Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
612/18.6GCFAR
Relator: JOSÉ SIMÃO
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
RECOLHA DE INDÍCIOS
CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL
Data do Acordão: 06/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
- O depoimento indirecto é aquele em que o conhecimento do depoente é uma aquisição derivada, em segunda mão, isto é, não resulta de uma percepção visual, auditiva, olfactiva… directa e imediata, antes é transmitido por outrem, enquanto que o depoimento directo é aquele em que a testemunha que o presta revela uma aquisição originária do conhecimento dos factos.

- Há que distinguir duas situações: uma em que a testemunha relata aquilo que ouviu da boca de outra pessoa, que não tenha sido ainda constituída arguida, antes de haver inquérito, em que se está numa fase de recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter conhecimento (artº 249º do CPPenal) e outra em que já há inquérito e arguido e a partir de então, as suas declarações só podem ser valoradas nos termos indicados na lei.

- Detendo o arguido um pedaço de canábis, com o peso liquido de 8,781 gramas de canábis com o grau de pureza de 16,5% de THC, o que corresponde a 28 doses, calculadas de acordo com a Portaria nº 94/96, excedia o necessário para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1 – Relatório

Por sentença de 20 de Novembro de 2019, proferida no processo comum singular com o número acima mencionado da Comarca de Faro ( Juízo Local Criminal de Faro – Juiz 2) a acusação deduzida pelo Ministério Público foi julgada improcedente e em consequência o arguido RFSP foi absolvido da prática de um crime previsto no artº 40º nº 2 do DL nº 15/93, de 22-1.

Inconformado o Ministério Público recorreu, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:

«1.Na Douta Decisão proferida pelo Tribunal a quo o arguido RFSP absolvido da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de consumo previsto e punido pelo n.º 2 do artigo 40.º do Decreto-Lei, n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

2. Para tanto o Tribunal a quo entendeu que não foram dados como provados os seguintes factos: A) No dia 3 de Outubro de 2018, pelas 01h00, na Praceta ……….., Urb……….no…………, em …….., o arguido RSP trazia, no interior do veículo de matrícula………, um pedaço de canábis (resina), com um peso líquido de 8,781 gramas – correspondente a 28 doses individuais, que destinava ao seu consumo pessoal; B) O arguido conhecia a composição e as características dessa substância e quis detê-la, ainda que a destinasse ao seu consumo pessoal; C) Agiu voluntária, livre e conscientemente, sabendo ser tal conduta proibida e punida por lei.

3. O Tribunal a quo não considerou a prova testemunhal produzida, entendendo que “não tendo o depoimento da referida testemunha qualquer valor probatório no que às declarações que pelo arguido lhe foram prestadas, e atenta a presença de outra pessoa no veículo onde se encontrava o produto estupefaciente, fica, pelo menos a dúvida fundada acerca do destino de tal produto para consumo pessoal do arguido, sendo possível que se destinasse ao consumo dos dois ocupantes do veículo, ou mesmo, apenas, do ocupante do veículo do sexo feminino”.

4. Não se acompanha o entendimento do Tribunal a quo no que concerne ao valor probatório das declarações prestadas pela Testemunha.

5. No que concerne à valoração do depoimento prestado pelo OPC veja-se o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, no âmbito do Processo 20/13.5GBPTG.E1, datado de 30.06.2015, disponível em www.dgsi.pt, no qual se pode ler no Sumário, que “Não constitui depoimento por ouvir dizer nem assenta em “conversa informal” o depoimento de agente policial que reproduz o relato feito no dia e local de incêndio por quem ateou o fogo mas ainda não era arguido ou, sequer, suspeito” (vide, no mesmo sentido o Ac. Do TRE, proferido em 10.04.2018, no âmbito do Processo n.º 196/17.2GABNV.E1.E1 (disponível em www.dgsi.pt).

6. Entende-se que o Tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento porquanto, com base na prova produzida em audiência, deveria ter julgado PROVADOS os factos elencados nos pontos da matéria de facto julgada NÃO PROVADA na sentença recorrida.

