Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
916/18.8T8STB.E1
Relator: MATA RIBEIRO
Descritores: FRACCIONAMENTO DA PROPRIEDADE RÚSTICA
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 11/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: A usucapião, sendo uma forma originária de aquisição de direitos, pode incidir sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura, contrariando o regime jurídico que proíbe o fracionamento de prédios rústicos por ofensa à área de cultura mínima.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

O Ministério Público instaurou ação declarativa com processo comum contra bb e cc, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal (Juízo Local Cível de Setúbal - J1) pedindo a anulação da divisão de prédio rústico, titulada por escritura de justificação outorgada em 31/08/2015, salientando em sustentação do peticionado, em síntese:
- Os réus outorgaram escritura de justificação notarial, na qual declararam serem donos e legítimos possuidores, em comum e sem determinação de parte ou direito, do prédio rústico sito em Venda do Alcaide, freguesia do Pinhal Novo, concelho de Palmela, composto de terreno hortícola, com a área de 3500 m2, que confronta do norte com Gilberto S…, do sul com António J…, do nascente com Rua Humberto Delgado e do poente com António M…, inscrito na matriz predial sob parte do artigo …, da secção G, anteriormente art.º … da secção G, a desanexar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o n.º …, da referida freguesia;
- Na data da escritura os réus desanexaram este prédio do referido prédio rústico o qual tem a área de 0,7000 ha, composto de cultura arvense (área de 0,4500 ha), pomar de laranjeiras, pomar de ameixeiras, pomar de damasqueiros e vinha com pomar de macieira (0,1500 ha), ou seja cultura em regime de sequeiro e não na data que indicam na escritura, sendo tal fracionamento proibido pelo art. 1376.º n.º 1 do CC e Portaria n.º 202/70 de 21.04, pelo que são negócios anuláveis.
Citados os réus vieram contestar, alegando que o prédio foi objeto de divisão e doação verbal em 1969, estando na posse do terreno desde essa data, em resultado dos pais da primeira ré terem dividido fisicamente o terreno em duas partes e o terem doado verbalmente à filha, exercendo o direito de propriedade, à vista de todos e sem oposição de quem quer que seja, adquirindo-a por usucapião.
Concluindo pedem a improcedência da ação.
Saneado o processo e realizada audiência final, veio a ser proferida sentença que julgou improcedente a ação e absolveu os réus do pedido.
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Inconformado, veio o autor interpor recurso, terminando nas suas alegações por formular as seguintes conclusões:
A - O Ministério Público veio pedir a juízo a anulabilidade do ato declarativo titulado na escritura outorgada pelos Réus no dia 31 de agosto de 2015, no Cartório Notarial de Maria Teresa Morais Carvalho de Oliveira, em que justificaram a posse do prédio rústico sito em Venda do Alcaide, Freguesia de Pinhal Novo, concelho de Setúbal, composto de terreno hortícola, com a área de 3.500 m2, a desanexar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o nº …, da referida freguesia e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo …, da Secção G, com a área total de 7.000 m2.
B - O julgador concluiu pela validade da escritura de justificação notarial, entendendo que o fracionamento não ocorreu com a celebração da escritura, mas no momento do início da posse, data em que inexistia portaria a fixar a unidade mínima de cultura para o distrito de Setúbal, pese embora vigorasse a Lei nº 2116, de 14.08.1962, que mandava fixar a unidade mínima de cultura.
C - Na hipótese de aplicação da Portaria 202/70, o tribunal recorrido concluiu pela prevalência da usucapião sobre as regras relativas ao fracionamento dos prédios rústicos aptos para a cultura.
D - O Autor discorda de tais posições, porquanto, e desde logo, o fracionamento ocorreu com a escritura notarial de justificação e não antes, sendo, pois, aplicável a Portaria nº 202/70, de 21 de abril que, para terrenos de sequeiro, fixou a unidade mínima de cultura, para o distrito de Setúbal, em 7,5 ha.
E - A matéria descrita nos Factos não provados é irrelevante, porque conclusiva ou de direito.
F - É no momento em que é outorgada a escritura de justificação que a usucapião se torna conhecida e, por isso, só a partir dessa data é que eventuais prejudicados com o ato de fracionamento violador das regras existentes, e o próprio Estado, podem reagir do mesmo, por terem, a partir de então, acesso a um documento que titula a ilegalidade.
G – Não se divisa a que outro ato, para além do ato da escritura, se refere o artº. 1379º, nº 3 do Código Civil.
H - Antes da escritura não temos um ato celebrado, mas uma divisão material.
