Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
189/18.2T8ORQ.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A acção de divisão de coisa comum deve ser proposta, sob pena de ilegitimidade dos réus, contra todos os comproprietários, sendo um caso típico de litisconsórcio necessário passivo, imposto pela própria natureza da relação jurídica.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 189/18.2T8ORQ.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…) intentou acção especial de divisão de coisa comum contra Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de (…) e outros, peticionando que, uma vez fixados os respectivos quinhões, se proceda à adjudicação ou venda do bem imóvel identificado nos autos (cuja propriedade está registada em nome da A. e de todos os RR. aí devidamente identificados).
Tendo-se determinado a citação dos vários RR. identificados na petição inicial, verificou-se que algumas das citações vieram devolvidas com indicação de que, os respectivos RR., tinham falecido.
Notificada de tal facto, e com o objectivo de sanar a preterição do litisconsórcio necessário passivo, veio a A. requerer que fossem chamados a intervir na presente acção os herdeiros dos RR. que haviam falecido.
Todavia, pela M.ma Juiz “a quo” foi proferida decisão, na qual indeferiu o solicitado, tendo absolvido todos os RR. da instância.

Inconformada com tal decisão dela apelou a A., tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
a. Na presente ação de divisão de coisa comum foram demandados os titulares que constam do registo predial;
b. No decurso da lide, apurou-se que alguns dos demandados haviam falecido previamente à propositura da ação;
c. Demandados que cumulam duas qualidades, uma como herdeiros da titular de uma aliquota e, outra, como proprietários de outra quota no bem cuja divisão se requer.
d. Não obstante a respetiva falta de personalidade judiciária, tal não conduz necessariamente à absolvição da instância dos demais herdeiros, nem muito menos dos demais consortes;
e. A absolvição da instância de um dos herdeiros, conduz à preterição do litisconsórcio necessário passivo (na modalidade legal e natural) – cfr. art.os 2091º C. Civil e 925º CPC.
f. Exceção sanável – cfr. artigos 33º, n.os 1 e 2 e 316º.
g. O Tribunal recorrido ao ter absolvido da instância todos os demandados, violou os artigos 11º, 33º, n.os 1 e 2 e, 316, todos do CPC. Acresce que,
h. Impunha-se ao Juiz convidar a parte ao referido suprimento –cfr. artigo 6º, nº 2, do CPC, através da intervenção principal provocada.
i. Ao não tê-lo feito, incorreu numa nulidade processual – cfr. art. 195º, nº 1, do CPC. Por último,
j. A decisão sindicada configura uma decisão surpresa, violando-se assim, também, o art. 3º, nº 3, do CPC.
l. Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Ex.as, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão que constitui o seu objeto, substituindo-a por outra que ordene o prosseguimento dos autos em conformidade.
Não foram apresentadas contra alegações de recurso.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.

Cumpre apreciar e decidir:
Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na decisão for desfavorável à recorrente (art. 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões que tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.

No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela A., ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação da questão de saber se, tratando-se de uma situação de litisconsórcio necessário passivo, importava chamar à lide os herdeiros dos RR. falecidos, o que a M.ma Juiz “a quo” podia e devia ter feito, convidando a A. a sanar a referida ilegitimidade processual, através do mecanismo da intervenção principal provocada (cfr. arts. 6º, nº 2 e 316º, nº 1, do C.P.C.).

