Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
188/09.5TBPTG.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: ERRO NA FORMAÇÃO DA VONTADE
ESSENCIALIDADE
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: "Factos extraordinários requerem provas extraordinárias".
Decisão Texto Integral: Processo n.º 188/09.5TBPTG.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora

(…), na qualidade de herdeira habilitada de (…) propôs contra (…) e marido, (…) a presente ação declarativa, que segue os termos do processo comum, alegando, para tanto e em síntese, que:
No dia 5 de Dezembro de 2008, no Cartório Notarial de Elvas, foi outorgado um documento denominado “confissão de dívida”, nos termos do qual (…) declarou-se devedor aos réus do montante de € 250.000,00 e comprometeu-se a pagar tal valor até ao dia 6 de Março de 2009;
A declaração constante da confissão de dívida não foi emitida pelo autor no seu pleno estado de conhecimento e vontade, pois não se apercebeu do que havia declarado, não tendo ajuizado, no momento, que se reconhecia devedor duma quantia que não havia recebido dos réus, na medida em que eram frequentes as solicitações que estes lhe faziam, no sentido de subscrever documentos que diziam ser do seu interesse, documentos que muitas vezes estavam em branco, mas que aquele assinava dada a relação de confiança e de gratidão;
Termina, deste modo, e ao abrigo dos artºs. 247º e 251º, do Código Civil, pedindo seja a ação julgada procedente por provada, e que em consequência:
a) Seja anulada a confissão de dívida outorgada por (…) em 5 de Dezembro de 2008, no Cartório Notarial de Elvas;
b) Cumulativamente, seja declarada a inexistência do empréstimo de € 250.000,00, que alegadamente os réus lhe mutuaram.
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Os réus contestaram a ação e deduziram pedido reconvencional, alegando para o efeito, que:
- Os ora réus prestaram diversos serviços profissionais a (…) a partir de finais de 2006;
- Em meados de 2007 (…) tinha a casa penhorada e diversas dívidas;
- Os réus trataram de todos os assuntos com manifestos e evidentes benefícios para (…);
- Por todos os serviços profissionais que lhe prestaram, apresentaram-lhe Nota de Honorários no valor de € 162.917,68, acrescido de IVA, à taxa de 20%;
- (…) não impugnou a dita Nota de Honorários e declarou à ré que pretendia garantir o seu pagamento, tendo sido em consequência desse compromisso que outorgou no dia 5 de dezembro de 2008 a “Confissão de Dívida”, o que fez de forma livre e conscientemente, confessando-se, assim, voluntariamente, devedor dos réus;
- Surpreendidos com o teor da presente ação, os réus intentaram contra (…) ação para cobrança dos honorários que lhes são devidos, esperando ver titulado o seu direito de crédito;
Reconvindo, dizem, por seu turno, os réus:
- (…) deve-lhes, a título de honorários, o valor global de € 195.501,21 (€ 162.917,€ + IVA);
- O título impugnado excede, assim, aquele montante em € 54.498,79;
- Não obstante (…) viveu com os réus durante dois anos e meio, sentindo-se compelido a confessar-se devedor aos réus daquele montante, destinada a compensar a alimentação e cuidados médicos que lhe foram prestados;
- Acresce que os réus ajudaram monetariamente o filho daquele, para além de lhe terem prestado serviços de advocacia, cujos honorários ascendem a € 2.500,00; pagaram o funeral da mulher de (…), no montante de € 1.300,00 e outras despesas, muitas delas não documentadas, tudo no valor global de € 47.800,00;
- (…) reconheceu estes créditos dos réus e obrigou-se, por isso, mediante a dita confissão de dívida, a pagar os créditos aos ora réus.
Terminam, deste modo, os réus, pedindo:
a) A improcedência da ação, por não provada, com a sua consequente absolvição do pedido;
b) A procedência da ação reconvencional, com a condenação do reconvindo a pagar aos reconvintes a importância de € 47.800,00, acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da reconvenção até integral pagamento.
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A A. respondeu.