I - Acresce que em 1969, data referida como início da posse, já estava em vigor o Código Civil de 1966, que proibia - e proíbe - o fracionamento ilegal de prédio apto para a cultura em violação da unidade mínima de cultura.
J - No entanto, não tinha, ainda, sido regulamentada a unidade de cultura fixada para cada zona do país, a que alude o artº. 1376º do Código Civil, pelo que, a entender-se o fracionamento em 1969 – como o fez o tribunal recorrido - seria sempre aplicável o artigo 107º do Decreto nº 16731, de 13.04.1929, estatuindo que: “É proibida, sob pena de nulidade, ainda quando derivada de partilha judicial ou extra-judicial, a divisão do prédio rústico de superfície inferior a 1 hectare ou de que provenham novos prédios de menos de meio hectare”, disposição que somente foi revogada com a entrada em vigor da Portaria nº 202/70, conforme resultava da Base XXXIII, nº 2 da Lei nº 2116, de 14.08.1962 (“Depois de fixada em regulamento especial para cada zona do país, a unidade de cultura de que trata a Base 1, deixam de ser aplicáveis, na zona abrangida, os artigos 106º e 107º do Decreto nº 16731, de 13 de Abril de 1919”).
L - No caso dos autos, o prédio primitivo tem dimensão inferior a 1 hectare e os novos prédios têm área inferior a meio hectare. O fracionamento seria sempre proibido, nesta hipótese, por ferido de nulidade e, como tal, invocável a todo o tempo, nos termos do artg. 294º do Código Civil.
M - O entendimento vertido na sentença recorrida conduziria à situação singular de, por um lado, o Código Civil proibir o fracionamento ilegal de prédio apto para a cultura, mas, por outro lado, “limpar” tal ilegalidade, a coberto da ausência da regulamentação especial da unidade de cultura para cada zona do país, a que alude o artº. 1376º do Código Civil.
N - O prédio … Secção G, da freguesia de Pinhal Novo, tem a área de 0,7000 ha e é composto por parcelas de cultura arvense, pomar de laranjeiras, pomar de ameixeiras, pomar de damasqueiros, vinha com pomar macieira, sendo que o prédio desanexado, com a área de 3.500 m2 é composto de terras de semeadura e árvores de fruto.
O - A área do prédio destacado é inferior à área de cultura mínima, conforme o artº. 1376º, nº 1 do Código Civil e Portaria nº 202/70, de 21 de abril, que é para este tipo de terrenos - regime de sequeiro - de 7,5ha.
P - A prolatada sentença reconheceu que o fracionamento / destacamento é proibida nos termos do citado artigo.
Q - No entanto, o julgador, remetendo para a jurisprudência que citou, concluiu pela prevalência da usucapião sobre as regras atinentes ao fracionamento de prédios rústicos aptos para a cultura.
R – Não acompanhamos tal entendimento, desde logo, porque a proibição da divisão de terrenos aptos para a cultura em unidades cuja área seja inferior à unidade de cultura mínima, imposta pelo artº 1376º do Código Civil, assenta em interesses de natureza pública, na defesa do aproveitamento e viabilidade económica das explorações agrícolas, que afetam toda uma comunidade.
S - No confronto entre interesses, seja a estabilidade e certeza nas relações jurídicas, que subjaz à usucapião, seja o interesse no aproveitamento e viabilidade das explorações agrícolas, deve prevalecer este último, por ser de grau superior, conforme resulta do disposto no artº. 335º, nº 2 do Código Civil, pois envolve e afeta toda a comunidade nacional e não apenas os próprios interessados.
T - O novo regime, resultante da nova redação do artº. 1379º do Código Civil, cominando com a nulidade os atos de fracionamento que não respeitem a unidade mínima de cultura, reflete a visão do legislador no sentido de reforçar a imperatividade da referida norma, na defesa do interesse público.
U - Proibindo a lei um resultado, necessariamente serão proibidos os meios para o atingir.
V - Não faz sentido cominar com a invalidade os atos de fracionamento, mas permitir o seu fracionamento físico, material e jurídico em consequência da sua aquisição por usucapião, pois que, dessa forma, estaria encontrada a forma de contornar, e até afastar, a proibição legal, funcionando como válvula de escape para adquirir um direito que, de outro modo, seria insuscetível de aquisição.
X - O artº. 1287º do Código Civil consagra exceções ao instituto da usucapião ao prever expressamente “(…) salvo disposição em contrário”, ali se incluindo as normas jurídicas referentes ao ordenamento e aproveitamento dos terrenos agrícolas, proibindo o fracionamento de terrenos que não respeitem a unidade mínima de cultura.
