Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
125/15.8T8FTR.E1
Relator: JOSÉ MANUEL GALO TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: PRIVAÇÃO DE USO DE VEÍCULO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 10/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I- A privação do uso injustificado de veículo constitui um ilícito que viola o direito de propriedade e é susceptível de gerar a obrigação de indemnizar. Porém, a avaliação do dano deve ser feita em função de parâmetros de necessidade, oportunidade e adequação
II- Se o titular não se aproveita das utilidades que o uso normal da coisa lhe proporciona, não poderá falar-se de prejuízo ou dano decorrente da privação ilícita do uso.
Decisão Texto Integral: Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
AA interpôs recurso da decisão que julgou parcialmente procedente a acção de processo comum instaurada pelo Município contra si e o Fundo BB. Assume a posição de interveniente a “CC, Companhia de Seguros, SA”.
A referida decisão condenou os Réus AA e o Fundo a pagar ao Autor a quantia de €3.806,67 (três mil oitocentos e seis euros e sessenta e sete cêntimos) relativamente às despesas a suportar para reparação dos danos materiais do veículo e, bem assim, a quantia de €2.912,00 (dois mil novecentos e doze euros) referente à não reparação pelo não uso do veículo, desde a data do acidente até à data da prolação da sentença (19/01/2015), acrescida de €7,00 (sete euros), até trânsito em julgado da presente decisão.
À referida condenação acrescem juros de morada, vencidos e vincendos, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
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O recorrente não se conformou com a referida decisão e apresentou as seguintes alegações:
1) Dispõe o artigo 155º do CPC que a audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares é sempre gravada (... ), em sistema sonoro, devendo a falta ou deficiência da gravação ser invocada, no prazo de dez dias, a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.
2) Com o propósito de interpor recurso da decisão da matéria de facto, o recorrente requereu aos autos uma cópia da gravação da audiência que lhe foi disponibilizada em 23/02/2016.
3) O facto é que a gravação disponibilizada é absolutamente deficiente, havendo excertos de gravação, e registos de depoimento perfeitamente inaudíveis, uma vez que o registo de som é de volume muito baixo.
4) A falta ou a falha na gravação da prova constitui, assim, nulidade processual, nos termos definidos pelo artº 195, nº1, do Código de Processo Civil, pois trata-se de irregularidade susceptível de influir no exame e decisão da causa, desde logo por retirar ao recorrente a possibilidade de impugnar em sede de recurso o julgamento da matéria de facto.
5) Ocorrendo a nulidade decorrente de falha ou erro de gravação, tal facto determina a impossibilidade de reapreciação da matéria de facto por tribunal superior, nos termos acima expostos, não contendo o processo todos os elementos probatórios que permitem tal reapreciação, e pretende a parte impugnar tal julgamento, nos termos do artº 662º do Código de Processo Civil.
6) Devendo pois proceder-se à anulação do acto viciado, na parte em que influi na decisão da causa, e dos actos posteriores que dele dependam. (cf. Artigo 195º, nº2, do CPC).
7) Sem prescindir, e por mera cautela e dever de patrocínio, vem o presente recurso interposto da decisão, de facto e de direito, que julgou parcialmente procedente a acção intentada pelo Município, ora recorrido, e que condenou os réus, AA, ora recorrente, e o réu Fundo BB a pagar ao Autor a quantia de €3.806,67, relativos às despesas a suportar para a reparação dos danos materiais do veiculo, derivados do acidente de viação, e mais condenou os mesmos réus a pagar ao Autor a quantia de €2912,00 referente à reparação pelo não uso do veiculo, desde a data do acidente até à data da decisão (19.01.2016), acrescidos de € 7,00 diários até ao trânsito em julgado da decisão.
8) Entende o recorrente que se encontram incorrectamente julgados os seguintes pontos 9 a 17 da matéria de facto.
10)[1] Para dar comprovados estes factos, na sua globalidade, a Mmª Juiz do Tribunal " a quo" fundamentou a sua convicção nos documentos de fls. 100 a 102, o orçamento de fls. 16 e 17, o documento de fls. 18, e, no essencial, nos depoimentos das testemunhas DD e EE.
11) Os documentos de fls. 100 a 102 constam de três fotografias, que alegadamente foram tiradas pelo telemóvel da testemunha FF, cuja junção aos autos foi requerida e admitida já no decurso da audiência de discussão e julgamento, e pelas quais se reconhece apenas um veiculo automóvel, no qual se encontra aposta a identificação do Município, e no qual são evidentes apenas estragos no capot e no para brisas.
12) Desconhecendo-se a identificação deste veículo, porque a esse respeito não foi feita prova, e das fotografias juntas tal identificação também não emerge,
13) Mas ainda que alegadamente se aceite ter sido o veiculo automóvel interveniente no acidente, delas não pode inferir-se, como fez a Mmª Juiz "a quo", que como consequência directa do embate foram causados danos no veiculo de matricula 00-00-RE, nomeadamente ao nível do capot, pintura, guarda-lamas, pára-brisas.
14) Designadamente não fundamente a Mmª Juiz "a quo" como podem tais documentos permitir a sua convicção no sentido de que como consequência directa do embate foram causados danos no guarda-lamas, já em nenhuma de tais fotografias se encontra visível, por exemplo, o guarda- lamas.
15) Tal facto reconduz-nos quer a uma clara falta de fundamentação da sentença, quer a uma omissão no que toca à prova produzida, devendo concluir-se pela nulidade daquela.
16) A fundamentação da decisão deve, pois, permitir o exercício esclarecido do direito ao recurso e assegurar a transparência e a reflexão decisória, convencendo e não apenas impondo.
17) Ora, não se referindo a qualquer outro meio de prova que tenha permitido gerar a sua convicção para dar como provados os danos provocados pelo acidente no veículo 00-00-RE, e não consubstanciando, em nosso entendimento, as fotografias juntas a fls. 100 a 102 prova suficiente da extensão destes danos, a sentença é nula, por falta de fundamentação.
18) Igualmente, vem a Mmª Juiz "a quo" dar como provado que a reparação dos danos acarretava serviço de bate chapas, serviço de pintura, partes dianteiras e traseiras, carga de ar condicionado, guarda-lamas frente direito e esquerdo, para choques frentes, grelha de entrada de ar, conjunto de vidro para brisas, grelha frontal, triângulos emblema Citroen, frisos farol, painel da frente, óptica completa direito e esquerda, jogo de escovas, capot, desempenar travessas de longarina da frente, desempenar pilar esquerdo junto ao vidro e desempenar tejadilho.
19) Para prova deste facto o Tribunal "a quo" assentou a sua convicção nos documentos juntos a fls. 16 e 17 dos autos que constam de um orçamento apresentado pela empresa GG, Lda., oficina de reparação da qual o recorrido Município é cliente há vários anos segundo as declarações da testemunha DD cujo depoimento se encontra registado com o nº20151210144250 967273 2871427.
20) O orçamento apresentado data de 16/03/2015, cerca de seis meses depois do acidente, e nele refere um conjunto de serviços referentes à reparação do veículo de matrícula 00-00-RE.
21) Ora salvo o devido respeito, e mais uma vez, em momento algum da análise crítica da prova produzida em sede de audiência refere a Mmª Juiz a quo que o acidente ocorrido em 19.11.2014 foi causa directa e adequada de danos para reparação dos quais se verificasse ser necessário o conjunto de serviços reportados ao orçamento datado de 15.03.2015.
22) O que vale por dizer que em momento algum se fez prova, em particular, da existência dos danos subjacentes a tal orçamento.
23) Parecendo-nos, salvo o devido respeito que é muito, que um orçamento apresentado com um lapso de seis meses relativamente à data do acidente não é prova bastante dos danos efectivamente causados pela ocorrência deste.
24) Ora, como flui do disposto no art. 342º, nº1, do Código Civil: "Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado".
25) Sendo que "a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o aproveita", conforme dispõe o artigo 414º do CPC.
