Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
45/13.0GDETZ.E1
Relator: JOSÉ MARTINS SIMÃO
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
PRINCÍPIO DO ACUSATÓRIO
Data do Acordão: 06/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I – Não constando da acusação as circunstâncias em que o arguido, na data e local em causa nos autos foi sujeito a fiscalização (nomeadamente se conduzia um veículo e na afirmativa qual o veículo, se tinha a qualidade de peão ou interveniente num acidente de viação, ou, se se propunha iniciar a condução), isto é, se se encontrava em qualquer uma das situações previstas no art. 152.º, nº 1, do Código da Estrada, faltam elementos para aferir da legalidade substancial e da legitimidade da ordem de sujeição a exame de pesquisa de álcool no sangue.

II – Essa omissão não pode ser suprida pelo tribunal, nomeadamente chamando à colação o disposto nos arts. 359º e 358º do CPPenal, que pressupõem uma alteração substancial ou não substancial dos factos que constam da acusação para crime mais grave ou menos grave, e não a inexistência de crime (em relação aos factos da acusação), sob pena de violação da estrutura acusatória do processo.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
Por decisão de 13 de Dezembro de 2013, proferida no processo comum singular com o nº mencionado do Tribunal Judicial de Estremoz, o arguido A.,id. a fls. 53, foi condenado pela prática de um crime de desobediência simples previsto e punível no art.152º, nº 3, 348º, nº 1 al. a) do C. Pena e 69º, nº 1 al. c) do C. Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), perfazendo o montante de € 550,00 (quinhentos e cinquenta euros); caso o arguido não pague, voluntaria ou coercivamente, a pena de multa, deverá cumprir 66 (sessenta a e seis) dias de prisão subsidiária.

Inconformado o arguido recorreu, tendo concluído a motivação do seguinte modo:

«A) No dia 22 de Novembro de 2013, quando o recorrente foi abordado pelos Srs. Militares da GNR, na saída da vila de Cano (Sousel), o recorrente e o seu colaborador regressavam de um dia de trabalho de cerca de 20h, uma vez que se dedicam, sazonalmente, à actividade de apanha e comercialização de azeitona.

B) Aquando da abordagem pela GNR, sem qualquer justificação, o recorrente realizou o teste qualitativo de despiste de álcool no sangue, pelo menos cinco vezes.

C) Não contentes com o resultado, os Srs. Militares da GNR conduziram o recorrente (algemado) ao posto de Sousel e ordenaram-lhe que efectuasse novamente o teste, novamente qualitativo, em que alegam que se verificou um resultado positivo de 1,60g/l; o que é falso e não foi demonstrado nos autos conforme deveria ter sido, pelo que não poderia ser dado como provado na sentença recorrida.

D) Após o que conduziram o arguido ao posto de Fronteira para efectuar o teste quantitativo; tendo o arguido soprado para o aparelho pelo menos sete vezes.

E) De tantas vezes, alegam os autuantes que só saíram três talões. Cumpre indagar: o aparelho estava em pleno e bom estado de funcionamento ou o resultado dos talões não agradava aos autuantes?
F) Inúmeras peripécias surgiram nestes autos, designadamente no auto de notícia e demais autos e notificações entregues ao arguido, onde o autuante começa por apor a data dos factos como 09 de Julho de 2013, pelas 11h16; depois constituiu o recorrente arguido onze minutos antes dos factos ocorrerem. Noutro documento o autuante coloca que o arguido foi libertado em 09 de Julho de 2013, pelas 06h00, ou seja, antes de ter alegadamente praticado quaisquer factos, foi libertado.

G) Todas estas incongruências foram suscitadas em sede de contestação, porquanto nas datas constantes do auto o arguido nem sequer foi abordado pelos Srs. Militares, e foram aparentemente “sanadas” pelo MP, sem que desse conhecimento da “nova” acusação ao recorrente ou ao seu mandatário. O que o MP fez foi corrigir uma acusação após uma contestação, não tendo sido dada oportunidade ao arguido de se defender da nova acusação.

H) O militar autuante disse que advertiu o arguido de que se o teste quantitativo não obtivesse resultado após 3 tentativas, o arguido incorria na prática de um crime de desobediência. Gostaríamos, pois, de saber onde está estabelecido esse limite quantitativo para a desobediência.

