Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
561/13.4TBTVR-L.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: CRÉDITOS SUBORDINADOS
SUPRIMENTOS
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Por força do estipulado no artigo 243º do Código das Sociedades Comerciais, considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta dinheiro à sociedade.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 561/13.4TBTVR-L.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

(…), credor reclamante nos autos que correm por apenso à insolvência de (…) – Investimentos Turísticos, S.A., inconformado com a sentença de verificação e graduação de créditos, que considerou e graduou o crédito por si reclamado como crédito subordinado (sujeito a condição), e não como crédito comum, veio apelar de tal decisão, tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
1 – Existindo créditos derivados da prestação de serviços titulados pelo recorrente, que prestou durante vários anos, dispondo de uma procuração da sociedade, para levar por diante os projectos da mesma, tais créditos têm similitude com os créditos derivados de uma relação jurídico-laboral e, por esse motivo, devem ser classificados como créditos comuns e não como créditos subordinados.
2 – As relações jurídico-laborais são semelhantes às relações jurídicas derivadas do contrato de prestação de serviços, diferenciando-se apenas no vínculo de subordinação, que existe nas primeiras, face à autonomia que caracteriza o prestador de serviços, sendo ambas as relações jurídicas remuneradas e tuteladas por lei.
3 – Sendo o recorrente accionista meramente formal de uma sociedade anónima, que não faz assembleias, não reúne, não presta contas, não distribui dividendos, não emite sequer as acções em que o pretenso acionista não dispõe de qualquer montante para o capital social, isto é, materialmente, o recorrente não pode ser qualificado como accionista, essa qualificação não serve de fundamento, pelo que os seus créditos à massa insolvente, devem ser qualificados como créditos comuns e não como créditos subordinados.
Não foram apresentadas contra-alegações de recurso.
Atenta a não complexidade da questão a dirimir foram dispensados os vistos aos Ex.mos Juízes Adjuntos.

Cumpre apreciar e decidir.
Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635º, nº 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 4 do mesmo art. 635º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pelo credor reclamante, aqui apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à questão de saber se, na decisão recorrida, o seu crédito devia ter sido qualificado como crédito comum e não como crédito subordinado (sujeito a condição).

Apreciando, de imediato, a questão suscitada pelo aqui apelante importa desde já referir a tal propósito que a factualidade dada como provada e não provada na sentença recorrida não foi, por aquele, expressamente impugnada nos precisos termos constantes do art. 640º do C.P.C.
Assim sendo, forçoso é concluir que a questão recursiva terá de ser apreciada tendo como base, apenas, os factos que vieram a ser dados como provados no tribunal “a quo”, os quais, aliás, se encontram devidamente discriminados na decisão sob censura.

E, no que importa para o caso em apreço, ficou apurado que:
- O Administrador da insolvência reconheceu um crédito a (…) no montante de 338.563,76 euros (trezentos e trinta e oito mil quinhentos e sessenta e três euros e setenta e seis cêntimos), de natureza subordinada sob condição (ponto 66 dos factos provados).
- (…) fez transferências/depósitos para a(s) conta(s) titulada(s) pela insolvente "(…) – Investimentos Turísticos, SA." em 29.01.2009 no montante de 10.000 euros, em 30.01.2009 no montante de 25.000 euros e em 22.06.2009 no montante de 3.678,31 euros, entre outros comprovados nos autos (ponto 67 dos factos provados).
Por outro lado – apesar de alegado pelo recorrente – não resultou provado que:
- (…) deixou de ser de accionista da "(…) – Investimentos Turísticos, SA." a partir de 2006 (ponto 18 dos factos não provados).