26) Facto que se releva tão mais importante se atentarmos que dá também como provado o Tribunal "a quo" o valor dos materiais utilizados nas reparações mencionadas em 7 englobando mão-de-obra, ascende a € 3.806,67 (três mil oitocentos e seis euros e sessenta sete cêntimos) – ponto 11 da matéria de facto, em função do qual vem a condenar o réu, ora recorrente.
27) Conclusão a que chega a partir da conciliação do documentos de fls. 16/17, com o depoimento da referida testemunha Nuno Pereira, que no seu depoimento acaba por reconhecer que aos clientes era feito um desconto de 12% sobre a mão-de-obra registo de depoimento com o nº 20151210144450_967273_2871427, aos 00.15 segundos.
28) Ora, se o custo da mão-de-obra totalizado no orçamento representava €2151,36, e se sobre este valor existe um desconto comercial de 12%, obtemos um custo de mão-de-obra de € 1.893,2 que somado ao valor das peças, seja €1180,29, totaliza o valor de € 3073,49, e não de € 3094,85, como refere a Mmª Juiz "a quo".
29) Se lhe acrescentarmos o IVA à taxa legal em vigor totalizamos a quantia global de € 3780,39, e não de € 3806,67 referida pela Mmª Juiz" a quo".
30) Todavia, e para a base deste cálculo ignorou a Mmª Juiz "a quo" o depoimento da testemunha Nuno Pereira, que esclarecendo o custo da mão-de-obra afirma o serviço de bate chapas para o veículo em questão se estimava em 30 horas a 38 euros [04.42] e que o serviço de pintura se estimava em 18 horas ao mesmo preço - 38 euros [04.56-05.14].
31) Ora, por esta via, totalizaria o serviço de mão-de-obra €1824,00, e não os €2151,36, valor sobre o qual teríamos então o desconto de 12%, o que traduziria um valor de mão-de-obra de €1605,12 que somado ao valor das peças, € 1180,29 daria o valor global de €2.785,41.
32) Se lhe acrescentarmos o IVA à taxa legal em vigor totalizamos a quantia global de €3426,05, e não de €3806,67 referida pela Mmª Juiz "a quo".
33) E ainda assim, não mereceu qualquer acolhimento pela Mmª Juiz "a quo" o facto de esta testemunha, DD, no registo de gravação com o nº 20151210144250_967273_2871427, ter referido, aos 17.13m. que "naturalmente que o preço há-de ter uma margem nossa".
34) Donde, sempre concluiremos que não só não foram provados os danos efectivamente decorrentes do acidente que justifiquem os serviços e reparações mencionados no orçamento de fls. 10 e 11, como a quantificação destes serviços e materiais resulta claramente inflacionado, com assim depreende do depoimento da testemunha em causa.
35) Relativamente aos pontos 12 e 16 da matéria de facto dada como provada teve o Tribunal "a quo" em consideração as declarações da testemunha EE que, no entender daquele Douto Tribunal relevou ter conhecimento directo das dificuldades sentidas na organização do serviço derivado da falta do veículo em causa, pelas funções que exerce no Município, que a divisão de urbanismo, que, entre outras atribuições, fiscaliza as obras públicas e particulares no Municio, teve de agendar, com mais dilação, as visitas às obras, por não ter outro veículo disponível.
36) A testemunha EE cujo registo do depoimento se encontra gravado com o nº20151210125246_967273_2871427, referiu ser motorista do Sr. Presidente da Câmara, por nomeação e nesse sentido ter algumas viaturas do Município que lhe estão afectas [03.35m-03.45m], e que o veiculo acidentado estava afecto à divisão de obras [04.00m], sendo utilizado para vistorias pelo fiscal de obras [04.13m].
37) Referiu que o veículo em causa não está ao serviço da Divisão desde a data do acidente [O5.46m], e que agora quando é preciso tem de ser ver o carro que está disponível [O5.58m].
38) Quanto ao prejuízo causado àquela divisão referiu a testemunha com clara espontaneidade que «(…) é quando pensam que têm um carro ali à porta para sair não têm ( ... ) [07.00] (…) tem de ser agendado ( ... ) [07.10 m] ( ... )».
39) Donde não nos parece que o depoimento desta testemunha que nem tão pouco refere espontaneamente os prejuízos decorrentes da privação do uso do veiculo, possa ter ser servido para formar a convicção do Douto Tribunal "a quo" dos pontos 12 a 16 da matéria de facto dada como provada.
40) Mais acresce que também referiu esta testemunha ser o recorrido Município "( ...) proprietário para cima de quinze veículos [08.55m], e que existem dois Citroen C3 [10.26m] ( ... ) um que na altura já existia, e outro que foi comprado na altura ( ... ) [16.05m].
41) A este respeito referiu ainda a testemunha que [17.15] "( ... ) passado pouco tempo do acidente compramos um Citroen C3, afecto ao parque de máquinas do Município ( ... ) foi comprado porque sentia-se a falta de mais uma viatura ( ... ) [17.40].
42) Já quanto ao ponto 17 da matéria de facto dada como provada, designadamente ao valor do aluguer diário de um veículo semelhante ao veículo de matrícula 00-00-RE, por referência ao documento de fls. 18, parece-nos absolutamente contraditório o facto de o mesmo Tribunal que assim decidiu, com base num documento retirado de um sítio da Internet, não ter aceite o valor comercial do veículo propriedade do Autor, dando como não provados os pontos 2 e 3 da matéria de facto não provada, com referência à sua indicação pelo site HHTAX.
43) Não consideramos, nesta ordem de ideias, ter sido feita prova bastante deste valor, razão pela qual não deveria o Tribunal "a quo” ter dado como provado este facto.
44) Da impugnação da matéria de facto dada como provada, em particular dos pontos 12 a 16, resulta de forma clara a errada quantificação dos danos relativos às despesas a suportar para a reparação do veículo, derivadas do acidente de viação.
45) Além do que resulta, como referimos, a ausência de prova concreta de que o acidente objecto dos autos tenha sido causa dos danos orçamentados no documento junto aos autos.
46) Ora, no nexo de causalidade entre o facto e o dano, a nossa lei adoptou a designada doutrina da causalidade adequada, ao estabelecer que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão - art. 563 do CC.
47) O comando do art. 563 do CC "deve interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito, para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz, adequada desse efeito (Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, vol. IV, 4ª ed., pág. 579).
48) Na ausência de prova credível sobre os danos efectivamente causados ao veículo acidentado, violou os julgadores os artigos 483Q, 562º e 563º do C. Civil.
48) Por outro lado, e ainda quanto à extensão dos danos, a mera privação do uso de um veículo automóvel resultante da sua paralisação em resultado de estrago em acidente de viação, sem repercussão negativa no património do lesado em termos de dano específico emergente ou cessante, é insusceptível de fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil.
49) Vejam-se, neste sentido, e entre outros, os acórdãos do STJ de 04.10.2007, 30.10.2008 e 30.10.2008, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
50) Ora, no caso dos autos resulta claramente do depoimento das testemunhas, a que acima nos referimos sede de impugnação da matéria de facto dada como provada, que o Município recorrido recorreu a veículos de substituição para o exercício das funções a que o mesmo estava afecto.
51) Razão pela qual, qualquer dano, a existir teria de ser analisado com base nos custos que suportou para obter a disponibilização desses veículos (alugueres) os quais se reconduzem a prejuízos ou diminuições patrimoniais (danos emergentes), e não a frustração de ganhos ou de rendimentos de exploração (lucros cessantes).
52) A indisponibilidade do veículo em causa foi suprida pelo recurso a outras viaturas, e até mesmo com a aquisição de uma nova viatura, logo, a privação do uso daquela não implicou para o recorrido um dano em termos de lucro cessante.
53) Ora, a simples privação do uso de um veículo, desacompanhada da demonstração de outros danos – seja na modalidade de lucros cessantes (frustração de ganhos), seja na de danos emergentes (despesas acrescidas justificadas pela impossibilidade de utilização) – não é susceptível de fundar a obrigação de indemnizar.