I) Se o arguido não estava a cooperar por que motivo não o conduziram ao Hospital para fazer o teste de álcool no sangue?

J) Como é que se pode dizer que um indivíduo que, tudo somado, realizou mais de 10 testes de despistagem de álcool, se recusou a cumprir uma ordem e que, por isso, cometeu um crime de desobediência?

K) Sucede que, em momento algum foi justificado o motivo pelo qual o recorrente foi abordado: nem na acusação, nem na sentença recorrida.

L) Acresce que, em momento algum na acusação consta se o arguido era condutor de um veículo em circulação, se era peão interveniente em acidente de viação ou se se propunha a iniciar a condução. É nestes casos e só nestes, que os indivíduos devem ser submetidos às provas de detecção do estado de embriaguez – v. artigo 152.º do Código da Estrada.

M) Não consta da acusação se o arguido era condutor, que veículo conduzia, qual a matrícula do mesmo; sendo estes elementos essenciais para a compreensão do que motivou a realização dos (inúmeros) testes de despistagem.

N) Pelo que, o tribunal a quo considerou provados factos que não consubstanciam qualquer crime. É este o sentido da jurisprudência:

«II – se os factos constantes da acusação não constituem crime, o Tribunal não pode suprir as deficiências daquela peça acrescentando-lhe os que foram omitidos, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo.

“Aqui chegados, cumpre referir, também, que atento o objecto do processo, fixado pela acusação pública – i. é, pelos factos ali descritos -, em rigor, nunca seria possível a prova da realidade de tais factos porquanto os mesmos estão dependentes de outros factos – não descritos na acusação, e por isso, não sujeitos a prova – como por exemplo em que circunstâncias foi o Arguido, na data e local em causa nos autos, sujeito a fiscalização, pela GNR, a fim de ser sujeito ao exame de despistagem de álcool no sangue ? ``Aquela data e local o Arguido estava a conduzir um veículo? Na afirmativa qual o veículo? Ou, naquelas mesmas circunstâncias de facto e local o Arguido tinha a qualidade de peão interveniente num acidente? Ou, propunha-se a iniciar a condução? Isto é a acusação não descreve os factos integradores de qualquer uma das alíneas do Art.º 152º, do Cód. Estrada. Mais, faltando a descrição de tais factos ficamos sem saber em que circunstâncias aquela despistagem foi efectuada e, assim, se a ordem dada pela autoridade era ou não legal; logo, como concluir que o Arguido soubesse ser tal ordem legal e ser a sua conduta proibida por lei? Com efeito, é essencialmente a acusação em causa nos autos, que, a par da defesa, de uma forma irremediável e inexorável fixa o objecto do processo, bem como os poderes de cognição do Tribunal, vinculando-o tematicamente – cfr. Art.º 32º, n.º 5, da CRP, que rege o princípio do acusatório”. (in Ac. TRG de 07-02-2011, no âmbito do processo 269/10.2GCGMR.G1no qual foi Relator o Sr. Juiz Desembargador Dr. Fernando Chaves, disponível na Biblioteca Digital da Justiça Portuguesa em http://biblioteca.mj.pt/acordao).

Nestes termos, a sentença recorrida violou o princípio do acusatório, bem como o princípio da vinculação temática, e, em concreto, as seguintes normas jurídicas: o artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa e o artigo 152.º, n.º 1 do Código da Estrada e o artigo 348.º, n.º 1, al a) do Código Penal.

Nestes termos, nos mais de direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências Venerandos Srs. Juízes Desembargadores, deve o presente recurso ter provimento, sendo a decisão recorrida revogada e substituída por outra que absolva o arguido, fazendo, assim, Vossas Excelências a costumada Justiça».

O Ministério Público respondeu ao recurso dizendo:
“1- O arguido A., foi condenado pela prática de um crime de desobediência, na pena de 100 dias de multa, à razão diária de 5,5 euros.