Apreciando, de imediato, a questão suscitada pela A., ora apelante, importa ter presente o que, a propósito do incidente de intervenção principal provocada, é afirmado por Salvador da Costa e que, desde já, passamos a transcrever:
- A intervenção principal provocada consubstancia-se, em regra, no chamamento ao processo, por qualquer das partes, dos terceiros interessados na intervenção, seja como seus associados, seja como associados da parte contrária. (…)
Qualquer das partes pode, pois, chamar a intervir alguém, do lado activo ou do lado passivo, isto é, as pessoas que, nos termos do artigo 320.º pudessem intervir espontaneamente ao lado do autor ou ao lado do réu.
Assim, pode o réu implementar o chamamento de uma pessoa para intervir em litisconsórcio voluntário ou necessário ou em coligação ao lado do autor, assim como o autor pode implementar o chamamento de uma pessoa para intervir, a seu lado, em litisconsórcio voluntário ou necessário ou em coligação.
O autor tem interesse em chamar um terceiro para se coligar com ele, por exemplo, quando haja vários lesados e um limite de indemnização derivada da lei ou de contrato de seguro. (…)
A intervenção na lide de alguma pessoa como associado do réu pressupõe um interesse litisconsorcial no âmbito da relação controvertida, cuja medida da sua viabilidade é limitada pela latitude do accionamento operado pelo autor, não podendo intervir quem lhe seja alheio. (…)
O n.º 2 prevê, em termos inovadores, sobre os casos previstos no artigo 31.º-B, e estatui que, nessa situação, pode o autor chamar a intervir, como réu, um terceiro contra quem pretenda dirigir o pedido.
O artigo 31.º-B, a que o normativo em análise se reporta, prescreve que é admitida, no caso de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida, a dedução do mesmo pedido, ou a dedução de pedido subsidiário, por autor ou contra réu diverso do que, a título principal, demandou ou foi demandado.
Assim, pode o autor chamar a intervir um terceiro na posição de réu a fim de formular contra ele um pedido subsidiário, no caso de dúvida fundamentada sobre o verdadeiro sujeito passivo da relação jurídica material controvertida.
O requerente do chamamento deve, porém, convencer das razões de incerteza sobre o titular passivo da relação jurídica material controvertida, ou seja, tem de expor os factos consubstanciadores da justificada dúvida. (…)
O n.º 3, intimamente conexionado e complementar do disposto no n.º 2, prescreve, por seu turno, que o autor do chamamento deve alegar a causa respectiva e justificar o interesse que, por meio dele, visa conseguir.
Assim, tem o autor chamante para intervenção principal do lado passivo o ónus de indicar a causa do chamamento e de alegar o interesse que, através dele, pretende acautelar.
O referido ónus de alegação justificativa visa uma segura apreciação liminar da legitimidade e do interesse em agir de quem chama à intervenção e de quem é chamado a intervir.
A admissão da intervenção do chamado ao lado do réu não depende do conhecimento de mérito da responsabilidade do chamado, bastando averiguar se este tem ou não interesse em contradizer – cfr. Os Incidentes da Instância, Almedina, 1999, págs.100 e segs.
Ainda, a respeito de toda esta temática, pode ver-se Eurico Lopes Cardoso, Manual dos Incidentes da Instância, pág. 220; João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, Volume II, AAAFDL, 1980, pág. 261 e segs.; Ac. da R.L. de 26/4/1990, in CJ, Ano XV, Tomo 2, pág. 161 e Ac. da R.C. de 11/3/1998, in CJ, Ano XXIII, Tomo 2, pág. 20).
Daqui resulta que o interesse na intervenção principal provocada deve ser invocado, por um lado na legitimidade do interveniente e, por outro, na relação material controvertida desenvolvida entre as partes primitivas, visando uma situação de litisconsórcio ou de coligação com alguma delas – sublinhado nosso.
Ora, se confrontarmos as diversas hipóteses de chamamento previstas pelo art. 316º do C.P.C. (e analisadas supra por Salvador da Costa), verificamos que, no caso em apreço, os factos alegados pela A. na sua petição inicial tipificam, indubitavelmente, uma situação de litisconsórcio necessário passivo (cfr. nº 1 do citado art. 316º).
Com efeito, nesta acção de divisão de coisa comum, decorre da relação material controvertida que é discutida nos autos que o seu lado passivo é constituído pelos diversos RR. que são identificados nas várias alíneas da petição inicial, os quais fazem valer o direito da herança e nome dela, e já não a herança ilíquida e indivisa em si.
Por outro lado, nos termos do disposto no art. 11º do C.P.C., resulta claro que, cessada a personalidade jurídica com o óbito, inexiste personalidade judiciária.
Assim sendo, aqueles RR. que faleceram previamente à instauração da presente acção não têm, obviamente, personalidade judiciária e deveriam, por isso, ter sido absolvidos (como, na realidade, o foram), ou seja, estamos a referirmo-nos aos RR. (…), (…), (…), (…), (…) e mulher (…), bem como da (…).
Todavia, esta falta de personalidade judiciária dos herdeiros acima identificados, e a sua absolvição da instância, não impunha – de todo – a absolvição da instância dos demais herdeiros demandados como RR. (comproprietários do imóvel em causa), uma vez que o presente caso configura, inexoravelmente, uma situação de preterição de litisconsórcio necessário passivo, e não propriamente, como sustentou a M.ma Juiz “a quo”, uma falta de personalidade judiciária insanável, conducente à absolvição da instância da herança respectiva.
E, no caso em apreço, o referido litisconsórcio assume, quer a modalidade legal, quer a natural. A modalidade legal porque o art. 2091º do Cód. Civil, exige a intervenção de todos os herdeiros, naqueles actos que interfiram com direitos relativos à herança, como sucede “in casu” ao envolver um acto de disposição de um bem hereditário. Além disso, o art. 925º do C.P.C. exige igualmente a intervenção de todos os consortes – cfr. neste sentido, entre outros, os Acs. da R.P. de 28/5/2001 e de 3/6/2008, disponíveis in www.dgsi.pt.
Por outro lado, o litisconsórcio assume também a modalidade natural, porque a própria natureza da ação de divisão de coisa comum assim o exige. Com efeito, como é afirmado no Ac. do STJ de 4/2/1997 (P. 453/96, 1ª Secção, Relator: Silva Paixão) “a acção de divisão de coisa comum deve ser proposta, sob pena de ilegitimidade dos réus, contra todos os comproprietários, sendo um caso típico de litisconsórcio necessário passivo, imposto pela própria natureza da relação jurídica”.
Nestes termos, com a absolvição da instância dos RR. já falecidos, (…), (…), (…), (…) e mulher, (…), e (…), forçoso é concluir que não foram demandados todos os herdeiros das heranças respectivas, sendo que a presente acção de divisão de coisa comum deveria ter sido instaurada contra os herdeiros daqueles.
Todavia, a excepção de preterição de litisconsórcio necessário passivo – face ao estipulado nos arts. 6º, nº 2, 33º, nºs 1 e 2 e 316º, nº 1, todos do C.P.C. – é susceptível de sanação, pelo que resulta claro que a decisão recorrida não se poderá manter, de todo, revogando-se a mesma em conformidade e, em consequência, determina-se que sejam citados os herdeiros dos RR. falecidos, tal como havia sido solicitado pela A., ora apelante, no seu requerimento entrado em juízo em 7/11/2018, prosseguindo depois os autos os seus ulteriores termos processuais.

