Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
623/14.0TBBJA-A.E1
Relator: SILVA RATO
Descritores: CONSTITUIÇÃO
ACESSO AOS TRIBUNAIS
AGENTE DE EXECUÇÃO
PENHORA
Data do Acordão: 01/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário:
1. A interpretação da lei processual, deve ser efetuada dentro de um quadro de razoabilidade, em que tenha por princípio estruturante, o direito constitucionalmente protegido, nomeadamente o acesso à tutela jurisdicional, que se consubstancia, entre o mais, no direito de acesso aos Tribunais para fazer valer os direitos legalmente protegidos (artigo 20º da Constituição).
2. Todos os operadores judiciários, devem ter em mente, que esse direito constitucionalmente reconhecido, só será levado a bom porto, se todos colaborarem com o fito de, relativamente a um determinado caso em concreto, tentarem obter a melhor solução que sirva o interesse da Justiça.
3. Nesse sentido, deve o Juiz do processo indagar, antes de proferir decisão que possa coartar o direito de qualquer das partes, por via de um excessivo apego ao formalismo processual, ou a prazos meramente balizadores da atividade processual e, por vezes, pouco adequados às necessidades de obter o desiderato processual que vimos replicando, os motivos do não cumprimento desses prazos, adequando o seu limite à necessidade do caso concreto.
4. O facto do agente de execução não ter cumprido com o estabelecido no artigo 749º ou no nº 3 do artigo 855º do CPC, conforme se trate de processo executivo ordinário ou sumário, dentro do prazo estabelecido na lei, não preclude desde logo a possibilidade daquele realizar as diligências prévias à penhora, devendo o Tribunal indagar da razão porque assim sucedeu.
5. Se houver motivo justificativo, nada impede o Tribunal de, considerando o fim último do processo, admitir a prática da diligência solicitada, mesmo para além do prazo definido pela lei, o que será necessariamente preferível a uma atividade processual que não produza o efeito necessário da cobrança da dívida exequenda, e conduza a interposição de novo processo para o efeito.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I. B…, SA, intentou a presente Execução Comum contra C…, em 04/07/2014, tendo em vista a obtenção do pagamento da quantia de €9,481,83, acrescido de juros de mora vincendos.
Tendo então nomeado à penhora “todo o mobiliário, aparelhos electrodomésticos, televisão, telefonia e demais recheio que guarnecer a residência do Executado” e ainda “Veículo Automóvel”.
Por notificação de 10/03/2015, veio o Sr. Agente de Execução a notificar o Banco Exequente, na pessoa do seu Mandatário, entre o mais, “das consultas efectuadas às bases de dados disponíveis”, nomeadamente da existência de dois veículos automóveis em nome do Executado, das heranças que o Executado é herdeiro (processos AT) e ainda que “Nota: Iremos diligenciar por obter as referidas certidões, junto da Conservatória do Registo Predial, pelo que oportunamente remeteremos a V.ª Ex.ª”.
Mais notificou o Exequente por uma forma tabelar de que “Fica(m) V. Exa(s). notificado(s) para o términos da FASE 1 nos autos em referência, conforme dispõe o artigo 749°, do Código de Processo Civil. Para os referidos efeitos refere-se abaixo, em informações complementares, o resultado da consulta ao registo informático das execuções e dos bens penhoráveis identificados ou do facto de não se ter identificado quaisquer bens penhoráveis. No caso de terem sido identificados bens penhoráveis, a execuçãd.prossegue, sem prejuízo do disposto no número 1 do artigo 751.° do Código de Processo Civil, com a penhora desses bens excepto se, no prazo de 5 dias a contar desta notificação, o exequente: a) Declarar que não pretende a penhora de determinados bens imóveis ou móveis não sujeitos a registo identificados; ou b) Desistir da execução. Não tendo sido encontrados bens penhoráveis, o exequente deve indicar bens à penhora no prazo de 10 dias, sendo penhorados os bens que ele indique.
Nessa mesma data, veio o Agente de Execução requerer ao Juiz do processo, o seguinte:
“D…, Agente de Execução nos presentes autos, ao abrigo do disposto no n.° 7 do artigo 749° do C.P.C., vem requerer a V.Exa que se digne autorizar o levantamento do sigilo fiscal no sentido da Administração Fiscal conceder acesso aos seguintes elementos (que não se encontram disponíveis na consulta directa prevista no artigo 749° do CPC, relativamente ao(s) seguinte(s) executado(s):
- C… NIF: ….
A razão deste pedido prende-se com a necessidade de fazer buscas em nome e/ou através do número de contribuinte do(a)(s) executado(a)(s), nomeadamente de;
1. Existência de qualquer tipo de rendimentos, através de consultas ao conteúdo das declarações de IRS/ IRC, incluindo anexo O.
Espera Deferimento”