2- Na sentença em recurso, é feito um enorme e sério esforço de conjugação e apreciação de toda a prova produzida, que gerou um enunciado claro e preciso que expõe de forma directamente compreensível as razões do juízo feito sobre a matéria de facto, e cuja pertinência com a matéria de facto produzida em audiência é facilmente constatável, resultando do recurso interposto uma mera desconformidade entre a visão dos factos apresentada pelo recorrente e os factos dados como provados, o que nos reconduz ao erro na apreciação da prova, na medida em que nele se diz que os factos dados como provados deverão “ser objecto de reapreciação” e “merecem uma segunda apreciação”;

3- Relativamente aos erros de escrita que constam do auto de notícia, e ao facto de ter sido deduzida acusação, resulta da tramitação normal do processo sumário, isto é, nos termos do artigo 389.º do CPP, o Ministério Publico pode substituir a apresentação da acusação pela leitura de auto de notícia. Ora, o auto de notícia sem qualquer despacho a remeter para o mesmo, não constitui por si só uma acusação, pelo que a acusação proferida não foi uma “nova acusação”, como referido pelo recorrente.

4- Relativamente ao motivo pelo qual o arguido foi abordado, resulta da fundamentação de facto, bem como é admitido pelo mesmo que este se encontrava a conduzir o veículo automóvel, até ser interceptado pela Guarda Nacional Republicana.

Termos em que julgando o presente recurso improcedente farão V. Exas como é de lei»

Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu douto parecer no sentido do recurso não merecer provimento.

Observado o disposto no art. 417º nº 2 do C. P. Penal, o arguido respondeu pugnando pela posição já assumida nos autos.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
I -Relatório- (…)

cII. Questão prévia: a forma de processo sumário:

Como questão prévia, o arguido sustentou que o Ministério Público não deveria tê-lo submetido a julgamento sob a forma de processo sumário, uma vez que o auto de notícia refere que os factos aí constantes tiveram lugar no dia 09 de Julho de 2013.

Por conseguinte, uma vez que o auto de notícia substitui a acusação, há muito que decorreu o prazo a que alude o artigo 387º do Código de Processo Penal.

Em resposta, o Ministério Público alegou que a data mencionada no cabeçalho do auto de notícia se trata de um lapso manifesto.

Apreciando.

Julgamos que não assiste razão ao arguido, porquanto, em processo sumário, o auto de notícia pode substituir a acusação quando, estando em causa crime punível com pena de prisão cujo limite máximo não ultrapasse 5 anos (ou concurso de infracções cujo limite máximo não seja superior a 5 anos de prisão), o Ministério Público manifeste a sua intenção de fazer-se valer desta faculdade (cfr. artigo 389º, nº 1 do Código de Processo Penal). Tal equivale a dizer que, nestas situações, o Ministério Público “pode” optar entre deduzir acusação ou, diferentemente, remeter para os factos que se encontram descritos no auto de notícia.

Ora, no caso em apreço, foi intenção do Ministério Público apresentar acusação, onde se refere que os factos em apreço tiveram lugar no dia 22 de Novembro de 2013.

Fica, por isso, necessariamente prejudicada a nulidade arguida, porquanto não há dúvidas que se mostram respeitados os prazos a que alude o artigo 387º, nºs 1 e 2, alínea c) do Código de Processo Penal.

Sem prejuízo, sempre se dirá que, caso o Ministério Público tivesse remetido para os factos constantes do auto de notícia, a verdade é que resulta dos autos que a data que vem referida no auto de notícia padece de um lapso manifesto e evidente, porquanto é notório que os factos terão ocorrido no dia 22 de Novembro de 2013 e não, como se refere no cabeçalho, no dia 9 de Julho de 2013. Para tal, basta atendermos às datas apostas nos talões de teste e à data aposta no auto de notícia por baixo do item “data/hora e local dos factos”. Por outro lado, o Sr. Militar da GNR AE, responsável pela elaboração do auto de notícia, confirmou que se tratou de um lapso, tendo os factos ocorrido no dia 22 de Novembro de 2013.

Ademais, o arguido, no seu requerimento junto a fls. 33 e ss., conseguiu identificar, sem quaisquer dúvidas, que a operação de fiscalização teve lugar no passado dia 22 de Novembro, pronunciando-se acerca da mesma.

Termos em que, de harmonia com as considerações acima tecidas, julgo improcedente a nulidade invocada pelo arguido.

