Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4/16.4YREVR
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: SENTENÇA ESTRANGEIRA
EFEITOS DAS PENAS
INTERPRETAÇÃO
Data do Acordão: 02/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - Uma sentença proveniente de país comunitário não é uma “sentença estrangeira” a que seja aplicável a Lei nº 144/99, 31-08.
2 - Para se obter a transferência de cidadão português condenado e preso em Espanha antes da vigência da Lei n.º 158/2015, de 17 de Setembro (que aprova o regime jurídico da transmissão e execução de sentenças em matéria penal que imponham penas de prisão ou outras medidas privativas da liberdade, para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia), era aplicável a Decisão-Quadro 2008/909/JAI, do Conselho, de 27 de novembro de 2008.
3 - De facto, o artigo 47.º da Lei n.º 158/2015 afirma a sua entrada em vigor 90 dias após a data da sua publicação, o que significa a sua entrada em vigor em 18-12-2015, mas a sua específica norma de vigência temporal, o artigo 46.º, sob a epígrafe “Aplicação no tempo” determina a sua aplicabilidade “às sentenças e decisões transmitidas ou recebidas depois da sua entrada em vigor, ainda que as mesmas se refiram a factos praticados anteriormente”.
4 - As Decisões-Quadro não têm efeito directo, mas a Decisão-Quadro 2008/909/JAI deveria ter sido transposta para a ordem jurídica nacional até 05-12-2011.
5 - como já se afirmou no acórdão desta Relação de 12 de Agosto de 2011, a interpretação “comunitariamente orientada”, na sequência da jurisprudência estabelecida pelo acórdão Pupino do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (Processo C-105/03, de 16-06-2005), cria para as autoridades nacionais uma obrigação de interpretação conforme do direito nacional, ou seja, que ao aplicar o direito interno o órgão judicial encarregue da sua interpretação é obrigado a fazê-lo, tanto quanto possível, à luz do texto e das finalidades da decisão-quadro, a fim de atingir o objectivo visado por esta última.
6 - É assim que de tal decisão judicial se pode extrapolar:
1 - O órgão jurisdicional nacional está obrigado a interpretar todas as normas do direito nacional à luz da letra e do espírito das Decisões-Quadro;
2 - No caso de indefinição ou conflito entre normativos nacionais e Decisões-Quadro (ou directivas) a “interpretação comunitariamente conforme” assegura a prevalência da norma comunitária, mesmo que não transposta;
3 - Sem ultrapassar um limite logico-formal de uma interpretação contra-legem do direito nacional;
4 - Nada obsta a uma interpretação in bonam partem (secundum legem ou praeter legem), comunitariamente orientada, de uma Decisão-Quadro não transposta.
7 - A pena acessória de inabilitação para o direito de sufrágio pelo tempo da condenação, pena acessória aplicada ao arguido e que não está prevista no ordenamento penal português para o tipo penal em presença.
8 - Considerando o princípio da legalidade das penas e a previsão restritiva da pena acessória aplicada ao arguido aos ilícitos eleitorais no ordenamento jurídico português, que se não estende ao crime por que o arguido foi condenado, há que concluir que a execução de tal pena não pode ser transposta para a nossa ordem jurídica.
Decisão Texto Integral:






Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.

A - Relatório

O Digno Procurador-Geral Adjunto veio, ao abrigo do disposto nos artigos 3º da Convenção Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas de 21-03-1983 e 123º da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, solicitar que “seja revista e confirmada” a sentença proferida a 15-12-2014 pelo Tribunal de Huelva que condenou JAMA.

Por sentença proferida no âmbito do Procedimento abreviado 75/2014 do Juzgado de Lo Penal n. 4 de Huelva, objecto de recurso deferido parcialmente, por decisão proferida a 15 de dezembro de 2014 pela 3ª Seccion de la Audiencia Provicial de Huelva, transitada em julgado em 18 de dezembro de 2014, o arguido foi condenado na pena de 3 anos e 1 dia de prisão, multa de 29.280 euros, com responsabilidade pessoal subsidiária de 25 dias de privação de liberdade em caso de falta de pagamento, pena acessória de inabilitação especial para o direito de sufrágio passivo durante o tempo de condenação, por crime contra a saúde pública, previsto e punido pelos artigos 368° e 369.1.5° do Código Penal Espanhol.