Ora, atenta a factualidade dada como provada e não provada supra referida – e que é a única que tem interesse para a decisão a proferir neste Tribunal Superior – sempre se dirá que, em regra, todos os credores estão em situação de igualdade perante o património do devedor, nisso consistindo o princípio da “par conditio creditorum”.
Esse princípio corporiza-se no art. 604º, nº 1, do Código Civil, o qual determina que “Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos”.
No entanto, é frequente que um ou mais credores tenham direito a ser pagos, preferencialmente, por alguns ou por todos os bens do insolvente. Neste âmbito, destacam-se as garantias e privilégios creditórios, os quais constituem excepções ao princípio da igualdade dos credores. Por tal motivo, as normas que os tutelam devem ser interpretadas de acordo com a regra enunciada no artigo 11º do Código Civil.
Assim, declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência e tais créditos são denominados como créditos sobre a insolvência (art. 47º, nºs 1 e 2, do CIRE).
Além disso, os créditos sobre a insolvência são, de acordo com as “classes de créditos” introduzidas pelo CIRE: créditos “garantidos” e “privilegiados” (artigo 47º, nº 4, alínea a), do CIRE), créditos “subordinados” (artigo 47º, nº 4, alínea b) do CIRE) e créditos “comuns” (artigo 47º, nº 4, alínea c), do CIRE).
Os créditos “garantidos” e “privilegiados” são os créditos e respectivos juros que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre os bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalentes.
Incluem-se nos créditos garantidos a consignação de rendimentos (art. 656º do Cód. Civil), o penhor (art. 666º e seguintes do Cód. Civil), a hipoteca (art. 686º e segs. do Cód. Civil) e o direito de retenção (art. 754º do Cód. Civil). Créditos garantidos são ainda, conforme se disse, os que beneficiem de privilégios creditórios especiais. Estão neste âmbito os privilégios creditórios imobiliários e mobiliários especiais.
Por sua vez os créditos “comuns”, são os créditos que, não beneficiando de garantias nem de privilégios, são pagos depois dos “garantidos” e “privilegiados”, na proporção respectiva, se a massa insolvente for insuficiente para a sua satisfação integral (artigos 47º, nº 4, alínea c) e 176º do CIRE).
Finalmente, os créditos “subordinados” são os créditos taxativamente enumerados no artigo 48º do CIRE, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência.
Tais créditos são pagos depois de todos os restantes créditos, incluindo os comuns, sendo o seu pagamento efectuado pela ordem segundo a qual os créditos são indicados no art. 48º, na proporção dos respectivos montantes, quanto aos que constem da mesma alínea, caso a massa insolvente seja insuficiente para o seu integral pagamento (artigo 177º, nº 1, do CIRE).
Voltando agora ao caso dos autos constatamos que o recorrente sustenta que os seus créditos sobre a sociedade insolvente deveriam ser qualificados como créditos comuns e não como créditos subordinados, uma vez que resultaram da prestação de serviços que fez para a dita insolvente e também de quantias que (como sócio) entregou a esta, a título de suprimentos.
Todavia, não foi isso – de todo – que resultou da prova produzida nos autos (nomeadamente da inquirição da testemunha (…), das declarações de parte prestadas pelo recorrente e do documento junto a fls. 1589 a 1594), pois apurou-se que o recorrente, à data da constituição da sociedade ora insolvente, era seu accionista (na percentagem de 5%), sendo o administrador de facto da mesma, o que ocorreu até Agosto de 2010, data em que terá havido problemas com outros sócios. Além disso, o recorrente agiu sempre na mesma qualidade perante a sociedade insolvente, sendo que no período em que entrou com capital para a dita sociedade (transferências de diversas quantias em dinheiro) agiu como seu accionista.
Deste modo, resulta claro que não ficou provado que o recorrente tenha deixado de ser sócio da sociedade insolvente em 2006, como, reiteradamente, o mesmo havia afirmado nos autos (cfr. ponto 18 dos factos não provados).
Ora, por força do estipulado no art. 243º do Cód. das Sociedades Comerciais considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta dinheiro à sociedade.
Por outro lado, estatui o artigo 48º do CIRE que são créditos subordinados:
- a) Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respectiva aquisição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
(…)
- g) Os créditos por suprimentos.
E, por sua vez, prescreve o nº 2 do artigo 49º do CIRE que:
2 - São havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa colectiva:
a) Os sócios, associados ou membros que respondam legalmente pelas suas dívidas, e as pessoas que tenham tido esse estatuto nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
(…)
c) Os administradores, de direito ou de facto, do devedor e aqueles que o tenham sido em algum momento nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;
Assim sendo – atenta a factualidade apurada nos autos e o disposto nas normas legais supra transcritas – forçoso é concluir que o credor reclamante, aqui recorrente, não fez prova nos autos de que os montantes transferidos/emprestados à sociedade insolvente não constituíam suprimentos, sendo certo que o respectivo ónus de prova só a ele incumbia (cfr. artigo 342º, nº 1, do Código Civil).
Por isso, bem andou a M.ma Juiz “a quo” na sentença recorrida ao qualificar, como subordinado, o crédito do aqui apelante (no valor apurado de € 338.563,76).
Nestes termos, dado que o recurso em análise não versa outras questões entendemos que a sentença recorrida não merece qualquer censura ou reparo, sendo, por isso, de manter integralmente. Em consequência, improcedem, “in totum”, as conclusões recursivas formuladas pelo credor, aqui apelante.
***
Por fim, atento o estipulado no nº 7 do art. 663º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
- Por força do estipulado no artigo 243º do Cód. das Sociedades Comerciais considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta dinheiro à sociedade.
- Atenta a factualidade apurada nos autos e o disposto nos arts. 48º, alíneas a) e g) e 49º, nº 2, alíneas a) e c), do CIRE, forçoso é concluir que o credor reclamante, aqui recorrente, não fez prova nos autos de que os montantes transferidos/emprestados à sociedade insolvente não constituíam suprimentos, sendo certo que o respectivo ónus de prova só a ele incumbia (cfr. artigo 342º, nº 1, do Cód. Civil), pelo que tinha de ser qualificado como subordinado (e não como comum) o crédito do aqui apelante (no valor apurado de € 338.563,76).

Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação interposto pelo credor (…) e, em consequência, confirma-se integralmente a sentença proferida pelo tribunal “a quo”.
Custas pelo credor (…), aqui apelante.
Évora, 13 de Setembro de 2018
Rui Manuel Machado e Moura
Mário João Canelas Brás
Jaime de Castro Pestana


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[1] Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).