Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
769/19.9T8OLH.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: ARRENDAMENTO VERBAL
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
Data do Acordão: 06/30/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. O artigo 1069.º, n.º 2, do Código Civil, aditado pela Lei 13/2019, de 12 de Fevereiro – e que se aplica a arrendamentos existentes à data da entrada em vigor desta Lei – permite ao arrendatário a prova da existência de um contrato de arrendamento urbano verbal, mas este deverá demonstrar que a falta de redução a escrito não lhe é imputável e provar a existência do título por qualquer forma admitida em direito, através da utilização do locado sem oposição do senhorio e do pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.
2. Se não efectuar esta prova, a conclusão a retirar é que o contrato de arrendamento urbano verbal é nulo, por vício de forma, nos termos gerais do artigo 220.º do Código Civil, não dispondo o detentor de qualquer título que legitime a sua posse.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Sumário: (…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo de Competência Genérica de Olhão, (…) demandou (…), pedindo o reconhecimento do direito de propriedade relativo a prédio identificado nos autos, devendo a Ré ser condenada a reconhecer esse direito e a fazer-lhe a entrega imediata do prédio, livre e desocupado de pessoas, animais e bens, e ainda a pagar-lhe a quantia de € 400,00 mensais, desde a citação até entrega efectiva, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos em consequência da ocupação abusiva e ilegítima.
De acordo com a causa de pedir formulada, há cerca de onze anos, ainda em vida do pai da A., a Ré começou a ocupar o citado imóvel, sem qualquer título, e recusa a desocupação.
Na contestação afirma-se que o falecido pai da A. autorizou a ocupação do imóvel pela Ré, para habitação desta e do seu agregado familiar, mediante o pagamento da quantia mensal de € 50,00, o que teve em conta as reduzidas condições de habitabilidade do imóvel, que não dispõe de abastecimento de água e luz. Mais admite que, presentemente, não se encontra a efectuar qualquer pagamento a título de renda.
Em audiência de julgamento, a A. desistiu do pedido de condenação no pagamento quantia de € 400,00 mensais, a título de indemnização, acto este que foi objecto de homologação judicial.
A sentença julgou a acção procedente e condenou a Ré a reconhecer o direito de propriedade da A. sobre o imóvel, condenando-a a desocupá-lo e restituí-lo à A., livre e devoluto de pessoas, animais e bens.

Recorre a Ré e conclui:
1. A Mª Juiz a quo errou na apreciação da prova constante dos autos e da que foi produzida em sede de audiência de julgamento.
2. Foi, na douta sentença recorrida, dada como provada, de forma insuficiente, alguma factualidade, bem como, considerada não provada, matéria, que deveria ter sido dada por “provada”.
3. Após a análise do conjunto da prova testemunhal, considera-se que tendo em conta os meios probatórios supra indicados e transcritos (depoimentos das testemunhas …; … e …), os mesmos impunham sobre o facto dado como provado no ponto 5, nomeadamente a questão do tempo que decorreu desde a altura a partir da qual a ré habita no prédio descrito no ponto 1 dos factos provados, a expressão: “Em altura não determinada, mas há menos de 18 anos, e há mais de nove anos…”, configura com mais exactidão a realidade factual que resulta provada sobre este ponto em concreto.
4. Resultando assim claro que, apesar de se desconhecer a data exacta a partir da qual a ré habita no imóvel, sabe-se, contudo, que foi seguramente há menos de 18 anos (ponto 5 dos factos provados), mas há mais de 9 anos, e que contrariamente à conclusão do douto Tribunal a quo, que considerou que a situação jurídica em apreço está ferida de nulidade, concluímos, que à situação jurídica em apreço, a qual manifestamente preenche os requisitos de um contrato de arrendamento, compondo-se de três elementos, obrigação de proporcionar a outrem o gozo de uma coisa (imóvel); carácter temporário e; retribuição, é de aplicar o regime legal que entrou em vigor com a publicação da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, o qual revogou o Decreto-Lei n.º 321- B/90, de 15/10 e alterou o Código Civil, mantendo-se em vigor até Agosto de 2012, e que passou a estipular no seu artigo 1069.º “que o contrato de arrendamento deve ser celebrado por escrito desde que tenha a duração superior a seis meses”, ou seja, admitindo a possibilidade de se estabelecerem validamente contratos de arrendamento, desde que de duração inferior a seis meses, sem ser celebrado por escrito, sendo que a testemunha, (…) referiu que o contrato celebrado seria para algumas semanas, de acordo com o que lhe foi transmitido pelo pai da Autora.
