio simulatório e as conversas que tiveram com o réu e o seu pai, mesmo após a outorga da venda do terreno, conjugado com o depoimento de EE um pouco trapalhão e cujo comportamento (conforme refere o tribunal “a quo” na decisão recorrida) “em todo o desenrolar do trato evidencia dominar determinados expedientes e não se pautar por qualificada lisura, podendo desde logo ter agido de caso pensado”, bem como, o que foi requerido pelos autores para prova do por si alegado em sede de petição inicial o qual não foi admitido pelo tribunal “a quo”, encontrando-se por essa razão recurso de apelação autónoma pendente, resulta que os pontos iii), v) e vi), dos factos não provados deveriam ter sido levados à matéria provada pelo tribunal “ a quo”, havendo aqui da sua parte uma má apreciação da prova produzida (e gravada).
16 - Existem indícios, para além do comportamento evidenciado pelo seu pai do réu, que demonstram que o réu DD, conhecia e tinha dado ao seu pai o seu assentimento para que este outorgasse em seu nome e por sua conta mediante procuração outorgada para o efeito uma escritura de compra e venda, que ele não podia deixar de saber que era fictícia, pois não correspondia à sua vontade real.
17 - Fica assim patente e demonstrado que o contrato de compra e venda foi um negócio simulado e consequentemente nulo, devendo a mesma ser declarada – cfr. arts. 240.º e 286.º, do CC.
18 - O Mmo Juiz a quo, salvo melhor opinião em contrário, violou as seguintes normas jurídicas ou não fez a sua correcta e adequada aplicação, entre outras: arts. 240.º, 286.º, do Código Civil e art. 607.º, do Código de Processo Civil, entre outros.
Termos em que V.Ex.as concedendo provimento ao recurso e alterando a douta decisão recorrida nos termos pugnados nas presentes alegações,
Farão inteira
JUSTIÇA!»

Contra-alegou o réu, defendendo a manutenção do decidido.
O Sr. Juiz a quo proferiu, a fls. 195, o seguinte despacho:
«Compulsados os autos, constata-se que o A. veio interpor recurso da decisão que indeferiu a admissão de meio de prova, que será a subir em separado.
Considerando, porém que veio interpor igualmente recurso da decisão final, a subir nos próprios autos, antes de mais, ao abrigo do princípio da gestão processual (art. 6.º n.º1 NCPC), notifique as partes para dizerem se, a serem admissíveis ambos os recursos, vêm óbice a que ambos subam nos próprios autos, desde já se consignando, que caso nada digam se entenderá no seu silêncio que a tal não se opõem.»
Responderam apenas os autores, dizendo não verem “óbice a que ambos os recursos por si interpostos subam ambos nos próprios autos”.
Ambos os recursos foram admitidos a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso definido em função das conclusões formuladas pelos recorrentes, nos termos dos artigos 635º, nºs 3 a 5 e 639º, nº 1, do CPC, as questões suscitadas nos recursos consubstanciam-se em saber:
Na apelação autónoma:
- se o Tribunal a quo podia indeferir a realização da perícia requerida pelos autores/recorrentes.
Na apelação da sentença:
- se deve ser alterada a decisão da matéria de facto, dando-se como provados os factos constantes dos pontos iii), v) e vi) dos factos não provados, com a consequente procedência da ação;

