Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3996/16.7T8STB.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA PARA O TRABALHO HABITUAL
TRABALHO HABITUAL
Data do Acordão: 09/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: I – A incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH) é atribuível sempre que o sinistrado, em consequência do acidente de trabalho, não possa retomar a execução do conjunto de funções habitualmente exercidas, no âmbito do posto de trabalho que ocupa no contexto do contrato de trabalho que celebrou e pelas quais é remunerado.
II – Está afetada de IPATH, a sinistrada que, aquando da ocorrência do acidente, exercia funções de médica anestesiologista em Hospital, que consistiam na execução de procedimentos anestésicos, na fase cirúrgica e pós-cirúrgica, na emergência e na unidade de cuidados intensivos do hospital e que, devido às sequelas decorrentes do acidente de trabalho sofrido, não pode retomar o exercício de tais funções.
III – A aptidão para realizar consultas de anestesiologia, (função que não integrava o sue trabalho habitual), enquadra-se na capacidade residual da sinistrada, que lhe permite exercer outras funções no Centro Hospitalar, E.P.E.
(Sumário da relatora)
Decisão Texto Integral: P.3996/16.7T8STB.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

1. Relatório
Na presente ação especial emergente de acidente de trabalho, em que é sinistrada BB e entidade responsável Companhia de Seguros …, S.A. [atualmente, “CC, S.A.”], frustrada a conciliação tentada na fase conciliatória do processo, por a seguradora responsável ter discordado da incapacidade fixada pelo perito do Gabinete Médico-Legal (GML), deu-se início à fase contenciosa, mediante requerimento para a realização de exame por junta médica, apresentado pela seguradora.
Realizada a perícia médica colegial e obtidos os esclarecimentos que se julgaram necessários, nomeadamente parecer técnico do Instituto do Emprego e Formação profissional (IEFP), foi proferida sentença com o dispositivo que se transcreve, na parte que aqui interessa:
«Destarte, julgo a ação procedente e em conformidade:
1) Condeno a Ré “Companhia de Seguros CC, Sa", a pagar à A. BB, nascida a …-…-1949, com efeitos a partir de 26-05-2016, a pensão anual e vitalícia de € 64.152,80 (sessenta e quatro mil cento e cinquenta e dois euros e oitenta cêntimos), a qual atualizará automática e imediatamente, nos termos do art. 8.º n.º 1 do DL 142/99, de 30 de Abril;
2) A referida pensão anual e vitalícia será paga, adiantada e mensalmente, até ao 3.º dia de cada mês, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, acrescendo os subsídios de férias e de Natal, no valor cada um de 1/14 da pensão anual, pagos, respetivamente, nos meses de Maio e de Novembro – art. 51.º n.ºs 1 e 2 do DL 143/99, de 30 de Abril.
3) Pagará a Ré, ainda, juros de mora, à taxa do art. 559.º n.º 1 do CCivil, desde o momento em que deveria ter pago cada uma das prestações já vencidas e até integral pagamento.
4) Condena a Ré Seguradora a pagar à A. BB, nascida a …-…-1949, por uma única vez, a quantia de € 4.386,05 (quatro mil trezentos e oitenta e seis euros e zero cinco cêntimos), a título de subsídio de elevada incapacidade permanente, acrescida de juros de mora, à taxa do art. 559.º n.º 1 do CCivil, desde 26-05-2016 e até integral pagamento.»

Não se conformando com o decidido, veio a entidade responsável interpor recurso, arguindo, expressa e separadamente, a nulidade da sentença, e finalizando as suas alegações de recurso, com a seguinte síntese conclusiva:
«A. A Recorrente interpõe o presente por i) entender que a sentença a quo enferma de nulidade por falta de fundamentação; ii) errada seleção dos factos e iii) errada aplicação do direito.
Quanto à nulidade invocada,
B. A sentença do tribunal a quo não contém fundamentação relativa à atribuição de IPATH, pese embora tal questão tenha sido suscitada pela Recorrente nos autos.
Quanto à decisão da matéria de facto,
C. A sentença não selecionou os factos relevantes para a atribuição de IPATH, pelo que, conforme se apurou, deverá ser acrescentada a seguinte matéria assente:
“A Autora está apta ao desempenho da atividade de consultas de anestesiologia”
Quanto à atribuição da IPATH,
D. Integrada a matéria relevante, terá o tribunal de concluir que a Recorrida não está impossibilitada, de forma absoluta (100%), de realizar o seu trabalho habitual/profissão.
