Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1244/19.7PBFAR-A.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
DECLARAÇÕES DA VÍTIMA
MENOR
Data do Acordão: 06/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:


1 - As Leis 93/99 de 14 de Julho (Lei de protecção de testemunhas), 112/2009 de 16 de Setembro (Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e assistência das suas vítimas) e a Lei 130/2015 de 4/9 (Estatudo da vítima) aparecem, especialmente esta última que o refere expressamente, como forma de garantirem às pessoas vítimas de crimes uma ampla proteção atendendo à sua vulnerabilidade, sendo a Lei n.º 130/2015 de 14/9 um complemento da proteção dada às vítimas de violência doméstica num contexto determinado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça Europeu.

2 - É, assim, perante a apontada evolução legislativa, compreensível que a Lei n.º 130/2015 de 14/9, ao aprovar o Estatuto da Vítima e ao criar o artigo 67.º-A do CPP, alargasse o conceito de vítima e a sua proteção.

3 - Tendo o jovem de quinze anos convivido com o seu padrasto e tendo assistido ao longo dos anos à violência doméstica exercida sobre a sua mãe, coloca-o no conceito de vítima especialmente vulnerável a que se refere o artigo 67.º-A do C.P.P. (nº 1 als. b), c) e d) e nº 3), não sendo aplicável o regime da lei de protecção de testemunhas, mas antes o regime especial dos crimes de violência doméstica, completado pelo regime aplicável às vítimas em geral dos crimes violentos, tendo-se em consideração o referido conceito de vítima previsto no artº 67º-A do C.P.P..

4 - Na verdade, se a criança/jovem assistiu, como é narrado, ao mau tratamento quer psicológico quer de outro tipo causado à sua mãe, sempre sofrerá um dano na sua integridade emocional ou moral com consequências no seu futuro desenvolvimento, qualquer que seja a sua idade.

5 - Tudo impunha, perante a possibilidade dada ao juiz de instrução de deferir ou indeferir o requerimento do M.P. para a tomada de declarações para memória futura que o mesmo fosse deferido ao abrigo dos artigos 271.º e 67.º-A do C.P.P., 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, 33.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e 3.º da Convenção dos Direitos da Criança.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. Da decisão
No inquérito n.º 1244/19.7PBFAR-A do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Instrução Criminal de Faro, Juiz 2 o Meritíssimo Juiz de instrução por despacho datado de 11 de fevereiro de 2020 indeferiu o requerimento do MP para a tomada de declarações para memória futura a (…), nascido em (…).
*
2. Do recurso
2.1. Das conclusões do Ministério Público
Inconformado com a decisão o MP interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1 - Pelo Ministério Público foi requerida a tomada de declarações para memória futura a (…), nascido a (…), nos termos do disposto no artigo 33.º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, artigos 21.º, n.º 2, alínea d) e 24.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro e também do disposto no artigo 271.º do Código de Processo Penal, porquanto, sendo o mesmo vítima especialmente vulnerável devia beneficiar de tal medida de protecção, considerando a sua fragilidade, a gravidade dos factos e o grau de risco, calculado em elevado, bem como o facto de o arguido se encontrar preso preventivamente, sendo expectável que o menor, assim que tomar conhecimento de tal facto, se sinta intimidado e ainda mais aterrorizado, o que aumentará exponencialmente caso tenha de depor em audiência de discussão e julgamento. Foi ainda aduzido como argumento o facto de se indiciar que José Serrano, durante o período em que os três residiram em conjunto, vivenciou múltiplas situações de violência dirigidas a sua mãe e sofreu, inevitavelmente, e em decorrência de tais eventos traumáticos, danos emocionais;
2 - Não obstante, o Mmo. JIC indeferiu o requerido (…)
3 - O presente recurso visa a revogação de tal despacho, por várias ordens de razões;
4 - Em primeiro lugar, por se considerar que o Tribunal a quo incorreu em erro na determinação da norma aplicável, ao ter aplicado o previsto no artigo 260.º da Lei n.º 93/99, de 14 Julho, quando deveria ter aplicado o disposto nos artigos 67.º-A e 271.º do Código de Processo Penal, bem como o disposto nos artigos 2.º e 33.º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, artigos 21.º, n.º 2, alínea d) e 24.º da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro:
- Em caso de pessoas vítimas do crime de violência domestica, tem aplicação o regime previsto na Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e na Lei 130/2015, de 4 de Setembro, bem como o disposto nos artigos 67.º-A e 271.° do Código de Processo Penal e não o disposto na Lei n.º 93/99, de 14 de Julho;
- De facto, a Lei 112/2009, de 16 de Setembro instituiu um regime específico para a tomada de declarações para memória futura a vítimas de violência doméstica, regime esse compaginável com o estabelecido na Lei n.º 130/2015 de 4 de Setembro e com o disposto no Código de Processo Penal, mas que não se confunde com o objecto da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, definido no seu artigo 1.º;
- A supletividade deste último diploma legal por correcção com aqueles, resulta também do disposto no artigo 20.°, n.º 6 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro;
- A tais argumentos, acrescenta-se o elemento literal, nomeadamente o conceito de "vítima especialmente vulnerável "previsto quer na Lei 112/2009, de 16 de Setembro, quer no artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, conceito que engloba todas as pessoas que sofrem dano emocional ou moral, ou perda material, directamente causada por acção ou omissão no âmbito de crime de violência doméstica, e que, por conseguinte, não inclui apenas os "ofendidos" da prática do crime";