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A reconvenção foi admitida.
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O processo seguiu os seus termos e, depois da audiência de julgamento, foi proferida sentença cuja parte decisória é a seguinte:
a) Anulo o negócio jurídico celebrado em 5 de Dezembro de 2008, no Cartório do Sr. Dr. Luís Germano Beato de Oliveira Meruje, Notário, denominado “Confissão de Dívida” nos termos do qual, (…) declarou confessar-se devedor, perante (…) e marido, (…), da quantia de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), com efeitos retroativos àquela data, nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 289º, nº 1, do Código Civil;
b) Absolvo os réus do demais peticionado;
c) Julgo improcedente, por não provada, a ação reconvencional, e em consequência, absolvo a autora do respetivo pedido.
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Desta sentença recorrem os RR. invocando nulidades da sentença e impugnando a matéria de facto bem como a solução de direito.
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A recorrida contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos.
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Os recorrentes arguem a nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto.
Isto porque o tribunal deixou de considerar alguns documentos.
Manifestamente, não estamos perante a violação da obrigação que o tribunal tem de conhecer alguma questão suscitada pelas partes. A ser alguma coisa, poderia ser erro de julgamento uma vez que o tribunal não ponderou todos os elementos de que dispunha.
Mas falta de fundamentação de facto não é.
Alegam também que existe nulidade da sentença porque o tribunal não notificou a recorrente de um documento que foi junto aos autos. Como os recorrentes reconhecem, trata-se de uma, a existir, nulidade processual e não de uma nulidade da sentença.
Em todo o caso dir-se-á que tal documento é do conhecimento dos RR. e, ainda assim, a sua junção foi-lhes notificada.
Assim, improcede a arguição de nulidade da sentença.
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A impugnação da matéria de facto incinde sobre os seguintes que foram dados por provados:
13- Os réus (…) e (…) não emprestaram a (…) a quantia monetária de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros).
21- (…) subscreveu a declaração mencionada em 1), fundado na convicção, errada, de que devia aos réus a quantia de € 250.000,00, e fê-lo, apenas, porque se convenceu que lhes devia tal montante.
22- Foram os réus que instruíram e conduziram todo o processo tendente à subscrição da declaração de dívida por parte de (…) e sabiam que este a subscreveria por estar convencido que lhes devia o sobredito valor, em parte, a título de honorários e por se sentir compelido a assumir o remanescente da dívida em virtude dos réus o terem recebido na sua casa.
23- Era frequente os réus solicitarem a (…) a assinatura de documentos que diziam ser do seu interesse.
Tendo isto em consideração, também alegam que deve ser dado por provado o facto F), cujo teor é o seguinte:
Que (…) tenha confessado de forma livre e esclarecida a dívida de € 250.000,00 para com os réus.
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Em relação ao primeiro, basta dizer que em parte alguma os RR. alegaram que emprestaram dinheiro ao primitivo A..
Com efeito, lendo a contestação, o que vem alegado é que o A. lhes devia honorários no valor de perto de € 200.000,00. Mas como sobram cerca de € 50.000,00, os RR. adiantam a explicação seguinte: o A. viveu 2 anos e meio em casa dos RR., estes pagaram-lhe uma operação aos olhos, o funeral da sua mulher, despesas com um seu filho, etc., todo no valor de € 47.800,00.
Mas, repetimos, empréstimo, contrato de mútuo não há em lado nenhum. Aliás, os RR. são claros na sua contestação ao afirma que a razão para tal escritura era a obtenção de um documento que garantisse um crédito.
Não se podendo dar por provado o que não foi alegado, não vemos que o tribunal tenha errado ao estabelecer aquele facto.
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Quanto aos demais, observamos que não deixa de causar estranheza que um homem descrito pelos RR. como sendo tão pobre como Job assuma uma dívida de € 250.000,00. Factos extraordinários requerem provas extraordinárias — e essas não as vemos aqui.