54) Donde, não tendo o recorrido alegado, nem demonstrado, quaisquer ganhos ou vantagens frustradas pela impossibilidade de utilização do veículo sinistrado, nem as despesas que teve de suportar com o aluguer de viaturas, bastando-se a este respeito com a mera indicação de um valor reportado a uma página da Internet, outra conclusão não podemos retirar "in casu" senão a de que não existe qualquer dano de privação, violando o Tribunal "a quo" o disposto nos artigo 562º a 566º do CC.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, e assim se fazendo justiça!
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Não houve lugar a resposta.
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Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº4 e 639º, nº1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº2, ex vi do artigo 663º, nº2, do NCPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Apesar da sua exagerada extensão[2], analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:
i) nulidade por deficiente gravação da prova produzida em audiência.
ii) Erro na avaliação da matéria de facto e vício na fundamentação da mesma.
iii) Erro de julgamento na subsunção jurídica realizada, tendo em consideração os factos apurados, quanto ao preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil e na aplicação de indemnização por privação de uso.
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III – Dos factos apurados:
3.1 – Matéria de facto provada
Discutida a causa e produzida a prova, com interesse para a decisão da causa, resultam provados os seguintes factos:
1. O Município é proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Citroen, de matrícula 00-00-RE.
2. No dia 29/11/2014, cerca das 19.30horas, no âmbito das atribuições do Autor, uma das funcionárias do município – FF– conduzia o veículo referido em 1., na localidade, numa das ruas da Zona industrial, que configura uma recta, com uma largura de 10,60 metros.
3. Em tal data decorria, em Fronteira, o evento "24 Horas - Todo o Terreno", sendo que o evento em causa atrai à localidade uma grande quantidade de pessoas e veículos.
4. À sua frente, e nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, seguia o veículo automóvel ligeiro misto, de matrícula 00-00-BF, conduzido pelo Réu AA.
5. O veículo de matrícula 00-00-RE seguia atrás no veículo 00-00-BF, no mesmo sentido.
6. O veículo conduzido pelo Réu AA circulava a velocidade reduzida.
7. A determinada altura, o veículo de matrícula 00-00-BF conduzido pelo Réu AA parou repetidamente, determinando que o veículo que seguia atrás, de matrícula 00-00-RE também tivesse parado.
8. Ato contínuo, o condutor do veículo de matrícula 00-00-BF efectuou manobra de marcha à retaguarda, tendo embatido na zona frontal do veículo de matrícula 00-00- RE.
9. Como consequência directa do embate foram causados danos no veículo de matrícula 00-00-RE, nomeadamente ao nível do capot, pintura, guarda-lamas, pára-brisas.
10. A reparação dos danos referidos em 7. acarretava serviço de bate chapas, serviço de pintura, material de pintura, partes dianteiras e traseiras, carga de ar condicionado, guarda-lamas frente direito e esquerdo, pára-choques frente, grelha de entrada de ar, 4 conjunto de vidro pára-brisas, grelha frontal, triângulos emblema Citroen, frisos farol, painel da frente, óptica completa direito e esquerda, jogo de escovas, capot, desempenar travessas da longarina da frente, desempenar pilar esquerdo junto ao vidro e desempenar tejadilho.
11. O valor dos materiais utilizados nas reparações mencionadas em 7., englobando a mão-de-obra, ascende a €3.806,67 (três mil oitocentos e seis euros e sessenta e sete cêntimos)
12. O Autor, Município, utilizava o veículo de matrícula 00-00-RE diariamente na prossecução das suas actividades, nele se efectuando deslocações dentro e fora do concelho.
13. O veículo em causa estava afecto à Divisão de Urbanismo, Ambiente, Qualidade e Intervenção – DUAQI – e era utilizado, entre outros, pela comissão de vistorias para a vistoria técnica a prédios, pelo fiscal de obras e pelo chefe de divisão no âmbito das suas funções.
14. Esse veículo afecto à dita divisão era utilizado diariamente pelos funcionários do Município adstritos à fiscalização das obras públicas e particulares.
15. Alguns dos serviços da DUAQI deixaram de ser realizados com a brevidade com que eram realizados, atenta a falta do veículo em causa, com prejuízo para o Município e para o desenvolvimento das suas atribuições ao nível da fiscalização das obras públicas e particulares, provocando um atraso na tramitação interna dos respectivos processos e embaraços na realização dos serviços externos de fiscalização.
16. Muitas vezes, pela inexistência de veículo, teve o Autor de proceder a agendamento para a utilização alternada de outros veículos de outras divisões do Município para que a DUAQI ao nível de fiscalizações não parasse definitivamente, causando os prejuízos daí decorrentes.
17. O aluguer de um veículo de idêntica categoria do veículo propriedade do Autor ronda os €30,00/dia.
18. O veículo interveniente nos autos de matrícula 090-00-BF, não possuía seguro de responsabilidade civil obrigatória.
19. O veículo de matrícula 00-00-BF, está registado em nome do seu proprietário, primeiro Réu, AA, desde 16/10/2012.
20. O Réu AA é proprietário de um stand de automóveis denominado "AAcar - Unipessoal, Ldª" com sede na Avenida da Liberdade, 86.
21. O Réu AA utilizava o veículo em causa com carácter de durabilidade.
22. No exercício da sua actividade profissional o Réu celebrou com a companhia de seguros CC um contrato de seguro de responsabilidade civil, titulado pela apólice 753552489, cujo objecto seguro consiste na Carta n°PT1 4, de que o Réu é portador.
23. No âmbito da apólice contratada, a seguradora CC garantiu a responsabilidade civil imputável ao titular da carta de condução n° PTll 4, em consequência de acidente de viação em que intervenha qualquer veículo ligeiro (até 2900 Kgs), quando conduzidos pelo titular da carta ou licença de condução indicada nas condições particulares, no exercício das suas funções e no âmbito da sua actividade profissional.
24. Actividades que consistem no exercício habitual da actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controle de bom funcionamento de veículos.
25. Consta das condições particulares da apólice que: "estão também excluídos os acidentes em que intervenham veículos cujo registo de propriedade esteja averbado em nome do segurado, quando contabilisticamente sejam considerados parte integrante do seu imobilizado corpóreo, ou do titular da carta segura (. . .) quando detidos ou utilizados, pelo titular da carta segura, com carácter duradouro ou com finalidade diferente de serem objecto de intervenção ao abrigo da actividade do segurado".
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3.2 – Matéria de facto não provada:
Com interesse para a decisão da causa ficaram por provar os seguintes factos:
1. A maior parte dos serviços da DUAQI deixou de ser realizar, devido à falta do veículo propriedade do Município.
2. O valor venal (comercial) do veículo propriedade do Autor, de matrícula 00-00-RE, Citroen, ligeiro de passageiros, com motor de ciclo diesel, de 1527 cm3, com entrada em circulação em Fevereiro de 2001 e que à data do acidente contaria com 246 960 Km, o seu valor venal é de 2.193,00 €.
3. O valor comercial do referido veículo não é superior a €2.000,00/2.500,00.
4. O Stand de Automóveis de que é titular o Réu mantinha em exposição o veículo automóvel de matrícula 00-00-BF no evento "24 Horas - Todo o Terreno".
5. O acidente ocorreu numa recta tomada pelo Réu para fazer circular o referido veículo do local onde ser encontrava em exposição para o ponto de recolha do mesmo.
6. O veículo do Réu foi interceptado no seu trajecto por um objecto arremessado, do próprio recinto para a via de circulação, que o obrigou a parar subitamente.
7. O veículo do Autor não manteve a distância suficiente do veículo do Réu, que o precedia e por força da súbita paragem do primeiro, travou mesmo em cima deste.
8. Por acto reflexo, o Réu engatou a marcha atrás que não chegou a concretizar.
9. Tendo bastado o arranque desta para embater no veículo de matrícula 00-00-RE.
10. O Réu AA, no dia do embate, estava a utilizar veículo de matrícula 00-00-BF para prestar assistência aos intervenientes na prova de Todo-o-Terreno.