- De acordo com a literatura científica, as crianças/menores que vivem em contexto de violência doméstica, a esta sendo expostas por a assistirem, sofrem danos directos, sendo, pois, "vitimas" de tal crime, tendo, entre outros: um risco maior de problemas de saúde mental ao longo da vida (Bogat, DeJonghe, Levendosky, Davidson e von Eye, 2006; Meltzer, Doos, Vostanis, Ford e Goodman, 2009 Mezey, Bacchus, Bewley e White, 2005; Peltonen, Ellonen, Larsen e Helweg-Larsen, 2010); risco aumentado na saúde física (Bair-Merritt, Blackstone e Feudtner, 2006); risco de abandono escolar e outros desafios educacionais (Byme e Taylor, 2007; Koenen, Moffitt, Caspi, Taylor e Purcell, 2003; Willís et al., 20 I O); risco de envolvimento em comportamentos criminais (R. Gilbert et al., 2009; T. Gilbert, Farrand, & Lankshear, 2012) e dificuldades interpessoais em relacionamentos e amizades futuras (Black, Sussman & Unger, 2010; Ehrensaft et al., 2003; Siegel, 2013); são também mais propensos a sofrer e a praticar bullying (Baldry, 2003; Lepistõ, Luukkaala e Paavilainen, 2011) e são mais vulneráveis ao abuso e exploração sexual, além de maior probabilidade de se envolverem em relacionamentos violentos (Finkelhor, Ormrod, & Turner, 2007; Turner, Finkelhor & Ormrod, 2010).;
- Neste sentido, veja-se o Parecer da Procuradoria-Geral da República ao Projecto de Lei n." 1183/XIIl/4.0 do Bloco de Esquerda, disponível para consulta em http://app.parlamento . pt/webutils/ docs/ doc.pdf?path=6148523 063446f7 64c3 246 79626d56304c3 34e 706447567a4c31684a53556c4d5a5763765130394e4c7a464451554e45544563765247396a6457316 c626e527663306c7561574e7059585270646d46446232317063334e686279396c596a526c59325131 59533 I 6c4e54466b4c5451355a544574595441354e79316d5a6a4e 685932526d4f44466d597a59756 347526d&fich=eb4ecd5a-e5I d-4gel-a097-ff3acdf81fc6.pdf&Inline=true (com último acesso a 7 de Março de 2020), onde se defende que as criança/menor/menores que testemunham violência doméstica são vítimas deste crime de acordo com as citadas disposições legais;
- No caso concreto, (…) é especialmente vulnerável, não apenas porque tal é uma decorrência dos dispositivos legais referidos, mas também porque: conta com 15 anos de idade; assistiu a factos susceptíveis de, em abstracto, integrar a prática do indicado crime de violência doméstica que, nas próprias palavras do Tribunal a quo, a vir a provar-se como cometido, "reveste um grau de agressividade passível de gerar sentimento de insegurança à vítima"; viveu com o denunciado entre os 10 e os seus 14 anos, sendo aquele, durante este concreto e crucial período da vida de José Serrano, uma das figuras adultas de referência; o denunciando, ainda que à ordem de outro inquérito, está preso preventivamente pela existência de fortes indícios da prática do crime de homicídio qualificado, agravado pela reincidência, nos termos dos artigos 75.°, 76.°, 131.°, n.ºs 1 e 2, alínea e), todos do Código Penal;
5 - Ao não enquadrar a criança/menor no conceito de vítima especialmente vulnerável oferecido pelos artigos 2.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e 67.º-A do Código de Processo Penal, o despacho recorrido efectuou uma interpretação de tais normas desconforme aos artigos 8.º e 69.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa:
- Conjugados os regimes das leis aqui convocadas (112/2009, de 16 de Setembro, 130/2015, de 4 de Setembro, 93/99, de 14 de Julho) com a Constituição da República Portuguesa, a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção de Istambul, as crianças/menores que testemunhem actos de violência doméstica, são vítimas especialmente vulneráveis na acepção das Leis 112/2009, de 16 de Setembro, 130/2015 de 4 de Setembro e artigo 67.º-A do Código de Processo Penal;
- A interpretação do artigo 2.°, alínea b) da Lei n. ° 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1, alíneas a) i) e b), e n.º 3 do Código de Processo Penal, no sentido que as crianças/menores que assistem a actos de violência doméstica não são vítimas especialmente vulneráveis, é desconforme aos artigos 8.° e 69.°, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que desde já expressamente se argui;
Defende-se a seguinte interpretação de tais normas, conforme à Constituição da República Portuguesa:
- As crianças/menores que assistem a actos subsumíveis ao crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.° do Código Penal, ainda que não sejam objecto imediato da actuação do autor dos factos, e, portanto, ofendidos da prática do crime, são vítimas especialmente vulneráveis nos termos do artigo 2.°, alínea b) da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1, alíneas a i) e b), e n. ° 3 do Código de Processo Penal;
De facto.
- Dispõe o artigo 8.° da Constituição da República Portuguesa, que "1. As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português; 2. As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.; 3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.; 4. As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático. ".
- E dispõe o artigo 69.°, no seu n.º 1, que "As crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.";
- A Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, e, por conseguinte, em vigor no ordenamento jurídico português, estabelece no seu artigo 19.°, um quase poder dever de tomada de declarações para memória futura quando em causa está o depoimento de uma criança/menor/menor;
- O mesmo ditam os artigos 26.° e 56.° da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Doméstica (Convenção de Istambul), aprovada em Istambul a 11 de Maio de 2011 e que Portugal aprovou. fazendo assim vigorar na ordem jurídica interna. pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 21 de Janeiro, a qual reconheceu ainda no seu preâmbulo. que "as crianças são vítimas de violência doméstica, designadamente como testemunhas de violência na família";
- Ora, da conjugação de todas estas normas resulta inequívoco que a Constituição da República Portuguesa apenas admite a interpretação de que as crianças/menores que testemunham actos de violência doméstica, são "vítimas especialmente vulneráveis" na acepção dos artigos artigo 2.°. alínea b) da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1. alíneas i) e B, e n.º 3 do Código de Processo Penal.
Sem prescindir.