Permitimo-nos, para já, transcrever um trecho das contra-alegações:
«(…) à semelhança do entendimento sufragado na douta sentença recorrida face ao que resultou provado e alegado — inclusivamente — pelos recorrentes em articulado, não é verosímil que (…), à data já reformado, com mais de 70 anos de idade e sem avultados rendimentos futuros, tenha formado a sua vontade de forma livre e sem vícios que a toldaram.
«Isto porque não é lógico, verosímil, nem compatível com as regras do "normal viver" considerar que alguém que:
«é expulso do lar de idosos por falta de pagamento das mensalidades, (artigo 37º da contestação)
«não possui dinheiro ... nem para comer (artigo 9º da contestação)
«vivenciava um período de fragilidade emocional, motivado pela doença de alzheimer que acometeu sua mulher, entretanto declarada interdita tendo como tutora a nora (artigo 35º),
«nora que dissipava a seu belo prazer o património do casal (idem, artº 36º) e cuja casa de morada de família estava penhorada e em fase de venda mediante proposta em carta fechada (idem, artigo 11º)
«mantinha outras dívidas, a fornecedores, eletricidade, funcionários, segurança social, instituições bancárias (artigo 14º)
«com um filho doente alcoólico, socioeconomicamente desestruturado,
«se vê na contingência de ser acolhido durante 2 anos e meio em casa da sua Ilustre Mandatária (idem artº 31),
«acolhimento cujo valor — dizem os recorrentes (artigo 40º da contestação) — foi modestamente calculado pelo próprio à razão de € 900,00 mensais, durante 30 meses,
«Deva honorários forenses no valor de € 195.501,21,
«Tenha aceite de forma livre e com vontade esclarecida, isto é: ciente de todas as consequências práticas, declarar-se devedor da quantia de € 250.000,00 que não recebeu, e da qual não era devedor como se comprova!»
Sendo este o contexto, que podem os depoimentos esclarecer?
Não há dúvidas que o A. se sentia em dívida para com os RR. E que os gabava e agradecia, principalmente à R. mulher. Mas este sentir-se em dívida não é, por si só, uma assunção de dívida.
Repare-se que nenhum dos depoimentos incide claramente sobre as razões de o primitivo A. se declarar devedor aos RR. de tão avultada quantia e isto porque elas são desconhecidas. E quando falamos de razões estamo-nos a referir a qualquer coisa que entre as partes tenha sido combinado. Tirando a questão dos honorários, mesmo que não pelo montante alegado (e note-se que a transação que foi feita o foi por valor muito inferior), desconhece-se a que título o A. foi viver para casa dos RR, o motivo por que os RR. lhe pagaram uma operação, etc.. E quando falamos de avultada quantia estamo-nos a referir, por exemplo, ao valor que os próprios RR. (que se saiba, de seu livre alvedrio) fixaram unilateralmente e para efeitos da sua contestação quanto ao custo da estada por mês. Claro que tudo isto é estranho. As testemunhas inquiridas, designadamente aquelas que mais próximo relacionamento mantinham com o primitivo A. (…, seu cunhado; …, seu conhecido; …, sobrinha), sabem da vida de amizade confiança entre as partes mas quanto ao modo como as coisa se resolveriam, do ponto de vista de eventuais pagamentos, pouco sabiam adiantar. Sabem também que o A. assinaria um documento para resolver as coisas mas nada sabem quanto aos valores que ele pretenderia definir nem em que termos o faria.
Em todo o caso, quase tudo parece girar em torno de uma obrigação natural e daí que o A. se sentisse grato e em dívida — mas não com o alcance pretendido pelos RR.. E será de alguma maneira verosímil que o A., pobre como Job, se declarasse devedor por aquele montante? Montante que, afirmamos, é justificado na contestação do modo que foi feito: como faltava dinheiro entre os honorários pedidos e o constante da declaração, logo outras despesas se arranjaram — e que, mesmo assim, não chega completamente ao valor declarado.
Ainda quanto a esta questão do montante em dívida (ou seja, dinheiro recebido pelo A.), fala-se de uma casa do A. que a R. terá vendido.