11. A reparação referida em 11. da matéria de facto provada ascende a €4.097.93.
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IV – Fundamentação:
IV.1 – Da nulidade:
A audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares é sempre gravada, devendo apenas ser assinalados na acta o início e termo de cada depoimento, informação, esclarecimento, requerimento e respectiva resposta, despacho, decisão e alegações orais (artigo 155º, nº1, do Código de Processo Civil).
A gravação é efectuada em sistema sonoro, sem prejuízo de outros meios audiovisuais ou de outros processos técnicos semelhantes de que o Tribunal possa dispor (artigo 155º, nº2, do Código de Processo Civil).
A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada (artigo 155º, nº4, do Código de Processo Civil).
Por outro lado, nos termos do nº3 do mesmo artigo, a gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias, a contar do respectivo acto.
Na vigência do Código de Processo Civil de 1961 existiam divergências interpretativas relativamente aos requisitos temporais e vícios da gravação dos depoimentos. Uma dessas linhas jurisprudenciais entendia que «não era razoável exigir das partes e/ou dos seus mandatários que fiscalizassem as condições técnicas das gravações antes do momento em que se confrontavam com a necessidade de optar acerca do recurso da matéria de facto, o que só ocorria após o conhecimento da decisão final. Assim, segundo esta jurisprudência, as eventuais deficiências das gravações dos depoimentos poderiam ser arguidas nas alegações do recurso[3].
Outros, porém, entendiam que a aludida nulidade deveria ser arguida no prazo de 10 dias após a conclusão da audiência de julgamento ou, pelo menos, após a entrega, pela secretaria, do suporte da gravação da audiência de julgamento, mediante reclamação para o tribunal da primeira instância, onde ocorrera a nulidade. Ajuizava-se que as partes deveriam cooperar com o tribunal no sentido de remediarem o mais cedo possível eventuais irregularidades da gravação que pudessem comprometer a desejável celeridade no andamento dos autos, efeito esse que seria possível face à obrigação que, nos termos do disposto no artº7º, nº2, do Dec-Lei nº 39/95, de 15/02, incidia sobre o tribunal, de “facultar, no prazo máximo de oito dias após a realização da respectiva diligência, cópia a cada um dos mandatários ou partes que a requeiram”, (para o que a parte ou mandatário deveriam fornecer ao tribunal “as fitas magnéticas necessárias” - nº3 do citado artº 7º)»[4].
Da interligação entre os postulados normativos inscritos nos números 3 e 4 do Código de Processo Civil, ressalta que é fixado o prazo de 10 dias para a arguição da aludida nulidade, a que se associa o ónus de tramitação do incidente perante o juiz a quo. Isto implica que não seja admitida a sua inserção imediata nas alegações de recurso[5].
Efectivamente, «a incorrecta gravação áudio ou vídeo que seja efectuada traduz a omissão de um acto que a lei prescreve – já que não teria sido feito em devidos termos o que, tendo de ser feito só preenche a sua função se o for correctamente – e que pode influir no exame ou decisão da causa – uma vez que como se viu condiciona a reacção que as partes podem dirigir contra a decisão proferida sobre a matéria de facto e a consequente possibilidade de defesa dos seus pontos de vista nessa matéria…; reconduz-se, por isso, às nulidades previstas no art. 201º, nº1»[6].
Da nulidade processual prevista no artigo 201º do Código de Processo Civil não cabe directamente recurso para este tribunal da Relação, devendo a mesma ser arguida perante o tribunal em que teve lugar (artigo 205º); só posteriormente, no caso de discordância com o despacho que verse sobre a arguição de nulidade, é desta decisão que cabe recurso para este tribunal. Efectivamente, as nulidades do processo hão-de, em princípio, ser arguidas perante o tribunal em que ocorreram e nele apreciadas e julgadas (sendo excepção não correspondente ao caso dos autos a prevista no nº 3 do art. 205º). Como refere Alberto dos Reis [7] «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se».
Aliás, com as especificidades típicas do processo penal, esta solução é neste momento a matriz decisória no âmbito da gravação da prova. Com efeito, em sentido semelhante se fixou jurisprudência no âmbito da jurisdição penal, mediante o acórdão uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça[8], de 03/07/2014, em que se enunciou a seguinte proposição: «A nulidade prevista no artigo 363º do Código de Processo Penal [falta de documentação na acta das declarações prestadas oralmente] deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do nº3 do artigo 101º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar–se sanada».
A apelante não invocou a alegada nulidade perante o tribunal de primeira instância, antes e de imediato interpôs recurso para este tribunal e, assim, nestas circunstâncias e nessa parte, essa impugnação por via recursal directa não poderá proceder.
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IV.2 – A alteração da decisão de facto:
Diz a exposição de motivos da Lei nº41/2013, de 26 de Junho [Novo Código de Processo Civil] que «se cuidou de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreaciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios – que lhe permitem anular a decisão recorrida, se esta não se encontrar devidamente fundamentada ou se mostrar que é insuficiente, obscura ou contraditória –, são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material».
Porém, este reforço de poderes e deveres não é unidireccional. Na verdade, a lei ao mesmo tempo impõe novas regras das condições de exercício do direito de recurso. Assim, os recorrentes têm agora o dever de modelar a peça de interposição de recurso com a seguinte estrutura: (i) especificação dos concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, (ii) indicar os concretos meios probatórios constantes do processo que impõem decisão diferente, (iii) adiantar qual deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas e (iv) mencionar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso.
Actualmente, nos termos do nº1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender,
deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
A reapreciação dos meios de prova pelo Tribunal da Relação destinar-se-á a diligenciar a correcção de eventuais erros de julgamento na decisão sobre a matéria de facto. Assim, dispõe a al. a) do número 2 do mesmo artigo 640º do Código de Processo Civil que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso – e proceder, se assim o entender, à transcrição de quaisquer excertos – sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte.
Diz-nos, a este propósito, Abrantes Geraldes[9] que relativamente «a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos». Bem como que a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto deve verificar-se na situação de «falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda».
Abrantes Geraldes[10] sublinha que a rejeição do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto deve verificar-se nomeadamente, quando da «falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda» e da «falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação» e acrescentando que «as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor».
Sendo certo que a alínea a) do nº 2 do art. 640º do Código de Processo Civil expressamente diz incumbir ao recorrente «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso». Actualmente, é a própria lei que estabelece deste modo uma concreta cominação para quem não cumpra o ónus em referência.
O recorrente pretende alteração da factualidade inscrita nos pontos 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16 e 17 dos factos provados e coloca igualmente em crise os pontos 2 e 3 da matéria de facto não provada. Ao longo da sua alegação faz alusão a diversos trechos de registos probatórios [v.g. Paula Leitão (05.20-06.00), Nuno Pereira (00.15segundos, 04.56-05.14, 17.13), João Balasteiro (03.35-03.45m, 04.00, 04.13, 05.46, 05.58, 07.00, 07.10, 07.30, 07.40, 08.55, 10.26, 16.05, 17.40)].
Na sua impugnação por via recursal afirma que «pretendendo a reapreciação da matéria de facto, a falta de gravação ou a sua falha impedem-no de dar cumprimento às disposições legais aplicáveis, vendo-se, assim, a parte impedida de exercer o seu direito de recurso sobre a matéria de facto e, bem assim, ficando, ainda, o Tribunal impedido, em qualquer caso, de proceder à reapreciação de tal matéria por falta de registo da prova ou de registo válido».
Porém, também se adianta que foi ouvida toda a prova[11] e que a mesma é perfeitamente audível, com ligeiras dificuldades na audição de algumas intervenções de um dos senhores advogados em que, apesar da sua voz surgir sumida, a diligência gravada é absolutamente perceptível. Dessa audição resulta que, em momento algum, foram afectadas as declarações de prova produzidas em audiência.