Sobre este Requerimento recaiu Despacho, do seguinte teor:
“Ref. Citius 265404 de 10.0309.2015 — Vem o Il. AE requerer autorização para consulta de dados de natureza sujeita a sigilo fiscal, invocando o disposto no n.°7 do art. 749.° NCPC. Ora, vejamos, antes de mais, da tempestividade do pedido.
Compulsados os autos, constata-se que os mesmos tiveram início em 04.07.2014 (art. 259.° n.°1 NCPC).
A fim de aferirmos as normas a aplicar e considerando a existência actual de duas formas de processo comum quando está em causa a execução para pagamento de quantia certa, há que atender, desde logo, ao título dado à execução (requerimento de injunção a que foi aposta fórmula executória), prevendo-se que em tais casos se aplique a forma de processo sumária (art. 550.° n.°s 1 e 2 al. b) NCPC).
Assim, no caso concreto importa aplicar aplicar as normas previstas nos arts. 855.° e ss. e subsidiariamente nos arts. 724.° e ss. do NCPC (cfr. art. 626.° n.°1 NCPC).
Nos termos do disposto no art.855.° n.°1, nestes casos o requerimento executivo e documentos respectivos são enviados via electrónica ao agente de execução, cabendo-lhe recusar o requerimento ou suscitar a intervenção do juiz nos termos da al. b) do n.°2 do art. 855.° NCPC, designadamente para efeitos de indeferimento liminar ou aperfeiçoamento.
Por outro lado, se o requerimento for recebido e o processo houver de prosseguir o agente de execução inicia as consultas e diligências prévias à penhora que se efectiva antes da citação do executado.
Estatui, por sua vez, o disposto no art. 855.° n.°4 cio NCPC que decorridos três meses sobre a realização de consultas e. diligências prévias à penhora, observa-se o disposto no n.°1 do art. 750.° NCPC. Ora, nos termos do art. 750.° n.°1 NCPC estatui-se que que "1 — Se não forem encontrados bens penhoráveis no prazo de três meses a contar da notificação prevista no n.° 1 do artigo 748.°, o agente de execução notifica o exequente para especificar quais os bens que pretende ver penhorados na execução; simultaneamente, é notificado o executado para indicar bens à penhora, com a cominação de que a omissão ou falsa declaração importa a sua sujeição a sanção pecuniária compulsória, no montante de 5 % da dívida ao mês, com .o limite mínimo global de 10 UC, se ocorrer ulterior renovação da instância executiva e aí se apurar a existência de bens penhoráveis." .
No caso concreto, conforme resulta da tramitação electrónica dos autos, o Il. AE interveio nos mesmos logo em 11.07.2014 (ref. 849078).
Não se vislumbra que haja recusado o requerimento nos termos da al. a) do n.°2 do art. 855.° NCPC.
Face ao que vai dito, considerando o período de tempo decorrido desde o recebimento do requerimento executivo pelo Il. AE e a apresentação do requerimento em apreço não resta senão concluir que não está mais em tempo de realizar novas diligências de penhora designadamente nos termos e para efeitos do art.º 855.° n.°3 (e 749.° n.°7) NCPC, pelo que se indefere o requerido.
Assim, notifique o Il. AE do presente despacho.
Notifique igualmente a exequente.
t. Mais devendo o II. AE esclarecer se foram encontrados quaisquer bens penhoráveis e na negativa dar cumprimento ao estatuído no n.°1 do art. 750.° (ex vi art. 855.°n.°4), juntando aos autos os respectivos documentos comprovativos.
Prazo: 10 dias.
Após, ou caso nada seja dito em tal prazo, conclua, de imediato.
D.N.…”

Inconformado com tal decisão, veio o Banco Exequente interpor recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões:
Em conclusão, portanto, o despacho recorrido, na parte em que é objecto do presente recurso, violou o princípio que dimana do artigo 2°, n° 1, do Código de Processo Civil, tendo também violado o disposto no artigo 855°, n° 4, do referido normativo legal, com referência ao disposto no artigo 750°, n° 1, do Código de Processo Civil, pelo que deve, atento o que dos autos consta, o presente recurso ser julgado procedente e provado e, em consequência, revogar-se o despacho recorrido, na parte objecto do presente recurso, substituindo-se o mesmo por acórdão que defira o que requerido foi pelo Solicitador de Execução designado nos autos, ou seja a autorização para a consulta de dados de natureza sujeita a sigilo fiscal, desta forma se fazendo correcta e exacta interpretação e aplicação da lei à matéria que dos autos consta, …

Cumpre decidir.
II. Nos termos do disposto nos art.ºs 635º, n.º 4, e 639º, n.º 1, ambos do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do art.º 608º do mesmo Código.