7. Veja-se o depoimento prestado pela Testemunha FA, militar da GNR, que relatou: “Isto foi no dia 3 de Outubro do ano passado, fiscalizamos de forma aleatório o veículo de marca …. de cor azul, ligeiro de passageiros na Praceta…………. nas……….. ou uma coisa assim parecida, nas ………….…Foi fiscalizado o condutor, forneceu os documentos do veículo e do próprio, depois foi questionado, aparentava tar nervoso, foi questionado se tinha alguma coisa de ilícita no veículo, o mesmo disse que não, mas pelo nervoso que aparentava voltamos a questionar…Ele disse pronto que tinha…que tinha uma porção de produto estupefaciente e perguntámos onde é que estava…ele retirou de um compartimento pelo auto rádio do carro de dentro um maço de tabaco estava a tal porção de produto estupefaciente…pelo cheiro, pela cor…provavelmente era produto estupefaciente, pronto…visto isto levamos o condutor para as nossas instalações para fazer a pesagem do produto e para fazer o teste DIK 12 que é para ver se reagia ou não positivo a algum tipo de droga…reagiu positivo a “hax” e a pesagem foi 8 gramas e qualquer coisa…”, bem como esclareceu que o produto se destinava ao consumo do arguido.

8. As declarações prestadas pela testemunha devem ser valoradas, porquanto as mesmas incidem sobre o que ouviu dizer directamente do arguido, em momento anterior à sua constituição como arguido ou mesmo antes de se poder considerar suspeito.

9. Analisado o depoimento da testemunha constata-se que a mesma relatou que o arguido RFSP lhe entregou o produto estupefaciente que se encontrava acondicionado dentro de um maço de tabaco, tendo referido que o havia adquirido na baixa e que destinava o mesmo ao seu consumo pessoal.

10. Acresce que apenas após a realização do teste rápido de despistagem e da realização do exame pericial se pode concluir se está perante produto estupefaciente, qual a sua qualidade e o seu peso, bem como se se está perante a prática de ilícito típico ou ilícito de contra-ordenação de consumo.

11. E, verifica-se que o arguido apenas foi constituído arguido após a efectiva realização do teste rápido de despistagem.

12. Para além da prova testemunhal, encontra-se junto aos autos prova documental e pericial que não foi apreciada e tida em consideração pelo Tribunal a quo, nomeadamente o auto de apreensão constante de fls. 10 e o exame pericial de fls. 45.

13. De facto, constata-se que o arguido assinou o auto de apreensão de fls. 10 do qual consta que se encontrava na posse de um (1) pedaço (ripa) de produto estupefaciente Haxixe, com peso aproximado de 8,88 gramas, não tendo sido colocado em crise quer o seu conteúdo, nem a assinatura aposta pelo arguido.

14. Acresce que consta igualmente dos autos o exame pericial no qual se concluiu que que a substância apreendida se tratava de Canabis (resina), com o grau de pureza de 16,5% de THC, correspondente a 28 doses individuais, calculadas de acordo com a Portaria n.º 94/96.

15. Já quanto ao destino dado pelo arguido, para além das próprias declarações prestadas pelo arguido, antes da sua constituição como arguido, deverá ter-se em consideração as circunstâncias concretas.

16. Efectivamente deverá ter-se em consideração que o arguido não regista antecedentes criminais pela prática de ilícitos da mesma natureza, por outro lado deverá ter-se em consideração a quantidade de substância psicotrópica detida, o seu grau de pureza, o local em que se encontrava acondicionada, inferindo-se, assim, que o arguido destinava o produto a consumo pessoal.

17. Inexistindo nos autos qualquer circunstância que, de acordo com as regras da experiência comum, aponte para o preenchimento do tipo ilícito de tráfico de estupefacientes.

18. Ora, valorando as declarações prestadas pela testemunha, conjugadas com a prova documental e pericial constante autos, devem ser dados como provados os seguintes factos:

A) No dia 3 de Outubro de 2018, pelas 01h00, na Praceta ……………….., Urb…………, no …………………….., em ……….., o arguido RSP trazia, no interior do veículo de matrícula ………, um pedaço de canábis (resina), com um peso líquido de 8,781 gramas – correspondente a 28 doses individuais, que destinava ao seu consumo pessoal.

B) O arguido conhecia a composição e as características dessa substância e quis detê- la, ainda que a destinasse ao seu consumo pessoal.

C) Agiu voluntária, livre e conscientemente, sabendo ser tal conduta proibida e punida por lei.