5. No que respeita à alínea C) da matéria de facto dada como não provada, o Tribunal a quo considerou não provado que “A ré tenha pago aos pais da autora quantias pela ocupação do imóvel.”, facto que, contrariamente à conclusão do Tribunal, deveria ter sido dada por provado, tendo em atenção o ponto 5 dos factos provados, onde se indica que a ré habita no imóvel “com expressa autorização do pai da autora, mediante contrapartida económica de 50,00 euros mensais.” e ainda com fundamento nas declarações prestadas pela Ré nesse sentido, a qual mencionou os pagamentos que efectuou e que contratou com o senhorio, Sr. (…), pai da Autora, nomeadamente o pagamento de uma renda no montante de Euro: 50,00 mensais, sendo que, a última testemunha a ser ouvida, referiu também, no seu depoimento, que assistiu aos pagamentos das mensalidades feitos pela ré.
6. Na verdade, o Tribunal a quo, pese embora não fundamentando, entende que não foi feita qualquer prova desse facto, ou seja, de que a Ré tenha efectivamente pago qualquer quantia, e que a prova do mesmo competiria à mesma Ré, como facto extintivo do direito da Autora, nos termos aliás do disposto no artigo 342.º do Código Civil, ignorando quer a prova testemunhal supra indicada, bem como do depoimento prestado pela Ré, que o próprio Tribunal considerou ser simples e espontâneo, no que diz respeito à questão do pagamento da contrapartida económica ao proprietário do imóvel.
7. Sucede, porém, que, no caso sub judice, não está provado que o contrato de arrendamento tenha sido reduzido a escrito, não se encontrando assim definida por contrato a obrigação de emissão de recibo, pelo que, não existindo documento que inviabilize prova testemunhal acerca do pagamento da contrapartida económica pelo gozo temporário da coisa, sempre esta deveria ter sido admitida.
8. Violando, assim, a douta sentença recorrida o disposto no artigo 393.º, n.º 1, do Código Civil.
9. Pelo que, em nosso, entender, a decisão da matéria de facto deveria ser diversa da decidida, quer por força da possibilidade de se dar a matéria como provada por força da prova testemunhal e declarações de parte, as quais foram indicadas com exactidão neste recurso, quer ainda por força do facto considerado provado no ponto 5 dos factos provados.
10. Em face do supra exposto e tendo em atenção a questão central do tema da prova e que ficou definido no despacho saneador a qual foi apurar unicamente se a Ré tem direito ao gozo do prédio em razão de ter celebrado, com o pai da Autora, um contrato de arrendamento, conclui-se que a resposta não pode deixar de ser afirmativa, na medida em que, efectivamente, foi celebrado entre o pai da Autora e a Ré um contrato de arrendamento válido, que embora não tivesse sido reduzido a escrito, algo que o regime legal em vigor, aquando da sua celebração, considerava admissível, desde que tivesse duração inferior a seis meses.
11. Resultando claro, em nosso entender, que o Tribunal a quo decidiu mal quando decidiu e julgou a acção procedente, por provada, na parte em que condenou a Ré a desocupar e restituir à autora o prédio, descrito no ponto 1 dos factos provados, uma vez que estando na presença de uma relação jurídica de arrendamento, só numa acção de despejo, se poderão discutir os factos que poderão suportar o eventual direito da Autora em ver desocupado e restituído pela Ré, o prédio que é sua propriedade.
12. Finalmente, consideramos ainda que, o Tribunal a quo falhou, pois pese embora a não configuração sobre a existência na presente situação de um contrato de arrendamento, conclusão da qual discordamos, uma vez que os factos provados e não provados exigem solução diversa, contudo, considerou provado, sem sombra de dúvidas, que o imóvel, propriedade da Autora, encontra-se a ser habitado pela Ré e pelos filhos.
