Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
92/11.7GFELV.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: PROGRAMA TELEVISIVO
DIREITOS DE AUTOR
Data do Acordão: 10/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário:
1. Os direitos autorais de transmissão de programa televisivo abrangem a recepção das emissões, independentemente do lugar – público ou privado – em que essa recepção se processe.

2. Mesmo nos casos de recepção em local público ou aberto ao público só assim não sucede quando a visualização das imagens e a audição do som se processe por via de “organismo que não o de origem”, ou seja, quando a recepção decorra com recurso a procedimentos técnicos distintos dos que integram o aparelho receptor, como altifalantes ou outros transmissores de sinais (sons ou imagens).

3. É esta intermediação ou uso de aparelho próprio orientado para a difusão e potenciação do sinal de origem que transmuta a “recepção” da obra (já coberta pelos direitos autorais pagos pela estação emissora de origem) em “(re)transmissão” (esta sim sujeita a nova autorização do autor).

4. A emissão de programa televisivo, em estabelecimento aberto ao público, através de um televisor ligado a uma box da Cabovisão (exclusivamente), sem que os titulares dos direitos de autor tivessem concedido uma (segunda) autorização específica para este efeito, não realiza o tipo objectivo de ilícito de usurpação dos artigos 195.º e 197.º do Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos. [1]
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Processo n.º 92/11.7GFELV do 1º juízo do Tribunal Judicial de Elvas foi proferida sentença em que se decidiu absolver o arguido M. da prática de um crime de usurpação dos artigos 195.º e 197.º do Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos, com referência aos artºs. 68.º n.º 2, 127.º n.º 3, 149.º n.º1 e 2 e 155.º.

Inconformada com o assim decidido, recorreu a assistente SPA – Sociedade Portuguesa de Autores, concluindo que:

“A. Atento o plasmado na motivação ora descrita, não pode a Assistente concordar com a decisão do Meritíssimo Juiz “a quo” de absolver o arguido M pela prática, como autor material, e na forma consumada, de um crime de usurpação.

B. Pois que, efectivamente, no estabelecimento comercial “X”, explorado pelo arguido, se encontravam a ser comunicadas publicamente obras protegidas pelo direito de autor, sem que o arguido tivesse obtido a necessária autorização da Assistente, entidade que, em Portugal, representa os autores da obra em causa.

C. O que, tendo o arguido conhecimento da necessidade de obter e pagar tal autorização, não só afecta direitos de autor legalmente protegidos, como consubstancia um crime de usurpação p. e p. pelos artigos 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

D. Ora, embora a mera recepção de obras radiodifundidas não implique a obtenção de autorização dos respectivos autores, de acordo com o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 4/92 de 28 de Maio de 1992, o arguido utilizava um aparelho receptor (televisão), ao qual tinha ligado um aparelho externo que lhe permitia ampliar o sinal recebido (Box da Cabovisão).

E. Ora, este aparelho (Box) é exterior ao simples aparelho de televisão ou de rádio.

F. Por isso, ainda que se pudesse defender que o televisor é um aparelho de mera recepção, já o mesmo não se passa com este aparelho, sem o qual seria impossível para o arguido exibir o canal MTV, que se encontrava a ser visualizado, pelo que o arguido necessitava, de facto, de um procedimento técnico (a box), externo ao aparelho receptor para poder recepcionar as obras radiodifundidas, o que não seria necessário se se tratasse de um canal televisivo acessível através da mera recepção.

G. O arguido procedeu, assim, a uma recepção-transmissão, tal como previsto no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 4/92 de 28 de Maio de 1992, com todas as obrigações daí decorrentes.

H. Sendo a definição de local público todo aquele em que seja oferecido o acesso, implícita ou explicitamente, mediante remuneração ou sem ela, ainda que com reserva declarada do direito de admissão, conforme definido pelo artigo 149º, nº 3 do CDADC, como o é o estabelecimento comercial explorado pelo arguido, será necessário estabelecer um paralelo com o Acórdão do Tribunal de Justiça (Terceira Secção) de 7 de Dezembro de 2006, no Processo C-306/05, que refere que Resulta do vigésimo terceiro considerando da Directiva 2001/29 que o conceito de comunicação ao público deve ser entendido em sentido amplo.