6 - Não se perfilhando o entendimento acima vertido, sempre se deverá concluir que o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 26.º e 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho por não considerar José Serrano vítima especialmente vulnerável:
- De facto, em face do disposto no artigo 26.° da Lei n.º 93/99. que institui que "A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência", José Serrano tem de considerar-se pessoa especialmente vulnerável e, por conseguinte, beneficiar da medida de protecção de tomada de declarações para memória futura;
- Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo efectuou uma incorrecta valoração da situação de facto e da especial vulnerabilidade do menor, ao limitar-se a atender à idade deste - 15 anos -, referindo que essa idade já lhe confere suficiente maturidade para prestar declarações em sede de julgamento;
- Sendo evidente que a idade é um factor decisivo para a análise da especial vulnerabilidade, não é o único critério a considerar;
- No caso concreto, a especial vulnerabilidade do menor resulta, nomeadamente, do facto de a pessoa (neste caso, uma criança/menor) se ver constrangida a depor contra membro da família ou com quem habitou (sendo o arguido, durante esse período de tempo, uma figura adulta de referência); de ter o depoimento de ser prestado em audiência com arguido sujeito a medida de coacção de prisão preventiva (ainda que à ordem de outros autos); da relação entre a mãe do menor e o denunciado ter durado cerca de 4 anos, tendo tido o seu início quando José Serrano contava apenas com 10 anos de idade, o que aumenta o grau de danosidade experienciada por este e a sua, consequente, vulnerabilidade; não sendo despiciendo nesta sede o facto de o denunciado se encontrar preso preventivamente pela existência de fortes indícios da prática do crime de homicídio qualificado, agravado pela reincidência, nos termos dos artigos 75.°, 76.°, 131.°, n.ºs 1 e 2, alínea e), todos do Código Penal;
- Tal como já referimos na conclusão n.º 4 (para onde aqui se remete por economia de meios), crianças/menores que assistem a actos subsumíveis ao crime de violência doméstica. ainda que não sejam objecto imediato do agressor e nessa medida, ofendidos da prática do crime. sofrem danos morais, emocionais, psíquicos e físicos directos;
- Termos em que o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 26.° e 26.° da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, ao não considerar José Serrano como testemunha especialmente vulnerável;
7 - A interpretação dos artigos 26.º e 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho encetada pelo Tribunal a quo é inconstitucional por ser desconforme aos artigos 8.º e 69.º, n.º 1. o da Constituição da República Portuguesa, aqui se remetendo para o exposto na conclusão n.º 2 relativamente às normas da Constituição da República Portuguesa aqui convocadas, bem como às disposições de direito internacional:
- A interpretação de que uma criança/menor com 15 anos, que entre os 10 e 14 anos de vida viveu com denunciado da prática de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.°, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, sendo ofendida sua mãe, sendo o denunciado figura adulta de referência da criança/menor durante esse período, e estando o denunciado sujeito a medida de coacção de prisão preventiva por indícios da prática do crime de homicídio qualificado, não é testemunha especialmente vulnerável nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 26.° da Lei n.º 93/95, de 14 de Julho, é inconstitucional por violar o disposto nos artigos 8.° e 69.°, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que aqui expressamente se argui.
Defende-se, pois, a seguinte interpretação do artigo 26.° da Lei n.º 93/95, de 14 de Julho, conforme à Constituição da República Portuguesa:
- As crianças/menores que assistem a actos subsumíveis ao crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.° do Código Penal, ainda que não sejam objecto imediato da actuação do autor dos factos, e nessa sequência ofendidas da prática de crime, que contem com 15 anos de idade, que entre os 10 e 14 anos de vida tenham vivido com denunciado da prática do crime de violência doméstica, sendo ofendida do crime sua mãe, tendo sido o denunciado figura adulta de referência da criança/menor durante esse período, e estando o denunciado sujeito a medida de coacção de prisão preventiva por indícios da prática do crime de homicídio qualificado, é testemunha especialmente vulnerável nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 26,0 da Lei n.º 93/95, de 14 de Julho;
Destarte, Requer-se a V. Exas. se dignem.
6 - Revogar o despacho recorrido por ter aplicado norma distinta daquela a que é subsumivel o caso concreto, determinando-se que sejam tomadas declarações para memória futura ao menor José Serrano, por este ser vítima especialmente vulnerável nos termos do disposto artigo 2.º, alinea h) da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1, alineas i) e B, e n.º 3 do Código de Processo Penal;
7 - Sendo esta, aliás, a única interpretação dos artigos artigo 2.º, alínea b) da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1, alíneas a i) e b), e n.º 3 do Código de Processo Penal, conforme aos ditames dos artigos 8.º e 69.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;
Caso assim se não entenda.
8 - Revogar o despacho recorrido por não considerar (…) testemunha especialmente vulnerável nos termos e para os efeitos do artigo 26.º da Lei n.º 93/95, de 14 de Julho, determinando-se a sua substituição por outro que determine a tomada de declarações para memória futura a (…), visto que o mesmo é testemunha especialmente vulnerável na acepção de tal diploma legal- conta com 15 anos de idade, viveu com o agressor entre os seus 10 e 14 anos de idade, período crucial ao seu desenvolvimento, sendo o agressor figura adulta de referência, ter de prestar depoimento em audiência com arguido sujeito a medida de coacção de prisão preventiva pela existência de fortes indícios da prática do crime de homicídio qualificado, agravado pela reincidência, nos termos dos artigos 75.º, 76.º, 131.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), todos do Código Penal (ainda que à ordem de outros autos);
9 - Por ser esta interpretação do artigo 26.º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, a única conforme aos ditames dos artigos 8.º e 69.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.”

*
2.3. Do parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser julgada a procedência total do recurso interposto pelo MP, nos seguintes termos (transcrição):
“I – A Magistrada do Ministério Público interpôs recurso do despacho do Mm.º Juiz de Instrução Criminal de Faro – J2, proferido em 11-2-20202, que indeferiu a tomada de declarações para memória futura a (…), nascido a (…), filho da ofendida (…), nos termos do disposto no artigo 33.º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, artigos 21.°, n.º 2, d) e 24.° da Lei n." 130/2015, de 4 de Setembro e também do disposto no artigo 271.º do Código de Processo Penal.