13. Ora, perante a prova deste facto não poderia deixar de ser tido em atenção todo o ordenamento jurídico que actualmente está em vigor, e que foi aprovado por virtude da actual situação de calamidade associada à pandemia da COVID-19, nomeadamente, medidas de protecção das situações de arrendamento, com vista a assegurar o direito à habitação das famílias, encontrando-se suspensas as acções de despejo, os processos de entrega de coisa móvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa, nos termos aliás do disposto no artigo 6.º-A, da Lei 16/2020, de 29 de Maio de 2020, a qual se encontra em vigor, encontrando-se suspensos ainda os efeitos da cessação dos contratos de arrendamento até 30 de Junho de 2021, bem como o impedimento de os senhorios denunciarem os contratos de arrendamento, mesmo por mora de pagamento de rendas. Lei n.º 1-A/2020; Lei n.º 4-C/2020, mantendo-se por meio da publicação do Decreto-Lei n.º 106-A/2020, de 30/12/2020 as medidas de salvaguarda do direito à habitação.
14. E configurando-se nos presentes autos uma situação análoga àquela que o legislador pretende ver protegida mediante as normas legais antes indicadas, nomeadamente com a prorrogação até 30 de Junho de 2021 da suspensão dos efeitos de cessação dos contratos de arrendamento e ainda o impedimento de os senhorios de denunciarem os contratos ou opor-se à sua renovação, nomeadamente tendo em vista a protecção do direito à habitação, o qual, por força do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da C.R.P. não poderá deixar de ser extensível à Ré, norma constitucional que a sentença violou ao julgar a acção procedente e provada na parte em que condenou a Ré a desocupar e restituir à autora o imóvel indicado no ponto 1 dos factos provados, que ocupa, livre e devoluto de pessoas, animais e bens.
15. As conclusões anteriores quanto à matéria provada, justificam-se pela correcta apreciação de elementos concretos de prova, em especial das declarações prestadas pela Ré, das declarações das testemunhas ouvidas, além das demais especificações feitas na motivação supra.
16. Ao decidir julgar a acção procedente e provada na parte em que condenou a Ré a desocupar e restituir o imóvel à Ré, fez M.ª Juiz, salvo o muito respeito devido, errada apreciação dos elementos probatórios ao seu dispor e consequente deficiente aplicação das normas de direito aplicáveis.
Nestes termos, e nos melhores de Direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogada a douta decisão recorrida na parte em que fixa a matéria factual dada por provada e não provada, decidindo tais matérias como se requer neste recurso e, consequentemente, deve também a douta decisão recorrida ser revogada na parte em que julgou a acção procedente, por provada, em consequência condenou a Ré, (…) a desocupar e restituir à autora o prédio, descrito na alínea a), que ocupa, livre e devoluto de pessoas, animais e bens, devendo pelo contrário a acção ser considerada improcedente nesta parte.

Não foi oferecida resposta.
Dispensados vistos, cumpre-nos decidir.

Da impugnação da matéria de facto
Garantindo o sistema processual civil um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, e consignando, desde já, que estão reunidos os pressupostos exigidos pelo art. 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil para a apreciação da impugnação fáctica (estão especificados os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados, bem como os concretos meios probatórios que, na opinião da Recorrente, impõem decisão diversa, e ainda a decisão que, no seu entender, deve ser proferida acerca das questões de facto impugnadas), proceder-se-á à análise desta parte do recurso, no uso da referida autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto.
Entende a Recorrente que o facto dado como provado no ponto 5, nomeadamente a questão do tempo decorrido desde o momento em que passou a habitar no prédio, a expressão: “Em altura não determinada, mas há menos de 18 anos, e há mais de nove anos…”, configura com mais exactidão a realidade factual que resulta provada sobre este ponto em concreto, em vez da expressão utilizada na sentença recorrida, “Em altura não determinada, mas há menos de 18 anos…”.
No entanto, a alteração pretendida é irrelevante, porquanto está também provado – e a Recorrente não o impugna – que “Desde altura não apurada, mas antes de 2012, a Ré não paga quer ao pai da A., quer à A., a quantia indicada em 5”, o que revela que a ocupação do imóvel pela Ré já ocorria nesse ano.
Assim, porque a alteração pretendida é inútil, pois o facto que a Recorrente pretende introduzir já se deduz de outro ponto do elenco fáctico, vai indeferida esta parte da impugnação.
Pretende a Recorrente, ainda, que a matéria lançada na al. C) dos factos não provados – “A Ré pagou aos pais da A. quantias pela ocupação do imóvel” – deve ser considerada provada, quer porque resulta do ponto 5 do elenco de factos provados, quer porque foi confirmada através das declarações de parte da própria Recorrente e através da testemunha Eduardo Barão.