I. Ora, de acordo com esse Acórdão, ...uma comunicação operada em circunstâncias como as do processo principal traduz-se, segundo o artigo 11º-bis, nº 1, alínea ii), da Convenção de Berna, numa comunicação feita por um organismo de retransmissão que não é o organismo de origem. Assim, esta transmissão é feita a um público diferente do público visado pelo acto de comunicação originário da obra, isto é, a um público novo.

J. Como explica o Guia da Convenção de Berna, documento interpretativo elaborado pela OMPI que, sem ter força obrigatória geral, contribui, no entanto, para a interpretação da referida convenção, o autor, ao autorizar a radiodifusão da sua obra, toma apenas em consideração os utentes directos, isto é, os detentores de aparelhos de recepção que, individualmente ou na sua esfera privada ou familiar, captam as emissões. Segundo este guia, quando esta recepção se destina a um círculo mais amplo, e por vezes com fins lucrativos, permite-se que uma fracção nova do público desfrute da audição ou da visão da obra e a comunicação da emissão por altifalante ou instrumento análogo deixa de ser a mera recepção da própria emissão, mas um acto independente através do qual a obra emitida é comunicada a um novo público. ...esta recepção pública dá lugar ao direito exclusivo do autor de a autorizar

L. Assim, à questão que se coloca de saber se a autorização dada pelo autor à estação de radiodifusão abrange toda a subsequente utilização que seja feita da radiodifusão, que pode ser ou não para fins comerciais, responde a Convenção de forma negativa, porquanto Tal como no caso de uma retransmissão por fio de uma radiodifusão, em que se gera um audiência adicional [nº 1, alínea ii], também neste caso, portanto, a obra é colocada à disposição de ouvintes (e talvez de espectadores) que não os contemplados pelo autor quando deu essa autorização. Embora, por definição, o número de pessoas que recebe uma radiodifusão não possa ser determinado com segurança, o autor considera a sua autorização de radiodifusão no sentido de abranger apenas a audiência directa que recebe o sinal, num círculo familiar. Quando esta recepção se destina a constituir um entretenimento para um círculo mais amplo, muitas vezes com fins lucrativos, permite-se que uma secção mais ampla do público desfrute da obra, deixando de se tratar de uma mera questão de radiodifusão. O autor tem o poder de controlar esta nova representação pública da sua obra.

M. Entende-se, pois, que a Convenção de Berna «enunciou o princípio da necessidade de uma autorização do autor para todas as utilizações secundárias da obra radiodifundida que dão lugar a actos autónomos de exploração económica da obra, em razão do fim lucrativo prosseguido pelo sujeito jurídico responsável.

N. Assim se conclui que, no caso em apreço, não só existe uma comunicação diferente daquela que foi considerada pelo autor aquando da autorização concedida, como igualmente tal comunicação tem um objectivo de lucro para o estabelecimento comercial em causa, na medida em que visava potenciar aos clientes que se encontravam no interior do estabelecimento um entretenimento enquanto efectuavam consumo de bebidas e/ou alimentos no decorrer da comunicação da obra.

O. Por fim, torna-se importante esclarecer que a comunicação feita pelo arguido no seu estabelecimento, a um público que se encontrava no interior do mesmo, portanto aos clientes do estabelecimento, consubstancia uma utilização da obra totalmente distinta da transmissão efectuada pela Cabovisão, já que a autorização obtida por esta entidade se limita à transmissão para um círculo restrito e familiar e não para uma comunicação ao público com a extensão que é permitida por um estabelecimento desta natureza...

P. Ressalvando-se, ainda, o aproveitamento económico que o arguido faz das obras, pois oferece-as a um público alargado no interior do estabelecimento, como entretenimento para os clientes que aí se encontram, o que potencia uma venda de bens superior à que obteria se não se encontrasse a transmitir a obra em causa...