Z - Significa que a usucapião apenas pode ocorrer caso não exista disposição legal que a ela obste.
AA - Os atos de posse baseados num facto proibido pelo Direito não podem permitir uma aquisição por usucapião.
BB – Este instituto jurídico não prevalece sobre as normas que proíbem o fracionamento de prédios rústicos por ofensa da área de cultura mínima.
CC – A sentença recorrida violou o disposto nos artºs. 294º, 335º, nº 2, 1287º, 1376º, 1379º do Código Civil e Portaria nº 202/70, de 21 de abril.

Foram apresentadas alegações por parte dos recorridos defendendo a manutenção do julgado.
Apreciando e decidindo

O objeto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso (artºs 635º n.º 4, 639º n.º 1 e 608º n.º 2 ex vi do artº 663º n.º 2 todos do CPC).

Assim, a questão nuclear em apreciação consiste saber se a situação de prescrição aquisitiva de que os réus beneficiam, permite que se lhes reconheça a propriedade sobre a parcela de terreno em causa, apesar de esta ter área inferior à unidade de cultura.
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Na sentença recorrida foi considerado como provado o seguinte quadro factual:
1. Os Réus, casados sob o regime de comunhão geral de bens, outorgaram escritura de justificação no Cartório Notarial de Setúbal Teresa Morais Carvalho Oliveira, em Setúbal, exarada de fls. 144 a 145 verso do Livro de escrituras diversas n.º 283-A, no dia 31.08.2015.
2. Na escritura id. em 1., os Réus declararam:
2.1. “São donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do seguinte prédio:
Prédio Rústico, sito em Venda do Alcaide, freguesia de Pinhal Novo, concelho de Palmela, composto de terreno hortícola, com a área de três mil e quinhentos metros quadrados, que confronta do norte com Gilberto S…; sul com António J…; do nascente com Rua Humberto Delgado; e do poente com António M…, inscrito na respetiva matriz sob parte do artigo … da secção G, anteriormente artigo … da Secção G, a desanexar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela sob o número … da referida freguesia.
2.2. Que o prédio acima identificado encontra-se registado na mencionada Conservatória com aquisição a favor de Arnaldo … Cruz e mulher Joaquina …, casados na comunhão geral de bens,…
2.3. Que o prédio acima identificado, conjuntamente com a parte restante, formavam um único prédio pertencente aos acima identificados, Arnaldo … e mulher Joaquina …, pais da aqui justificante mulher, atualmente já falecidos, os quais por volta do ano de mil novecentos e sessenta e nove, dividiram em dois novos prédios, tendo o prédio aqui justificado, sido doado à filha, a justificante BB, e a área restante reservada para os doadores.
2.4. Que, a aqui justificante, embora não ficasse a dispor de título formal que lhe permitisse o respetivo registo na Conservatória do Registo Predial, desde logo, entrou na posse e fruição do referido imóvel, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, nomeadamente cultivando-o, colhendo os seus frutos e usufruindo como tal do imóvel e suportando os respetivos encargos.
2.5. Que assim, …, ora justificantes, estão na posse do identificado imóvel há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente, com ânimo de quem exerce direito próprio, sendo por isso uma posse pública, passiva, contínua, pelo que adquiriram o referido imóvel por usucapião, não tendo assim, documentos que lhe permita fazer prova da aquisição pelos meios extrajudiciais normais.”
3. Na escritura id. em 1., Otília …, Custódio … e Maximino … declararam que por serem verdadeiras, confirmam as declarações que antecedem.
4. A área do prédio destacado é de 3500,00 m2 e o remanescente ficou com a mesma área.
5. E o prédio 316 da secção G, da freguesia do Pinhal Novo, tem a área de 7000 m2.
6. O prédio n.º ….º da secção G sobre o qual desanexação incide é composto de cultura arvense (área de 0,4500 ha), pomar de laranjeiras, pomar de ameixeiras, pomar de damasqueiros e vinha com pomar de macieira (0,1500 ha).
7. Esta aquisição foi registada na Conservatória do Registo Predial, cujo prédio resultante foi inscrito sob o n° …/20151013 da freguesia de Pinhal Novo.
8. A R. BB requereu, em 28.08.2015, no Serviço de Finanças de Palmela, a instauração de processo de cadastro para constituição de prédio rústico distinto, a desanexar do art. rústico … da secção G, da freguesia do pinhal Novo, dando origem ao processo de cadastro n.º 161/2015.