Na essência do indeferimento o Sr. Juiz referiu que: “…entende o Tribunal que tal situação, por si, não lhe confere o estatuto de especial vulnerabilidade…” que … “pese embora a testemunha seja menor, a mesma conta com 15 anos de idade, sendo por isso detentor de um grau de maturidade que lhe permite prestar declarações em julgamento” … e ainda que … “embora os factos digam respeito à sua mãe, não é conhecido que o mesmo tenha sido vítima de qualquer tipo de violência por parte de Hélio Pedro.”
II – Considerando o leque de questões suscitadas no recurso, refere-se que a motivação de recurso da Magistrado do Ministério Público, observada na sua bem elaborada peça processual, analisa corretamente a matéria em causa, expondo e defendendo a sua pretensão de forma explicita, detalhada e muito assertiva, pelo que acompanhamos a respectiva argumentação.
III – Não obstante, não queremos deixar de mencionar o disposto no Acórdão da Relação de Lisboa de 11-1-2012, proferido no processo n.º 689/11.5PBPDL-3 que, além de descrever uma resenha histórica das declarações para memória futura no CCP e demais legislação, reporta-se ainda à articulação (e complementaridade) da Lei 112/2009 de 16-9 com a Lei de Protecção das Testemunhas em Processo Penal (Lei 93/99 de 14-7), observando que esta legislação veio alargar o âmbito de aplicação do disposto no artigo 271.º do CPP, indicando ainda que o critério que permita determinar as situações em que deve ocorrer a inquirição para memória futura deve “resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça.”
Elucidando afinal que, independentemente da vítima ser ouvida em declarações para memória futura, tal “…não pode ser vista como um meio de evitar ou de propiciar que a vítima exerça o direito que o Código lhe atribui de se recusar a depor. Ela tem esse direito em qualquer momento em que deva depor”.
É o seguinte o teor do sumário do mencionado Acórdão, in www.dhsi.pt :
“I – A redacção originária do CPP de 1987, em coerência com o modelo acusatório que adoptou, previa no seu art. 271.º que, em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a pudesse vir a impedir de ser ouvida em julgamento, o juiz de instrução procedesse à sua inquirição no decurso do inquérito para que o seu depoimento pudesse, se necessário, vir a ser tomado em conta no julgamento.
II – Embora o formalismo estabelecido para esse acto possibilitasse, em certa medida, o exercício do contraditório, o acto não decorria em condições idênticas àquelas em que teria lugar se realizado na audiência.
III – Este instituto, na versão originária do Código, desempenhava uma função puramente cautelar visando obter uma prova que poderia ser impossível de produzir na audiência de julgamento.
IV – A prova assim recolhida somente poderia ser utilizada, através da leitura do respectivo auto, se tal viesse a ser necessário.
V – As revisões de 1998 e de 2007 alteraram a natureza meramente cautelar do art. 271.º do CPP.
VI – Conquanto esta finalidade se tenha mantido, as declarações para memória futura passaram a poder ter igualmente lugar para protecção de vítimas de determinados crimes. A partir de 1998, dos crimes sexuais e, a partir de 2007, dos crimes de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual.
VII – Manteve-se, mesmo quanto às vítimas dos indicados crimes, a menção de que as declarações prestadas para memória futura apenas seriam tomadas em conta na audiência se tal fosse necessário, se bem que se tenham restringido os pressupostos da audição dessas testemunhas na audiência através da introdução da exigência suplementar de o respectivo depoimento não pôr em causa a saúde física ou psíquica de quem o devesse prestar.
VIII – O art. 28.º, n.º 2, da Lei de Protecção das Testemunhas em Processo Penal, ao estabelecer que, «sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal», veio alargar ainda mais o âmbito de aplicação deste preceito.
IX – Deixou de ter uma mera função cautelar e de proteger as vítimas de certo tipo de crimes, passando a abranger todas as pessoas que se incluam no amplo conceito de testemunha, tal como ele se encontra definido pelo art. 2.º, alínea a), da Lei n.º 93/99, de 14/07, e a abarcar qualquer tipo legal de crime.
X – A Lei n.º 112/2009, de 16/09, veio, por sua vez, no seu art. 33.º, prever um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, se bem que esse regime diste pouco do hoje constante do art. 271.º do CPP.
XI – Admitindo o art. 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16/09, que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se estabelecendo a obrigatoriedade da prática desse acto, importa procurar na lei um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar.
XII – Esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça.
XIII – A decisão sobre a tomada de declarações para memória futura não pode ser vista como um meio de evitar ou de propiciar que a vítima exerça o direito que o Código lhe atribui de se recusar a depor. Ela tem esse direito em qualquer momento em que deva depor.”
IV – Uma criança/jovem que, entre os seus dez e os catorze anos, assiste a um quadro de violência doméstica exercido pelo arguido sobre a sua progenitora (vivenciando múltiplas situações de violência), não pode deixar de se considerar também vítima do crime de acordo com o disposto no artigo 2.º alínea a) da Lei 112/19, de 16-9, que refere o seguinte: “Para efeitos de aplicação da presente lei, considera-se: a) «Vítima» a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal;
Por outro lado, de acordo com a alínea j) do artigo 1.º do CPP, o crime de violência doméstica, p. p. pelo artigo 152.º do Código Penal, insere-se na designação de “criminalidade violenta”, para efeitos do disposto no aludido Código de Processo Penal. O que significa, em consonância com o estabelecido no artigo 67.º- A, n.º 3, do CPP, que as vitimas de violência doméstica “são sempre consideradas vitimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.” Assim sendo, nos termos da lei, não qualquer dúvida que o menor José Carlos da Silva Serrano usufrui do estatuto de especial vulnerabilidade. Pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 271.º, n.º 2, do CPP e do artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16/09, assim como dos artigos 26.º e 28.º da Lei 93/99 de 14-7 (Lei de Protecção das Testemunhas em Processo Penal) deve determinar-se a prestação de declarações para memória futura do mencionado José Serrano ponderando o interesse da vitima e da comunidade.