Foram juntos documentos, entre eles, certidão da sentença do processo identificado com indicação do trânsito em julgado e informação sobre a liquidação da pena, despacho de Sua Excelência a Ministra da Justiça, em representação do Governo português dando o seu acordo à transferência do cidadão para Portugal e declaração subscrita por este de onde se extrai o desejo de ser transferido para efeitos de cumprir o remanescente da condenação em pena privativa da liberdade que lhe foi imposta.

Procedeu-se à notificação do arguido na pessoa do defensor nomeado.

Foram dispensados os vistos.


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B - Fundamentação

B.1 - Ressalta dos autos que:

O cidadão português JAMA, nascido em 2 de setembro de 1975, na freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa, tinha residência, antes de preso, no sítio da (...)em Vila Nova de Cacela.

Por sentença proferida no âmbito do Procedimento abreviado 75/2014 do Juzgado de Lo Penal n. 4 de Huelva, objecto de recurso deferido parcialmente, por decisão proferida a 15 de dezembro de 2014 pela 3ª Seccion de la Audiencia Provicial de Huelva, transitada em julgado em 18 de dezembro de 2014, o arguido foi condenado na pena de 3 anos e 1 dia de prisão, multa de 29.280 euros, com responsabilidade pessoal subsidiária de 25 dias de privação de liberdade em caso de falta de pagamento, pena acessória de inabilitação especial para o direito de sufrágio passivo durante o tempo de condenação, por crime contra a saúde pública, previsto e punido pelos artigos 368° e 369.1.5° do Código Penal Espanhol.

O crime em causa ocorreu no dia 27 de Setembro de 2013, na estrada N-433 em El Repilado, Espanha.

O arguido encontra-se a cumprir aquela pena de prisão no Estabelecimento Penitenciário de Huelva II, Espanha.

JAMA requereu a sua transferência para Portugal - fls. 9-10.

O certificado de registo criminal indica outra condenação.

Da operação da liquidação da pena resulta que o arguido foi condenado em 3 (três) anos e 1 (um) dias de prisão [1.096 dias].

Esteve em prisão preventiva:

- de 27-09-2013 até 29-09-2013 = 3 (três) dias;

- de 30-09-2013 até 25-12-2014 = 452 (quatrocentos e cinquenta e dois) dias;

Iniciou o cumprimento da pena em 26-12-14 e o termo da pena está previsto para 26-09-2016; os 2/3 da pena ocorreram em 26.09-2015 e os ¾ em 27-12-2015.

Não há notícia de que os factos em apreço tenham sido objecto de procedimento criminal em Portugal.


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B.2 - Como consabido, o reconhecimento dos efeitos internacionais das sentenças estrangeiras em Portugal não se processa automaticamente. Elas só ganham eficácia internamente através da revisão e confirmação, que a nossa lei processual regula nos art. 234 a 240 do CPP – cf. também o art. 100 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto (Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal – LCJIMP).

Sendo concedida a revisão, a sentença revidenda ingressa por essa via no sistema jurisdicional português que a acolheu.

A revisão e confirmação de sentença estrangeira constitui pressuposto da transferência para cumprimento da pena em Portugal, de cidadão português condenado em país estrangeiro (cf. art. 123 n.º 2 da referida LCJIMP).

Acontece, no entanto, que não estamos perante uma sentença estrangeira, sim perante uma sentença comunitária. E o incidente suscitado não seria o adequado para o fim desejado.

Em termos simples, em se tratando de sentença comunitária e vista a existência do princípio de reconhecimento mútuo das sentenças comunitárias, a desnecessidade de “revisão e confirmação de sentença estrangeira” é evidente.