9. Este processo teve parecer desfavorável da Direcção-Geral do Território.
10. A R. mulher adquiriu o prédio justificado por doação não titulada, por volta do ano de 1969, de seus pais, Arnaldo … e mulher, Joaquina ….
11. Altura em que os mesmos, procederam à divisão física do seu prédio rústico descrito sob o nº… da freguesia de Pinhal Novo, com a área de 7000 m2, em dois prédios distintos, com a área de 3500 m2 cada um.
12. Doando um deles à sua filha R. BB, que veio a ser objeto da justificação formalizada pela escritura ora em crise.
13. Tendo a R. desde logo, entrado na posse do mesmo, habitando a casa implantada no prédio.
14. Desenvolvendo uma exploração de produtos hortícolas para consumo familiar.
15. Demarcando e vedando o seu prédio.
16. Atuando os RR com convicção de que eram os proprietários do mesmo, há mais de vinte anos.
17. De forma continuada, pacífica, à vista de todos e sem oposição de ninguém.

Foi considerado não provado o seguinte facto:
I) Que os RR. tenham procedido à desanexação do prédio na data da escritura.

Conhecendo da questão
A questão em apreciação, suscitada pelo Ministério Público, já foi apreciada, por este Tribunal da Relação, em vários acórdãos, indo, segundo cremos, a maioria, não obstante a diversa argumentação, no sentido defendido pela decisão recorrida, apesar de haver posições divergentes.
Está em causa a aplicabilidade, ou não, ao caso, dos seguintes preceitos legais:
- Art. 1287º do CC no qual se dispõe “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião”;
Artº 1376º n.º 1 do CC no qual se dispõe “os terrenos aptos para cultura não podem fracionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País…”;
Artº 1º da Portaria 202/70 de 21/04 que fixa a unidade de cultura para Portugal Continental no qual se dispõe que “a área da unidade de cultura é fixada” para as regiões Sul do Tejo “Portalegre, Évora, Beja e Setúbal” para os terrenos de regadio arvenses em 2,50 ha; para os terrenos de regadio hortícolas em 0,50 ha e para os terrenos de sequeiro em 7,5º ha;
Artº 107º do Decreto n.º 16 731 de 13/04/1929 que fixa em 0,5 ha a superfície mínima como unidade de cultura aplicável a todo o país, no qual se dispõe “É proibida, sob pena de nulidade, ainda quando derivada de partilha judicial ou extra-judicial, a divisão do prédio rústico de superfície inferior a 1 hectare ou de que provenham novos prédios de menos de meio hectare” (artº que deixou de ser aplicável apenas com a entrada em vigor da Portaria 202/70, atento o que dispõe o artº 2º desta).
No acórdão desta Relação proferido em 08/06/2017 no processo 1011/16.0T8STB.E1, disponível em www.dgsi.pt, defendeu-se que beneficiando os réus de uma situação configurada como prescrição aquisitiva relativamente a determinada parcela de terreno, deve ser-lhe reconhecida a propriedade, apesar de a sua área ser inferior à unidade da cultura, prevalecendo as regras que contemplam a aquisição da propriedade por usucapião em detrimento das que impedem o fracionamento de prédios rústicos aquém daquela unidade de cultura, tendo este entendimento sido sufragado pelo STJ, em acórdão proferido em 01/03/2018,[1] que apreciou a revista interposta do mesmo.
No acórdão desta Relação proferido em 26/10/2017 no processo 7859/15.5T8STB.E1 (cuja decisão, no entanto, veio a ser revogada por Acórdão do STJ de 03/05/2018), seguindo fundamentação idêntica à constante no acórdão desta Relação proferido em 25/05/2017 no processo 1214/16.7T8STB.E1 (acórdãos disponíveis em www.dgsi.pt), defendeu-se a posição oposta, dando-se prevalência às normas que impedem o fracionamento dos prédios rústicos em detrimento da prescrição aquisitiva, por se entender que as normas jurídicas que proíbem o fracionamento defendem o interesse público, sendo que, quando a lei proíbe obtenção de um determinado resultado, tem de proibir necessariamente todos os meios adequados para o atingir.
Não obstante a argumentação consignada nestes referidos acórdãos do TRE de 26/10/2017 e de 25/05/2017, entendemos ser de acolher a posição expressa no citado acórdão de 08/06/2017, cuja fundamentação iremos seguir de perto, efetuando, no entanto, as modificações necessárias, relacionadas com o caso concreto em apreciação e com a jurisprudência que se vem firmando no sentido propugnado.