Para o efeito, subscrevem-se as razões apontadas pela Magistrada do Ministério Público na sua motivação para tal efeito e que se sintetizam na “fragilidade das vitimas, gravidade dos factos e o elevado grau de risco e que o menor vivenciou múltiplas situações de violência, pelo menos verbal dirigida a sua mãe e sofreu, inevitavelmente, e em decorrência de tais eventos traumáticos, danos emocionais."
Sobre esta matéria o Acórdão da Relação de Lisboa, processo n.º 304/15.8PHAMD-A.L1-5.ª secção, in www.dgsi.pt :
"No decurso de inquérito, com o escopo de apurar da eventual prática de crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea d), do Código Penal ou de crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º-A, nº 1, alínea a), sendo a vítima (igualmente também eventualmente conhecedora de elementos fácticos relativos a agressões à sua progenitora) uma criança de onze anos de idade e o arguido seu progenitor, de onde resulta objectivamente a sua especial vulnerabilidade – que, aliás, deriva também do estatuído no artigo 67º-A, nºs 1, alínea b) e 3, do CPP - que cumpre proteger, importando também acautelar a genuinidade do depoimento, em tempo útil, pois é do conhecimento comum que este tipo de crimes são de investigação complexa e demorada, do que resulta prejuízo para o apuramento de toda a verdade dos factos vivenciados, deve o Juiz de Instrução Criminal proceder à tomada de declarações para memória futura ao menor como requerido pelo Ministério Público.”
E o Acórdão desta Relação de 3-2-2015, processo n.º 76/13.0GGSTC-A.E1, in www.dgsi.pt:
Tribunal da Relação de Évora
"O regime de protecção de testemunhas especialmente vulneráveis introduzido pela Lei n.º 93/99, de 13 de Julho, enquanto «imperfeita especialização» do regime das declarações para memória futura previsto no artigo 271.º do Código de Processo Penal, não se apresenta como regime contraditório e, ao invés, ambos se apresentam como complementares.
Em caso de crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º do C.P. a audição de menor, filho dos arguidos, dependerá do aquilatar da conveniência, em concreto, dessa medida, como protectiva do menor, em função das finalidades do inquérito, da realização da justiça e das garantias de defesa dos arguidos (seus progenitores), numa ponderação que se compagine com a reconhecida perspectiva de “concordância prática” dos interesses em jogo.”
Nesta conformidade somos de parecer que o recurso interposto pelo Ministério Público deve ser julgado procedente, revogando-se o douto despacho recorrido e substituindo-se por outro que admita a prestação de declarações para memória futura pelo jovem (…).”
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2.4. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
***
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
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2. Questões a examinar
Analisadas as conclusões de recurso as questões a conhecer são as seguintes:
- O despacho recorrido incorreu em erro na determinação das normas aplicáveis, pois aplicou o regime ínsito na Lei n.º 93/99, de 14 julho, quando devia ter aplicado o disposto nos artigos 67.º-A e 271.° do CPP, bem como o disposto nos artigos 2.° e 33.° da Lei 112/2009 de 16 de setembro, artigos 21.°, n.º 2, alínea d) e 24.° da Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro;
- Ao não enquadrar a criança/menor no conceito de vítima especialmente vulnerável oferecido pelos artigos 2.° da Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro e 67.º-A do CPP, o despacho recorrido efetuou uma interpretação de tais normas desconforme aos artigos 8.° e 69.°, n.º 1 da CRP;
- Ao enquadrar a criança/menor enquanto testemunha no âmbito da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, o despacho recorrido efetuou uma interpretação desconforme aos artigos 8.° e 69.°, n.º 1 da CRP.
Subsidiariamente,
- O despacho recorrido, violou o disposto nos artigos 26.º e 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho ao não considerar (…) vítima especialmente vulnerável;
- Ao não considerar a criança/menor como testemunha especialmente vulnerável ao abrigo da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, o Tribunal a quo efetuou uma interpretação do artigo 26.° da Lei n.º 93/99, de 14 de julho desconforme aos artigos 8.° e 69.º, n.º 1 da CRP;
- O despacho recorrido deve ser revogado por ter aplicado norma distinta da subsumível ao caso concreto, devendo ser determinada a tomada de declarações para memória futura ao menor (…), por este ser vítima especialmente vulnerável nos termos do disposto artigo 2.º, alínea h) da Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1, alínea a)i) e b) e n.º 3 do CPP.

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3. Apreciação
3.1. Da decisão recorrida
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida (transcrição do despacho judicial):
“Veio a Digna Magistrada do Ministério Público requerer a tomada de declarações para memória futura de (…) e de (…).
Fundamentou a tomada da primeira das declarações no facto de a testemunha ser, pretensamente, vítima de violência doméstica, sendo que a gravidade dos factos impõe a sua audição prévia a julgamento.
Relativamente à segunda testemunha, salientou que a mesma é menor de idade, tendo nascido em 30/12/2004, sendo por isso especialmente vulnerável.
Apreciando.
Compulsados os autos, designadamente a factualidade imputada, resulta efectivamente que, a corresponder à verdade, o comportamento do arguido reveste um grau de agressividade passível de gerar sentimento de insegurança à vítima.
Por via disso, ao abrigo do art.º 271.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, bem como do art.º 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16/09, determina-se a prestação de declarações para memória futura de (…).
No que concerne a (…), dispõe o art.º 26.º da Lei n.º 93/99, de 14/07 (Lei de Protecção das Testemunhas em Processo Penal):
“1 - Quando num determinado acto processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal acto decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.