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
a. Por escritura de compra e venda outorgada em 09 de Janeiro de 1997, no Cartório Notarial de Lagos, lavrada de fls. 14v a fls. 15v do Livro de Notas para Escrituras Diversas nº …-F, declarou a Sociedade FF – Investimentos Imobiliários, Lda. vender ao A. BB, pelo preço de oito milhões e oitocentos mil escudos, o lote de terreno destinado a construção urbana, com a área de seiscentos e catorze metros quadrados, designado por lote …, sito na Urbanização Cerros das Mós, freguesia de São Sebastião, concelho de Lagos, inscrito na matriz sob o artigo número …, com o valor patrimonial de 4.789.200$00, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos sob o número ….
b. O prédio descrito em a. encontra-se descrito na matriz predial urbana, sob o Art.º …, com um valor patrimonial de € 73.530,00, determinado no ano de 2015.
c. Os Autores exerciam a atividade de comerciantes na Alemanha.
d. No exercício da referida atividade de comerciantes, os Autores passaram por algumas dificuldades financeiras, que os impediram de honrar os compromissos com certos credores, nomeadamente com as Finanças Alemãs, acabando tal situação por gerar uma degradação progressiva das suas situações económicas.
e. Em virtude disso, foram demandados em várias ações judiciais de cobrança de dívida, sendo que, a situação tornou-se tão insustentável, que obrigou até o Autor marido a pedir a sua declaração de insolvência na Alemanha.
f. Com o desenrolar das referidas ações, passou a haver o risco de penhora do património dos Autores, e posteriormente até de apreensão desse mesmo património em sede de insolvência, resultante do decretamento da insolvência do Autor marido.
g. Esta situação era do conhecimento de um amigo dos Autores, o Sr. EE, com quem os Autores tinham relações muito próximas e com quem desabafavam acerca das suas dificuldades económicas.
h. Foi neste contexto que, por sugestão daquele amigo, foi equacionada a hipótese dos Autores transferirem para terceiros o seu património, em especial o lote de terreno para construção urbana referido.
i. Logo se colocou a questão de saber para quem haveria de fazer-se aquela transferência de propriedade de bens, porquanto era evidente que o negócio em causa era de natureza simulada, motivado apenas e tão só pela preocupação de obstar a penhoras e a apreensão.
j. Dentro daquele apoio que, sempre como amigo que o consideravam, o referido Sr. EE sugeriu que interviesse como comprador do dito lote de terreno o seu filho, mais precisamente o aqui Réu.
k. Esta sugestão do amigo EE foi aceite pelos Autores, estando todos cientes de que o negócio a realizar se destinava apenas e só a proteger aquele lote de terreno para construção de eventuais penhoras e apreensões por dívidas dos Autores.
l. Por escritura de compra e venda outorgada em 20 de Maio de 2011, no Cartório Notarial sito na Avenida Cinco de Outubro em Lisboa, lavrada de fls. 54 a 56 do Livro de Notas nº …-M, declarou Domingos Pereira Mendes, outorgando na qualidade de procurador de Autores e Réu, vender ao seu representado Réu DD, pelo preço de quinze mil euros, já recebido, o terreno para construção, denominado lote n.º … situado em Serro das Mós, freguesia de Lagos, São Sebastião, concelho de Lagos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lagos, sob o número …, com o valor patrimonial de € 13.323, 52.
m. Pela Ap. 20/05/2011 mostra-se registada a aquisição do prédio descrito em a., a favor do R..
n. Os Autores sempre que estavam em Portugal deslocavam-se ao terreno para ver o seu estado.
o. A partir de certa altura, os Autores começaram a diligenciar pela regularização da situação, tanto mais que as suas situações económicas tinham entretanto melhorado, e já não corriam riscos de ter os seus patrimónios penhorados ou apreendidos.
p. Foi nesse sentido que os Autores contactaram o Réu, tendo ele se recusado a qualquer conversa sobre o assunto ou pelo menos em tentativa de protelar o assunto, assim arrastando a situação.

E foram dados como não provados estes factos:
i. Os Autores pagam e sempre pagaram, nomeadamente, os impostos municipais relativos ao imóvel, isto é o denominado I.M.I. – Imposto Municipal sobre Imóveis.
ii. O R. era também amigo dos autores.
iii. A circunstância descrita em k., obteve o assentimento do R..
iv. Os Autores continuaram a pagar os impostos referentes a este imóvel que tinham declarado vender, como sempre o fizeram.
v. Concretamente, os Autores continuaram a suportar todas as despesas inerentes à fruição daquele imóvel, tais como contribuições fiscais, IMT adicional, bem assim, como todas as despesas decorrentes da escritura de compra e venda do imóvel ao Réu, como sejam o IMT, imposto de selo, emolumentos da escritura e despesas com o registo predial.
vi. O preço declarado não foi pago pelo comprador, nem foi recebido pelos vendedores.