Sobre este assunto, a sentença expõe o seguinte:
«Aquando do despacho que determinou a reabertura da audiência de discussão e julgamento, convidámos os réus a juntarem aos autos certidão da escritura pública de compra e venda celebrada no dia em que foi outorgado o documento intitulado “Confissão de Dívida” (conhecimento que nos advém da leitura do documento de fls. 416-420), mediante a qual, (…) vendeu ao ora réu, um imóvel, bem como a fazerem prova do pagamento do preço.
«Os réus não responderam à nossa solicitação.
«Seria a nosso ver fundamental confirmar se na data em que (…) se declarou devedor, perante os réus, da quantia de € 250.000,00, recebeu destes qualquer quantia monetária, pois nessa medida mais inverosímil se tornaria a dívida confessada.
«Só os réus poderiam fazer prova da referida factualidade, e não a tendo feito, é legítimo concluir, em consequência do que anteriormente se deixou exposto, que também relativamente a essa venda, (…) não recebeu qualquer quantia monetária».
Assim, não temos contrato de mútuo, não temos qualquer dinheiro recebido pelo A.; temos apenas a referida dívida de gratidão (que implicou despesas para os RR., não há dúvidas sobre isso) mas não um dívida civil.
Por isso, podemos afirmar que a declaração do A. não corresponde à realidade, isto é, o A. fez tal declaração convencido de que devia aquele montante quando não devia. Repetimos: como podia, em circunstâncias normais, um pobre como Job ter agora uma dívida de € 250.000,00?
Da mesma forma, também podemos afirmar que o A., dada a situação em que se encontrava perante a R., fez aquela declaração nos termos em que os RR. quiseram: estes instruíram e conduziram todo o processo tendente à subscrição da declaração de dívida por parte de (…) e sabiam que este a subscreveria por estar convencido que lhes devia o sobredito valor, em parte, a título de honorários e por se sentir compelido a assumir o remanescente da dívida em virtude dos réus o terem recebido na sua casa.
A prova testemunhal não contraria esta realidade.
Por último, também não podemos de deixar de considerar que o montante de dívida declarado é superior àqueles que os RR. alegam ser o devido na contestação. Aliás, fica a impressão que os RR. se viram compelidos (para usar uma sua expressão embora a propósito do primitivo A.) a arranjar itens para compor o valor declarado; e mesmo assim não o conseguiram.
Assim, nada se altera.
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A matéria de facto é a seguinte:
1-No dia 5 de Dezembro de 2008, no Cartório do Sr. Dr. Luís Germano Beato de Oliveira Meruje, Notário, foi outorgado documento intitulado “Confissão de Dívida” nos termos do qual, (…), enquanto primeiro outorgante, e na invocada qualidade de devedor, declarou confessar-se devedor, perante os segundos outorgantes, (…) e marido, (…), estes na invocada qualidade de credores, da quantia de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), que ali declarou ter recebido.
De acordo com a cláusula segunda de tal declaração, tal valor seria pago pelo primeiro outorgante, aos segundos, até 6 de Março de 2009, mais tendo sido declarado que o referido empréstimo não venceria quaisquer juros até à referida data e que em caso de mora seria cobrado a título de cláusula penal, o juro à taxa legal que estivesse em vigor, tudo conforme documento de fls. 23-25, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
2- A ré (…) intentou contra (…), ação declarativa de condenação destinada à cobrança de honorários, concernentes aos serviços profissionais forenses que lhe havia prestado no âmbito dos processos judiciais nºs 291/06.3TBPTG-A; 291/06.3TBPTG-B; 127/07.8PBPTG; 675/07.0TAPTG; 709/07.8TBPTG e 495/07.1TBPTG, ação essa que correu termos sob o nº 291/06.3TBPTG-D e na qual a primeira reclamava do segundo, na qualidade de réu, e a título de honorários, o pagamento da quantia global de € 162.917,68 (cento sessenta dois mil novecentos dezassete euros e sessenta e oito cêntimos), acrescida de IVA, à taxa legal, e juros de mora vincendos até integral pagamento, bem como no pagamento das custas judiciais, tudo conforme certidão judicial de fls. 152-164, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
3- No dia 31 de Março de 2016, na dita ação nº 291/06.3TBPTG-D, a ora ré e ali autora, (…), e (…), (herdeira habilitada de …), puseram termo à ação, mediante a seguinte transação, homologada por sentença judicial e já transitada em julgado:
“I-A Autora reduz a quantia peticionada nos autos à quantia de € 31.500,00 (trinta e um mil e quinhentos euros).