2 - A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.”
Por seu turno, o art.º 28.º do mesmo diploma determina que:
“1 - Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.
2 - Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal.”
No caso, como acima se expôs, a aludida testemunha é menor de idade, sendo filho da ofendida.
Resulta igualmente que a mesma poderá ter presenciado comportamentos de (…) dirigidos à sua mãe.
Não obstante, entende o Tribunal que tal situação, por si, não lhe confere o estatuto de especial vulnerabilidade.
De facto, pese embora a testemunha seja menor, a mesma conta com 15 anos de idade, sendo por isso detentor de um grau de maturidade que lhe permite prestar declarações em julgamento.
Por outro lado, embora os factos digam respeito à sua mãe, não é conhecido que o mesmo tenha sido vítima de qualquer tipo de violência por parte de (…).
Para além do mais, o arguido (…) encontra-se actualmente preso preventivamente à ordem do proc. n.º (…), o que mitiga o perigo de influenciar as declarações da aludida testemunha.
Deste modo, não se defere a prestação de declarações para memória futura por parte de (…).
*
Para audição de (…), designa-se o próximo dia 11 de Março de 2020, pelas 10h00 horas.
Proceda à nomeação de defensor para representar legalmente o suspeito (…).
Após, notifique a Digna Magistrada do Ministério Público e o defensor que vier a ser nomeado para (…) e convoque a técnica habilitada para acompanhar a realização da diligência, ao abrigo do disposto no n.º 4 do art.º 271.º e do art.º 33.º, n.º 3, parte final, da Lei n.º 112/2009.”
*
3.2. Da apreciação do recurso interposto pelo Ministério Público
No presente processo onde se investiga a prática de um crime de violência doméstica o Ministério Público interpôs recurso do despacho do Mm.º Juiz de Instrução Criminal que indeferiu a tomada de declarações para memória futura da testemunha (…), nascida em (…), e filho da ofendida (…).
Invocou para o efeito o artigo 33.º da Lei 112/2009 de 16 de setembro, artigos 21.°, n.º 2, alínea d) e 24.° da Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro e 271.º do CPP, concluindo que a testemunha menor de idade, “enteado” do arguido, era especialmente vulnerável, encontrando-se reunidos os requisitos para lhe serem tomadas declarações para memória futura.
O tribunal a quo, por seu turno, sustentou, no despacho recorrido, que embora a testemunha tivesse quinze anos de idade, a sua maturidade habilitava-a a prestar declarações em julgamento desconhecendo-se, apesar de os factos dizerem respeito à sua mãe, se a testemunha tinha sido vítima de violência por parte do “padrasto”.
Apreciemos
3.2.1. Da aplicação da Lei n.º 93/99 de 14 de julho, por erro de interpretação, face ao disposto no artigo 67.º-A e artigo 271.º do CPP e artigos 2.º e 33.º da Lei 112/2009 de 16 de setembro e dos artigos 21.º, n.º 2 alínea d) e 24.º da lei 130/2015 de 4 de setembro
As declarações para memória futura do artigo 271.º do CPP tiveram a sua origem no regime de produção antecipada de prova do CPC de 1939, nos seus artigos 520.º e 521.º correspondentes aos atuais artigos 419.º e 420.º do CPC.
A produção antecipada de prova era admitida a título excecional quando havia fundado receio de a prova se tornar impossível ou muito difícil de obter no momento em que normalmente deveria ser produzida, ou seja, em regra, na audiência de julgamento. Exigia-se, então, a necessidade de ser fundamentada e requerida [1].
Quando as declarações para memória futura passaram a ser admitidas em processo penal com o código de 1987 ficaram limitadas às situações de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de testemunhas que não pudessem ser ouvidas em audiência de julgamento e à necessidade de evitar o receio de perda ou impossibilidade da prova ser produzida na audiência de julgamento.
Com a redação dada ao artigo 271.º do CPP, pelo Lei n.º 48/2007, de 29/08, admitiu-se poderem as declarações para memória futura ser prestadas nos casos de crimes de tráfico de pessoas e contra a liberdade e autodeterminação sexual, garantindo-se serem efetivadas perante o juiz de instrução, sem prejuízo de serem tomadas declarações em audiência de julgamento, quando tal não pusesse em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que as devia prestar.
O procedimento processual em causa foi configurado como um regime excecional, em que o respeito pelos princípios da imediação, da oralidade e da concentração impunham, como regra, a produção da prova na audiência de julgamento. Alargou-se, depois o regime aos menores ou a determinadas pessoas, perante a prática de certos crimes, pois perante a perspetiva de um longo procedimento processual, pretendia o legislador proteger aquelas pessoas em função da sua vulnerabilidade e da provável sujeição a pressões ou intimidações por parte daqueles a quem as declarações pudessem, eventualmente, prejudicar.
Quando a Lei n.º 93/99 de 14 de julho (Lei de Proteção das Testemunhas) foi aprovada atendeu-se à necessidade de facultar condições para que as testemunhas especialmente vulneráveis fizessem os seus depoimentos nas melhores condições possíveis e com urgência, nos termos dos artigos 271.º do CPP e do artigo 28.º da Lei 93/99 de 14 de julho.
Depois a Lei 112/2009 de 16 de setembro no âmbito da prevenção da violência doméstica estabeleceu no seu artigo 33.º a possibilidade de as declarações para memória futura “poderem” ser tomadas a requerimento da vítima, ou do MP, no decurso do inquérito, sem prejuízo de as mesmas serem prestadas em audiência de julgamento quando não colocassem em causa a saúde física ou psíquica das pessoas que as prestassem.
Já com a Lei n.º 130/2015 de 4 de setembro pretendeu-se dar uma proteção generalizada às vítimas da criminalidade, transpondo-se para o direito processual penal português a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento da Europa e do Conselho de 25 de outubro de 2012.