A questão a decidir resume-se, pois, a saber se o peticionado pelo Sr. Agente de Execução, no Requerimento de 10/03/2015, ao abrigo do disposto no n.º7 do art.º 749º do NCPC, deve ser admitido.

Entendeu o legislador atribuir ao Agente de Execução um papel central no Processo Executivo, incumbindo-o de uma panóplia de funções, nomeadamente, e no que interessa ao caso, desenvolver um conjunto de diligências prévias à penhora, nos termos do art.º 749º do NCPC, tendo em vista obter as necessárias informações sobre a existência de bens penhoráveis.
Concedendo-lhe a lei, para o efeito, o prazo de três meses, tanto no caso do Processo Ordinário (n.º1 do art.º 750º do NCPC), como no caso do Processo Sumário (n.º 4 do art.º 855º do NCPC), embora a contar de momentos processuais diversos, uma vez que a tramitação dos referidos tipos de processo executivo também é diversa.
A questão que se põe é a de saber, no caso do Agente de Execução não cumprir com o estabelecido no art.º 749º do NCPC ou no n.º3 do art.º 855º do NCPC, conforme se trate de Processo Executivo Ordinário ou Sumário, no prazo estabelecido na lei, se preclude a possibilidade do Agente de Execução proceder a essas diligências prévias, nomeadamente a que interessa ao presente processo, a da consulta de elementos protegidos pelo sigilo fiscal.
Para resolver a questão objecto do presente recurso, não devemos olvidar um princípio basilar do Estado de Direito Português, vazado nos art.º 20º da Constituição da República Portuguesa, o do direito ao acesso à tutela jurisdicional, que se consubstancia, entre o mais, no direito de acesso aos Tribunais para fazer valer os direitos legalmente protegidos.
Emanação desse princípio, o art.º 2º do NCPC reafirma-o, dando ênfase a uma vertente que muitas das vezes é esquecida, a do cidadão dever obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie a pretensão que deduziu em juízo, e de a fazer executar em tempo útil.
Do que decorre, a nosso ver, que a interpretação da lei processual, deve ser efectuada dentro de um quadro de razoabilidade, em que tenha por princípio estruturante, o direito constitucionalmente protegido, nas suas diversas vertentes.
Daí que, perante uma dúvida razoável sobre a interpretação de um dispositivo da lei processual, se deva deitar mão do referido princípio constitucional, equacionando a melhor interpretação que o faça prevalecer, no sentido de quem aceda à justiça veja o seu direito apreciado, em prazo razoável, mormente, no caso das acções executivas para pagamento de quantia certa, veja o seu crédito satisfeito, num prazo razoável.
E para que isso suceda, é preciso que o juiz do processo, enquanto intérprete da lei processual, deite mão a uma interpretação que faça convergir a actividade processual para obter o desiderato tão caro a qualquer exequente, o da satisfação do seu crédito.
Isto sem prejuízo de assegurar e fazer cumprir os direitos do executado.
Consequentemente, toda a aparente celeridade processual que o legislador quis impor ao processo executivo, parecendo estar mais interessado em arquivar processos, atrás de processos, por via da extinção de sucessivas instâncias abertas para obter a mesma pretensão executiva, em vez de pretender satisfazer, em prazo razoável, o direito do exequente a ser pago do seu crédito, merece-nos a maior cautela na interpretação dos atinentes normativos processuais, tendo em vista o cumprimento do princípio constitucional acima aludido.
Dito isto, resulta do normativo em apreço _ o n.º4 do art.º 855º do NCPC_ que, decorridos três meses sobre o início das diligências prévias à penhora, observa-se o disposto no n.º1 do art.º 750º do NCPC, ou seja, é notificado o exequente para especificar quais os bens que pretende ver penhorados na execução e cita-se o executado para o processo e para indicar bens à penhora, extinguindo-se a execução se ambos não indicarem bens no prazo de 10 dias a contar da notificação ou citação, respectivamente.
O que significaria, numa interpretação literal, que, não tendo o agente de execução obtido atempadamente autorização para solicitar informações protegidas pelo sigilo fiscal ou por outros regimes de confidencialidade, no aludido prazo de três meses, que ficaria vedado o direito do exequente, volvido esse prazo, a fazer valer o pagamento do seu crédito por via da penhora de bens do executado efectuada por via das informações que poderia obter por aquelas canais privilegiados e que não estão ao seu alcance senão por aquela via.
Dir-se-á que assim será _ em abono da tese da interpretação literal do preceito _, porque, sendo agente de execução designado pelo exequente, entre os registados em lista oficial (n.º1 do art.º 720º do NCPC), também pode ser substituído pelo mesmo exequente, se este verificar que o agente de execução que designou não está a cumprir atempadamente com as suas funções (n.º4 do mesmo preceito).
E por isso, a perda desse direito do exequente, seria o resultado da sua inépcia.
É aparentemente verdade, para quem olhe a questão de um ponto de vista meramente formal.
Apesar de não ser menos verdade, que o agente de execução não é um mero executor de ordens do exequente, tendo a autonomia bastante para efectuar por sua iniciativa e dentro do seu quadro de independência funcional, todas as tarefas de que a lei o incumbe.
Mas também é verdade, para quem conhece minimamente a máquina judiciária, a que os agentes de execução se vieram associar, que os processos têm o seu tempo, mesmo que sejam postos ao serviço dos agentes de execução os meios informáticos que hoje existem, tempo esse a que os agentes de execução se acomodaram, pois interagem com os outros operadores judiciários _ entre eles advogados, magistrados e funcionários_, habituados a tal tempo.
E o tempo da justiça, desde que seja razoável _ e todos sabemos que às vezes não o é _ é o necessário para resolver, a contento e de forma equilibrada, os interesses das partes, para o que celeridades processuais excessivas e muito ligadas a aspectos formais são perniciosas.
Acresce que, nos tempos que correm desde há alguns anos a esta parte, a grande afluência processual executiva gerada pela grave crise económica, veio trazer à actividade processual uma maior morosidade, nomeadamente, dado que é disso que estamos a falar, porque os agentes de execução ficaram assoberbados de trabalho.
Acréscimo de trabalho esse, que importa, necessariamente, também acréscimo de serviço dos Srs. Advogados, dos Srs. Magistrados e dos Srs. Funcionários, como aliás aconteceu no caso em apreço em que, a atentar no histórico que nos foi facultado, só foi aberta conclusão à Sr.ª Juíza do Processo em 17/09/2015, data em que proferiu o Despacho recorrido, sendo certo que o Requerimento do Sr. Agente de Execução é de 10/03/2015.
Aqui chegados, afigura-se-nos dizer que, todos os operadores judiciários, devem ter em mente, que o direito constitucionalmente reconhecido, acima expendido, só será levado a bom porto, se todos colaborarem com o fito de, relativamente a um determinado caso em concreto, tentarem obter a melhor solução que sirva o interesse da Justiça.
Nesse sentido, deve o Juiz do processo indagar, antes de proferir decisão que possa coartar o direito de qualquer das partes, por via de um excessivo apego ao formalismo processual, ou a prazos meramente balizadores da actividade processual e, por vezes, pouco adequados às necessidades de obter o desiderato processual que vimos replicando, os motivos do não cumprimento desses prazos, adequando o seu limite à necessidade do caso concreto.