Como se sabe, o princípio do reconhecimento mútuo - que assenta na ideia de confiança mútua entre os Estados-Membros da União Europeia - significa que uma decisão judicial tomada pela autoridade judiciária de um Estado-Membro, segundo a sua própria lei, é exequível directamente pela autoridade judiciária de outro Estado-Membro.

Tal princípio induz à existência de instrumentos específicos, como o MDE, totalmente juridicizado e judicializado. “Juridicizado porque não há qualquer juízo de oportunidade política na decisão. Judicializado porque a cooperação se faz directamente entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros, sem qualquer intervenção do poder executivo” (Ac. do STJ de 23-11-2006, Cons. Maia Costa).

Ora, no caso concreto a perplexidade poderia suscitar-se a propósito da inexistência de um instrumento processual idêntico ao MDE que permita veicular a pretensão do arguido em ver a pena ser cumprida em Portugal.

Ora, se a decisão se encontra abrangida pelo princípio do reconhecimento mútuo, não faz sentido que se ficcione que o não está, apenas para utilizar um mecanismo processual que permita a transferência do condenado.

O que faz sentido é que se utilize esse procedimento (ou outro adequado), aceitando a existência do princípio do reconhecimento mútuo.

Como se afirma no considerando (5) da Decisão Quadro de 13-06-2002, relativa ao MDE: “O objectivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça conduz à supressão da extradição entre os Estados-Membros e à substituição desta por um sistema de entrega entre autoridades judiciárias. Acresce que a instauração de um novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal permite suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos actuais procedimentos de extradição. As relações de cooperação clássicas que até ao momento prevaleceram entre Estados-Membros devem dar lugar a um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial como transitadas em julgado, no espaço comum de liberdade, de segurança e de justiça”.

Isto implica, naturalmente, que não há que rever e confirmar a sentença do estado de emissão, mas – por via do princípio do reconhecimento mútuo - aplicar os princípios decorrentes da não verificação da dupla incriminação (por se tratar de crime de tráfico de substâncias estupefacientes), a constatação de que a sentença está por natureza reconhecida e é exequível, restando apurar da adequação à ordem jurídica portuguesa dos seus efeitos penais.

Apesar de transposta para o ordenamento interno a legislação comunitária relativa ao MDE e das evidentes ligações destas à legislação comunitária relativa à execução de penas e outras medidas relativas ao cumprimento de penas, estas só foram transpostas através da Lei 158/2015, de 17-09 que veio, precisamente, colmatar uma lacuna existente no ordenamento interno.

Aliás, quer a Espanha quer Portugal não fizeram a transposição das relevantes Decisões-Quadro na área do cumprimento de penas, de todas elas, para o seu ordenamento interno.


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B.3 - A pretensão do requerente concretiza-se na transferência de cidadão português condenado em pena de prisão por sentença, transitada, de tribunal do Reino de Espanha.

O regime jurídico aplicável a tal pretensão é o contido na Lei n.º 158/2015, de 17 de Setembro, que aprova o regime jurídico da transmissão e execução de sentenças em matéria penal que imponham penas de prisão ou outras medidas privativas da liberdade, para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia.

Só a aparente não vigência desse diploma justifica que duas entidades como a PGR e o MJ entendam não aplicável o diploma.

De facto, o artigo 47.º do diploma afirma que a dita lei entra em vigor 90 dias após a data da sua publicação, o que significa a sua entrada em vigor em 18-12-2015.

Mas a sua específica norma de vigência temporal, o artigo 46.º, sob a epígrafe “Aplicação no tempo” determina a sua aplicabilidade “às sentenças e decisões transmitidas ou recebidas depois da sua entrada em vigor, ainda que as mesmas se refiram a factos praticados anteriormente”.

Aqui o sentido de “transmitidas ou recebidas” pode ser visto como evento naturalístico, isto é, transmitidas pelo Estado emissor e recebidas por entidade central do Estado de execução – a PGR – e, por isso, não aplicável a dita lei já que só transmitida em 16-04-2015 (fls. 13) e recebidas na PGR depois dessa data e até 14-07-2015, data de envio de ofício ao Gabinete de S. Exª a Srª Ministra da Justiça (fls. 80) que, rapidamente, lavrou o seu despacho (a 03-08-2015).