Notifique.
**
III. Matéria de facto:
A) Factos provados:

Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com relevo para a boa decisão:

1)No dia 22 de Novembro de 2013, pelas 03horas e 15 minutos, na E.M. 372, no Cano, o arguido foi interpelado por AE, cabo da Guarda Nacional Republicana, no exercício das suas funções, devidamente uniformizado, para se submeter ao teste de influenciado pelo álcool. Foi de imediato submetido ao teste qualitativo de álcool, efectuado pelos guardas da GNR, que acusou uma TAS de 1,60 g/l.

2) Perante tal resultado, o arguido foi informado que teria de efectuar o teste quantitativo de álcool e por três vezes, - devido à insuficiência de sopro com que intencionalmente fazia tal teste- não foi possível colher qualquer leitura, não obstante lhe ter sido dito que se não o fizesse, incorreria num crime de desobediência.

3) O aparelho de detecção de álcool no sangue encontrava-se a funcionar.

4) O arguido agiu consciente e livremente, querendo subtrair-se ao exame referido, bem sabendo que, dessa forma, desacatava um comando que lhe tinha sido dado pelo militar supra identificado no exercício das suas funções, em conformidade com a lei.

5) Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

6) O arguido vive, numa casa emprestada, com uma companheira e com três filhas, que têm 14, 22 e 25 anos de idade.

7) A filha mais nova do arguido encontra-se a estudar, a outra já trabalha e uma outra está desempregada.

8) A companheira do arguido está desempregada desde o passado mês de Outubro.

9) O arguido trabalha com lenha e na apanha da azeitona, de onde retira uma quantia média mensal de cerca de € 500,00 - € 600,00.

10) O arguido não tem antecedentes criminais.
*
B) Factos não provados:

Não se provou:
11) O arguido ficou cansado e esgotado de tanto ter inspirado e expirado.

12) Em face da impossibilidade verificada de realizar o teste, os militares da GNR comunicaram ao arguido que teriam que o transportar ao Centro de Saúde de Estremoz a fim de realizar colheita de sangue, tendo este concordado.
13) Todavia, resolveram não o levar a Estremoz.

Não se provaram quaisquer outros factos, sendo que aqui não importa considerar as alegações meramente probatórias, conclusivas e de direito, que deverão ser valoradas em sede própria. Por outro lado, os demais factos alegados no requerimento de fls. 33 e ss. não revestem interesse para a decisão a proferir.

C) Motivação:
A convicção do Tribunal, quanto aos factos provados e não provados, foi adquirida a partir da análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, bem como da prova documental junta aos autos e com recurso a juízos de experiência comum e à livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

Para formar a convicção do Tribunal acerca das circunstâncias concretas que rodearam a actuação do arguido (pontos 1 a 3 dos factos provados), o Tribunal teve, sobretudo, em consideração os depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento por AE e AS, militares da GNR que procederam à acção fiscalização que envolveu o arguido e, bem ainda, o documento de fls. 4 que atesta que o arguido foi sujeito, por três vezes, a exame de detecção de álcool (teste quantitativo), sem qualquer sucesso.

Prestando declarações em audiência de discussão e julgamento, o arguido admitiu ter ingerido bebidas alcoólicas durante o jantar. Admitiu, ainda, que, no dia em apreço, efectuou testes de pesquisa de álcool no local onde foi mandado parar e nos Postos da GNR de Sousel e de Fronteira. Por fim, admitiu que efectuou vários sopros, de acordo com as instruções que lhe foram dadas pelos Militares da GNR. Todavia, referiu desconhecer se, nalgum deles, resultou uma TAS de 1,60 g/l.

Analisadas as declarações prestadas pelo arguido, entende o Tribunal que as mesmas não merecem grande credibilidade – na parte em que refere que obedeceu sempre aos militares da GNR a propósito do modo como deveria soprar - atenta a prova que foi produzida em audiência de discussão e julgamento.

Assim, inquiridos em audiência de julgamento, os militares da GNR AE e AS prestaram depoimentos no essencial coincidentes, tendo sido peremptórios em afirmar que o arguido, quando foi mandado parar na Estrada Municipal do Cano, efectuou testes qualitativos, sem qualquer sucesso. Levado para o Posto da GNR de Sousel, o arguido voltou a fazer testes qualitativos, tendo resultado uma TAS de 1,60 g/l. Nessa medida, foi levado ao posto da GNR de Fronteira para aí ser submetido ao teste quantitativo, tendo, propositadamente, impedido a sua realização devido à insuficiência que imprimia ao sopro.