II- A Ré aceita a redução do pedido e reconhece a dívida, neste momento, a qual será levada ao Processo de Inventário nº 465/11.5TBPTG, que corre termos na Instância Local de Portalegre, Secção Cível J2, sendo o valor devidamente descrito no passivo a favor da Exmª Sra. Dra. (…).
III- A quantia em dívida será paga aquando da venda do imóvel descrito sob a verba nº 1 da relação de bens do dito processo de inventário (…)”; tudo conforme certidão judicial de fls. 348-351 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
4- (…) viveu em casa dos réus durante cerca de dois anos e meio.
5- A mulher de (…) padecia de doença degenerativa crónica e estava internada em instituição de repouso.
6- (…), dadas as circunstâncias, estava a passar por momentos de grande vulnerabilidade e carência afetiva, pois a mulher estava cada vez mais doente e debilitada, sem conhecimento e consciência de si ou dos outros.
7- O seu filho, alcoólico crónico, com um casamento desfeito, não zelava pelo pai ou sequer se mostrava disponível para cuidar da sua própria pessoa, dormindo de dia e passando as noites em bares.
8- Situações que motivaram a ida de (…) para a casa dos réus, onde foi tratado como membro da família.
9- Com efeito, comia à mesa com os réus.
10- Dormia na casa de morada de família dos réus.
11- Estes cuidavam da sua pessoa, roupas e bens.
12- Tratavam-no como um familiar.
13- Os réus (…) e (…) não emprestaram a (…) a quantia monetária de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros).
14- A ré foi mandatária de (…) em diversos processos judiciais e aquele confiava nela, por força da relação estabelecida entre mandante- mandatário.
15- A ré patrocinou também (…) em assuntos extrajudiciais do seu interesse.
16- A situação fáctica descrita supra de 4) a 12) motivou o acréscimo de confiança de (…) para com os ora réus.
17- (…) recebia, à data, duas pensões de reforma, que lhe proporcionavam um rendimento médio mensal de cerca de € 590,00.
18- Era também dono dum estabelecimento comercial de renome na cidade de Portalegre, designado “Café – Restaurante O (…)”.
19- Tinha, então, dívidas de valor não apurado, e a diversas entidades, nomeadamente ao Estado, e também a particulares, e a casa de morada de família foi penhorada, tendo sido a ré que o representou judicialmente e extrajudicialmente, tendo em vista a resolução dos problemas inerentes às ditas dívidas.
20- Pelos serviços profissionais prestados a (…), a ré elaborou Nota de Honorários, no montante de € 162.917,68, acrescido de IVA, ou seja, no valor total de € 195.501,21.
21- (…) subscreveu a declaração mencionada em 1), fundado na convicção, errada, de que devia aos réus a quantia de € 250.000,00, e fê-lo, apenas, porque se convenceu que lhes devia tal montante.
22- Foram os réus que instruíram e conduziram todo o processo tendente à subscrição da declaração de dívida por parte de (…) e sabiam que este a subscreveria por estar convencido que lhes devia o sobredito valor, em parte, a título de honorários e por se sentir compelido a assumir o remanescente da dívida em virtude dos réus o terem recebido na sua casa.
23- Era frequente os réus solicitarem a (…) a assinatura de documentos que diziam ser do seu interesse.
24- (…) manifestou publicamente, por mais duma vez, o seu apreço pelos réus, nomeadamente, que tudo lhes pagaria.