Tanto na motivação como nas conclusões de recurso a peça de recurso não cumpre integralmente as exigências legais, sendo que, inclusivamente, aquela que cumpre de forma mais eficaz é exactamente a que se reporta com a alegada dificuldade de audição da prova. Inexiste qualquer problema com a gravação e a ocorrer alguma dificuldade será com o aparelho de reprodução utilizado pela parte.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[12] estabilizou na interpretação que «a inobservância deste ónus de alegação, quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, implica, como expressamente se prevê, no art. 640º, n°1, do NCPC, a rejeição do recurso, que é imediata, como se acentua na al. a), do nº2, desse artigo.
Nesta sede, foi propósito deliberado do legislador não instituir qualquer convite ao aperfeiçoamento da alegação a dirigir ao apelante. A lei é a este respeito imperativa, ao cominar a imediata rejeição do recurso, nessa parte, para a falta de incumprimento pelo recorrente do referido ónus processual (art. 640º, nº2)».
Ou noutra formulação, para que a Relação conheça da impugnação da matéria de facto é imperioso que o recorrente, nas conclusões da sua alegação, indique os concretos pontos de facto incorrectamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre aqueles concretos pontos de facto, conforme impõe o artigo 640º, nº1, alíneas a) e c) do CPC. Não tendo o recorrente cumprido o ónus de indicar a decisão a proferir sobre os concretos pontos de facto impugnados, bem andou a Relação em não conhecer da impugnação da matéria de facto, não sendo de mandar completar as conclusões face à cominação estabelecido naquele nº 1 para quem não os cumpre[13].
Mais se afirma correntemente que a imposição daquele ónus ao recorrente não viola o direito de acesso aos tribunais, não obrigando a Constituição da República Portuguesa ao legislador ordinário que garanta aos interessados o acesso ao recurso de forma ilimitada, além de que sobre estes incidem também condicionalismos que estão vinculados a cumprir.
Deste modo, rejeita-se a impugnação da decisão da primeira instância quanto à matéria de facto deduzida pelo apelante.
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IV. 3 – Da falta de fundamentação:
O recorrente assinala que «as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Pois a fundamentação cumpre uma dupla função: de carácter objectivo – pacificação social, legitimidade e controlo das decisões; e de carácter subjectivo – garantia do direito ao recurso e controlo da correcção material e formal das decisões pelos seus destinatários.
Para cumprir a exigência constitucional, a fundamentação há-de ser expressa, clara e coerente e suficiente. Ou seja, não deve ser deixada ao destinatário a descoberta das razões da decisão; os motivos não podem ser obscuros ou de difícil compreensão, nem padecer de vícios lógicos; a fundamentação deve ser adequada à importância e circunstância da decisão.
A fundamentação da decisão deve, pois, permitir o exercício esclarecido do direito ao recurso e assegurar a transparência e a reflexão decisória, convencendo e não impondo».
Subscreve-se esta síntese introdutória formulada pelo recorrente a propósito da necessidade, das exigências e dos objectivos da fundamentação.
O princípio da livre apreciação das provas para a formação da convicção do julgador implica que, na fase de ponderação, decorra um processo lógico-racional que conduza a uma conclusão lógica, sensata e prudente. Só que esse processo, insondável e íntimo, não tem de ser transposto para a motivação, que se limita a elencar criticamente as provas consideradas credíveis[14] [15].
A prova há-de ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, tudo se resolvendo, afinal, na formação de juízos e raciocínios que, tendo subjacentes as ditas regras, conduzam a determinadas convicções reflictas na decisão de pontos de facto sob avaliação. Deve, ela, ainda ser considerada globalmente, conjugando todos os elementos disponíveis e atendíveis[16].
Embora referindo-se à jurisdição penal, tem aqui aplicabilidade a afirmação que «o sistema de livre apreciação da prova deve definir-se pelo seu significado positivo que se traduz na valoração racional e crítica que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos e assegurar pelo seu conteúdo as garantias procedimentais concedidas pela lei fundamental. É de salientar que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade»[17].
Afirma o recorrente que para julgar como assentes os pontos 9 a 17 da matéria de facto, «a Mmª Juiz do Tribunal “a quo” fundamentou a sua convicção nos documentos de fls. 100 a 102, o orçamento de fls. 16 e 17, o documento de fls. 18 e, no essencial, nos depoimentos das testemunhas EE e João DD». E, prosseguindo, nunca poderia firmar a conclusão que os danos do acidente seriam «consequência directa do embate». Deste modo, conclui que «não se referindo a qualquer outro meio de prova que tenha permitido gerar a sua convicção para dar como provados os danos provocados pelo acidente no veículo 00-00-RE, e não consubstanciando, em nosso entendimento, as fotografias juntas a fls. 100 a 102 prova suficiente da extensão destes danos, a sentença é nula, por falta de fundamentação» e sublinha igualmente que não foi feita a análise crítica dos danos reportados no orçamento datado de 15/03/2015.
Na parte que agora nos interessa, o Tribunal a quo fundamentou a matéria indicada em 9 a 19 dos factos provados da seguinte forma:
«Os documentos de fls. 100/102 foram, do mesmo modo, tidos em consideração, para a prova dos danos, tendo a testemunha Paula Leão explicado, de forma credível, que tais fotografias foram por si tiradas, após o acidente ocorrido.
No que concerne aos factos constantes dos pontos 10. e 11. da matéria provada, atinentes aos serviços de reparação necessários, relativos aos danos provocados no veículo de matrícula 00-00-RE, teve o tribunal em consideração o orçamento constante de fls. 16/17, com as explicações dadas pela testemunha DD.
De facto, não coincide o valor total do orçamento com o valor dado como provado pois a testemunha em causa referiu que o Município teria um desconto, apenas na mão-de-obra, de 12%, não estando tal desconto espelhado no orçamento em causa.
Assim, e tendo a testemunha em causa explicado, de forma clara e credível, que que apenas as rúbricas 1,2 e 5 se referem a mão-de-obra, a mesma ascenderia a €1.972,23, sendo as restantes rubricas peças, que ascendem a €1.359,29.
Com o desconto de 12% na mão-de-obra, a mesma seria, então, de €1.735,56.
Deste modo, o valor total, da mão-de-obra conjuntamente com as peças elencadas, seria de €3.094,85 que, com o IVA, totalizaria a quantia de €3806,67.
No que respeita aos factos constantes dos pontos 12. a 16. da matéria de facto provada, relativo à utilização do veículo de matrícula 00-00-RE pelo Autor, e da necessidade do mesmo para a actividade da Divisão a que se encontrava afecto, teve o Tribunal em consideração as declarações da testemunha EE que, pela forma espontânea e clara como foram prestadas se reputam de credíveis.
De facto, explicou a testemunha em causa, que revelou ter conhecimento directo das dificuldades sentidas na organização do serviço derivado da falta do veículo em causa, pelas funções que exerce no Município, que a divisão de urbanismo, que, entre outras atribuições, fiscaliza as obras públicas e particulares no Município, teve de agendar, com mais dilação, as visitas às obras, por não ter outro veículo disponível.
No que se refere ao valor de aluguer diário de um veículo semelhante ao veículo de matrícula 00-00-RE, constante do ponto 17. da matéria de facto provada, teve o Tribunal em consideração o documento constante de fls. 18.
No que se refere aos pontos 18. a 20. da matéria de facto provada, atinentes à falta de seguro de responsabilidade civil obrigatória do veículo de matrícula 00-00-BF, registado em nome do Réu AA, teve o Tribunal em consideração a certidão junta aos autos a fls. 78».
Relativamente aos factos não comprovados, no que se refere ao valor comercial do veículo propriedade do Autor, constante dos pontos 2 e 3 da matéria de facto não provada, o Tribunal entendeu que «por não ter sido realizada qualquer prova, seja documental seja testemunhal nesse sentido, tendo o Fundo BB e a CC-Companhia de Seguros, S.A. se limitado a indicar o valor a que chegaram, com base no site HHTAX.