A apelação autónoma.
Como decorre do vertido no relatório supra, os autores interpuseram recurso de apelação autónoma do despacho que indeferiu a realização da perícia, em momento que mediou entre a última sessão de julgamento – onde foi proferido esse despacho - e a prolação da sentença, da qual os autores também recorreram.
Por isso, o Sr. Juiz a quo, ao abrigo do princípio da gestão processual, determinou a notificação das partes para dizerem se viam óbice a que ambos os recursos subissem nos próprios autos, tendo consignado que caso nada dissessem se entenderia o seu silêncio como não oposição, tendo apenas os autores respondido que nada tinham a opor.
Não seria de excluir, assim, prima facie a aplicação ao caso do disposto no artigo 660º do CPC, onde se prescreve que «[o] tribunal só dá provimento à impugnação das decisões interlocutórias, impugnadas conjuntamente com a decisão final nos termos do nº 3 do artigo 644º, quando a infração cometida possa modificar aquela decisão ou quando, independentemente dela, o provimento tenha interesse para o recorrente».
Este preceito restringe-se «às decisões interlocutórias que, sendo impugnáveis, não admitam recurso imediato. Ainda que estejam eivadas de erros de facto ou de direito, a manutenção do interesse na sua impugnação depende, em primeiro lugar, da subsequente evolução processual e do resultado que vier a ser declarado a final.
De facto, ocorre frequentemente que tais decisões acabam por se mostrar irrelevantes para a parte, designadamente quando obtém vencimento na acção.
Noutros casos o desinteresse objectivo na revogação ou anulação não é absoluto, mas não atinge o nível ajustado à integração do pressuposto processual do interesse em agir que também está presente em sede de matéria recursória. Efectivamente, apenas faz sentido conceder provimento à impugnação de qualquer decisão interlocutória se tal interferir na decisão final ou se, em alternativa, for visível um interesse processual autónomo no provimento que não se confunde com um mero interesse subjectivo, de ordem moral ou académica»[1].
In casu, porém, nada disto ocorre, considerando desde logo o facto dos autores, ora recorrentes, não terem obtido vencimento na ação, e porque está em discussão no recurso da decisão final a impugnação da matéria de facto, havendo que apurar da existência – como defendem os recorrentes – ou não – como se sustentou na sentença -, de um pacto simulatório entre todos os intervenientes no negócio jurídico em causa.
Assim, há que apreciar o recurso de apelação do despacho que não admitiu a realização da perícia requerida pelos autores.
A simulação consiste, como é sabido, na divergência entre a vontade e a declaração, estabelecida por acordo entre as partes, com o intuito de enganar terceiros[2].
O art. 240º, nº 1, do Código Civil [CC] estabelece que são três os requisitos para que haja simulação:
- um acordo entre o declarante e o declaratário;
- no sentido duma divergência entre a declaração e a vontade das partes;
- com o intuito de enganar terceiros.
Com a intenção de enganar terceiros pode ou não cumular-se a de prejudicar outrem e, quando além da intenção de enganar, haja a de prejudicar, a simulação diz-se fraudulenta, sendo que se existe só a intenção de enganar, a simulação diz-se inocente.
O negócio simulado é nulo - art. 240º, nº 2, do CC.
Importa destacar do regime legal da simulação, a proibição da prova testemunhal (e com isso, simultaneamente, da prova por presunção judicial – arts. 349º e 351º do CC), relativamente ao acordo simulatório, quando invocado pelos simuladores - art. 394º, nº 2, do CC[3].
Proibição essa que ocorre in casu, pois os autores/recorrentes, ainda que tenham sido representados, enquanto vendedores, no negócio de compra e venda do imóvel dos autos pelo pai do réu, o qual também representou o filho, enquanto comprador, nesse mesmo negócio, não podem ser considerados terceiros nos termos do art. 259º, nº 1, do CC, pois embora tenham sido representados no negócio simulado, tiveram, como alegam, intervenção no acordo simulatório[4].
Contudo, a doutrina do nº 2 do art. 394º do CC «não impede que os simuladores façam a prova da simulação por qualquer outro meio de prova, desde que não seja a testemunhal ou a prova por presunções (cfr. art. 351º), mesmo que o negócio tenha sido celebrado por documento autêntico. Este faz prova plena apenas quanto à declaração negocial, mas não quanto à conformidade da declaração com a vontade real (cfr. art. 371º)[5].
Sabido que na grande maioria dos casos, a prova da simulação se obtém de forma indireta (pela demonstração dos seus indícios), e que nestes a divergência entre o preço declarado e o valor real de mercado assume primordial importância, não se pode acompanhar o despacho recorrido quando aí se diz que «a perícia requerida pelos autores é redundante, nada acrescentando ao vasto instrutório já reunido», sabendo-se, ademais, das limitações de prova a que estão sujeitos os autores na presente ação, como se viu supra.
Não podia, pois, ter sido indeferida a perícia com tal fundamento.
Assim, a prova pericial surge não só como idónea, mas até como natural ou preferencial para o apuramento do valor de mercado do lote de terreno em causa e constituir elemento de prova da simulação do negócio realizado entre as partes[6].
O recurso merece, pois, provimento.
Porque o provimento da apelação determina a anulação do processado posterior à fase do saneamento e, portanto, do julgamento e da sentença posta em crise no recurso de apelação dela interposto pelos autores, fica prejudicada a apreciação deste recurso e, por isso, das demais questões enunciadas no ponto II deste acórdão.