E, em consequência deverá o arguido ser condenado pela prática do crime em autoria material e na forma consumada, de um crime de consumo previsto e punido pelo n.º 2 do artigo 40.º do Decreto-Lei, n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

19.Quanto à escolha da pena, atendendo que as necessidades de prevenção geral se revelam diminutas e as necessidades de prevenção especial não assumem particular relevo, dever-se-á optar pela aplicação da pena de multa, ao abrigo do disposto nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal.

20. Já quanto à medida da pena a aplicar, a mesma deverá situar-se num patamar próximo do limite mínimo legal e, desconhecendo-se as actuais condições socioeconómicas do arguido o quantitativo diário deverá ser situado perto do mínimo legal, devendo, assim, o arguido ser condenado na pena de 40 (quarenta) dias de multa à taxa diária de €5 (cinco) euros, perfazendo a quantia total de €200 (duzentos euros).

Nestes termos e nos mais de Direito, requer-se Mui Respeitosamente a V. Exas. que seja dado provimento ao presente Recurso e a Douta Decisão Recorrida seja revogada e substituída por outra que dê como provados os factos constantes dos pontos A) a C), assim se condenando o arguido RFSP pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de consumo previsto e punido pelo n.º 2 do artigo 40.º do Decreto-Lei, n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 40 (quarenta) dias de multa à taxa diária de €5 (cinco) euros, perfazendo a quantia total de €200 (duzentos euros».

O arguido não respondeu ao recurso

Nesta Relação, o Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer concordante com a posição do Digno Procurador junto do Tribunal da 1ª Instância.

Observado o disposto no art. 417º nº 2 do CPPenal, o arguido não respondeu.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. – Fundamentação

Factos Provados:

Produzida a prova e discutida a causa, resultou provada, com interesse para a decisão da mesma, a seguinte factualidade:

1. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.

Factos não provados

Com relevo para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos, designadamente, não se provou que:

A. No dia 3 de Outubro de 2018, pela 01h00, na Praceta…………., Urb. ……………………., no………………, em …………, o arguido RSP trazia, no interior do veículo de matrícula ………….., um pedaço de canabis (resina), com um peso líquido de 8,781 gramas - correspondente a 28 doses individuais, que destinava ao seu consumo pessoal.

B. O arguido conhecia a composição e as características dessa substância e quis detê-la, ainda que a destinasse ao seu consumo pessoal.

C. Agiu voluntária, livre e conscientemente, sabendo ser tal conduta proibida e punida por lei.

Motivação

Para formar a sua convicção sobre o facto supra elencado como provado no ponto 1, atendeu o Tribunal ao teor do certificado de registo criminal junto a fls. 164, do qual decorre a ausência de antecedentes criminais do arguido.

No mais, a factualidade constante da acusação pública deduzida contra o arguido resulta não provada – pontos A a C dos factos não provados – por ausência de prova cabal que permitisse ao tribunal formar convicção segura quanto à sua veracidade.

Não se olvidando que a testemunha FA, agente da PSP, confirmou a acção de fiscalização e a presença do produto estupefaciente dentro do veículo em questão, bem como confirmou o teor dos autos de notícia e apreensão por si elaborados, certo é também que o destino de tal produto estupefaciente – consumo pessoal do arguido – não resulta cabalmente provado. O referido agente da PSP limitou-se a relatar o que lhe foi dito pelo arguido, tendo ainda referido que dentro do veículo se encontrava outro indivíduo do sexo feminino.

Assim, não tendo o depoimento da referida testemunha qualquer valor probatório no que às declarações que pelo arguido lhe foram prestadas, e a atenta a presença de outra pessoa no veículo onde se encontrava o produto estupefaciente, fica, pelo menos, a dúvida fundada acerca do destino de tal produto para consumo pessoal pelo arguido, sendo possível que se destinasse ao consumo dos dois ocupantes do veículo, ou mesmo, apenas, do ocupante do veículo do sexo feminino.

Assim sendo, vê-se o julgador perante uma situação de dúvida insanável quanto aos factos em questão, motivo pelo qual, em respeito pelo princípio constitucionalmente consagrado da presunção da inocência do arguido (artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da Constituição da República Portuguesa), do qual emana o princípio “in dubio pro reo”, se decidiu, tal como se impõe, de forma favorável ao arguido, considerando não provados os factos em questão.