Pois bem, analisando a contestação, ali não se alega qualquer concreto pagamento de renda – apenas se diz que a utilização do imóvel foi autorizada “mediante uma contrapartida de 50 euros por mês” (art.º 7º daquela peça) e que “presentemente, e por virtude de ser difícil chegar à fala com a A., não se encontra a efectuar qualquer pagamento a título de renda” (artigo 20º), mas não se diz que alguma quantia foi efectivamente paga, quando e como.
Já quanto ao depoimento da testemunha (…), cunhado da Recorrente, não é convincente, quer porque entra em contradição com as declarações da parte da própria Recorrente – esta admitiu falhas no pagamento da quantia mensal de € 50,00 ao pai da A., a testemunha disse que a renda era paga todos os meses, pois era a renda da casa e esta não podia falhar – quer porque o número de vezes que terá assistido ao pagamento da renda – 15 a 20 – é irreal, já que a testemunha não habitava no local nem ali fazia a sua vida, não logrando assim convencer o tribunal que tivesse assistido a qualquer pagamento.
Já quanto às declarações de parte da Recorrente, esta admitiu que, quando foi viver para “aquela casa”, o pai da A. não lhe pediu qualquer valor (cerca de 19m10s do seu depoimento), ela é que se propôs pagar € 50,00, a partir dos subsídios que recebia. Mas não foi convincente acerca dos motivos pelos quais deixou de pagar qualquer valor, justificando-se com a doença e internamento do pai da A., mas não se preocupando em procurar a sua esposa ou a filha para continuar o pagamento, o que revela não estar em causa uma obrigação que devesse cumprir todos os meses, como contrapartida do gozo que fazia do imóvel.
Por outro lado, as declarações de parte não podem valer como prova de factos favoráveis se não tiverem o mínimo de corroboração por um qualquer outro elemento de prova isento e imparcial. Lebre de Freitas[1] escreve que “a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, maxime se ambas as partes tiverem sido efectivamente ouvidas.”
Trata-se de um meio de prova cuja apreciação se faz segundo as regras normais de formação da convicção do juiz, o que implica que, em relação a factos favoráveis à parte interessada na procedência da causa, o juiz não deve ficar convencido apenas com o seu depoimento, carecendo de um mínimo de corroboração por outras provas isentas e independentes da parte.[2]
As declarações de parte constituem, pois, mero princípio de prova, não se mostrando bastantes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de certeza final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova.[3]
Teixeira de Sousa[4] esclarece que “o princípio (ou começo) da prova é o menor grau de prova: ele vale apenas como factor corroborante da prova de um facto. Isto é, o princípio da prova não é suficiente para estabelecer, por si só, qualquer prova, mas pode coadjuvar, em conjugação com outros elementos, a prova de um facto.”
Inexistindo, pois, qualquer prova – segura e convincente – dos pagamentos ao pai da A., que nem sequer foram alegados na contestação, resta também indeferir esta parte da impugnação.
Em resumo, a impugnação da matéria de facto vai totalmente indeferida.

O relevo factual fica assim estabelecido:
1. Encontra-se inscrita a aquisição, a favor de (…), do prédio misto sito em (…), freguesia de (…), concelho de Olhão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão, sob o n.º (…) e inscrito na respectiva matriz sob artigo n.º (…), secção (…) e artigo n.º (…).
2. No dia 20.11.2008, por escritura de habilitação e partilha extraída de folhas 132 a folhas 134 do Livro n.º (…) de notas para escrituras diversas, no Cartório Notarial de Olhão, perante o Lic. (…), a A. e seu pai, (…), por óbito da respectiva mãe e esposa, (…), seus únicos herdeiros, procederam à partilha dos bens que pertenciam ao património do dissolvido casal, tendo sido adjudicado à demandante, o direito a 1⁄4 do prédio misto no ponto 1 e a seu pai, o direito a 3⁄4 sobre o mesmo imóvel.
3. No dia 29.02.2012, por escritura realizada na Conservatória do Registo Predial de Faro, Casa Pronta, com o Processo n.º (…), (…) doou à filha, aqui A., com reserva de usufruto, o direito aos 3⁄4 que detinha no prédio misto identificado no ponto 1.
4. Em 10.10.2018, (…), pai da A., faleceu.
5. Em altura não determinada, mas há menos de 18 anos, a Ré habita, com o seu companheiro e filhos, o prédio descrito no ponto 1 com expressa autorização do pai da A., mediante contrapartida económica de 50,00 euros mensais.