Como já se teve oportunidade de referir, os militares da GNR prestaram depoimentos no essencial coincidentes, que nos pareceram verdadeiros, credíveis e isentos, sem interesse no desfecho da causa (até porque não conheciam o arguido).

Acredita o Tribunal que o arguido se furtou, de forma intencional, à realização do exame quantitativo de ar expirado.

Desde logo, porque o arguido, antes de ter sido levado para o Posto da GNR de Fronteira, tinha efectuado o teste qualitativo, de onde resultou uma TAS de 1,60 g/l.

Ora, tratando-se de exames com idêntico grau de dificuldade e que não foram feitos de forma seguida (permitindo ao arguido recuperar o folgo no período que mediou entre Sousel e Fronteira), não se compreende por que motivo o arguido conseguiu fazer um primeiro teste de despistagem e, mais tarde, já no teste quantitativo, sabendo que tinha acusado uma TAS de 1,60 g/l, não conseguiu soprar com sucesso…

Por outro lado, dos autos constam os talões de teste do exame quantitativo, onde se pode verificar que o sopro que o arguido imprimiu durou, tão só, 0,1 seg., 2,6 seg. e 3,4 seg.

Ademais, os Senhores Militares da GNR, habituados a fazer operações de fiscalizações, não tiveram dúvidas em afirmar que o arguido actuou de forma intencional e propositada, furtando-se a que o teste quantitativo tivesse um resultado satisfatório (conclusivo). Explicaram que o arguido - contrariando as suas instruções e advertido que a recusa constituiria a prática de um crime de desobediência -, depois de inspirar, não expirava de forma contínua, imprimindo sopros curtos (cfr. depoimento da testemunha AE), travando o ar (cfr. depoimento da testemunha AS).

Ora, como já se teve oportunidade de referir, estão em causa dois militares da GNR que, fruto do exercício da profissão que desempenham, estão habitados a fazer estes testes, conseguindo e tendo a capacidade de distinguir as situações em que alguém, de forma não intencional, não consegue fazer estes testes daquelas em que o agente, propositadamente, provoca um resultado insuficiente.

Acresce que estes dois militares da GNR referiram que o arguido tinha um odor a álcool, tendo o arguido admitido que ingeriu bebidas alcoólicas durante o seu jantar. alternativas. Ora, os militares da GNR explicaram que o arguido nunca lhes disse que estava cansado, ou até que sofria de alguma doença, ou até que tinha dificuldades em soprar, tendo-se limitado a dizer a estes militares que conseguia soprar.

Por fim, diga-se ainda que a testemunha JX pouco contributo trouxe para sustentar a versão apresentada pelo arguido ou abalar a convicção do Tribunal e a solidez da prova produzida. Esta testemunha, pese embora tenha estado presente durante a acção de fiscalização, pouco ou nada ouviu, tendo-se quase tão só limitado a aguardar pelo arguido quando este foi levado para o Posto da GNR de Sousel e de Fronteira.

Cumpre referir, a propósito do ponto 3) - o aparelho de detecção de álcool no sangue encontrava-se a funcionar – que os militares da GNR referiam que aquele aparelho funcionava normalmente e que, como é normal acontecer, os tracejados iam ganhando cor e aparecendo à medida que o sopro era mais consistente. Nada de anormal se passou.

Ademais, o auto de notícia, depois de identificar o modelo de aparelho, faz expressa referência ao despacho que o aprovou e à data da verificação pelo IPQ não tendo sido colocada em dúvida, de forma séria, o seu normal funcionamento.

Pelo exposto, deu o Tribunal como provados os factos descritos nos pontos 1) a 3) e como não provado o facto enunciado no ponto 11).

No que respeita dos pontos 4) e 5), a prova dos mesmos resulta das regras da lógica e da experiência comum que nos dizem que, qualquer cidadão médio colocado na posição do arguido, saberia que, ao actuar da forma acima descrita, estaria a desacatar um comando que lhe tinha sido dado por um militar da GNR que se encontrava no exercício das suas funções, actuando de forma contrária à lei penal.

Por outro lado, o arguido foi advertido pelos militares da GNR que tinha que soprar de forma contínua e que, não o fazendo, estaria a praticar um crime de desobediência.

A prova das concretas situações de vida do arguido – pontos 6) a 10) – assentou nas declarações que prestou em audiência de discussão e julgamento.