E. Por conseguinte, não existe fundamento para a atribuição à Recorrida da IPATH, devendo, em consequência, ser revogada parcialmente a sentença do Tribunal a quo na parte em que condena a Recorrente no pagamento do subsídio por elevada incapacidade.
Quanto ao cálculo do valor da pensão anual vitalícia,
F. O cálculo do valor da pensão anual e vitalícia é determinado de acordo com as regras definidas no artigo 48.º, n.º 3, al. c) da Lei 98/2009, de 4 de Setembro (e não da revogada Lei n.º 100/97 indicada na sentença a quo), pelo que é aplicável o seguinte cálculo na determinação do valor da pensão: € 114.203,72 (retribuição garantida) x 70% x 30,87% (IPP) = € 24.678,28.
Nestes termos, e nos mais de Direito, deverá ser julgado procedente o presente recurso, sendo reformulada a fundamentação e a decisão da sentença do tribunal a quo, assim se fazendo a costumada Justiça!»
Contra-alegou a sinistrada propugnando pela improcedência quer da arguida nulidade da sentença, quer do recurso interposto.
O Meritíssimo Juiz a quo proferiu despacho, considerando não se verificar a nulidade invocada.
Admitiu o recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo, por ter sido prestada caução pela recorrente.
Tendo o processo subido ao tribunal da Relação, foi observado o preceituado no n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, pugnando pela improcedência da arguida nulidade da sentença e do recurso.
Não foi oferecida resposta a tal parecer.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil aplicáveis ex vi do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, são as seguintes as questões suscitadas no recurso, que importa analisar e conhecer:
1.ª Nulidade da sentença;
2.ª Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
3.ª Errada aplicação da lei relativamente à IPATH;
4.ª Errada aplicação da lei no cálculo do valor da pensão anual e vitalícia.
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III. Matéria de Facto
O tribunal de 1.ª instância decidiu a matéria de facto, nos seguintes termos:
a) A sinistrada BB, nascida a …-…-1949, foi vítima de um acidente, em 14-12-2015, em …, no local e durante o tempo de trabalho de Médica no “Centro Hospitalar …, EPE”, em execução do contrato de trabalho com esta celebrado;
b) Em exame médico realizado no GML, o perito médico reconheceu ao sinistrado a IPP de 27,8025% a partir da data da alta da seguradora ocorrida a 25-05-2016;
c) Em exame médico realizado pela Junta Médica, do qual resultaram as lesões descritas nos autos, que lhe determinaram uma IPP=30,87% com IPATH;
d) Nos esclarecimentos prestados pela Junta Médica, do qual resultaram que o sinistrado se encontra limitado para o seu trabalho habitual na proporção da IPP proposta.
e) O acidente consistiu em ter sofrido queda no serviço, com traumatismo do ombro esquerdo, a que foi operada apresentando como sequelas rigidez do mesmo.
f) À data do acidente o sinistrado auferia a remuneração base de € 4.560,21 x 14 meses + subsídio de alimentação de € 93,94 x 11 meses + outras remunerações de € 4.110,62 x 12 meses a que corresponde a retribuição anual bruta de € 114.203,72;
g) A sinistrada teve alta definitiva, em 25-05-2016;
h) A responsabilidade da entidade empregadora emergente de acidente de trabalho encontra-se parcialmente transferida para a " Companhia de Seguros CC, Sa ".
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Por resultar dos meios probatórios produzidos e constituir factualidade relevante, ao abrigo do artigo 662.º do Código de Processo Civil, adita-se à factualidade assente os seguintes pontos factuais:
i) Consta do relatório elaborado pelo IEFP:
(…)
j) Tendo-se concluído, neste relatório que a sinistrada está incapacitada para o trabalho habitual.
k) Atualmente, a sinistrada presta consultas de anestesiologia para o Centro Hospitalar de … E.P.E.
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IV. Nulidade da sentença
No requerimento de interposição de recurso dirigido ao tribunal de 1.ª instância, a recorrente arguiu a nulidade da sentença, por considerar que a mesma não contém fundamentação relativa à atribuição de IPATH à sinistrada.