Q. Pelo que é a própria operadora de TV cabo, no caso a Cabovisão que nas condições específicas de prestação do serviço de televisão e multimédia (as quais são, naturalmente, do conhecimento de quem contrata o serviço) que afasta a responsabilidade de obter qualquer autorização para comunicação ao público de obras, ao enunciar na sua cláusula 19.1 O Cliente reconhece que os conteúdos áudio e vídeo a que acede, ou que lhe são disponibilizados no âmbito dos serviços, são exclusivamente para seu uso pessoal e privado e encontram-se protegidos por direitos de propriedade intelectual, designadamente direitos de autor e ou direitos conexos, pelo que qualquer utilização dos mesmos para fins distintos de utilização privada, apenas poderão ocorrer com autorização expressa dos respectivos titulares.

Q. Com efeito, determina na cláusula 19.2 que Depende de autorização dos respectivos titulares, nos termos legais, a comunicação da obra em qualquer lugar público, por qualquer meio que sirva para difundir sinais, sons ou imagens.

R. Mais, especifica a cláusula 19.3 que O Cliente que utiliza os serviços no âmbito da sua actividade comercial é responsável pelo pedido e pagamento, junto da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) e das demais entidades de gestão colectiva que estão registadas junto da Inspecção-Geral das Actividades Culturais, as licenças relativas aos direitos de execução de obras musicais e ou audiovisuais, transmitidas em locais públicos, ao abrigo das tabelas e ou tarifas fixadas pelas mencionadas entidades. É da exclusiva responsabilidade do Cliente fazer prova junto das autoridades competentes da regularização dos pagamentos respeitantes à execução pública de obras musicais e ou audiovisuais.

S. É evidente, por isso, também pela análise do contrato celebrado entre a Cabovisão e o arguido, que aquela sabe que o serviço prestado não possibilita, por si só, a utilização das obras num estabelecimento comercial, razão que justifica que a Cabosião informe o seu cliente (no caso o arguido) de que, para além do serviço contratado à operadora de cabo, necessita obter autorização dos autores, portanto da Sociedade Portuguesa de Autores, para poder comunicar, através da box, as obras no seu estabelecimento comercial.

T. Porquanto sabem as operadoras que o contrato que celebraram com os autores, que as autoriza a proceder à transmissão de obras, não permite a comunicação em locais públicos dessas obras.

U. Da mesma forma, e ao contrário do alegado pelo Meritissimo Juiz a quo, não são as próprias entidades difusoras que pagam os respectivos direitos de autor aos seus titulares e/ou representantes quando a utilização em causa extravasa o âmbito do serviço contratado com a operadora, isto é...

V. Os valores pagos pelas entidades difusoras abrangem exclusivamente a utilização privada/familiar do serviço e, portanto, das obras transmitidas, não abrangendo, claramente, as situações em que as obras são difundidas num local público, como sendo um estabelecimento comercial, em que existe um aproveitamento económico da obra do próprio subscritor do serviço e explorador do estabelecimento, neste caso o arguido.”.

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo por seu turno:

“1. O arguido M, foi absolvido, por decisão proferida no dia 20 de Dezembro de 2012, no processo identificado à margem dos autos, pela prática de um crime de usurpação, p. e p. pelos artigos 195º e 197º, ambos do Código dos Direitos de Autor de Direitos Conexos.

2. Como bem refere a assistente no seu excurso argumentativo, sempre que alguém se limite a recepcionar no seu estabelecimento comercial obras radiodifundidas, está a proceder a mera recepção, estando por isso, dispensado de obter autorização para proceder dessa forma.

3. Nos presentes autos ficou provado, o que não é contestado, que o arguido, no estabelecimento comercial, detinha uma televisão com aparelho exterior, modernamente designada box (no caso, da Cabovisão).

4. Tal aparelho (exterior à televisão) não é um aparelho que se destina à transmissão de sons, sinais ou imagens, mas sim precisamente um aparelho cuja função primordial é a própria recepção do sinal.

5. Ora, como é forçoso concluir, torna-se uma evidência que não estamos perante um dos casos que a jurisprudência designou como recepção-transmissão, mas sim mera recepção.