6. O valor indicado em 5 teve em atenção que o imóvel não tinha água nem electricidade.
7. A Ré continuou a residir no prédio descrito no ponto 1, mesmo após o falecimento do seu companheiro, à vista de todos.
8. Desde altura não apurada, mas antes de 2012, a Ré não paga quer ao pai da A., quer à A., a quantia indicada em 5.
9. A Ré não entra em contacto com a A. pois receia que esta tenha como objectivo pressioná-la a desocupar o prédio identificado no ponto 1.
10. A Ré recusa-se a desocupar e a entregar à A. o prédio identificado no ponto 1.
11. A presente acção foi intentada pela A. em 08.07.2019.

Aplicando o Direito.
Da nulidade do contrato de arrendamento para habitação
Argumenta a Recorrente que, tendo o contrato de arrendamento sido celebrado há menos de 18 anos, mas há mais de 9 anos, seria aplicável a redacção introduzida pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, ao artigo 1069º do Código Civil, o qual dispunha que “O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito desde que tenha duração superior a seis meses.”
E, continua a argumentação da Recorrente, tendo o contrato sido celebrado apenas para algumas semanas, não era exigível a forma escrita, sendo assim válido o arrendamento.
Pois bem, apontando que a Recorrente habita no imóvel há bem mais de seis meses – há menos de 18 anos, mas seguramente antes de 2012 – e que não se provou que a autorização concedida pelo pai da A. fosse válida apenas para algumas semanas (aliás, nem a Recorrente invocou esse facto na sua contestação), teremos a dizer que a forma escrita para o arrendamento urbano foi imposta por todos os diplomas que abrangeram o mencionado período temporal, i.e., inicialmente o artigo 7.º, n.º 1, do RAU, na redacção que lhe foi introduzida pelo DL 64-A/2000, de 22 de Abril, e depois o artigo 1069.º do Código Civil, nas sucessivas redacções que lhe foram introduzidas pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, pela Lei 31/2012, de 14 de Agosto, e actualmente, pela Lei 13/2019, de 12 de Fevereiro.
A redacção introduzida ao artº 1069º do Código Civil por esta última Lei, continuando a impor a celebração por escrito do contrato de arrendamento urbano, introduziu um novo n.º 2, dispondo que: “Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.”
De atentar que, face ao artigo 14.º, n.º 2, da Lei 13/2019, o disposto no novo n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data da sua entrada em vigor.
Ponderando a data de entrada da causa em juízo – 08.07.2019 – já poderia a Recorrente ter feito prova da existência de um contrato de arrendamento, demonstrando que a falta de redução a escrito não lhe era imputável e provando a existência do título por qualquer forma admitida em direito, através da utilização do locado sem oposição do senhorio e do pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.
Porém, somos confrontados com nova insuficiência da Recorrente na alegação e prova dos factos essenciais à demonstração da existência do contrato de arrendamento, não alegando, nem demonstrando, que a falta de redução a escrito não lhe foi imputável – a mera invocação do seu analfabetismo é insuficiente, pois sempre poderia a Recorrente exigir a celebração escrita do contrato, dispondo de vários instrumentos legais para suprir a incapacidade de leitura, nomeadamente os previstos no artigo 373.º, n.ºs 3 e 4, do Código Civil – nem alegando e provando que pagou a respectiva renda por um período de seis meses.
Aliás, em bom rigor, o que se prova é que não paga nada, desde antes de 2012, e até evita o contacto com a A., não podendo ignorar que esta é a proprietária do imóvel e que a continuação da ocupação que dele faz depende do seu acordo.
Não tendo a Recorrente logrado a prova da existência do contrato de arrendamento verbal, através do meio que o artigo 1069.º, n.º 2, do Código Civil lhe concedia, a conclusão a retirar é que tal contrato é nulo, por vício de forma, nos termos gerais do artigo 220.º do Código Civil.
De resto, esta Relação de Évora[5] já decidiu que “não estabelecendo a lei qualquer sanção especial para a omissão da forma legalmente exigida, o contrato de arrendamento celebrado verbalmente é nulo à luz do disposto no artigo 220.º do Código Civil; (…) Um contrato nulo por falta de forma não pode ser resolvido, já que tal direito potestativo extintivo é apanágio dos negócios válidos.”
Procedeu bem, pois, a sentença recorrida ao decretar a entrega do imóvel, pois a Recorrente não demonstrou qualquer título legítimo da sua posse.