Na verdade, o princípio “in dubio pro reo” afirma-se como princípio relativo à prova, e enquanto tal, conduz a que, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos descritos na acusação ou na pronúncia, o tribunal deva decidir a favor do arguido, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos àquela dúvida razoável e insanável do tribunal – neste sentido, Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, pág. 213.

*

III – Apreciação do Recurso

As conclusões do recurso destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância dos recorrentes em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).

Perante as conclusões do recurso as questões a decidir são as seguintes:

1ª- Da impugnação da matéria de facto.

2ª- Do enquadramento jurídico penal.

3ª- Da medida da pena.

III-1ª -Da impugnação da matéria de facto.

O Ministério Público alega que, foram incorrectamente julgados os factos A) a C) da matéria não provada.

Fundamenta sua pretensão alegando que, as declarações da testemunha, FA, elemento da GNR, cujos excertos transcreve, devem ser valoradas e indica a razões para tal, o que em conjugação com a prova documental e pericial, nomeadamente o auto de apreensão constante de fls. 10 e com exame pericial de fls. 45 resulta a prova dos factos considerados não provados.

Cumpre decidir.

Na decisão recorrida considerou-se que, não resultou cabalmente provado que o estupefaciente se destinava ao consumo pessoal do arguido, porquanto o agente da PSP “limitou-se a relatar o que lhe foi dito pelo arguido, (…) e que não tendo o depoimento da referida testemunha qualquer valor probatório no que às declarações que pelo arguido lhe foram prestadas e atenta a presença de outra pessoa no veículo onde se encontrava o produto estupefaciente, fica pelo menos a dúvida acerca do destino de tal produto para consumo pessoal do arguido”.

Cremos que não assiste razão à Mma Juiz ao referir que, não tem qualquer valor probatório o depoimento da testemunha ao referir que, o condutor ao ser interceptado lhe comunicou que, a substância que detinha consigo se destinava ao seu consumo pessoal, pelas razões que mencionaremos de seguida.

Importa antes de mais realçar que, o depoimento do elemento da GNR, acerca do que ouviu dizer a RP não é um depoimento indirecto.

Na verdade, o depoimento indirecto é aquele em que o conhecimento do depoente é uma aquisição derivada, em segunda mão, isto é, não resulta de uma percepção visual, auditiva, olfactiva… directa e imediata, antes é transmitido por outrem, enquanto que o depoimento directo é aquele em que a testemunha que o presta revela uma aquisição originária do conhecimento dos factos.

Como consta do acórdão da Relação de Guimarães de 11-02-2008, proferido no proc. 2181/07, “quando a testemunha relata ao tribunal aquilo que ouviu da boca de outra pessoa, o depoimento é directo, porque a testemunha dele teve conhecimentos por o ter captado por intermédio dos seus próprios ouvidos.

É princípio geral relativo à prova por depoimento que a testemunha deva ser inquirida sobre factos de que tenha conhecimento directo – artº 128º do CPPenal.

(…)

E são as exigências resultantes dos princípios da imediação, oralidade e, máxime, do acusatório, a aconselharem que o iter cognoscitivo do tribunal quanto ao facto a apurar e subsequente formação da convicção do tribunal e sua motivação, se centrem no facto directamente percepcionado e não no indirectamente ouvido”.

Afigura-se-nos que, há que distinguir duas situações: uma em que a testemunha relata aquilo que ouviu da boca de outra pessoa, que não tenha sido ainda constituída arguida, antes de haver inquérito, em que se está numa fase de recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter conhecimento (artº 249º do CPPenal) e outra em que já há inquérito e arguido e a partir de então, as suas declarações só podem ser valoradas nos termos indicados na lei.

Neste sentido, se pronunciou o acórdão do STJ, de 15-02-2007, proferido no procº nº 06P4593, que por ser bastante elucidativo, transcrevemos o respectivo sumário:

«I- Relativamente ao alcance da proibição de testemunho de “ouvir dizer”, pode considerar-se adquirido, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante e investigação e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe.

II- Pretenderá, assim a lei impedir, com a proibição destas “conversas”, que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria “colmatado” ilegitimamente através da confissão por “ouvir dizer” relatado pelas testemunhas.