Tendo sido respeitado o formalismo exigido pelo artigo 77.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho e tendo o Meritíssimo Juiz a quo considerado não se verificar a acusada nulidade, importa apreciar a primeira questão suscitada no recurso.
De harmonia com o normativo inserto na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, aplicável ao processo laboral por força da remissão prevista no artigo 1.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho, a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Em relação à falta de fundamentação que constitui causa de nulidade da sentença, ensina-nos o Prof. Alberto dos Reis: «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade (…)» - Código de Processo Civil anotado, Vol. V, pág.140.
O mesmo entendimento tem sido defendido por Doutrina mais recente.
Refere Lebre de Freitas, in Código Processo Civil, pág.297, que «há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação».
Por sua vez, Teixeira de Sousa, afirma que «esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (art. 208º, n.º 1, CRP; art. 158º, n.º 1)».
No mesmo sentido, escreve o Conselheiro Rodrigues Bastos, que «a falta de motivação a que alude a alínea b) do n.º 1 é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afeta o valor legal da sentença» (cf. "Notas ao Código de Processo Civil", III, pág.194).
A nível jurisprudencial, desde há muito que os tribunais superiores, pacificamente, tem considerado que a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, apenas se verifica quando haja falta absoluta de fundamentos e não quando a fundamentação se mostra deficiente, errada ou incompleta (cfr Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/4/1975 - BMJ 246º, p.131; Acórdão da Relação de Lisboa de 10/3/1980 - BMJ 300º, P.438; Acórdão da Relação do Porto de 8/7/1082 - BMJ 319º, p.343; e Acórdãos da Relação de Coimbra de 6/11/2012, P. 983/11.5TBPBL.C1 e da Relação de Évora, de 20/12/2012, P. 5313/11.3YYLSB-A.E1, disponíveis em www. dgsi.pt.).
Perfilhando este tribunal o entendimento doutrinal e jurisprudencial mencionado, desde já se adianta que a sentença proferida não se encontra atingida pelo alegado vício da nulidade, uma vez que o tribunal de 1.ª instância observou o dever de fundamentação que se lhe impunha no âmbito do processo.
Vejamos.
O tribunal de 1.ª instância considerou que a sinistrada se encontra afetada de IPATH, extraindo, desta decisão, as consequências jurídicas que entendeu aplicáveis no que concerne ao direito à reparação pelo acidente de trabalho.
Em termos factuais, a decisão encontra o seu suporte ou justificação na alínea c) dos factos assentes.
Explica o tribunal recorrido que para dar como provada tal materialidade, se baseou no laudo maioritário resultante do exame por junta médica:
- «Considerando o resultado do auto de exame da junta médica, bem como a natureza das sequelas, que se mostram de harmonia com o disposto na TNI, considera-se assente nos termos do art. 140.º n.º 1 do CPTrabalho que, em consequência do acidente, o sinistrado se mostra afetado das sequelas ali mencionadas, as quais lhe determinaram uma IPP de 30,87% com IPATH. a partir do dia seguinte à da data da alta da seguradora ocorrida a 25-05-2016.»;
- «{…) acompanha-se a posição da Junta Médica, por maioria, relativamente ao acidente de trabalho objeto dos autos principais, que a Sinistrada e A. nos autos se encontra atualmente afetada com uma Incapacidade Permanente Parcial de 30,87% com IPATH, (Incapacidade Permanente Absoluta para o Trabalho Habitual).»;
- «Para dar como provados os factos supra exarados, o Tribunal teve em consideração, de forma conjugada e concatenada entre si, o teor do auto de não conciliação das partes (mormente as posições que as mesmas adotaram nessa diligência processual, em que a divergência entre as mesmas se cifrou na incapacidade que afeta ao Sinistrado), nos termos do Art. 135º do Código de Processo do Trabalho, os diversos documentos juntos aos autos, que não foram impugnados por qualquer um dos sujeitos processuais, e o parecer por unanimidade dos peritos que intervieram na junta médica realizada no âmbito destes autos (sendo certo que, embora o julgador possa, como vem frisando a jurisprudência – v., por todos, o Acórdão da Relação de Évora de 30 de janeiro de 2001, CJ I,, p. 291, e o Acórdão da Relação de Lisboa de 13 de novembro de 2002, CJ V, p. 151, discordar, de forma devidamente fundamentada, do parecer dos peritos, é verdade também que o mesmo não tem específicos conhecimentos médicos que, na generalidade dos casos, lhe permitam pôr em causa o laudo unânime ou maioritário dos peritos e que, como sucede nestes autos, “Não há razões objetivas para se discordar dos laudos médicos ou para se formular qualquer pedido de esclarecimento aos peritos médicos, se estes responderam com precisão a todos os quesitos, indicando a lesão da sinistrada e respondendo aos restantes quesitos de forma lógica, sem qualquer deficiência, obscuridade ou contradição” – Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de outubro de 2000, CJ IV, p. 167)».