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Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
- A acção de divisão de coisa comum deve ser proposta, sob pena de ilegitimidade dos réus, contra todos os comproprietários, sendo um caso típico de litisconsórcio necessário passivo, imposto pela própria natureza da relação jurídica.
- O interesse na intervenção principal provocada deve ser invocado, por um lado na legitimidade do interveniente e, por outro, na relação material controvertida desenvolvida entre as partes primitivas, visando, nomeadamente, situações de litisconsórcio necessário.
- “In casu”, com a absolvição da instância dos RR. já falecidos, forçoso é concluir que não foram demandados todos os herdeiros das heranças respectivas, sendo que a presente acção de divisão de coisa comum deveria ter sido instaurada contra os herdeiros daqueles.
- Atento o estipulado nos arts. 6º, nº 2, 33º, nºs 1 e 2 e 316º, nº 1, todos do C.P.C., a excepção de preterição de litisconsórcio necessário passivo é susceptível de sanação pelo que, no caso dos autos, revoga-se a decisão recorrida e determina-se que sejam citados os herdeiros dos RR. falecidos, tal como a A. havia requerido nos autos (cfr. requerimento de 7/11/2018).

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Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação interposto pela A. e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida nos exactos e precisos termos acima explanados.
Sem custas.
Évora, 28 de Fevereiro de 2019
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Mário Canelas Brás

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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).