Da suspensão da acção em virtude do contexto pandémico
Como referido, a acção foi proposta em 08.07.2019, estando pendente quando a OMS declarou o contexto pandémico da infecção viral SARS-CoV-2 e, nessa sequência, foram aprovadas as medidas excepcionais e temporárias de resposta a essa situação, nomeadamente a Lei 1-A/2020, de 19 de Março, que tem vindo a sofrer alterações sucessivas, indo já na 10.ª alteração, tendo as últimas redacções sido introduzidas pela Lei 13-B/2021, de 5 de Abril.
Na sua versão inicial, a Lei 1-A/2020 previa, no seu artigo 7.º, n.º 10, que “São suspensas as acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria.” Por seu turno, o artigo 8.º, alínea a), previa que “Até à cessação das medidas de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública, fica suspensa: a) A produção de efeitos das denúncias de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional efectuadas pelo senhorio”.
À data em que foi proferida a sentença recorrida – 15.11.2020 – o artigo 6.º-A, n.º 6, alínea c), previa e suspensão das “acções de despejo, os procedimentos especiais de despejo e os processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”.
Actualmente, o artigo 6.º-E, n.º 7, alínea c), introduzido pela Lei 13-B/2021, prevê a suspensão no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório dos “actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”.
Por seu turno, o artigo 8.º da Lei 1-A/2020, na sua redacção actual – com a última alteração introduzida pela Lei n.º 75-A/2020, de 30 de Dezembro – prevê o seguinte, nos respectivos n.ºs 1, 2 e 3, que relevam para os arrendamentos habitacionais:
“1 – Sem prejuízo do disposto no n.º 4, ficam suspensos até 30 de Junho de 2021:
a) A produção de efeitos das denúncias de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional efectuadas pelo senhorio;
b) A caducidade dos contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais, salvo se o arrendatário não se opuser à cessação;
c) A produção de efeitos da revogação, da oposição à renovação de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional efectuadas pelo senhorio;
d) O prazo indicado no artigo 1053.º do Código Civil, se o término desse prazo ocorrer durante o período de tempo em que vigorarem as referidas medidas;
e) A execução de hipoteca sobre imóvel que constitua habitação própria e permanente do executado.
2 – O disposto no número anterior depende do regular pagamento da renda devida nesse mês, salvo se os arrendatários estiverem abrangidos pelo regime previsto nos artigos 8.º ou 8.º-B da Lei n.º 4-C/2020, de 6 de Abril, na sua redacção actual.
3 – O disposto no número anterior aplica-se às rendas devidas nos meses de Outubro a Dezembro de 2020 e de Janeiro a Junho de 2021.”
Face a este conjunto legislativo, podemos concluir que estão suspensos, no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório, os “actos de execução da entrega do local arrendado”, situação que não se aplica à acção declarativa que temos para apreciação. Por outro lado, nos autos não se aprecia qualquer das situações previstas nas diversas alíneas do artigo 8.º, n.º 1 e, mesmo que se entendesse, por analogia, que tal norma era extensível às acções de reivindicação onde o possuidor invoca a existência de contrato de arrendamento, certo é que a suspensão dos efeitos da denúncia – até 30.06.2021, ou seja, até à data em que este aresto é prolatado – sempre estaria dependente do regular pagamento da renda, facto que também não está alegado.
Em resumo, não se vislumbra qualquer circunstância que imponha, por ora, a suspensão da instância, pelo que também nesta parte improcedem as conclusões da Recorrente.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que a beneficia.
Évora, 30 de Junho de 2021
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões

__________________________________________________
[1] In A Acção Declarativa Comum, 3.ª ed., pág. 278.
[2] Neste sentido, cfr. o Acórdão da Relação do Porto de 20.11.2014 (Proc. 1878/11.8TBPFR.P2), em www.dgsi.pt.
[3] Vide o Acórdão desta Relação de Évora de 06.10.2016 (Proc. 1457/15.0T8STB.E1), no mesmo local.
[4] In As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lex – Edições Jurídicas, 1995, pág. 203.
[5] Em Acórdão de 07.06.2018 (Proc. 2797/16.7T8PTM.E1).
No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão desta Relação de Évora de 13.02.2020 (Proc. 73/18.0T8ETZ.E1) e ainda o Acórdão da Relação do Porto de 11.01.2021 (Proc. 4268/20.8T8PRT.P1). Estão todos publicados em www.dgsi.pt.