No caso em presença não está implicada na usucapião pretendida valer qualquer situação de loteamento ilegal que ponha em causa o verdadeiro interesse público, mas apenas, e tão-só, a extensão da área abrangida por essa usucapião, que se mostra reduzida face à área mínima da unidade de cultura respetiva, e respeitante a parcela de terreno integrada em prédio rústico e que manteve essa natureza rústica.
Se, se pode afirmar que as normas (cfr. Portaria nº 202/70 e anteriormente Dec. n.º 16731 de 13/04/1929) que fixam essa área mínima ainda são normas de direito público (ainda que o mesmo já não se possa dizer da proibição de fracionamento, que essa já é de direito privado, por prevista apenas no artº 1376º do C. Civil), o certo é que os interesses que se visam acautelar com tal fixação já não relevam do domínio da ordem pública (como, ao que se julga, os relativos a loteamentos ilícitos), sendo antes de cariz essencialmente económico, na medida em que se prendem com o desenvolvimento e competitividade da atividade agrícola nacional (como se pode ver, até, do preâmbulo do Decreto-Lei nº 384/88, de 25/10, diploma que regia sobre o emparcelamento rural e cujo Regulamento, aprovado pelo Decreto-Lei nº 103/90, de 22/3, manteve, no seu artº 53º, os valores das unidades de cultura constantes daquela Portaria de 1970 – situação ainda inalterada, à luz do novo regime da estruturação fundiária, aprovado pela Lei nº 111/2015, de 27/8, que revoga aquela legislação anterior). Nesse conspecto, deve entender-se que as normas impeditivas do fracionamento não se situam, manifestamente, em plano de prevalência sobre as relativas à usucapião.
Se é de conceder que o instituto da usucapião deva ceder perante normas imperativas públicas de especial relevo (e que, designadamente, impeçam expressamente a usucapibilidade), também é certo que a generalidade da jurisprudência sustenta solução inversa à que o Ministério Público, enquanto autor apelante, aqui propugna e vem defendendo em variadas ações intentadas no Tribunal da Comarca de Setúbal.
Com efeito, a avaliar pelos arestos publicados dos diferentes tribunais superiores, pode considerar-se praticamente pacífico o entendimento de que a usucapião prevalece sobre o regime do artº 1376º, nº 1, do C. Civil.
Começando pelo Supremo Tribunal de Justiça, citem-se, a título exemplificativo, os Acs. de 19/10/2004 e de 40/02/2014 (Procs. 04A2988 e 314/2000.P1.S1, respetivamente, idem). No primeiro (que se louva noutros arestos), discorre-se como segue: «Mesmo que houvesse fracionamento ilegal, nos termos do art. 1376, nº1, do C.C., desde que esteja invocada a usucapião e se verifiquem os respetivos pressupostos (pressupostos que resultaram apurados no caso presente), procede a aquisição do direito de propriedade, com base na usucapião, relativamente ao prédio dos autores. É que a usucapião constitui uma forma de aquisição originária. A lei, ponderando determinados aspetos que considerou relevantes, assumiu que certas situações de facto pudessem converter-se em verdadeiro direito, como acontece quando a posse se prolonga por um período de tempo significativo. A usucapião é o instrumento capaz de se sobrepor a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou substanciais, relativamente a atos de alienação ou de oneração de bens. Através da usucapião, o sistema jurídico, provada que seja a realidade substancial de que depende, confere a legitimidade de que carecia o possuidor, independentemente da natureza do vício que afeta a sua posição face ao bem. Consequentemente, só resta concluir que, das regras da usucapião, decorre que o direito correspondente à posse exercida é adquirido ex novo e, por isso, está imune aos vícios que anteriormente pudessem ser apontados (…)». E no segundo, na mesma linha, conclui-se: «(…) o reconhecimento judicial da mencionada usucapião deve sobrepor-se e prevalecer sobre o fracionamento ilegal do prédio, que, porventura, tenha estado na respetiva génese, já porque em causa está um direito não transmitido, mas constituído “ex novo”, já porque, esgotado o decurso do tempo necessário à respetiva verificação, com o inerente alheamento da autoridade pública ou interessado a quem incumba a prevenção/repressão ou arguição da correspondente violação, deixou de fazer sentido, afrontando as conceções dominantes na comunidade, a tardia salvaguarda do subjacente interesse público, devendo a Ordem Jurídica absorver a situação ocorrente e consolidada».