Ora, estes elementos explícitos levam-nos a concluir que o tribunal de 1.ª instância observou o dever de fundamentação consagrado no n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável, ainda que, com as necessárias adaptações ao processo especial de acidente de trabalho em que a fase contenciosa se destina a dilucidar a questão da incapacidade sobre a qual não houve acordo na tentativa de conciliação realizada sob a égide do Ministério Público.
O tribunal de 1.ª instância declarou assente o resultado maioritário da junta médica; explicou o motivo porque atendeu ao parecer pericial maioritário; e identificou a norma em que se baseia para fixar a natureza e grau de incapacidade decididos.
Pelo exposto, contendo a sentença proferida os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão de atribuir a IPATH à sinistrada, tanto basta para concluir que na concreta situação processual, a sentença em crise se encontra factual e juridicamente fundamentada, pelo que não se verifica a acusada nulidade da sentença.
Improcede, pois, a primeira questão suscitada no recurso.
*
V. Impugnação da decisão de facto
A recorrente impugna a decisão proferida em matéria de facto, por considerar que da mesma deveria constar, também, a seguinte materialidade:
- “A Autora está apta ao desempenho da atividade de consultas de anestesiologia”.
Pugna pela relevância de tal materialidade que, no seu entender, resulta demonstrada pelo teor do auto de exame de junta médica.
Apreciemos a questão.
Conforme já tivemos oportunidade de referir, anteriormente, a fase contenciosa do processo justificou-se pela circunstância da entidade responsável não ter aceitado a avaliação da incapacidade da sinistrada feita pelo perito do GML.
O perito singular considerou que a sinistrada estava afetada de uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 27,8025%, desde a data da consolidação das lesões, que fixou em 25/05/2016. Neste exame não foi atribuída qualquer incapacidade permanente para o trabalho habitual (IPATH) e a única referência ao posto de trabalho da sinistrada, baseou-se na informação prestada pela própria, tendo o perito referido: «Atualmente mantém a mesma profissão com adaptação do posto de trabalho».
No auto de exame por junta médica, a maioria dos peritos considerou que a sinistrada se encontra afetada, em consequências das lesões decorrentes do acidente de trabalho sofrido, de uma IPP de 30,87% com IPATH.
A incapacidade relativa ao trabalho habitual atribuída, encontra-se justificada pelo facto das sequelas residuais existentes, que se consubstanciam na presença de limitação considerável da mobilidade osteoarticular do ombro esquerdo, amiotrofias do músculo deltóide, da musculatura do braço homolateral (- 3 cm de perímetro medidos 14 cm acima do olecraneo bilateralmente), de acordo com a direção do serviço de anestesiologia do Centro Hospitalar de …, EPE, entidade patronal da sinistrada, impossibilitarem a sinistrada do seu desempenho profissional habitual (anestesiologista), opinião com a qual a maioria dos peritos concordou, ressalvando o facto de a sinistrada estar apta a realizar a restante atividade (consultas de anestesiologia).
Em esclarecimentos solicitados, posteriormente, a maioria dos peritos reiterou a posição anteriormente assumida. O perito da seguradora manifestou a sua discordância com a atribuição de uma IPATH, especificando que não obstante a sinistrada não possa desempenhar procedimentos anestésicos (bloco operatório), a mesma realiza consultas diárias de anestesia pelo que foi reconvertida.
Tendo o tribunal de 1.ª instância considerado existirem dúvidas quanto à questão da atribuição de IPATH à sinistrada, solicitou esclarecimentos sobre a questão ao Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), nos termos do artigo 159.º, n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.