Ora, entende o Tribunal que tal valor de referência, realizado nas contestações e reforçado nas alegações, carecia de ser provado, como qualquer outro facto, sendo que as testemunhas questionadas sobre tal valor, como a testemunha DD, referiram não saber o valor do veículo, à data do acidente».
Como se pode extrair daquilo que se acaba de transcrever a Mmª Juiz «a quo» faz uma exteriorização dos fundamentos da decisão judicial e o juízo efectuado em primeira instância foi realizado de acordo com as regras da experiência, da lógica, da racionalidade, da probabilidade e da racionalidade.
O núcleo essencial mínimo de motivação demanda que esta seja objectiva e clara e, bem assim, se estruture num raciocínio suficientemente abrangente em relação à apreciação dos problemas fundamentais e necessários à justa decisão da lide[18]. Efectivamente, o exame crítico consiste na enumeração das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou por outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica exterior ao processo com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção[19].
E a sentença recorrida contém todos os elementos necessários à compreensão do sentido da decisão e o tribunal indicou os fundamentos suficientes para que através das regras da ciência, da lógica e da experiência necessários se efective o controlo da razoabilidade da convicção que incidiu sobre o julgamento do facto e a leitura daquela decisão é inequivocamente susceptível de convencer terceiros da correcção da mesma.
Deste modo, falece assim razão ao recorrente quando afirma que a decisão sobre a matéria de facto e, consequentemente, a sentença é nula por falta de fundamentação.
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IV. 4 – Da errada quantificação dos danos – nexo de causalidade:
São vários os pressupostos da responsabilidade civil por actos ilícitos, como se extrai do artigo 483º, nº1, do Código Civil:
a) o facto do agente ("um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma da conduta humana"[20]- que se pode traduzir numa acção ou omissão);
b) a ilicitude (ou antijuridicidade) que pode revestir a modalidade de violação de direito alheio (direito subjectivo) e a violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios;
c) o nexo de imputação do facto ao lesante ou culpa do agente, em sentido amplo, o que significa que a sua conduta merece a reprovação ou censura do direito e que pode revestir a forma de dolo ou negligência;
d) o dano ou prejuízo;
e) o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima.
A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, nº2, do Código Civil).
Atento o carácter perigoso da actividade de condução, aos condutores de veículos automóveis é exigível que cumpram estritamente as disposições legais reguladoras do trânsito e que não comprometam a segurança ou comodidade dos utentes das vias.
Consta da decisão recorrida que «consagra o Código da Estrada, na redacção dada pela Lei nº72/2013, de 03/09, no seu artigo 11º, nº2, que “os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer actos que sejam susceptíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança».
Por seu turno, estabelece o artigo 35º, nº1, do mesmo diploma legal, que «o condutor só pode efectuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direcção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito».
O artigo 46º, nº1, do referido diploma dispõe que «a marcha atrás só é permitida como manobra auxiliar ou de recurso e deve efectuar-se lentamente e no menor trajecto possível».
O artigo 47º, nº1, do Código da Estrada estipula que «sem prejuízo do disposto no nº2 do artigo 33º para o cruzamento de veículos, a marcha atrás é proibida:
a) Nas lombas;
b) Nas curvas, rotundas e cruzamentos ou entroncamentos de visibilidade reduzida;
c) Nas pontes, passagens de nível e túneis;
d) Onde quer que a visibilidade seja insuficiente ou que a via, pela sua largura ou outras características, seja inapropriada à realização da manobra;
e) Sempre que se verifique grande intensidade de trânsito».
No caso ora em apreço, verificou-se que o veículo conduzido pelo Réu realizou a manobra de marcha atrás, numa altura em que existia uma intensidade de trânsito (incluindo peões) e sem precaver a circunstância de ter um veículo (do Autor) atrás de si.
Deste modo, constata-se que o Réu infringiu, não só a norma constante do artigo 47º, nº1, alínea e), como a norma constante do artigo 35º, na medida em que a realizou de forma a colocar em perigo o veículo que ia imediatamente a seguir ao seu, sem actuar com a diligência que lhe era exigível».
Caso o Autor desenvolvesse a actividade de condução em respeito mínimo para com as regras estradais, o presente acidente não tinha ocorrido.
Da análise da matéria fáctica assente resulta que todos os referidos pressupostos impulsionadores da reparação fundada na responsabilidade civil por factos ilícitos se encontram preenchidos.
Ensina Gomes da Silva[21] que «elementos fundamentais da responsabilidade são o dano e a relação em que ele se encontra com o responsável. (...) A responsabilidade é, por conseguinte, a obrigação nascida de um prejuízo e tem por objecto a reparação deste. O intuito com que a lei o estabelece não é o de intimar os indivíduos nem o de reprimir os factos ilícitos: é apenas o de satisfazer a justiça comutativa, reparando danos causados. O prejuízo, por conseguinte, é o fulcro de toda a responsabilidade».
Para além daquilo que consta dos factos provados, como resultado daquilo que advém da audição da prova, chama-se à colação o depoimento da testemunha FF que afirma que o «Jeep subiu pelo carro», «duas rodas em cima de mim» e «está partido». A testemunha II também refere que o Jeep «subiu pelo nosso carro acima». Ou as palavras esclarecedoras de EE que evidenciou «o sinal das rodas do Jeep encostado ao cima do pára-brisas».
As fotografias juntas aos autos não permitem visionar totalmente os danos, mas é claro e inequívoco que a subida de uma viatura com as características idênticas àquela que era tripulada pelo Autor para cima de um veículo utilitário de menor dimensão tem a idoneidade de causar estragos como aqueles que estão compilados no orçamento junto aos autos. Deste modo, os danos referidos no ponto 10 dos factos provados são perfeitamente causais do acidente [serviço de bate chapas e de pintura, material de pintura, partes dianteiras e traseiras, carga de ar condicionado, guarda-lamas frente direito e esquerdo, pára-choques frente, grelha de entrada de ar, conjunto de vidro pára-brisas, grelha frontal, triângulos emblema Citroen, frisos farol, painel da frente, óptica completa direito e esquerda, jogo de escovas, capot, desempenar travessas da longarina da frente, desempenar pilar esquerdo junto ao vidro e desempenar tejadilho], sendo que, ao mesmo passo, como já se demonstrou, a conduta ilícita é imputável ao Réu condutor.
Na lição de Pereira Coelho [22] «por dano pode entender-se (...) o prejuízo real que o lesado sofreu in natura, em forma de destruição, subtracção ou deterioração de um certo bem corpóreo ou ideal».
Assim, defende-se que dano é «todo o prejuízo, desvantagem ou perda que é causada nos bens jurídicos, de carácter patrimonial ou não, de outrem»[23].
No respeitante aos danos patrimoniais o princípio fundamental que tutela esta matéria, é o da reposição da coisa no estado anterior à lesão, excepto se a restauração não for exequível ou se se revelar excessivamente onerosa para o devedor, por ser a forma mais genuína de reparação.
Postula Almeida e Costa que a restauração natural ou indemnização em forma específica dos interesses dos lesados é a forma mais perfeita de reparação. Desta sorte, apenas se apresenta inviável quando «não haja possibilidade material de reconduzir as coisas à situação exacta ou aproximada em que estariam se a lesão se não tivesse verificado; ou porque desse modo se não reparam integralmente os danos; ou ainda porque a ordem jurídica a não admite, designadamente por considerá-la demasiado onerosa para o devedor. Terá então de operar-se uma indemnização ou restituição por equivalente, traduzida na entrega de uma quantia em dinheiro que corresponda ao montante dos danos» [24] [25].
No cumprimento do disposto no artigo 562º do Código Civil, será obrigação dos responsáveis indemnizar os lesados pelos prejuízos ex­perimentados, de forma a recons­ti­tuir-lhes a situação que existiria se não hou­vesse ocorrido o evento danoso.
O artigo 563º do Código Civil determina que «a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão», pelo que, a obrigação de reparar o dano supõe a existência de um nexo causal entre o facto e o prejuízo.