Mas outra visão seria possível, a visão que impõe no território da União Europeia a emissão, transmissão e execução de decisões que tais por entidades judiciárias, que não admistrativo/políticas, época já há muito terminada.

E, neste sentido, a recepção – não houve emissão judiciária no reino de Espanha – só ocorreu em 14-01-2016 porquanto só nesta data “recebida” neste Tribunal por entidade judiciária.

Admitindo, no entanto, que o atraso verificado no procedimento desde que saiu do reino de Espanha não era previsível nem imputável à entidade – reino de Espanha – que procedeu à emissão, não se pode inviabilizar a pretensão do cidadão em cumprimento de pena por destruição de todo o processado pois que tal resultado se alcançaria tendo em conta que o fim da pena ocorre em 26-09-2016,

A circunstância de o artigo 45.º da Lei n.º 158/2015, de 17 de Setembro (“Relação com outros instrumentos jurídicos”), afirmar que o diploma “substitui”, nas relações entre Portugal e os outros Estados membros da União Europeia o disposto em vários instrumentos jurídicos internacionais, dá-lhe um toque que, a posteriori, se torna algo jocoso.

De facto, já é abundante a jurisprudência e a doutrina a afirmar que no caso se impõe uma posição “comunitariamente orientada” que leva a concluir que tais instrumentos jurídicos internacionais já se não encontravam em vigor para um caso como o dos autos.

São os seguintes os instrumentos jurídicos internacionais referidos pela dita lei e que relevariam:

a) Convenção Europeia Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, de 21 de março de 1983, e respetivo Protocolo Adicional, de 18 de dezembro de 1997;

b) Convenção Europeia sobre o Valor Internacional das Sentenças Penais, de 28 de maio de 1970;

c) Título III, capítulo 5, da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen de 14 de junho de 1985, relativo à Supressão Gradual dos Controlos nas Fronteiras Comuns, assinada em 19 de junho de 1990;

d) Convenção entre os Estados membros das Comunidades Europeias relativa à Execução de Condenações Penais Estrangeiras, de 13 de novembro de 1991.

Todos estes diplomas foram substituídos pela Decisão-Quadro 2008/909/JAI, do Conselho, de 27 de novembro de 2008, enquanto a outra matéria regulada a que se refere o nº 2 do artigo 45º da Lei nº 158/2015, a vigilância de pessoas condenadas ou libertadas condicionalmente (que era objecto de regulação pela Convenção do Conselho da Europa para a Vigilância de Pessoas Condenadas ou Libertadas Condicionalmente, de 30 de novembro de 1964), se viu substituída nas relações entre Estados membros pela Decisão-Quadro 2008/947/JAI, do Conselho, ambas de 27 de novembro de 2008.

A Convenção Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, feita em Estrasburgo em 21-03-1983 (também subscrita pelo Canadá e EUA pelo que dificilmente pode ser nominada de “europeia”) com início de vigência em 01/07/1985, foi assinada por Portugal em 21/03/1983, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 8/93; ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 8/93 e publicada no DR I-A, n.º 92, de 20/04/1993 e com inicío de vigência relativamente a Portugal a 01/10/1993.

Esta Convenção e a Lei nº 144/99, de 31 de Agosto deixaram, à medida que é aprovada legislação comunitária, de ser aplicáveis nas relações entre Estados membros da UE e não são aplicáveis ao caso dos autos, reservando-se para as relações entre Estados que não sejam membros da UE.

Para tanto é preciso recordar que não obstante as Decisões-Quadro não terem efeito directo, deveriam ter sido transpostas para as ordens jurídicas nacionais. Até 05-12-2011 a Decisão Quadro 2008/909/JAI que importa para estes autos.

De forma sistemáticamente adequada o Relatório da Comissão ao Parlamento e ao Conselho de 05-02-2014 - COM(2014) 57 final - é claro nas seguinte afirmações, enquadrando as Decisões-Quadro que em datas próximas foram aprovadas com idênticos objectivos e que a Lei 158/2015 refere:


- A Decisão-Quadro 2008/909/JAI do Conselho relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade (“decisão-quadro relativa à transferência de detidos”) tinha de ser transposta até 5 de dezembro de 2011.