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Na parte jurídica das alegações, os recorrentes invocam os art.º 247.º e 251.º, Cód. Civil, que define os requisitos do erro na vontade.
Escrevem a este respeito:
«(…) a relevância do erro sobre o objecto do negócio jurídico, depende nos termos do disposto nos artigos 247.º e 251.º do Código Civil, da verificação de três requisitos: 1.º Que a vontade declarada esteja viciada por erro sobre o objecto do negócio ou as suas qualidades e, por isso, seja diversa da vontade que o declarante teria tido sem tal erro; 2.º Que seja essencial para o declarante o elemento sobre o qual incidiu o erro, de tal forma que não teria celebrado o negócio jurídico se se tivesse apercebido; 3.º Que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade do elemento sobre o qual incidiu o erro para o declarante».
E desenvolvem:
«O que ficou demonstrado foi que o Autor (…) sabia que tinha uma dívida para com os Réus/Recorrentes, a qual quis salvaguardar o seu pagamento, tendo efectuado a “declaração de dívida”, para esse efeito;
«Pelo que, no caso vertente não demonstrou a recorrida, que tenha existido ignorância ou uma falsa representação da realidade, sendo que o Autor (…) sabia que devia, quanto devia e queria pagar;
«O Autor (…) sabia que devia aos Réus a importância de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros);
«Tendo o mesmo pleno conhecimento, que a sua dívida respeitava a honorários, valor respeitante o qual aceitou, despesas várias que os réus haviam pago e a uma gratidão, que sentida por tudo o que os Réus fizeram por ele, quer ao nível pessoal, quer ao nível profissional».
Daqui retiram a conclusão:
Não ficaram demonstradas quaisquer circunstâncias falsas ou inexactas, que tivessem levado o Autor (…) a realizar o negócio que, se tivesse tido conhecimento delas, não teria realizado o negócio como o fez, ou tê-lo-ia realizado em termos diferentes. Muito pelo contrário, in casu, não existe qualquer divergência entre a vontade e a declaração que o Autor (…) efectuou. Assim, nada consta nos autos, que sequer tenha existindo erro e muito menos que o mesmo, tenha sido factor determinante da declaração negocial emitida.
Bem como, não fez o Autor (…) qualquer prova, de que os Réus/Apelantes, conheciam ou tinham a obrigação de conhecer essa essencialidade.
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O erro vício ou erro na formação da vontade tem na sua base uma discrepância entre a realidade e a sua percepção: o «erro consiste numa falsa representação da realidade» (Oliveira Ascensão, Direito Civil Teoria Geral, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 116; nos mesmos termos, cfr. Castro Mendes, Direito Civil Teoria Geral, vol. III, poli., Lisboa, 1979, p. 160).
Mas não é qualquer erro que provoca a anulabilidade do negócio; ele tem de ser essencial (no sentido que, caso não existisse, o negócio não seria celebrado ou pelo menos não seria celebrado nos termos em que o foi) e que esta essencialidade fosse conhecida, ou o devesse ser, do declaratário. Como se escreve no ac. do STJ, de 15 de Maio de 2012, é «relevante saber se o erro foi factor determinante da declaração negocial emitida — essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro — e se o destinatário da declaração conhecia ou devia conhecer essa essencialidade».
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No caso dos autos, que temos perante nós?
Em relação ao primeiro aspecto, temos que o A. confessou-se devedor dos RR. pela quantia de € 250.000,00 quando o não era. E assim declarou porque estava convencido que devia tal quantia. Como se escreve no n.º 21 da exposição da matéria de facto, (…) subscreveu a declaração mencionada em 1), fundado na convicção, errada, de que devia aos réus a quantia de € 250.000,00, e fê-lo, apenas, porque se convenceu que lhes devia tal montante.
Assim, existe erro uma vez que a realidade (não era devedor daquela quantia) não é igual à percepção que dela teve o declarante (achava que era devedor).
Mas tal não basta para anular o negócio jurídico.
Seria este erro essencial para a formação da vontade, tal como foi declarada, do A.?