6. Não terá sido violado qualquer preceito legal.”

Neste Tribunal, o Sr. Procuradora-geral Adjunto emitiu parecer também no sentido da improcedência.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. À data dos factos o arguido explorava uma pastelaria denominada “X”, sita na Rua..., em Campo Maior.

2. No dia 13 de Maio de 2011, pelas 11 horas e 50 minutos, estando aquele estabelecimento aberto ao público, com seis clientes no interior, era emitido, através de um aparelho de televisão, ligado a um aparelho da TV Cabovisão, um programa de som e imagem da MTV, constituído por aquilo a que vulgarmente se designa “videoclips” em que eram apresentadas obras de Katy Perry, nomeadamente com a obra "Firework", Beyonce, com a obra "Check on it" e My Chemical Romance com a obra "Sing it for Japan", sendo que os referidos autores e intérpretes, são representados em Portugal pela Sociedade Portuguesa de Autores.

3. As referidas obras foram executadas em público sem que os titulares dos respectivos direitos – directamente ou através da Sociedade Portuguesa de Autores - tivessem concedido a necessária autorização para o efeito.

4. O Arguido tem o 12.º ano de escolaridade.

5. É operador de máquinas, auferindo mensalmente € 820,00 (oitocentos e vinte euros de salário).

6. Vive sozinho, dispendendo mensalmente € 250,00 (duzentos e cinquenta euros) de renda de casa; € 150,00 (cento e cinquenta euros) de pensão de alimentos; € 80,00 (oitenta euros) e € 35,00 (trinta e cinco euros) de consumos de electricidade e de água, respectivamente.

7. No âmbito do processo comum singular n.º ---/06.9GFELV, que correu termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Elvas foi o Arguido condenado por sentença, de 20.12.2010, transitada em julgado em 01.02.2011, pela prática, em 26.02.2006, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de trezentos dias de multa, à taxa diária de € 3,50 (três euros e cinquenta cêntimos).

8. No âmbito do processo comum singular n.º ---/09.0GFELV, que correu termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Elvas foi o Arguido condenado por sentença, de 28.03.2011, transitada em julgado em 06.05.2011, pela prática, em 31.05.2009, de um crime de violência doméstica contra cônjuge ou análogos, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código Penal, na pena de dois anos e dois meses de prisão, suspensa por igual período.

Foram consignados os seguintes factos como não provados:

“1. O aparelho de televisão aludido em 2. dos factos dados como provados estava ligado a duas colunas de som distribuídas pelo estabelecimento.

2. O arguido sabia que a utilização, mesmo como entretenimento ambiente, daquele programa da MTV, no qual são exibidos obras de diversos autores, no seu estabelecimento comercial carecia de autorização dos titulares dos direitos ou de quem os representa em Portugal.

3. Apesar disso, e de saber que não possuía tal autorização, voluntária e conscientemente, difundiu aquele programa, nomeadamente as obras dos autores já referidos, no seu estabelecimento comercial.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, independentemente do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), a questão a decidir é a de saber se os factos provados realizam o tipo de crime de usurpação dos artigos 195º e 197º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.

Encontrando-se o recurso restrito à decisão de direito, na ausência de vício previsto no art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal a matéria de facto será de considerar definitivamente estabilizada.

A análise dos factos provados centrar-se-á no tipo objectivo de ilícito. Contudo, a realização deste implicaria ulterior reapreciação da matéria de facto não provada em sede de vícios da decisão, consequência do “insolúvel círculo lógico” (na expressão de Castanheira Neves) que sempre relaciona questão de facto e questão de direito.

Cumpre, então, começar por saber se a emissão de programa televisivo (no caso, programa de som e imagem da MTV constituído por “videoclips”), em estabelecimento aberto ao público, através de um televisor ligado a uma box da Cabovisão (exclusivamente), realiza o tipo objectivo de ilícito de usurpação. Sendo ainda certo que as referidas obras foram emitidas em público sem que os titulares dos direitos de autor tivessem concedido uma (segunda) autorização específica para este efeito.

Na sentença, em que se citou abundante jurisprudência das Relações em apoio da posição adoptada, argumentou-se que “a difusão pública de emissões de rádio ou televisão não carece de licença específica pois são as próprias entidades difusoras que pagam, directamente, os respectivos direitos de autor aos seus titulares e/ou representantes, que, no caso concreto, é a Cabovisão. Donde, tal acção não consubstancia a prática de um crime de usurpação, não se mostrando, desde logo, preenchido um dos elementos objectivos do tipo – emissão não autorizada de obra videofonográfica. Enquandrando-se a descrita actuação do arguido numa mera actividade de recepção dos sinais sonoros e visuais que estavam a ser radiodifundidos por um operador de televisão por cabo, pelo que não se não verifica qualquer violação dos direitos de autor (cuja satisfação competirá, apenas, à estação televisiva emissora) não se mostrando preenchidos os elementos típicos do crime de usurpação.”

Este excerto da decisão equaciona as ideias-chave a identificar na situação de vida que cumpre enquadrar normativamente. E os factos provados consubstanciam uma prática não inédita, que tem vindo a dar origem a decisões dos tribunais da Relação no sentido adoptado na sentença.

O tipo de crime da acusação é o dos arts. 195º e 197º do Decreto-Lei nº 63/85, de 14.03 (que aprova o código do direito de autor e dos direitos conexos). Este art. 195º persegue quem, sem autorização do autor ou do artista, do produtor de fonograma e videograma ou do organismo da radiodifusão, utilizar uma obra ou uma prestação por qualquer das formas previstas nesse Código. O art. 68.º do mesmo diploma prevê como formas de utilização, a exploração e utilização da obra segundo a sua espécie e natureza por qualquer dos modos actualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser.

O crime de usurpação de obra artística visa proteger a obra – obra, como criação intelectual, no caso, do domínio artístico – bem como o “complexo de direitos que constituem o direito de autor (José Branco, Leis Penais Extravagantes, Org. José Pinto de Albuquerque e José Branco, II, p. 248).

Como o tribunal constitucional tem frisado, “a protecção da propriedade intelectual apresenta um carácter fundamental nas sociedades actuais. A ela se ligam considerações respeitantes ao desenvolvimento e progresso humano, muitas vezes em concorrência com valores de protecção dos direitos da personalidade, dos direitos patrimoniais dos criadores e, até, exigências de segurança dos consumidores”. Trata-se de um “bem jurídico dotado de especial significado”, de reconhecida “relevância ao nível constitucional como ao nível internacional e europeu”, com necessidade de tutela face ao aumento significativo de violações à propriedade intelectual (acórdão n.º 577/2011).

A par dos direitos morais, protegem-se os direitos patrimoniais do autor. Como titular do direito exclusivo de exploração da obra, o autor é afectado pela divulgação dela à sua revelia, ou seja, sem a sua autorização. E a divulgação não autorizada integra crime.

O art. 68º nº 2 do CDADC preceitua que assiste ao autor o direito exclusivo de fazer ou autorizar, por si ou pelos seus representantes, a difusão por qualquer processo de reprodução de sinais, sons ou imagens, e a comunicação pública por altifalantes ou instrumentos análogos, por fios ou sem fios; a reprodução directa ou indirecta, temporária ou permanente, por quaisquer meios e sob qualquer forma, no todo ou em parte; a colocação à disposição do público, por fio ou sem fio, da obra de forma a torná-la acessível a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido. Acrescenta o nº 3 que pertence em exclusivo ao titular do direito de autor a faculdade de escolher livremente os processos e as condições de utilização e exploração da obra. E resulta da al. e), do nº 2, do artigo 68º, que assiste ao autor o direito de autorizar “a difusão pela fotografia, telefotografia, televisão, radiofonia ou por qualquer outro processo de reprodução de sinais, sons ou imagens e a comunicação pública por altifalantes ou instrumentos análogos, por fios ou sem fios, nomeadamente por ondas hertzianas, fibras ópticas, cabo ou satélite, quando essa comunicação for feita por outro organismo que não o de origem.”

No caso presente, não está em causa a teledifusão das obras (videoclips), nem o recebimento (pelos autores) das contrapartidas já devidas por parte dos organismos emissores em virtude da difusão do programa televisivo. A teledifusão dos videoclips foi originariamente autorizada e os direitos dos autores assegurados pelo organismo emissor do programa televisivo. É também incontroverso que esta contrapartida cobre já a recepção/usufruição de tais programas, e que só em caso de nova (re)transmissão será devida nova autorização.

Os direitos autorais de transmissão de programa televisivo abrangem a recepção das emissões, e assim acontece independentemente do lugar – público ou privado – em que esta se processe. Pois mesmo nos casos de recepção em local público ou aberto ao público só assim não sucede quando a visualização das imagens e a audição do som ali se processe por via de “organismo que não o de origem”. Ou seja, quando a recepção decorra com recurso a procedimentos técnicos distintos dos que integram o aparelho receptor, como altifalantes ou outros transmissores de sinais (sons ou imagens), transmutando então a “recepção” em “transmissão/difusão”.

É esta intermediação ou uso de aparelho próprio orientado para a difusão e potenciação do sinal de origem que transmuta a “recepção” da obra (já coberta pelos direitos autorais pagos pela estação emissora de origem, repete-se) em “(re)transmissão” (sujeita, esta sim, a nova autorização do autor, como se disse).

Assim, a mera recepção de um programa, mesmo quando fora da esfera exclusivamente privada e em local público, é por si só insuficiente para configurar a situação prevista no tipo de ilícito em análise.

Aliás, a recepção de programa televisivo em estabelecimento público, na óptica de uma fruição ideal, exigiria sempre uma ampliação de sinal através de recurso a procedimentos técnicos distintos dos que integram o aparelho receptor. Daí que a previsão da norma legal se centre nesses “procedimentos técnicos”, utilizados na recepção, e que estes sejam então condição da realização do tipo.

Por outras palavras, em termos de agressão do bem jurídico não haverá diferença relevante entre um recepcionar do programa na economia do lar, e num estabelecimento aberto ao público em televisor sem recurso a meio de amplificação do sinal (visual ou sonoro). Também nesta segunda situação a obra só poderia ser recepcionada em condições por um universo igualmente bastante restrito de pessoas. A transmissão nestas circunstâncias não representaria sequer uma valia significativa para o estabelecimento, nem uma exploração indevida da obra do autor (que, repete-se, já recebeu contrapartida autoral no emissor de origem, a qual abrange a recepção das emissões num determinado contexto).

Daí não dever chocar a interpretação que tem vindo a ser seguida pela jurisprudência (ver por todos acórdão TRP de 19-09-2012, Pedro Vaz Patto, e jurisprudência aí referida) no sentido de que apenas a recepção pública da obra em estabelecimento comercial com recurso a mecanismos de ampliação do sinal externos ao aparelho receptor obrigará a pagamento de (novos) direitos autorais (para além dos já satisfeitos pela estação emissora), pois só nesta situação se poderá falar em reprodução de sons e imagens nas condições previstas no art. 68º, nº2, alínea e) do CDADC.

De acordo com a acusação, o aparelho de televisão em causa estaria ligado a duas colunas de som distribuídas pelo estabelecimento. Mas tais factos, que alterariam, estes sim, a decisão de direito, foram dados como não provados, juízo de factualidade que a recorrente não impugnou. Na ausência deles, os restantes quedam insuficientes para realização do tipo objectivo de crime de usurpação.

Pois também a recepção com utilização de box TV Cabo não releva para o juízo sobre a ilicitude - embora fisicamente externa ao aparelho televisor, esta box faz ainda parte do aparelho receptor, no sentido de apenas viabilizar a própria recepção do programa televisivo em causa, e isto indiferentemente da circunstância dessa recepção se processar numa residência, num café, ou noutro estabelecimento. A box não se destina a ampliar ou a difundir o sinal de emissão (nada influindo num conceito de “transmissão”), mas apenas a recepcionar o programa. Trata-se de facto juridicamente inconsequente no sentido pretendido pela recorrente.