- A Decisão-Quadro 2008/947/JAI do Conselho respeitante à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças e decisões relativas à liberdade condicional e a sanções alternativas (decisão-quadro relativa à liberdade condicional e a sanções alternativas) tinha de ser transposta até 6 de dezembro de 2011.

Ou seja, a Lei n.º 158/2015, de 17 de Setembro ao afirmar na epígrafe que “aprova o regime jurídico da transmissão e execução de sentenças em matéria penal que imponham penas de prisão ou outras medidas privativas da liberdade (…) transpondo as Decisões- Quadro 2008/909/JAI, do Conselho, e 2008/947/JAI, do Conselho, ambas de 27 de novembro de 2008” e ao referir expressamente no seu artigo 45º Convenções desactualizadas está a esconder o facto, simples, de não ter transposto em devido tempo Decisões-Quadro comunitárias relevantes para assegurar direitos de cidadãos comunitários.

Não obstante temos que aceitar o processado administrativo-político e a inexistência da certidão a que se refere a Decisão-Quadro 2008/909/JAI por se entender mais curial a não vigência da referida Lei nº 158/2015 na medida em que a “transmissão” da sentença ocorre antes da vigência formal do diploma e nada justificar que se não reconheça a produção de efeitos a essa “transmissão” por não ser proveniente de entidade judicial emissora.

Também porquanto a novel legislação reconhece ao Estado em que decorre o cumprimento da pena a legitimidade para dar início ao processo.

No fundo trata-se de aceitar um resquício do velho sistema, mas a que haverá que dar tratamento mais actualizado a partir do recebimento dos autos nesta Relação.


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B.3 – Conforme resulta da letra da Decisão-Quadro nº 2008/909/JAI, de 27-11-2008, designadamente do seu artigo 4º, nº 5, nela apenas se fala em “processo de transmissão de sentença e da certidão” (certidão tipo contendo os dados já constantes do processo na documentação enviada), não exigindo um qualquer e específico procedimento.

5. O Estado de execução pode, por iniciativa própria, solicitar que o Estado de emissão lhe envie a sentença, acompanhada da certidão. A pessoa condenada pode igualmente solicitar às autoridades competentes do Estado de emissão ou do Estado de execução que dêem início ao processo de transmissão da sentença e da certidão, nos termos da presente decisão-quadro. ….”.

Daqui decorre que quer o estado de emissão, quer o estado de execução, bem como a pessoa condenada, podem dar início ao “processo de transmissão de sentença e certidão”.

É certo que tal Decisão-Quadro se não encontra transposta para a ordem jurídica interna, mas como já se afirmou no acórdão desta Relação de 12 de Agosto de 2011, a interpretação “comunitariamente orientada”, na sequência da jurisprudência estabelecida pelo acórdão Pupino do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (Processo C-105/03, de 16-06-2005), cria para as autoridades nacionais uma obrigação de interpretação conforme do direito nacional, ou seja, que ao aplicar o direito interno o órgão judicial encarregue da sua interpretação é obrigado a fazê-lo, tanto quanto possível, à luz do texto e das finalidades da decisão-quadro, a fim de atingir o objectivo visado por esta última.

A obrigação de o juiz nacional se referir ao conteúdo de uma decisão-quadro quando procede à interpretação das regras pertinentes do seu direito nacional está contudo limitada pelos princípios gerais de direito, em especial os da segurança jurídica e da não retroactividade. Estes princípios opõem-se nomeadamente a que a referida obrigação conduza a determinar ou a agravar, com base numa decisão-quadro e independentemente de uma lei adoptada para a sua aplicação, a responsabilidade penal de quem a viole.