Por sua vez, são de assinalar vários arestos dos diferentes tribunais de 2ª instância, a começar por esta Relação, em que avulta relevantemente o Ac. do TRE de 26/10/2000 (in CJ, tomo IV, pp. 272 ss.), assim sumariado: «São usucapíveis as parcelas com área inferior à unidade de cultura, resultantes de divisão, efetuada por partilha verbal, de um prédio rústico apto para fins agrícolas».
Mencionem-se ainda os Acs. do TRC de 25/2/2014 e de 3/3/2015 (Procs. 1350/11.6TBGRD.C1 e 5730/06.0TBLRA.C1, respetivamente, idem). No primeiro, que contém extensa referência a outros arestos, sintetiza-se assim a sua doutrina: «Fora das situações em que o legislador avulso impede a “usucapibilidade” de certos bens - por ex. o caso dos baldios - artigo 2.º do do Dec. Lei n.º 39/76, de 19 de Janeiro, por sua vez, o Decreto-Lei nº 40/76, de 19 de Janeiro - e dos bens culturais classificados ou em vias de classificação - Lei 107/2001 de 8/09 - que, através do seu artigo 34.º, torna insuscetível de aquisição, por usucapião, são afloramentos de tal princípio -, os Tribunais têm dado preferência à usucapião, como forma originária de aquisição, em detrimento de certas exigências de âmbito administrativo e limitações legais. (…) Concorrendo os requisitos da usucapião, aferidos pelas características da posse, os vícios anteriores e as vicissitudes ligadas ao ato ou negócio causal, não afetam o novo direito, que decorre apenas dessa posse, em cujo início de exercício corta todos os laços com eventuais direitos e vícios, incluindo de transmissão, anteriormente existentes. (…) A usucapião não só se abstrai, como inclusivamente se sobrepõe a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou substanciais relativamente a atos de alienação ou oneração de bens ou até mesmo à prática de atos que originariamente pudessem considerar-se ilegais ou até mesmo violadores dos direitos de outrem». E o segundo regista no seu sumário a seguinte afirmação: «A usucapião é uma aquisição originária, genética e endógena baseada na sua causa (posse). Não se pode, pois, dizer, com rigor, que pela invocação da aquisição do direito (usucapião) se realize um destaque, um loteamento, uma divisão em prédios com área inferior à unidade de cultura: já que a coisa é possuída como autónoma e é essa posse dessa coisa possuída, como autónoma, que é causa de usucapião».
Também destacamos, no mesmo sentido, o Ac. do TRL de 15/10/2015 (Proc. 1737/11.4TBALM.L1-6, idem), com a seguinte declaração: «(…) vem sendo pacificamente entendido, tanto doutrinária como jurisprudencialmente, que a dita proibição do fracionamento da propriedade rústica em áreas inferiores à unidade de cultura não obsta à aquisição das mesmas por usucapião, uma vez que, decorrendo das regras deste instituto que o direito correspondente à posse exercida é adquirido ex novo, originariamente, está imune aos vícios que lhe pudessem ser anteriormente apontados»
Mais recentemente o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdãos de 01/03/2018, 03/05/2018 e de 01/07/2018,[2] apreciando decisões desta Relação de Évora, relacionadas com ações idênticas à presente, instauradas pelo Ministério Público na Comarca de Setúbal, decidiu pela prevalência da usucapião, verificados os respetivos requisitos, sobre a proibição de fracionamento contida no artº 1376º n.º 1 do CC.
No aludido acórdão de 01/03/2018, concluiu-se que a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura fixada na Portaria n.º 202/70, de 21/04, prevalece sobre a proibição contida no art. 1376º, nº 1 do C. Civil, não operando a anulabilidade do ato de fracionamento previsto no nº 1 do art. 1379º do C. Civil e no que se refere aos interesses de natureza pública, na defesa do aproveitamento e viabilidade económica das explorações agrícolas, que afetam toda uma comunidade, que a recorrente invoca que esta norma visa salvaguardar, a fim de a fazer prevalecer sobre a usucapião, salienta-se, também no acórdão:
E nem se argumente, como o faz o recorrente, que o interesse público que a norma do art° 1376° n°1 do CC visa salvaguardar - estruturação fundiária nacional e o ordenamento territorial em termos socialmente adequados - deve prevalecer sobre os interesses subjacentes à usucapião.
É que também as regras da usucapião são determinadas por razões de interesse público.