III- Pressuposto desse direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição do arguido: a partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente.

IV- De forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia: compete-lhe praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime” (art. 249º do CPP) .

V- Esta é uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto; as informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de um eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo.

VI- Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando já há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito.

VII- O que o artº 129º do CPP proíbe são os testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o artº 129º do CPP».

No caso em apreço, o arguido não compareceu na audiência de julgamento, e a testemunha FA, militar da GNR, relatou que numa acção de fiscalização aleatório, identificaram o condutor e que perante o seu nervosismo lhe foi perguntado, se tinha algo na sua posse de natureza ilícita, ao que RP lhe entregou o produto estupefaciente que se encontrava acondicionado dentro de um maço de tabaco, tendo referido que o tinha comprado na Baixa e que se destinava ao seu consumo pessoal. Mais refere que, de seguida, RP foi conduzido às instalações da GNR “para fazer a pesagem do produto e para fazer o teste DIK 12 que é para ver se reagia ou não positivo a algum tipo de droga…reagiu positivo a “hax” e a pesagem foi de 8 gramas e qualquer coisa”.

RP só foi constituído na qualidade de arguido, após se dirigir ao Posto da GNR e após ter sido realizado o exame pericial à substância apreendida

Ora, a testemunha relatou o que ouviu dizer directamente do arguido, RP, em momento anterior à constituição deste como arguido, ou mesmo antes de se poder considerar suspeito, já que só após a realização do exame pericial se pode concluir que estamos perante produto estupefaciente, qual a sua qualidade e seu peso, e se os factos integram um ilícito criminal ou uma contra-ordenação, logo pelas razões acima referidas, as declarações da testemunha podem ser valoradas.

Destas em conjugação com a prova documental junta aos autos, nomeadamente com o auto de apreensão constante de fls. 10 e o exame pericial de fls. 45 resulta provado o facto A da matéria não provada, e os constantes das alíneas B) e C), relativos ao elemento subjectivo da infracção, retiram-se da prova daquele, por inferência tendo em atenção as regras da lógica e da experiência comum. Na verdade, o modo de actuação do agente, ao adquirir e deter a substância estupefaciente para consumo, demonstra o carácter desejado da conduta. Só que quer praticar o ilícito em causa age como ó arguido actuou, pelo que a sua conduta lhe é assacada a título de dolo na forma directa.

Assim, os factos constantes das alíneas A) a C) passam a constar da matéria provada, respectivamente sob os nºs 2 a 4.

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III-2ª- Do enquadramento jurídico penal

Ao arguido vem imputado um crime de consumo de estupefacientes p. e p. no art. 40º nº 2 do DL nº 15/93, de 22-1.

Dispõe o artº 40º do diploma mencionado:

“1. Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.

2.Se a quantidade das plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias”.

Por sua vez, a Lei nº 30/2000, de 29 de Dezembro, que veio definir o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, estabelece no seu artº 2º sob a epígrafe, “Consumo”:

“1. O consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação.

2- Para efeito da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

Estabelece o artº 28º da Lei nº 30/2000, sob a epígrafe “Normas revogadas”: “São revogados o artº 40º, excepto quanto ao cultivo, e artigo 41º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime”.

Perante as divergências surgidas na Jurisprudência foi publicado o acórdão de fixação de Jurisprudência (DR nº 150/2008, série I, de 5-8-2008) com o seguinte teor:

“Não obstante a revogação operada pelo artº 28º da Lei nº 30/2000, de 29 de Novembro, o artº 40º nº 2 do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor, não só quanto ao cultivo das plantas, como relativamente à aquisição ou detenção para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

A Portaria nº 94/96, de 26/3, estabelece no seu artº 9º que «os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diárias das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, anexas ao Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente são os referidos no mapa anexo à presente portaria, da qual faz parte integrante”.

Considerando o que consta do mapa, temos que o valor diário estabelecido para a canábis é de 0,5g., tendo como referencial a variação do conteúdo médio o tetraidrocanabinol, também conhecido como THC, existente nos produtos de canábis a uma concentração média de 10%.