A prova da ausência de antecedentes criminais assentou no CRC, junto a fls. 17.

Relativamente aos pontos 12) e 13) dos factos não provados, pese embora o arguido tivesse referido que os militares da GNR que foram ouvidos em audiência de discussão e julgamento lhe disseram que teria que ir ao Centro de Saúde de Estremoz fazer uma recolha de sangue, a verdade é que aqueles dois militares explicaram, de forma coincidente, quenunca foi abordada, quer pelos militares, quer pelo arguido, a possibilidade de fazer exames ao sangue para detectar álcool.

Ademais, a testemunha AE, quando confrontada com o facto de poderem ter dito ao arguido que teria que de deslocar ao Centro de Saúde, referiu, de forma imediata, que só faz esta menção quando em causa esteja uma contraprova ou por motivos de saúde, o que não aconteceu neste caso.

Por outro lado, a testemunha JX, que seguia com o arguido quando este foi mandado parar e esperou por ele quando foi para o Posto da GNR de Sousel e de Fronteira, referiu que o arguido nunca lhe falou desta deslocação ao Centro de Saúde de Estremoz. Ora, a ser verdade a versão que o arguido apresentou em audiência de discussão e julgamento, o normal e expectável seria que, quando tivesse regressado para junto desta testemunha, lhe tivesse contado o que aconteceu durante aquele período de tempo em que esteve com a GNR, sendo certo, que, segundo contou esta testemunha, o arguido nunca lhe referiu nada a propósito da deslocação ao Centro de Saúde de Estremoz.

III- Apreciação do recurso

O objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação, arts. 403º, nº 1 e 412ºnº 1 do CPP.

As conclusões do recurso destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância do recorrente em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).

Perante as conclusões do recurso as questões a decidir são as seguintes:

1ª- Se os factos constantes da matéria provada integram o crime de desobediência p. e p. no art. 152º, nºs 1 e 3 do código da Estrada, 348º, nº 1, al. a) e 69º, nº 1, alínea c) do C.Penal.

2ª – Da pretensa impugnação da matéria de facto.

III- 1ª- Se os factos constantes da matéria provada integram o crime de desobediência p. e p. no art. 152º, nºs 1 e 3 do código da Estrada, 348º, nº 1, al. a) e 69º, nº 1, alínea c) do C.Penal.

Dispõe o art. 152º, do Cód. da Estrada:

“1- Devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas: a) os condutores; b) os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito; c) as pessoas que se propuserem iniciar a condução”.

2- (…)
3- As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do nº 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência”.

Por sua vez, estabelece o nº 1, al. a) do art. 348º do C.Penal: “Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) uma disposição legal cominar, no caso, a punição de desobediência simples.

Assim, constituem elementos objectivos do crime em apreço a emissão de ordem ou mandado, que para além de se revestir de legalidade substancial e formal, terá que ser emitida pela autoridade ou funcionário competentes para esse efeito. Por outro lado, exige-se ainda, que após a regular transmissão da ordem ou mandado ao respectivo destinatário, que este não cumpra o comando, que lhe está subjacente (cfr Leal- Henriques e Simas Santos, in Código Penal Anotado, 2º Volume, Parte Especial, 3ª edição, Editora Rei dos Livros, 2000, pág 1503”.

Portanto, a ordem tem de se revestir de legalidade substancial, isto é, tem de ter atrás de si uma disposição legal que autorize a sua emissão. Na verdade, não se pode emitir uma ordem sem que uma lei anterior confira ao emitente poder para tal, a não ser que essa possibilidade se compreenda nos poderes discricionários do funcionário.

No caso em análise consta da matéria provada que:

“No dia 22 de Novembro de 2013, pelas 03horas e 15 minutos, na E.M. 372, no Cano, o arguido foi interpelado por AE, cabo da Guarda Nacional Republicana, no exercício das suas funções, devidamente uniformizado, para se submeter ao teste de influenciado pelo álcool. Foi de imediato submetido ao teste qualitativo de álcool, efectuado pelos guardas da GNR, que acusou uma TAS de 1,60 g/l.