Sumário:
I – Considerando que na grande maioria dos casos, a prova da simulação se obtém de forma indireta (pela demonstração dos seus indícios), e que nestes a divergência entre o preço declarado e o valor real de mercado assume primordial importância, não podia o despacho recorrido considerar como redundante a perícia requerida pelos autores/recorrentes.
II - Assim, a prova pericial surge não só como idónea, mas até como natural ou preferencial para o apuramento do valor de mercado do lote de terreno em causa e constituir elemento de prova da simulação do negócio realizado entre as partes.

IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em:
a) Julgar procedente a apelação do despacho que indeferiu a perícia, revogando esse despacho, que é substituído por outro que defere a sua realização, com a consequente anulação do julgamento e da sentença proferida.
b) Não apreciar, por o seu conhecimento ficar prejudicado com a procedência da apelação mencionada em a), o recurso de apelação da sentença apresentado pelos autores.
Custas a cargo do réu.
*
Évora, 28 de Fevereiro de 2019
Manuel Bargado
Albertina Pedroso
Tomé Ramião

__________________________________________________
[1] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2014, 2ª edição, pp. 226 e 227.
[2] Cfr. Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, p. 165.
[3] Não obstante a formulação irrestrita dos nºs 1 e 2, Vaz Serra propugna a admissibilidade da prova testemunhal em determinadas situações excecionais: quando exista um começo ou princípio de prova por escrito: quando se demonstre ter sido moral ou materialmente impossível a obtenção de uma prova escrita; e ainda em caso de perda não culposa do documento que fornecia a prova (vide R. L. J., ano 107º, pp. 311 e segs.), citado por Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 3ª edição revista e atualizada, p. 342
[4] Nas palavras do acórdão do STJ de 29.05.2007, proc. 07A1334, «“terceiro”, no tocante ao negócio simulado e para efeitos do art. 394, nº3, do C.C., é aquele que não interveio no acordo simulatório, nem represente por sucessão quem nele participou, embora possa figurar como parte representada no negócio simulado. Face ao art. 259 do C.C., o representado é terceiro em relação ao negócio jurídico celebrado pelo seu representante, em conluio com a contraparte». No mesmo sentido, entre muitos, o acórdão do STJ de 22.05.2012, proc. 82/04-6TCFUN-A.L1.S2, disponível, como o anterior, em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., p. 343.
[6] Cfr., neste sentido, o acórdão da Relação de Guimarães de 02.02.2017, proc. 6420/14.6T8VNF-A.G1, in www.dgsi.pt, também citado pelos recorrentes nas alegações de recurso.