Com a criação do artigo 67.º -A do CPP foi assegurado um nível adequado de proteção à vítima e à sua segurança e salvaguarda (artigo 15.º da Lei) aparecendo a prestação de declarações para memória futura configurada como um direito das vítimas especialmente vulneráveis (artigo 21.º, n.º 2 da Lei).
As Leis 93/99 de 14 de julho, a Lei 112/2009 de 16 de setembro e a Lei 130/2015 aparecem, especialmente esta última que o refere expressamente, como forma de garantirem às pessoas vítimas de crimes uma ampla proteção atendendo à sua vulnerabilidade, sendo a Lei n.º 130/2015 um complemento da proteção dada às vítimas de violência doméstica num contexto determinado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça Europeu.
Efetivamente e como aquele Tribunal de Justiça Europeu havia referido no caso Maria Pupino em 16.6.2005 - Caso C-105/03[2], a proteção das vítimas especialmente as mais vulneráveis “deveria incluir a faculdade de a produção de prova se verificar fora e antes da audiência de julgamento”.
É assim, perante a apontada evolução legislativa, compreensível que a Lei n.º 130/2015, ao aprovar o Estatuto da Vítima e ao criar o artigo 67.º-A do CPP, alargasse o conceito de vítima e a sua proteção. Acresce que as respetivas normas são complementares dos regimes especiais de proteção de vítimas de determinados crimes (artigo 2.º, n.º 2 do respetivo anexo), devendo ser salientados os seguintes princípios:
- Dever ser assegurado em todas as fases da intervenção processual das vítimas um tratamento com respeito pela sua dignidade pessoal (artigo 4.º);
- Dever ser assegurado um nível adequado da proteção da vítima e, sendo caso disso, dos seus familiares elencados na alínea c) do n.º 1 do artigo 67.º-A do CPP.
- Dever ser evitado o contato em todos os locais que impliquem a presença das vítimas e dos seus familiares e dos suspeitos ou arguidos (n.º 2 do artigo 15.º do referido Estatuto);
- Dever as declarações para memória futura serem prestadas em ambiente informal e reservado;
- Dever o depoimento em audiência de julgamento só ser prestado “se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar” (n.º 6 do artigo 24.º do Estatuto da Vítima).
Tudo o que foi referido demonstra claramente ter sido errada a opção do Tribunal a quo ao julgar aplicável, ao caso em apreciação, o regime geral de proteção geral de testemunhas previsto na Lei 93/99 de 14 de julho.
Tal opção ignorou a aplicação da lei especial que prevê o caso. Essa escolha também desconsiderou a lei que completou a proteção das vítimas de violência doméstica de forma geral e a alteração daí resultante para o Código do Processo penal quanto ao conceito de vítima, que passou a constar do artigo 67.º-A do CPP.
Pode-se, pois, concluir, que o despacho recorrido fez uma errada interpretação e aplicação dos artigos 26.º e 28.º da lei n.º 93/99 de 14 de julho e dos artigos 7.º, n.º 3 e 9.º, n.º 1 do CC, estes últimos no âmbito da cessação da vigência da lei geral pela publicação de lei especial e da interpretação da lei tendo em conta a unidade do sistema jurídico.
Impõe-se, por isso, a revogação do despacho recorrido aplicando-se ao caso em apreciação o regime legalmente previsto.
*
3.2.2. Do regime aplicável à tomada de declarações do enteado do arguido, filho de mãe vítima de violência doméstica
O MP requereu a tomada de declarações para memória futura a (…), filho de (…), sendo esta pretensamente vítima de violência doméstica cuja gravidade imporia a sua audição prévia, referindo quanto ao filho ser o mesmo menor de idade nascido em 30/12/2004 e por isso especialmente vulnerável.
Quanto à mãe, o tribunal a quo considerou ser aplicável ao caso o artigo 271.º, n.º 2 do CPP e o artigo 33.º da Lei 112/2009 de 16/09 e determinou a prestação de declarações como solicitado decidindo aplicar ao menor o regime previsto nos artigos 26.º e 28.º da Lei 93/99 de 14 de julho (Lei de proteção das testemunhas em processo penal).
Já foi referido no número anterior que ao caso não devia ter sido aplicado ao menor o regime da lei de proteção de testemunhas em processo penal, mas, sim, o regime especial dos crimes de violência doméstica, completado pelo regime aplicável às vítimas em geral dos crimes violentos, tendo em consideração, para além do já referido, o conceito de vítima previsto no artigo 67.º-A do CPP.
De acordo com o artigo 67.º-A do CPP, vítima é a pessoa singular que sofre um dano à sua integridade física ou psíquica, ou à sua integridade emocional ou moral, ou um dano patrimonial diretamente causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime (n.º 1, alínea a)).
É, ainda, ”vítima especialmente vulnerável” aquela cuja fragilidade resulte da sua idade, do tipo de agressão, da sua duração e da agressão ter resultado consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social.
Por outro lado, “familiares da vítima são também as pessoas que convivessem com a vítima e os seus parentes em linha reta e as pessoas economicamente dependentes da vítima” (artigo 67.º-A do CPP), sendo, ainda, consideradas vítimas especialmente vulneráveis todas as vítimas da criminalidade violenta ou especialmente violenta (artigo citado e seu n.º 3).
Com a aprovação do Estatuto da Vítima pela Lei n.º 130/2015 de 4 de setembro a vítima passou a poder ser ouvida pelo juiz de instrução sempre que o solicite (artigo 292.º do CPP), existindo um dever de proteção dos familiares elencados na alínea c) do n.º 1 do artigo 67.º-A do CPP (artigo 15.º, n.º 1 do Estatuto da Vítima) constituindo um direito das crianças vítimas o de serem ouvidas de acordo com a sua idade e maturidade (artigo 22.º do referido Estatuto).