Perante tal resultado, o arguido foi informado que teria de efectuar o teste quantitativo de álcool e por três vezes, - devido à insuficiência de sopro com que intencionalmente fazia tal teste- não foi possível colher qualquer leitura, não obstante lhe ter sido dito que se não o fizesse, incorreria num crime de desobediência.

O aparelho de detecção de álcool no sangue encontrava-se a funcionar”.

Destes factos não constam as circunstâncias em que o arguido, na data e local em causa nos autos foi sujeito a fiscalização nomeadamente se conduzia um veículo e na afirmativa qual o veículo, se tinha a qualidade de peão ou interveniente num acidente de viação, ou, se se propunha iniciar a condução, isto é, se se encontrava em qualquer das situações prevista no art. 152º nº 1 do Cód da Estrada.

Estes factos também não constavam da acusação.

É certo que no caso concreto estamos perante um processo sumário, mas, devido aos lapsos que o auto de notícia continha e ao requerimento formulado pelo arguido, o Ministério Público procedeu a diligências de prova e formulou a acusação de fls. 43, que é autónoma do auto de notícia, uma vez que não faz qualquer remissão para o teor deste, referindo-se, apenas na parte final da mesma, que para prova dos factos constantes da acusação, “indica-se (….) como prova testemunhal os elementos da Guarda Nacional Republicana identificados no auto de detenção”.

A acusação é omissa, relativamente à legalidade substancial da ordem, à legitimidade da ordem, isto é, não contem factos que nos permitam saber se o arguido se encontrava numa das situações previstas na lei, em que podia ser submetido às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciando pelo álcool, pelo que não estão preenchidos todos os elementos objectivos do crime de desobediência, nem de qualquer outro ilícito de natureza criminal.

Poderia esta lacuna ser suprida?

A acusação fixa o objecto do processo. É ela que delimita o conjunto dos factos que consubstanciam um crime, estabelecendo, assim os limites da investigação judicial. Nisto se traduz o princípio da vinculação temática. Ao vedar os poderes de cognição do juiz a outros factos, que não os contidos na acusação, está a garantir-se ao arguido que só deles tem de defender-se e que por outros não poderá ser condenado.

Como refere o Professor Figueiredo Dias, em Direito Processual Penal, I, Coimbra Editora, pág. 145, “deve pois afirmar-se que o objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal (…) e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade e da indivisibilidade e da consumpção do objecto do processo penal (…). Os valores e interesses subjacentes a esta vinculação temática do tribunal, implicada no princípio da acusação, facilmente se apreendem quando se pense que ela constitui a pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido”.

Este princípio da estrutura acusatória do processo penal está consagrado no art. 32º nº 5 da Constituição e uma da principais características do mesmo significa não só que há-de haver uma acusação a delimitar o objecto do processo, mas também que a entidade que acusa é diferente da que julga e por isso, esta “apenas pode investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferente” (Cfr.neste sentido o Professor Figueiredo dias na obra citada pág. 136).

Nesta sequência, dado que os factos constantes da acusação não constituem crime e o tribunal a quo não podia suprir as deficiências da acusação, nomeadamente chamando à colação o disposto nos arts. 359º e 358º do CPPenal, que pressupõem uma alteração substancial ou não substancial dos factos que constam da acusação para crime mais grave ou menos grave, e não a inexistência de crime (em relação aos factos da acusação) em que neste caso, o tribunal não pode suprir a omissão da acusação, uma vez que se o fizesse assumiria simultaneamente as funções de julgamento e as de acusador, o que violaria o princípio do acusatório vigente no nosso processo penal e os direitos de defesa do arguido.

Impõe-se, pois, a absolvição do arguido, por virtude dos factos constantes da acusação e da matéria provada não integrarem todos os elementos objectivos do crime de desobediência imputado ao arguido.

Está assim, prejudicado o conhecimento da outra questão suscitada no recurso.

IV – Decisão
Termos em que acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao recurso interposto e nesta sequência, revogar a decisão recorrida e absolver o arguido do crime de desobediência previsto e punível no arts. 152º, nºs 1 e 3 do Código da Estrada, 348º, nº 1, al. a) e 69º, nº 1, alínea c) do C.Penal.

Sem custas.
Notifique.

Évora, 3 de Junho de 2014

(texto elaborado e revisto pelo relator)

JOSÉ MARIA MARTTINS SIMÃO

MARIA ONÉLIA MADALENO