Com efeito, como refere Durval Ferreira, a usucapião não visa satisfazer um interesse individual do possuidor, mas, antes, o interesse público de «assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer em proteger o valor da publicidade/confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse, quer em fornecer, através do usucapião, um meio de prova seguro, de fácil utilização e consentâneo com a confiança, quanto à existência do direito e á sua titularidade».[3]
Do mesmo modo, não colhe o argumento avançado pelo recorrente no sentido de que a sanção de nulidade, agora, imposta pelo art. 1379º, n.º 1 do C. Civil, na redação dada pela Lei nº 111/2015, para os atos de fracionamento violadores da unidade de cultura, é bem elucidativa da vontade do legislador reafirmar o caráter imperativo dessa norma e confirmar a não prevalência da usucapião sobre as regras legais de proibição de fracionamento, tanto mais, que ficando sujeita ao regime estatuído nos art.ºs 294º e 286º, ambos do C. Civil, pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado e pode até ser declarada oficiosamente pelo tribunal.
Desde logo, porque, como já ensinava Manuel de Andrade, «o princípio de que a nulidade absoluta pode, por via de ação, ser invocada a todo o tempo, não prevalece sobre a doutrina da prescrição aquisitiva»[4]
No mesmo sentido, afirma Mota Pinto que a possibilidade da invocação perpétua da nulidade, pode ser precludida pela verificação da prescrição aquisitiva (usucapião).[5]
Também no referido acórdão de 03/05/2018 se defende que a usucapião invocada prevalece sobre as regras proibitivas do fracionamento, pelo que mesmo que, a posse tenha sido em termos de propriedade sobre uma parcela inferior à unidade de cultura vigente, ter-se-á de admitir que foi uma posse boa para usucapião do direito de propriedade da (s) parcela (s), não podendo a mesma ser impedida por ação de anulação ou declaração de nulidade fundada na violação de preceito legal que não impunha, em qualquer circunstância, a nulidade dos atos e negócios praticados em sua violação.
No mesmo sentido vai o acórdão do STJ de 12/07/2018 ao concluir pela prevalência da usucapião em detrimento da proibição de fracionamento, numa situação idêntica à dos autos ao salientar que casuisticamente e não aprioristicamente, devem os tribunais apreciar a validade dos atos de divisão e fracionamento da propriedade rústica, em casos como o versado no recurso: considerando a natureza da posse exercida pelos Réus e sendo a usucapião um instituto do direito privado com enorme relevância jurídica na estabilização e consolidação de situações baseadas numa posse digna de relevância no âmbito do direito real de propriedade e atendendo a que a proteção da segurança e a da confiança na atuação dos possuidores é inerente a um direito que, nascendo ex novo, sobrepuja e desconsidera atuações, ainda que ilícitas, que não afetam retroativamente a posse relevante e boa para a usucapião, concluímos que os Réus adquiriram o direito de propriedade originariamente pela via da usucapião.
No caso em apreço o fracionamento do imóvel teve origem numa doação verbal (negócio que embora nulo por falta de forma não deixa de poder constituir uma situação possessória a favor dos ora réus) realizada no ano de 1969, na sequência da qual os réus passaram a usufruir e dispor como verdadeiros proprietários da parcela de terreno em questão, estando verificados os requisitos para poderem beneficiar da prescrição aquisitiva, a que alude o art.º 1287º do CC, na senda do que salientam Pires de Lima e Antunes Varela[6] se, através de um negócio jurídico nulo (v. g., por falta de forma) se realizar um fracionamento ou uma troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.°, e se, na sequência disso, se constituírem as situações possessórias correspondentes, aqueles preceitos não obstam a que estas situações se consolidem por usucapião, logo que se verifiquem todos os requisitos legais.Também Castro Mendes[7], defendia que não obsta à aquisição por usucapião de parte de prédio, dividido verbalmente pelos anteriores comproprietários, o facto de a sua superfície ser inferior a meio hectare, tendo em conta o valor da unidade de cultura fixado pela Portaria 202/70, de 21/4, mantida em vigor pelo art.º 53.º do Dec. Lei n.º 103/90, de 23/3.