Cremos que sim pois que salta à vista, perante o teor da escritura, que o A. confessou-se devedor dos RR. por uma quantia que tinha recebido. Mas acontece que isto não é real, não é verdadeiro uma vez que o A. não recebeu dinheiro nenhum dos RR.. Porque o A. estava, embora mal, convencido que devia € 250.000,00 é que fez a declaração dos autos. É a esta causalidade que se refere Castro Mendes, no início do estudo desta matéria, quando escreve que é «preciso que o erro seja error causam dans, causa do negócio jurídico nos seus termos concretos» (ob. cit., pp. 162-163).
E a essencialidade do erro retira-se desta causalidade em termos que permitem formular a vontade conjectural: teria o A. confessado a dívida se fosse conhecedor da verdade? Não pois que se não devia aquela quantia nenhuma vontade teria em dela se confessar devedor. A vontade conjectural não é matéria de facto, no sentido estrito da expressão, que seja submetida a prova; a sua conclusão, a sua inferência é também uma conjectura que se realiza perante os demais factos.
Improcedem, por isso, as conclusões citadas acima (na p. 14).
*
Em relação ao segundo aspecto, o desta essencialidade ser do conhecimento do declaratário, na sentença, ainda na parte da fundamentação da matéria de facto, escreve-se o seguinte:
«(…) a ré, não podia desconhecer tal erro, pois tinha de saber que (…) não geria e estava afastado da gestão do dinheiro proveniente da venda de bens de que era proprietário, e que desconhecia em que medida o produto dessas vendas teria sido destinado à liquidação das suas dívidas».
E mais adiante.
Os RR. «sabiam que este [o A.] a subscreveria por estar convencido que lhes devia o sobredito valor, em parte, a título de honorários e por se sentir compelido a assumir o remanescente da dívida em virtude dos réus o terem recebido na sua casa, mostrando-se assim, inclusivamente, preenchido o pressuposto a que se reporta a parte final do art.º 247.º, do Código Civil».
Como já se disse, os RR. alegam que não fez o Autor José Andrade qualquer prova de que os Réus conheciam ou tinham a obrigação de conhecer essa essencialidade.
Também aqui cremos que não se trata de matéria de facto no sentido estrito da expressão, sobre a qual tenha de recair prova. O conhecimento, como facto interior que é, pode resultar de acontecimentos exteriores. E repare-se que aqui a lei não exige um acordo entre as partes (algo perfeitamente susceptível de prova) como exige no caso de erro sobre os motivos determinantes da vontade de negociar (art.º 251.º).
No nosso caso, sabemos que os RR. conheciam as precárias condições económicas do A.; sabiam, como não podiam deixar de saber, que o A. viveu em sua casa porque não podia morar em outro lado pois não tinha dinheiro para tal. Mas sabiam também que, em concreto, o A. lhes não devia € 250.000,00. Não está alegado, pelo contrário, que alguma vez, antes da escritura da declaração confessória, os RR. tenham fixado um montante certo e que este fosse do conhecimento do A.. Por isso, também não poderiam deixar de saber, atendendo à normalidade dos eventos, que ele não assinaria uma declaração de dívida se não devesse. Qualquer pessoa, com a vontade livre e esclarecida, não assinaria aquele texto. E isto os RR. sabiam pois eles é que se arvoraram em credores; como também sabiam que o A. o subscreveria por estar convencido que lhes devia o sobredito valor, em parte, a título de honorários e por se sentir compelido a assumir o remanescente da dívida em virtude dos réus o terem recebido na sua casa. Não se trata só de saber que a dívida declarada não existia; é saber também que sua desconformidade com a realidade levaria o A. a não declarar o que declarou.
Os RR. fá-lo-iam, tal como fez o A.? Claro que não.
Entendemos, pois, que existe essencialidade no erro e que ela era conhecida dos RR.
Assim, nos termos do art.º 247.º, a declaração é anulável – e foi isto mesmo que a sentença recorrida decidiu.
*
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Évora, 8 de Fevereiro de 2018
Paulo Amaral
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho