Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
704/14.0TBTNV-A.E1
Relator: VÍTOR SEQUINHO
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
REQUISITOS
Data do Acordão: 01/31/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Deverá ser liminarmente indeferido, nos termos do no n.º 1 do artigo 699.º do CPC, um recurso de revisão interposto ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 696.º do mesmo Código, se for, desde logo, evidente a inexistência, sequer, de alguma divergência entre o conteúdo da sentença revidenda e o dos novos elementos apresentados pelo recorrente.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 704/14.0TBTNV-A.E1

Relatório


Ao abrigo do disposto na al. c) do artigo 696.º do CPC, (…) interpôs, contra (…) e (…), recurso extraordinário de revisão da sentença proferida no processo principal, pedindo a revogação desta última.

O recorrente alegou, em síntese, o seguinte:

- Na sentença revidenda, foi julgado que os recorridos são os únicos proprietários do veículo automóvel com a matrícula 83-(…)-78, tendo, em consequência, o recorrente sido condenado a entregar-lhes este último;

- Nessa sentença, foi julgado provado que o veículo fora furtado aos recorridos;

- Posteriormente, foi proferida sentença que condenou o filho dos recorridos pela prática de um crime de simulação de crime p. e p. pelo artigo 366.º, n.º 1, do Código Penal;

- Resulta da matéria de facto provada no referido processo criminal que o veículo é propriedade, não dos recorridos, mas do filho destes;

- O veículo foi alienado pelo filho dos recorrentes e não furtado;

- Pelo que é possível concluir que o mesmo veículo, através de sucessivos negócios, foi validamente adquirido pelo recorrente;

- Em consequência da descoberta do verdadeiro proprietário do veículo, os recorridos eram parte ilegítima na acção em que foi proferida a sentença revidenda;

- Ao tempo em que correu a acção na qual foi proferida a sentença revidenda, o recorrente desconhecia os factos que foram apurados no processo criminal.

O recurso foi liminarmente indeferido, nos termos do artigo 699.º, n.º 1, do CPC, com fundamentação que assim se sintetiza:

- Uma sentença não pode ser considerada um documento para o efeito previsto na al. c) do artigo 696.º do CPC;

- No processo criminal, não ficou provado que o proprietário do veículo fosse o filho dos recorridos.

Desta decisão foi interposto recurso de apelação, tendo sido formuladas as seguintes conclusões:

a) Nos presentes autos foi proferida sentença, transitada em julgado em 24.04.2015, na qual foi condenado o aqui recorrente nos pedidos formulados pelos recorridos.

b) O aqui recorrente interpôs recurso extraordinário de revisão da referida sentença, tendo sido proferida pelo tribunal a quo a douta decisão de que agora se recorre, de não admissão do recurso extraordinário, por se julgar não existir fundamento para a revisão da sentença proferida.

c) O recorrente teve conhecimento, após o dia 26.06.2018, de que foi proferida decisão final no processo comum n.º 91/14.7JDLSB, que correu termos no Juiz 4 do Juízo Local Criminal de Loures – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, transitada em julgado a 19.03.2018, e que a qual poderia ter relevância e influência nos presentes autos.

d) Os factos constantes da referida sentença penal eram de total desconhecimento do recorrente, pelo que nunca os poderia ter invocado em momento anterior.

e) Os quais, só por si, são suficientes para modificar em sentido mais favorável a decisão tomada em relação ao ora recorrente, conforme o disposto na alínea c) do artigo 696.º do Código de Processo Civil.

f) No entendimento do Tribunal a quo, a redita sentença penal com que se instruiu o recurso extraordinário de revisão não pode servir de fundamento, por não poder ser qualificada como “documento” para efeitos do disposto na alínea c) do artigo 696.º do Código de Processo Civil.

g) Na decisão sob censura, o tribunal a quo considerou, ainda, que a apresentação de documentos com relevância para a causa não pode estar dependente da conjugação com outros elementos de prova, produzidos ou a produzir, pois há-de ser um documento decisivo para sustentar o recurso extraordinário de revisão.

h) Julgando, assim, que não se mostra preenchido o fundamento do recurso extraordinário de revisão previsto na alínea c) do artigo 696.º do Código de Processo Civil, bem como julgou não se verificarem quaisquer outros fundamentos previstos no artigo 696.º.

i) E que por esse motivo não existe fundamento para a admissão do recurso extraordinário de revisão.

j) Na mesma decisão aqui sob censura, considerou-se que ainda que mesmo que se entenda que a sentença judicial é um documento para efeito do disposto na al. c) do artigo 696º, pelo facto da recorrente não ter impugnado os factos nos presentes autos, não seria admissível o recurso.

k) Em nossa modesta opinião, é a sentença muito mais que um acto jurídico, mas também em si um documento, o qual não se restringe a uma conclusão com decisão final.

l) A sentença é composta por uma fundamentação de facto e de direito, na primeira são declarados os factos que se considera provados e não provados, assim como reproduz os meios de prova que estiveram na base da análise crítica e que foram decisivos na formação da convicção.

m) Na fundamentação de direito são interpretadas e aplicadas as normas jurídicas em atenção ao caso sub judice, conforme o disposto no artigo 607.º do Código de Processo Civil.

n) Salvo melhor opinião, o conceito de documento deve integrar para efeitos do artigo 696.º, al. c), do Código de Processo Civil, a sentença, consideramos nós que aquela não deixa de representar factos e até indícios, corporizando uma declaração de verdade ou ciência, tais como as declarações testemunhais as quais representam um estado de coisas ou uma declaração de vontade, encontrando-se aquelas reproduzidas na fundamentação de facto da sentença, integrando pois o conceito de documento, conforme disposto no art.º 362º do Código Civil.

o) O documento apresentado tem a virtualidade de preencher cumulativamente o requisito da novidade e da suficiência.

p) A fundamentação de facto e de direito da sentença penal permitiu conhecer factos novos, que eram ignorados pelo recorrente ao tempo da apresentação da sua contestação, encontrando-se impossibilitado pela falta de conhecimento de alegar a falta de legitimidade dos recorridos em virtude daqueles não ser proprietários do veículo 83-(…)-78, e de ilidir a presunção que resulta do registo automóvel, excepção dilatória de falta de legitimidade que invocou e que é de conhecimento oficioso.

q) Por ser aquele documento/sentença suficiente, não carece de meios complementares para que seja liminarmente admitido o recurso de revisão.

r) Existe, pois, fundamento para admitir o recurso extraordinário de revisão de acordo com uma das situações elencadas no referido artigo 696.º, devendo revogar-se a decisão contestada;

s) Ao decidir do modo que decidiu, o tribunal recorrido, salvo o devido respeito, interpretou erradamente e/ou violou, conjugadamente o disposto nos artigos 696.º, al. c), do Código de Processo Civil, 362.º do Código Civil e 607.º do Código de Processo Civil.

t) Devendo a referida decisão penal ser considerada documento para efeito do disposto na al. c) do art.º 696.º do Código de Processo Civil.

u) Resulta, ainda, da douta sentença, também com o devido respeito, a violação do disposto nos artigos 577.º, alínea e) e 578.º do Código de Processo Civil.

v) Pois, a nosso ver não conheceu da ilegitimidade dos recorridos nos presentes autos, por resultarem dos factos provados do documento/sentença, não serem aqueles os verdadeiros proprietários do veículo automóvel 83-(...)-78.

w) Devendo-se concluir pela admissão do recurso de extraordinário de revisão interposto, por se verificarem fundamentos para a revisão da sentença proferida nestes autos.

O recurso de apelação foi admitido.


Objecto do recurso


Tendo em conta as conclusões das alegações de recurso, que definem o objecto deste e delimitam o âmbito da intervenção do tribunal de recurso, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, a única questão a resolver consiste em saber se o presente recurso de revisão deve ser liminarmente admitido com fundamento no disposto na alínea c) do artigo 696.º do CPC.

Factos relevantes para a decisão do recurso


Os factos relevantes para a decisão do recurso, evidenciados pelos autos, são os seguintes:

1 – Na sentença revidenda, transitada em julgado em 24.04.2015, foram julgados provados, nomeadamente, os seguintes factos:

- Em Dezembro de 2011, os autores, ora recorridos, compraram o veículo com a matrícula 83-(…)-78, tendo obtido, para esse efeito, financiamento bancário;

- Para garantia do seu crédito, o banco mutuante fez registar hipoteca sobre o veículo;

- O registo da aquisição do direito de propriedade sobre o veículo a favor do autor, bem como o registo da hipoteca, ficaram a constar do respectivo certificado de matrícula;

- O veículo foi, posteriormente, furtado;

- A última pessoa a conduzir o veículo antes do furto foi (…), filho dos autores;

- Posteriormente ao furto, os autores tomaram conhecimento de que havia sido registada a aquisição do direito de propriedade sobre o veículo a favor do réu, ora recorrente;

- Tal registo foi feito através da utilização de documento com falsificação da assinatura do autor, o que levou este último a apresentar queixa criminal.

2 – O dispositivo da sentença referida em 1 tem o seguinte teor:

“Pelo exposto, julga-se a acção procedente e, consequentemente:

a) Declara-se que os autores não venderam o veículo (…);

b) Declara-se que os autores são os únicos proprietários do veículo (…);

c) Condena-se o réu a entregar aos autores o veículo (…);

d) Ordena-se o cancelamento do registo de aquisição da viatura (…) a favor do réu (…).”

3 – Através de sentença proferida no processo comum singular com o n.º 91/14.7.JDLSB, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local Criminal de Loures, transitada em julgado em 19.03.2018, (…), filho dos recorridos, foi condenado em pena de multa pela prática de um crime de simulação de crime p. e p. pelo artigo 366.º, n.º 1, do Código Penal.

4 – No processo referido em 3, foram julgados provados, nomeadamente, os seguintes factos:

- O arguido manifestou intenção de adquirir o veículo 83-(…)-78 à “Car (…)”;

- Precisando de um empréstimo para a compra do veículo e sabendo que o mesmo não lhe seria concedido, o arguido solicitou ao seu pai, (…), que o veículo e o crédito associado para a respectiva aquisição ficassem em nome deste;

- (…) acedeu ao pedido do arguido, ficando acordado entre os dois que seria o segundo a pagar as prestações associadas ao empréstimo;

- A pedido do arguido, em Dezembro de 2011, (…) assinou o contrato de mútuo n.º (…), no âmbito do qual a aquisição da viatura era financiada pelo Banco (…);

- O Banco entregou à “Car …” o valor respeitante à aquisição do veículo e custeou as despesas relacionadas com o registo do mesmo e demais encargos, no valor total de € 33.500,00, tendo o arguido, em contrapartida, de efectuar o pagamento mensal da prestação de € 468,44, através de débito directo na conta de que o pai era titular, onde o mesmo deveria depositar a referida quantia para o efeito;

- Para garantia do pagamento das prestações, o Banco registou uma hipoteca em seu nome sobre o referido veículo;

- No dia 24.12.2011, o veículo foi entregue ao arguido, que do mesmo “se apoderou”;

- Entre 24.01.2012 (data do vencimento da primeira prestação) e 08.05.2017 (data da dedução da acusação), o arguido efectuou o pagamento de 16 prestações, no valor total de € 7.495,04, por transferência bancária;

- Antes do dia 24.01.2012, foi cancelado o débito directo do valor das prestações associadas à aquisição do veículo da mencionada conta bancária;

- No dia 11.10.2012, pessoa de identidade não apurada conseguiu cancelar o registo da hipoteca a favor do Banco, através da apresentação de documentos falsos;

- O veículo acabou por ser registado em nome de (…) no dia 31.07.2013;

- De forma a evitar o pagamento das prestações do contrato de mútuo em causa e accionar o seguro associado, junto da seguradora (…), o arguido disse a seu pai que o veículo havia sido furtado, da Rua (…), Arroja, onde se encontrava parqueada, entre os dias 12 e 16 de Março de 2013;

- No dia 16.03.2013, acreditando nas palavras do arguido, o pai deste apresentou queixa-crime pela subtracção do veículo;

- Em Março de 2013, seguindo as indicações do arguido, o pai deste comunicou o furto do veículo à seguradora “(…) Portugal”, esperando que a mesma assegurasse o pagamento das prestações associadas ao contrato de mútuo mencionado;

- A seguradora não aceitou o sinistro, recusando assumir o pagamento do valor mutuado;

- O veículo não foi furtado.


Fundamentação


Como acima referimos, o presente recurso de revisão foi interposto ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 696.º do CPC. Resulta desta norma que o recurso de revisão é admissível quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

O recorrente considera que resulta da sentença proferida no processo criminal acima identificado que o veículo dos autos é propriedade do filho dos recorridos e que, consequentemente, há fundamento para revogar a sentença revidenda, que julgou que eram os recorridos os proprietários do mesmo veículo.

Porém, este entendimento do recorrente não encontra, desde logo, sustentação no texto da sentença invocada como fundamento do recurso de revisão. Nesta sentença, não foi julgado provado que o proprietário do veículo fosse o arguido, filho dos recorridos. Ao invés, ficou provado que o veículo pertencia ao recorrido (…). O filho deste queria comprar o veículo mas, por precisar de um empréstimo para pagar o preço deste e saber que o mesmo não lhe seria concedido, pediu ao recorrido para o mesmo veículo ficar “em seu nome”. O recorrido (…) acedeu a este pedido e comprou ele próprio o veículo, assumindo também a qualidade de mutuário, embora, quanto a este último contrato, tivesse ficado acordado, entre ele e o seu filho (ou seja, no âmbito das suas relações internas, estranhas à relação contratual entre mutuante e mutuário), que seria este último a pagar as prestações acordadas com o mutuante. Portanto, é fora de dúvida que, segundo a sentença proferida no processo criminal, foi o recorrido (…) quem adquiriu o direito de propriedade sobre o veículo, embora tendo em vista a utilização deste último pelo seu filho. É esse o significado técnico-jurídico de o veículo ficar “em nome” do recorrido, que foi a terminologia usada na sentença criminal apesar corresponder à linguagem vulgar. Tanto assim foi que, quando se tratou de apresentar queixa criminal e de comunicar o hipotético furto à seguradora, foi o recorrido (…), não o seu filho, quem teve de o fazer, como também resulta da sentença criminal.

Sendo assim, tem inteira justificação o indeferimento liminar do recurso de revisão, nos termos do n.º 1 do artigo 699.º do CPC. Logo perante o requerimento de interposição do recurso, é evidente a inexistência, sequer, de alguma divergência entre o conteúdo da sentença revidenda e os novos elementos apresentados pelo recorrente no que concerne à titularidade do direito de propriedade sobre o veículo, pelo que igualmente evidente é a ausência de fundamento para a pretendida revisão.

Flui do exposto que, sem necessidade de entrar, sequer, na análise da questão de saber se uma sentença pode ser considerada um documento para o efeito previsto na al. c) do artigo 696.º do CPC, podemos, desde já, concluir pela improcedência do recurso de apelação.


Sumário


Deverá ser liminarmente indeferido, nos termos do no n.º 1 do artigo 699.º do CPC, um recurso de revisão interposto ao abrigo do disposto na al. c) do artigo 696.º do mesmo código, se for, desde logo, evidente a inexistência, sequer, de alguma divergência entre o conteúdo da sentença revidenda e o dos novos elementos apresentados pelo recorrente.

Decisão

Acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
*
Évora, 31 de Janeiro de 2019
Vítor Sequinho dos Santos (relator)
José Manuel Lopes Barata
Maria da Conceição Ferreira