Do mesmo modo, o princípio da interpretação conforme não pode servir de fundamento a uma interpretação contra legem do direito nacional. No entanto, este princípio exige que o órgão jurisdicional nacional tome em consideração, sendo caso disso, o direito nacional no seu todo para apreciar em que medida este pode ser objecto de uma interpretação que não conduza a um resultado contrário ao pretendido pela decisão-quadro.

É assim que de tal decisão judicial se pode extrapolar:

1 - O órgão jurisdicional nacional está obrigado a interpretar todas as normas do direito nacional à luz da letra e do espírito das Decisões-Quadro;

2 - No caso de indefinição ou conflito entre normativos nacionais e Decisões-Quadro (ou directivas) a “interpretação comunitariamente conforme” assegura a prevalência da norma comunitária, mesmo que não transposta;

3 - Sem ultrapassar um limite logico-formal de uma interpretação contra-legem do direito nacional;

4 - Nada obsta a uma interpretação in bonam partem (secundum legem ou praeter legem), comunitariamente orientada, de uma Decisão-Quadro não transposta. [1]

Essa interpretação, no caso concreto, tem necessariamente como objecto os artigos 3º, 95º e 103º da Lei nº 144/99, de 31 de Agosto, tendo em vista a interpretação desses normativos à luz das finalidades expressas e formalidades previstas pela Decisão-Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27 de Novembro de 2008.

Assim, o procedimento utilizado pelo Digno recorrente é aceitável à luz do pressuposto formal contido no artigo 4º, nº 5 da Decisão-Quadro citada e dos objectivos contidos no nº 6 do mesmo preceito, como seria aceitável qualquer pedido formulado pelo estado de emissão e pelo condenado, não como “pedido de revisão e confirmação de sentença estrangeira”, sim como “processo de transmissão de sentença e certidão” para efeitos de cumprimento de pena de cidadão residente em Portugal.

Assim como, estando o processo totalmente juridicizado e judicializado, seria desnecessária a intervenção do poder executivo.

O princípio da não verificação da dupla incriminação resulta do ordenamento comunitário (Decisão-Quadro de 13-06-2002, artigo 2º, nº 2 e, por “interpretação comunitariamente orientada” decorrente da jurisprudência Pupino, do artigo 7º, nº 1 da Decisão-Quadro nº 2008/909/JAI, de 27-11-2008).

A constatação de que a sentença está por natureza reconhecida e é exequível, restando apurar da adequação à ordem jurídica portuguesa dos seus efeitos, resulta igualmente da “interpretação comunitariamente orientada” decorrente da jurisprudência Pupino, designadamente os artigos 4º, 5º, nº 1 e 8º, nº 1 da Decisão-Quadro nº 2008/909/JAI, de 27-11-2008. [2]

Nenhuma destas interpretações constitui interpretação contra-legem nem agrava a situação da pessoa condenada.

Daqui decorre que o requerido pelo Ministério Público é atendível nos termos supra ditos e que não há necessidade de nos socorrermos do procedimento previsto no artigo 1098º do Código de Processo Civil, sim de utilizar o procedimento geral de um incidente processual penal, a processar nos termos do Código de Processo Penal, com conhecimento em Conferência e sem necessidade de dar oportunidade a alegações, tal como previsto no artigo 1.099º do Código de Processo Civil, nem de seguir os procedimentos típicos da apelação, por serem uma excrescência.


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B.4 – Quanto às penas aplicadas, considerando que o condenado consentiu na transferência, os factos cometidos integram crime punido na ordem jurídica nacional, as espécies impostas (prisão e multa) são também admitidas pela lei portuguesa e que não se vê que segundo a lei portuguesa, tenha ocorrido qualquer causa de extinção do procedimento criminal pelos factos cometidos pelo arguido e integrantes do crime de tráfico de estupefacientes ou das penas que para esses factos lhe foram aplicadas, é de deferir, não a revisão e confirmação da sentença proferida pela Audiência Provincial de Huelva, sim os efeitos penais dessa mesma sentença.

Apenas se suscita um problema quanto à imposição da pena acessória de inabilitação para o direito de sufrágio pelo tempo da condenação, pena acessória aplicada ao arguido e que não está prevista no ordenamento penal português para o tipo penal em presença e que não pode ser substituída por sanção pecuniária.