A disposição desta norma legal, pondo a solução do problema na probabilidade de não ter havido prejuízo se não fosse a lesão, consagra a doutrina da causalidade adequada, mediante a qual determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, atendendo às circunstâncias do caso concreto conhecidas pelo agente, essa acção ou omissão se mostrava adequada à produção do referido prejuízo, com fortes probabilidades de tal evento se verificar.
Vem-se entendendo que, provindo a lesão de um facto ilícito, seja de acolher e seguir a formulação negativa, segundo a qual o facto que actuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a natureza geral e em face das regras de experiência comum, se mostrar indiferente para a verificação dano. Causalidade adequada essa que se refere – e não apenas ao facto ou dano isoladamente considerado – a todo o processo factual que, em concreto, conduziu ao dano[26].
E, assim, também não repugna e se aceita o valor orçamentado. No entanto, deve ter-se presente que, em certa medida, como a reparação ainda não foi efectuada, o valor indemnizatório arbitrado corresponde, na prática, à quantia máxima a atribuir ao Município e o respectivo pagamento está dependente da apresentação da competente factura, sem prejuízo da parte passiva se responsabilizar directamente pela reparação do veículo automóvel.
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IV.5 – Da privação de uso de veículo:
Em sede de pedido, o Município reclama o pagamento de uma indemnização pela privação de uso contabilizada até à presente data, à razão de €30 (trinta euros) por dia.
A douta sentença condenou os Réus AA e Fundo BBa pagar ao Autor a quantia de €2.912,00 (dois mil novecentos e doze), referente à reparação pelo não uso do veículo, desde a data do acidente até à data de hoje (19/01/2015), acrescido de €7,00 diários, até ao trânsito em julgado da presente decisão.
Nas suas conclusões de recurso, o recorrente refere que «a indisponibilidade do veículo em causa foi suprida pelo recurso a outras viaturas, e até mesmo com a aquisição de uma nova viatura, logo, a privação do uso daquela não implicou para o recorrido um dano em termos de lucro cessante.
Ora, a simples privação do uso de um veículo, desacompanhada da demonstração de outros danos - seja na modalidade de lucros cessantes (frustração de ganhos), seja na de danos emergentes (despesas acrescidas justificadas pela impossibilidade de utilização) - não é susceptível de fundar a obrigação de indemnizar».
A propósito do dano como pressuposto da responsabilidade civil refere Menezes Leitão [27] que entre os danos patrimoniais se inclui a privação do uso das coisas, como sucede no caso de alguém ser privado da utilização de um veículo seu, concretizando que o «simples uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano».
Também Abrantes Geraldes sustenta que se «a privação do uso do veículo durante um determinado período originou a perda das utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar e se essa perda não foi reparada mediante a forma natural de reconstituição, impõe-se que o responsável compense o lesado na medida equivalente»[28]. Salientando que «a falta de prova de despesas causalmente realizadas depois do sinistro não determina necessariamente a ausência de prejuízos, os quais não deixam de ser representados pelo desequilíbrio de natureza material correspondente à diferença entre a situação que existiria e aquela que é possível verificar depois de se constatar a efectiva privação do uso de um bem»[29]. Concluindo, designadamente, que «mesmo quando se trate de veículo em relação ao qual inexistia prova de qualquer utilização lucrativa, não está afastada a ressarcibilidade dos danos, tendo em conta a mera indisponibilidade do bem, sem embargo de, quanto aos lucros cessantes, se apurar que a paralisação nenhum prejuízo relevante determinou, designadamente, por terem sido utilizadas outras alternativas menos onerosas e com semelhante comodidade, ou face à constatação de que o veículo não era habitualmente utilizado»[30].
Uma corrente jurisprudencial firma entendimento[31] [32] que «a privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira o direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito e que o cálculo da correspondente indemnização (…) há-de ser efectuado com base na equidade, por não ser possível avaliar “o valor exacto dos danos” (nº 3 do artigo 566º do Código Civil)».
Em contraponto existe jurisprudência[33] que perfilha a tese que «a mera privação do uso de um veículo, independentemente da demonstração de factos reveladores de um dano específico emergente ou de um lucro cessante, é insusceptível de fundar a obrigação de indemnização, no quadro da responsabilidade civil».
O aresto anteriormente citado [de 08/05/2013] acaba por realizar a síntese das posições jurisprudenciais mais relevantes, esclarecendo que «para uns, o dano da mera privação do uso não é indemnizável; para que a privação seja ressarcível, terá de fazer-se prova do dano concreto e efectivo, isto é, da existência de prejuízos decorrentes directamente da não utilização do bem; para outros, a simples privação do uso, só por si, constitui um dano indemnizável, mesmo que nada se prove a respeito da utilização ou destino que seria dado ao bem. Ainda mais recentemente, surgiu uma tese diferente, que pode considerar-se intermédia: se, por um lado, afirma que não basta a simples privação do uso do bem, também não exige a prova de danos concretos e efectivos; será essencial a alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efectivo de proceder à sua utilização».
Entendemos que a privação do uso injustificado de veículo constitui um ilícito que viola o direito de propriedade e é susceptível de gerar a obrigação de indemnizar. Porém, a avaliação do dano deve ser feita em função de parâmetros de necessidade, oportunidade e adequação. Nesta linha surge jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[34], que sustenta que «podem, porém, configurar-se situações da vida real em que o titular não tenha qualquer interesse em usar a coisa, não pretende retirar dela as utilidades ou vantagens que a coisa lhe podia proporcionar (o que até constitui uma faculdade inerente ao direito real de propriedade), ou pura e simplesmente, não usa a coisa.
Em situações como estas, se o titular se não aproveita das utilidades que o uso normal da coisa lhe proporciona, também não poderá falar-se de prejuízo ou dano decorrente da privação ilícita do uso, visto que, na circunstância, não existe uso, e, não havendo dano, não há, evidentemente, obrigação de indemnizar.
Por isso, competindo ao lesado provar o dano ou prejuízo que quer ver indemnizado, não chega alegar e provar a privação da coisa, mostrando-se ainda necessário alegar e provar que usava normalmente a coisa, isto é, que dela retirava as utilidades (ou algumas delas) que lhe são próprios e que deixou de poder usá-la, em virtude da privação ilícita (…)
Aliás, a prova de tal circunstancialismo de facto (isto é, do uso normal da coisa), em muitos casos concretos poderá advir de simples presunções naturais ou judiciais a retirar pelas instâncias da factualidade envolvente».
O conspecto factual apurado evidencia que o Autor, Município, utilizava o veículo de matrícula 00-00-RE diariamente na prossecução das suas actividades, nele se efectuando deslocações dentro e fora do concelho (ponto 12).
O veículo em causa estava afecto à Divisão de Urbanismo, Ambiente, Qualidade e Intervenção - DUAQI - e era utilizado, entre outros, pela comissão de vistorias para a vistoria técnica a prédios, pelo fiscal de obras e pelo chefe de divisão no âmbito das suas funções (ponto 13).
Esse veículo afecto à dita divisão era utilizado diariamente pelos funcionários do Município adstritos à fiscalização das obras públicas e particulares (ponto 14).
Alguns dos serviços da DUAQI deixaram de ser realizados com a brevidade com que eram realizados, atenta a falta do veículo em causa, com prejuízo para o Município e para o desenvolvimento das suas atribuições ao nível da fiscalização das obras públicas e particulares, provocando um atraso na tramitação interna dos respectivos processos e embaraços na realização dos serviços externos de fiscalização (ponto 15).
Muitas vezes, pela inexistência de veículo, teve o Autor de proceder a agendamento para a utilização alternada de outros veículos de outras divisões do Município para que a DUAQI ao nível de fiscalizações não parasse definitivamente, causando os prejuízos daí decorrentes (ponto 16).