No caso em apreço, é óbvio que o Sr. Agente de Execução efectuou o Requerimento de 10/03/2015, em momento posterior ao decurso do prazo de três meses após o recebimento do Requerimento Executivo, mas o Tribunal não procurou indagar porque razão assim ocorreu.
Sendo certo que, se houver motivo justificativo, nada impede o Tribunal de, considerando o fim último do processo, admitir a prática da diligência solicitada, mesmo para além do prazo definido pela lei.
O que será necessariamente preferível a uma actividade processual que não produza o efeito necessário da cobrança da dívida exequenda, e conduza a interposição de novo processo para o efeito.
Concluindo, somos levados a revogar o Despacho recorrido, devendo a Sr.ª Juíza “a quo” notificar o Sr. Agente de Execução para justificar a extemporaneidade do Requerimento de 10/03/2015, decidindo, de seguida, em conformidade com o acima expendido.
Procede assim, em parte, o presente recurso.
***
III. Decisão
Pelo acima exposto, decide-se pela procedência parcial do recurso, revogando-se o Despacho recorrido, e determinando-se que a Sr.ª Juíza “a quo” ordene a notificação do Sr. Agente de Execução para justificar a extemporaneidade do Requerimento de 10/03/2015, decidindo, de seguida, em conformidade com o acima expendido.
Custas pela parte vencida a final.
Registe e notifique.

Évora, 21 de Janeiro de 2016
Silva Rato
Assunção Raimundo
Mata Ribeiro