Tal pena, no entanto, está prevista no ordenamento penal português para a prática de crimes do processo eleitoral.

De facto, a Lei Eleitoral para a Assembleia da República, Lei n.º 14/79 de 16 de Maio, determina que “os portugueses havidos também como cidadãos de outro Estado não perdem por esse facto a capacidade eleitoral activa” – artigo 1º, nº 2 - e que “são eleitores da Assembleia da República os cidadãos inscritos no recenseamento eleitoral, quer no território nacional, quer em Macau ou no estrangeiro” – artigo 3º.

Será no artigo 346.º do Código Penal (“Penas acessórias”) que iremos encontrar um tipo penal que prevê pena acessória para quem “for condenado por crime previsto no presente capítulo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua projecção na idoneidade cívica do agente, ser incapacitado para eleger Presidente da República, membro de assembleia legislativa ou de autarquia local, para ser eleito como tal ou para ser jurado, por período de 2 a 10 anos

Considerando o princípio da legalidade das penas e a previsão restritiva desta pena acessória aos ilícitos eleitorais, que se não estende ao crime por que o arguido foi condenado, há que concluir que a execução de tal pena não pode ser transposta para a nossa ordem jurídica.


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C - Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem a Secção Criminal desta Relação:

a) - Em declarar improcedente o pedido de “revisão e confirmação de sentença estrangeira”;

b) - Em declarar procedente o pedido de transmissão da sentença e revistos os efeitos penais da sentença proferida no âmbito do Procedimento abreviado 75/2014 do Juzgado de Lo Penal n. 4 de Huelva, objecto de recurso deferido parcialmente, por decisão proferida a 15 de dezembro de 2014 pela 3ª Seccion de la Audiencia Provicial de Huelva, transitada em julgado em 18 de dezembro de 2014, que condenou JAMA na pena de 3 anos e 1 dia de prisão, multa de 29.280 euros, com responsabilidade pessoal subsidiária de 25 dias de privação de liberdade em caso de falta de pagamento, por crime contra a saúde pública (tráfico de droga), previsto e punido pelos artigos 368° e 369.1.5° do Código Penal Espanhol.

c) - Não se reconhecem efeitos penais à parte da decisão que condenou em “pena de inabilitação especial para o direito de sufrágio passivo durante o tempo de condenação”.

d) - Tal reconhecimento de efeitos penais visa a continuação, em Portugal, da sua execução e inerente transferência do arguido.

e) - O arguido foi condenado em 3 (três) anos e 1 (um) dias de prisão [1.096 dias].

Esteve em prisão preventiva:

- de 27-09-2013 até 29-09-2013 = 3 (três) dias;

- de 30-09-2013 até 25-12-2014 = 452 (quatrocentos e cinquenta e dois) dias;

Iniciou o cumprimento da pena em 26-12-14 e o termo da pena está previsto para 26-09-2016; os 2/3 da pena ocorreram em 26.09-2015 e os ¾ em 27-12-2015.

f) - Oportunamente remeta os autos ao Tribunal de Faro que é o territorialmente competente para a execução, sem prejuízo das competências específicas do respectivo TEP.


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DN. Notifique, incluindo o arguido no estabelecimento prisional em que se encontra.

Comunique à PGR e MJ.

Sem tributação.

(Processado em computador e revisto pelo relator).

Évora, 02/02/2016

João Gomes de Sousa

António Condesso

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[1] - V. g. Vittorio Manes, "La incidencia de las Decisiones Marco en la interpretación en materia penal: perfiles de derecho sustantivo. (Comentario de la sentencia de 16 de junio 2005 -Causa C-105/03 del Tribunal de Justicia de las Comunidades Europeas- CasoPupino)", Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología - ISSN 1695-0194, pag. 07.6.

[2] - É interessante notar que o legislador nacional continua, na Lei nº 158/2015, a designar como “reconhecimento de sentença” a aceitação do princípio do “reconhecimento mútuo” de sentenças comunitárias.