O Autor logrou provar que a falta da referida viatura teve um impacto negativo na organização das actividades de fiscalização urbanística desenvolvidas pelo Município, tal como decorre da audição dos depoimentos de EE [teve de recorrer aos veículos de «transporte de crianças» e «deixou de fazer os serviços»] e de FF [os serviços eram executados «sem a brevidade necessária» e «não há disponibilidade de serviços»].
Tal como decorre dos factos acima transcritos e da respectiva fundamentação, estas testemunhas explicaram as necessidades do serviço e indicaram as soluções encontradas para superar a ausência do veículo no normal funcionamento da autarquia, com particular relevo na divisão de Urbanismo, Ambiente, Qualidade e Intervenção.
Assim, tal como na sentença recorrida, concluímos que é de fixar uma indemnização pelo dano de privação do uso. Também se sufraga a posição que não é de atender ao valor do aluguer de uma viatura [o aluguer de um veículo de idêntica categoria do veículo propriedade do Autor ronda os €30,00/dia (ponto 19)], dado que, como ali se afirma, «o Autor não alegou nem provou qualquer quantia concreta de despesa que tenha efectuado».
Deste modo, na esteira do sentenciado, «há que ter em consideração, por um lado, (…) o atraso na prossecução dos objectivos do Município, mas, por outro lado, a circunstância de o Município ter outros veículos, dos quais se serviu para fazer face à falta do veículo acidentado».
Na reparação do dano decorrente da privação de uso é de recorrer à equidade para se fixar o valor indemnizatório[35] [36]. Seguindo a lição de Claus Canaris[37] o direito equitativo não se compadece com uma construção apriorística. Antes emerge do “facto concreto”, como elemento da própria compreensão do direito [rectius, um direito de resultado], em que releva a força criativa da jurisprudência, verdadeira law in action, com o imprescindível recurso ao “pensamento tópico” que irá presidir à solução dos concretos problemas da vida.
Como afiançam Pires de Lima e Antunes Varela[38] são «razões de conveniência, de oportunidade, principalmente de justiça concreta, em que a equidade se funda».
A equidade é assim a justiça do caso concreto, flexível, humana, independentemente de critérios normativos fixados na lei, devendo, o julgador ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida[39] [40].
Julgar segundo a equidade, não é todavia, decidir arbitrariamente, mas é, assim, decidir ex aequo et bono. Desta sorte, tendo em conta a justiça do caso concreto, analisada à luz dos parâmetros atrás enunciados e dos factos que foram apurados, a decisão sub judice é justa, equilibrada e estão presentes critérios de normalidade social que permitem ressarcir «a natureza e a extensão dos danos»[41].
Para terminar, os parâmetros avaliativos que conduziram ao arbitramento de uma indemnização são justos e a equação indemnizatória por danos decorrentes da privação do uso de veículo também não merece censura.
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas a cargo do apelante ao abrigo do disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 20/10/2016

José Manuel Galo Tomé de Carvalho

Mário Branco Coelho

Isabel de Matos Peixoto Imaginário


I-
II- __________________________________________________
III- [1] As conclusões não continham o ponto 9).
IV- [2] O recorrente deve terminar as suas alegações de recurso com conclusões sintéticas (onde indicará os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida), in Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/06/2013, in www.dgsi.pt.
V- [3] Neste sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12/03/2002, in CJ STJ, ano X, tomo II, pág. 153 e de 15/05/2008 e 02/02/2010, in www.dgsi.pt.
VI- [4] Neste sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27/11/2007 e de 16/09/2008.
VII- [5] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra 2016, pág. 145.
VIII- [6] Neste sentido, designadamente, os acórdãos do STJ de 09/07/2002, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, ano X, tomo 2, pág. 153, e de 13/01/2005 ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt. Naquele primeiro refere-se: «…a incorrecta gravação áudio ou vídeo que seja efectuada traduz a omissão de um acto que a lei prescreve – já que não teria sido feito em devidos termos o que, tendo de ser feito só preenche a sua função se o for correctamente – e que pode influir no exame ou decisão da causa – uma vez que como se viu condiciona a reacção que as partes podem dirigir contra a decisão proferida sobre a matéria de facto e a consequente possibilidade de defesa dos seus pontos de vista nessa matéria…; reconduz-se, por isso, às nulidades previstas no art. 201º, nº 1.»
IX- [7] Comentário ao Código do Processo Civil, vol. II, pág. 507.
X- [8] Acórdão nº13/2014, in D.R., 2ª série, de 23/09/2014, pág. 5042 e seguintes.
XI- [9] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3ª edição, 2016, págs. 136-145.
XII- [10] Obra e local citados.
XIII- [11] Tanto no computador pessoal como em aparelho áudio, a fim de despistar o eventual vício de gravação.
XIV- [12] Acórdão de 14/07/2016, in www.dgsi.pt.
XV-
XVI- [13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/07/2016, in www.dgsi.pt
XVII- [14] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/06/2010, in www.dgsi.pt.
XVIII- [15] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/09/2010, in www.dgsi.pt com a seguinte conclusão «a fundamentação da sua convicção quanto aos factos, sujeita à regra da livre apreciação, o julgador deve limitar-se a indicar os elementos que permitam convencer da bondade da sua razão de ciência, não tendo de exaurir, e deixar expostos, todos os eventos processuais não anómalos, nem tecer considerações sobre a “impressão” que lhe causou o depoimento de uma testemunha contraditada».
XIX- [16] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/07/2006, in www.dgsi.pt.
XX- [17] José Manuel Tomé de Carvalho, Breves palavras sobre a fundamentação da matéria de facto no âmbito da decisão final penal no ordenamento jurídico português, Julgar 21, Setembro-Dezembro 2013, pág. 84.
XXI- [18] José Manuel Tomé de Carvalho, obra citada, pág. 83.
XXII- [19] José Manuel Tomé de Carvalho, obra citada, pág. 84.
XXIII- [20] Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", 4ª edição, vol. I, pág. 447.
XXIV- [21] O dever de prestar e o dever de indemnizar, I, pág. 245
XXV- [22] O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil, Almedina, pág. 250.
XXVI- [23] Vaz Serra, BMJ nº84, pág. 8.
XXVII- [24] Direito das Obrigações, 5ª Ed., pág. 637 e seguintes.
XXVIII- [25] No mesmo sentido: Pessoa Jorge, Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, 1995, Almedina, pág. 404-405.
XXIX- [26] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/06/2006, in CJ STJ XIV-II-120.
XXX- [27] Direito das Obrigações, Almedina, vol. I, 5ª edição, pág. 333.
XXXI- [28] Indemnização do Dano da Privação do Uso, Almedina, Coimbra 2001, pág. 34.
XXXII- [29] António Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 47.
XXXIII- [30] Autor e obra citadas, pág. 54.
XXXIV- [31] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/05/2013, in www.dgsi.pt.
XXXV- [32] No mesmo sentido os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05/07/2007 e de 10/09/2009, in www.dgsi.pt.
XXXVI- [33] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/11/2009, in www.dgsi.pt.
XXXVII- [34] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/11/2011, in www.dgsi.pt.
XXXVIII- [35] Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/07/2014 e de 27/03/2013, in www.dgsi.pt.
XXXIX- [36] A este propósito, pode consultar-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/2011, in www.dgsi.pt: a indemnização por privação do uso, deve corresponder, regra geral, ao custo do aluguer de uma viatura de idênticas características, mesmo que o lesado não tenha recorrido ao aluguer de um veículo de substituição, uma vez que bem pode acontecer que não tenha possibilidades económicas, operando-se o ressarcimento, em última análise, segundo critérios de equidade (artigo 566º, nº3, do Código Civil).
XL- [37] O Pensamento Sistemático e o Conceito de Sistema na Ciência do Direito.
XLI- [38] Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição revista e actualizada (com a colaboração de Henrique Mesquita), Coimbra Editora, Coimbra 2010, pág. 56.
XLII- [39] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/98, in CJ STJ, Ano VI, I, 6.
XLIII- [40] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, pág. 474.
XLIV- [41] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16/12/2014, in www.dgsi.pt.