Ora, o arguido detinha um pedaço de canábis, com o peso liquido de 8,781 gramas de canábis com o grau de pureza de 16,5% de THC, o que corresponde a 28 doses, calculadas de acordo com a Portaria nº 94/96, logo excedia o necessário para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

O arguido detinha a substância canábis, destinava-a a consumo próprio e agiu voluntária livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei, pelo que estão preenchidos os elementos constitutivos do crime de consumo de estupefacientes p. e p. no art. 40º nº 2 do DL nº 15/93, de 22-1.

III- 3º- Da medida de pena

Ao crime cometido pelo arguido corresponde pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias.

Os critérios a atender na escolha da pena, entre prisão e multa, vêm apontados no art. 70º do C. Penal, determinando esta norma que, o Tribunal deve preferir a multa, sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Tais finalidades são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40/1 do C. Penal).

Assim, a escolha entre a prisão e multa, nos termos do art. 70º do C. Penal, depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial (Ac.R.Coimbra de 17-1-96, C.J., tomo I, pág. 38).

Como escreve o Professor Figueiredo Dias em “Direito Penal Português, Consequências Jurídicas do Crime, Ed. Notícias, pág.331 “ o tribunal deve preferir à pena privativa da liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição. O que vale por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação”.

As finalidades a atingir com escolha da pena são, assim, essencialmente preventivas: de prevenção geral, o que implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos e para incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e ainda para aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos; e de prevenção especial em que se visa a reintegração do agente na sociedade.

No caso em apreço, as exigências de prevenção geral não são significativas, nem as de prevenção especial dado que o arguido é delinquente primário, tem 21 anos e não se encontra conotado ou referenciado pela prática de ilícitos de tráfico e de consumo de estupefacientes.

Assim, a pena de multa satisfaz as finalidades da punição, pelo que se opta por esta.

Importa, agora determinar o número de dias de multa tendo em conta os critérios constantes do nº 1 do artº 71º do Cód. Penal.

Dispõe este preceito que "A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção".

O tribunal deverá atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, conforme dispõe o nº 2 do artº 71º, que enumera exemplificativamente várias circunstâncias.

A culpa e a prevenção são, pois, os dois termos do binómio, que importa ter em conta para o delineamento da medida da pena.

A culpa constitui o limite máximo da pena que não pode ser ultrapassado. Esta limitação resulta do princípio da culpa, que está na base da legislação penal, segundo o qual não há pena sem culpa, nem a medida da pena pode ultrapassar a culpa. A culpa deve referenciar-se ao concreto tipo de ilícito praticado que constitui o seu objecto, isto é, a culpa jurídico-penal não é uma culpa em si, mas uma censura dirigida ao agente, em virtude da sua atitude desvaliosa documentada em certo facto.

Por seu turno, o limite abaixo do qual a pena não pode descer é o que resulta da aplicação dos princípios da prevenção geral, segundo os quais a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor.

Por fim, com a prevenção especial visa-se encontrar a medida exacta da pena, dando-se resposta às exigências de reintegração do agente na sociedade, de forma a que se integre nos princípios dominantes na comunidade.

Expostos estes princípios, importa agora aplicá-los, ao caso concreto.

O grau de ilicitude é mediano, atenta a quantidade e qualidade de estupefaciente que o arguido detinha; quanto à culpa a sua conduta é-lhe assacada a título de dolo na forma mais grave, a directa, artº 14º nº 1 do C.Penal; as exigências de prevenção geral e especial não são significativas tendo em conta que o arguido tem 21 anos e é delinquente primário.

Perante este quadro consideramos como justa e adequada a pena de 40 (quarenta) dias de multa.

Quanto ao montante diário da pena de multa estabelece o nº 2 do art. 47º do C. Penal que, cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5 e € 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

Dado que se desconhece a situação socioeconómica do arguido fixamos o quantitativo diário da pena de multa em € 5,00 (cinco) euros.

IV- Decisão

Termos em que acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência revoga-se a decisão recorrida e condena-se o arguido pela prática de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. no artº 40º nº 2 do DL 15/93, de 22-1, na pena de 40 (quarenta) dias de multa à taxa diária de € 5 (cinco) euros, o que perfaz a multa global de € 200,00 (duzentos euros)

Sem custas.

Notifique.

Évora,

(texto elaborado revisto pelo relator))