No mesmo sentido vai Menezes Cordeiro ao salientar que, “a usucapião é uma forma originária de aquisição de direitos. Assim, quando opere, cessam todos os encargos que antes oneravam a coisa desde que, naturalmente, a posse prescricional tivesse operado sem esses encargos. Desta natureza autossuficiente da usucapião resultam consequências importantes (…) Admite-se a usucapião duma gleba, separada dum baldio, assim como se admite a usucapião de áreas inferiores às de cultura ou de parcelas que legalmente não seriam separáveis”.[8]
De salientar que ao contrário do que parece defender o recorrente (cfr. conclusão X) a expressão “disposição em contrário” ressalvada naquela norma legal - artº 1287º do CC - não abarca a situação prevista no artº 1376º do CC epigrafada de fracionamento, na medida em que inexiste qualquer norma excecional que estabeleça taxativamente, que a posse mantida sobre a parcela de terreno com área inferior à unidade de cultura não conduz à usucapião, cujos efeitos se retrotraem, por força do disposto no artº 1288º do CC, à data do início da posse,[9] que se identifica com a data em que ocorreu o fracionamento no âmbito da doação verbal realizada no ano de 1969, não sendo de acolher a argumentação do recorrente vertida na conclusão D), atendendo a que as escrituras de justificação, com alegação da usucapião, destinadas ao estabelecimento de trato sucessivo, não configuram atos translativos da propriedade, não constituindo verdadeiros atos de fracionamento, designadamente para efeitos previstos no artigo 1379.º, n.º 1, do Código Civil.[10]
Donde, no caso em apreço, em face dos factos dados como provados nos pontos 10 a 17, verificando-se uma situação em que a posse da parcela em causa é mantida pelos réus, desde o ano de 1969, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, faculta-lhes, a possibilidade do exercício do direito que corresponde a sua atuação, por via do instituto da usucapião que prevalece sobre o fracionamento ilegal do prédio, que não constitui, só por si, fundamento para obstar à aquisição originária do correspondente direito de propriedade.[11]
Ademais, conforme é salientado na decisão impugnada, seguindo o entendimento de Luís Carvalho Fernandes[12], “a aquisição por usucapião é, assim, efeito da posse reiterada de um direito real, não integrando qualquer negócio jurídico que possa ser passível de invalidade jurídica [nulidade ou anulabilidade], por se tratar de uma forma de adquirir de facto um direito real.
No balanço dos pontos de vista em confronto, propendemos, sem qualquer dúvida, para a orientação dominante na jurisprudência que vimos de explanar. Afigura-se-nos decisivo o mencionado argumento fundado na aquisição originária da propriedade como decorrência da usucapião. E acresce o seguinte: essa constituição ex novo do direito de propriedade, por efeito da usucapião, configura o reconhecimento da estabilidade de uma situação jurídica duradoura, em que o beneficiário legitimamente confiou, por ser tutelada pelo direito, e cuja afetação, por aplicação de regras de fundamento economicista, seria injustamente penosa para o beneficiário.
Em conformidade, entende-se merecer adesão a solução adotada pelo tribunal a quo, no sentido de recusar a prevalência das regras relativas ao fracionamento rural sobre o instituto da usucapião – e de que resultou a improcedência da presente ação.
Nestes termos irrelevam as conclusões do apelante, não se mostrando violadas as normas legais cuja violação foi invocada, sendo de confirmar a sentença recorrida.
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DECISÂO
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, em consequência confirmar a sentença recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público, enquanto autor apelante (artos 527º do NCPC e 4º, nº 1, al. a), do RCP).



Évora, 22 de novembro de 2018
Mata Ribeiro
Sílvio Teixeira de Sousa
Maria da Graça Araújo

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[1] Disponível, para além do site do ITIJ, na Col. Jur. Tomo I, 2018, 81.
[2] respetivamente, nos processos1011/16.0T8STB.E1.S2; 7859/15.5T8STB.E1 e 7601/16.3T8STB.E1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[3] In Posse e Usucapião, 3ª edição, 494.
[4] In Teoria da Relação Jurídica, vol. II, 418.
[5] In Teoria do Direito Civil, 470.
[6] In Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, 269.
[7] In Teoria Geral, 1979, Vol. II, pág. 235,
[8] In A POSSE Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3ª edição, 130-131.
[9] Cfr. Ac. do STJ de 01/03/2018 no processo 1011/16.0T8STB.E1.S2, disponível em www.dgsi.pt
[10] Cfr. Acs. do TRE de 25/01/2018 no processo 7651/16.0T8STB.E1; de 25/01/2018 no processo 7601/16.3T8STB.E1; de 22/03/2018 no processo 6000/16.1T8STB.E1 e de 07/06/2018 no processo 145/16.5T8CCH.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt
[11] Cfr. Ac. do TRE de 26/04/2018 no processo 418/15.4T8ALR.E1, disponível em www.dgsi.pt.
[12] In Lições de Direitos Reais, 3.ª Edição, p. 230.