Não se discute a actualidade do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-geral da República (n.º 4/92 de 28 de Maio de 1992) que a recorrente cita. Mas a doutrina deste parecer apenas reforça a decisão proferida na sentença, e o sentido constante da jurisprudência das Relações.

Ali se desenvolve que “a comunicação de obras radiodifundidas a que se reportam os artigos 149º, nº 2, e 155º do CDADC em que deverá funcionar a prévia autorização dos autores e o direito destes a perceber a respectiva contrapartida patrimonial é aquela que se traduz em nova utilização da obra radiodifundida, com ou sem prévia fixação, através de altifalante ou de qualquer instrumento análogo transmissor de sinais, sons ou imagens (…)”.

E após se proceder aí a análise da Convenção de Berna, a que a recorrente também faz referência, nele se retiram, entre outras, as seguintes conclusões: “10ª São lugares públicos para efeitos do disposto no artigo 149º, nº 3, do CDADC, além do mais, os restaurantes, hotéis, pensões, cafés, leitarias, pastelarias, bares, "pubs", tabernas, discotecas, e outros estabelecimentos similares; 11ª O termo "comunicação" inserto nos artigos 149º, nº 2, e 155º do CDADC significa transmissão ou recepção-transmissão de sinais, sons ou imagens; 12ª A mera recepção em lugar público de emissões de radiodifusão não integra a previsão dos artigos 149º, nº 2, e 155º do CDADC; 13ª A mera recepção de emissões de radiodifusão nos lugares mencionados na conclusão 10ª não depende nem da autorização dos autores das obras literárias ou artísticas apresentadas prevista no artigo 149º, nº 2, nem lhes atribui o direito à remuneração prevista no artigo 155º, ambos do CDADC; 14ª Do princípio de liberdade de recepção das emissões de radiodifusão que tenham por objecto obras literárias ou artísticas apenas se exclui a recepção-transmissão envolvente de nova utilização ou aproveitamento organizados designadamente através de procedimentos técnicos diversos dos que integram o próprio aparelho receptor, como, por exemplo, altifalantes ou instrumentos análogos transmissores de sinais, sons ou imagens, incluindo as situações a que se reportam os artigos 3º e 4º do Decreto-Lei nº 42660, de 20 de Novembro de 1959.”

Assim sendo, tendo ficado provado que no estabelecimento do arguido era emitido, através de um aparelho de televisão, ligado a um aparelho da TV Cabovisão, um programa de som e imagem da MTV, sendo a imagem e o som percepcionados os que eram directamente transmitidos por esse canal televisivo, sem recurso a instrumento análogo transmissor de sinais, sons ou imagens, inexiste (nova) utilização da obra radiodifundida que careça de (nova) autorização do(s) autor(s).

Os factos provados não integram assim “comunicação de obra difundida” a que se reporta os artigos 149.º e 155º do CDADC, dispensando-se no caso a prévia autorização dos autores e inexistindo um direito destes a perceber a respectiva contrapartida patrimonial por parte do arguido.

Também aqui mantêm pertinência as considerações do acórdão do TRP de 19-09-2012 (Pedro Patto), já citado: “Não é relevante, pelas razões indicadas, que a recepção do programa em causa não se restrinja ao âmbito doméstico e familiar. E também não é relevante, pelas razões indicadas, que essa recepção, alargada aos clientes do estabelecimento, seja interessada e determinada pelo propósito de aumento do número desses clientes. Não deixamos de nos situar no âmbito da recepção e não entramos no âmbito da transmissão ou comunicação pública. Também não é relevante o que possa decorrer dos contratos celebrados entre a operadora de televisão em causa e os seus clientes (onde se inclui a arguida). Não é, obviamente, o teor desses contratos a determinar a interpretação do direito vigente. De resto, desse teor decorre apenas (como vem invocado pela recorrente) que é da exclusiva responsabilidade do cliente o pagamento dos direitos relativos à transmissão pública das obras (e, como vimos, não estamos perante um caso de transmissão pública de obras)”.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal em:

Julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença.

Custas pela recorrente que se fixam em 4UC.

Évora, 15.10.2013

(Ana Maria Barata de Brito)

(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)
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[1] - Sumariado pela relatora