Dentro do contexto assinalado, o indeferimento de um requerimento do MP para se proceder à inquirição de um jovem adolescente de quinze anos para ser ouvido em declarações para memória futura, quando até já estava agendada a audição, para o mesmo efeito, da vítima/mãe, não foi realizado de acordo com a lei relativa à proteção das vítimas de violência doméstica. O despacho mencionado está em desacordo com o tratamento preferencial e de proteção que deve ser dado em geral às crianças vítimas direta ou indiretamente de violência doméstica.
Na verdade, se a criança/jovem assistiu, como é narrado, ao mau tratamento quer psicológico quer de outro tipo causado à sua mãe, sempre sofrerá um dano na sua integridade emocional ou moral com consequências no seu futuro desenvolvimento, qualquer que seja a sua idade.
Por outro lado, apesar de no conceito de vítimas estarem já inseridos os familiares da vítima que são seus dependentes em linha reta, como é o caso do filho da vítima e, também, dependente economicamente do agressor, não pode recusar-se a aceitação das declarações para memória futura de um jovem adolescente, assentes numa sua pretensa maturidade, sem sequer se avaliar, mínima e diretamente, essa maturidade.
Ou seja, existindo desde a Lei n.º 135/2015 um princípio geral de audição de declarações para memória futura das vítimas nos crimes de violência doméstica e constituindo essa audição um direito das crianças para preservação das provas nesse tipo de crimes e da sua proteção no sentido de evitar quanto possível a sua audição e confronto direto com o agressor, dependendo o estatuto de vítima especialmente vulnerável de uma sua prévia avaliação, se for caso disso, ou no caso das crianças, tendo em atenção a sua idade e maturidade, não se julga devidamente fundamentada a rejeição do requerimento do MP, com base numa pretensa maturidade apreciada em abstrato e só por virtude de a criança/adolescente em causa ter quinze anos de idade.
O espírito da lei e a evolução referida, em face da ponderação dos interesses em causa, tendo em consideração que o jovem não se oporia à realização da diligência, deveria ter sido antes o de deferir a tomada de declarações para memória futura, perante um regime que é agora, nos termos do artigo 24.º do Estatuto da Vítima e do seu n.º 6, no sentido de o depoimento da vítima especialmente vulnerável em audiência de julgamento só dever ser feito “se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar”.
Tendo o jovem de quinze anos convivido com o seu padrasto e tendo assistido ao longo dos anos à violência doméstica exercida sobre a sua mãe, como havia sido referido no requerimento apresentado pelo MP em que se pedia audição do jovem, estranho seria não ter sofrido um dano pelo menos na sua integridade psíquica e emocional pelos atos do padrasto e que tal não o tenha afetado no seu equilíbrio psicológico, colocando-o no conceito de vítima especialmente vulnerável a que se refere o artigo 67.º-A do CPP e as suas alíneas b), c) e d) do n.º 1 e n.º 3 do mesmo artigo.
Acresce que o “princípio do melhor interesse do jovem” (Best interest of the child), que deriva do artigo 3.º da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, sempre reclamaria a mesma solução.
Salientou-se, também, na decisão revidenda que o facto de o arguido agressor estar preso “mitigaria” o perigo de influenciar as declarações do menor. Nesta fase do processo, contudo, a situação assinalada não sobreleva as vantagens de o jovem ser ouvido imediatamente, pois trata-se de uma diligência processual urgente inserida num processo urgente com intuito de preservação das provas nos crimes de violência doméstica. Além disso, a audição para memória futura atenua a hipótese de a “influência” se manter por um período mais prolongado e potencia a possibilidade de poupar o jovem ao constrangimento inerente à solenidade e formalismo de uma audiência de julgamento, o que necessariamente o protegerá.
Ou seja:
- Quer por já ter sido marcada audição para ouvir a vítima direta da agressão;
- Quer por o jovem poder exercer o seu direito de ser ouvido, como vítima especialmente vulnerável;
- Quer por tal audição prévia respeitar também a uma vítima indireta das agressões de violência doméstica perpetradas contra a mãe e a que o menor terá assistido;
- Quer por virtude da tomada de declarações para memória futura corresponder a uma maior proteção das vítimas dos familiares agredidos, no contexto de violência doméstica e em especial ao melhor interesse do jovem,
Tudo impunha, perante a possibilidade dada ao juiz de instrução de deferir ou indeferir o requerimento do MP para a tomada de declarações para memória futura que o mesmo fosse deferido, pelas razões apontadas, ao abrigo dos artigos 271.º e 67.º-A do CPP e do artigo 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, do artigo 33.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009 de 16 de setembro e do artigo 3.º da Convenção dos Direitos da Criança.
Termos em que em conformidade com o expendido e sem necessidade de apreciação das demais questões suscitadas, se revoga o despacho recorrido, dando provimento ao recurso interposto e determinando a realização pelo juiz de instrução da tomada de declarações para memória futura ao jovem (…).
****
III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Dá-se provimento ao recurso interposto pelo MP e revoga-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que ordene a realização da diligência requerida para tomada de declarações para memória futura a (…).
2. Sem custas.
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Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos signatários.
Com voto de conformidade do Exmo. Sr. Juiz Desembargador Adjunto Martinho Cardoso, em face da atual situação de pandemia.

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[1] Cf. VARELA, Antunes e outros – “Manual de Processo Civil”. 2.ª edição. Coimbra Editora. P. 483 e segs..

[2] Decisão citada por ALBUQUERQUE, Paulo Pinto – “Comentário do Código Processo Penal: À Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. 4.ª edição atualizada. Universidade Católica Editora. P. 729. ISBN 978-972-54-0295-5, também disponível para consulta em http://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf;jsessionid=262796D761E14F002BCDA9E88DDDCF99?docid=64218&pageIndex=0&doclang=PT&mode=req&dir=&occ=first&part=1&cid=10970304.

23 de junho de 2020.

Beatriz Marques Borges – Relatora
Martinho Cardoso – Adjunto