Elaborado e junto ao processo o parecer requerido, consta do mesmo, para o que aqui interessa, o seguinte:
(…)

No mencionado ponto 5, identificaram-se as exigências do posto de trabalho que a sinistrada ocupava aquando do acidente:
(…)

Refere-se, igualmente, no relatório que a trabalhadora esclareceu que continua a realizar atividade laboral, no mesmo hospital, no entanto num posto de trabalho distinto do anterior, mais precisamente na “consulta de anestesia”, sem qualquer intervenção no âmbito do bloco operatório como anteriormente acontecia, tendo, em consequência, sido substancialmente reduzido o seu rendimento pecuniário para cerca de um terço do que antes auferia.
Salienta-se que o relatório elaborado pelo IEFP (entidade independente), se mostra bastante rigoroso e completo, merecendo a maior credibilidade.
Foram, pois, estes os meios probatórios periciais produzidos.
E, dos mesmos resulta, para além da factualidade descrita nas alíneas b) a d) dos factos assentes, que não foi impugnada, e da matéria de facto aditada ao abrigo do artigo 662.º do Código de Processo Civil, que a sinistrada está apta para o desempenho da atividade de “consultas de anestesiologia”.
Esta realidade factual é referida pela junta médica e no relatório do IEFP.
Tal materialidade é relevante, pois reporta-se à capacidade de ganho da sinistrada, em apreciação nos autos.
Nesta conformidade, por existir suporte probatório para dar como verificada a materialidade invocada pelo recorrente, que se mostra relevante para a boa decisão da causa, adita-se ao conjunto de factos assentes a alínea l) , com o seguinte teor:
- “A Autora está apta ao desempenho da atividade de consultas de anestesiologia”.
Mostra-se, pois, procedente a impugnação da decisão de facto.
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VI. Errada aplicação da lei relativamente à IPATH
Invoca a recorrente a errada aplicação da lei relativamente à atribuição da IPATH À sinistrada.
No essencial, argumenta que estando a sinistrada apta para realizar consultas de anestesiologia, não se pode considerar que a mesma está impossibilitada de forma absoluta (100%) de realizar o seu trabalho habitual.
Para dilucidar a questão suscitada, afigura-se-nos pertinente determinar, antes de mais, o conceito o que se deve entender por trabalho habitual.
Conforme se referiu no acórdão desta Secção Social de 16/04/2015, P. 26/14.7TTPTG.E1, relatado pela aqui relatora, «(…) parece não suscitar grande controvérsia que por “trabalho habitual” deve entender-se o trabalho que é executado de forma permanente, contínua, por contraste com o trabalho ocasional, eventual ou de curta duração.
Trabalho habitual é o conjunto de funções exercidas habitualmente pelo trabalhador no âmbito do posto de trabalho que ocupa, no contexto do contrato de trabalho que celebrou.»
Na específica situação dos autos, infere-se da factualidade provada que a sinistrada, à data em que ocorreu o acidente de trabalho, exercia as funções como médica anestesiologista no Centro Hospitalar de …. E.P.E..
Atendendo ao concreto conteúdo funcional do posto de trabalho ocupado pela sinistrada, descrito no relatório do IEFP, constata-se que a sinistrada, à data do acidente, desenvolvia, primordialmente, a sua atividade laboral na fase intra-operatória e pós-operatória, estando presente em todo o decurso das intervenções cirúrgicas e executando, igualmente, o acompanhamento dos doentes depois das referidas intervenções cirúrgicas, tanto em ambientes de enfermaria, como de cuidados intensivos, paliativos ou outros. No final das cirurgias ou de outros procedimentos médicos, acompanhava os doentes, no período de recobro ou de recuperação, permanecendo o tempo necessário em cuidados pós-anestésicos, de modo a evitar o surgimento de estados dolorosos.
No decurso dos atos cirúrgicos, também atuava no controlo de funções vitais. Intervinha o âmbito da medicina de emergência e na medicina intensiva, junto de doentes críticos, exercendo a sua atividade em unidades de cuidados intensivos, onde são tratados doentes em situação de grave perigo de vida, necessitando de meios artificiais de suporte de vida.
A sinistrada operava, ainda, equipamentos e máquinas específicas para determinados efeitos clínicos, nos blocos operatórios e nas unidades de cuidados intensivos. Também poderia executar, ainda, tarefas em viaturas médicas de emergência e reanimação, nomeadamente no transporte de doentes graves, podendo, igualmente, ser chamada a executar intervenções de emergência, por exemplo, em situações de trauma grave ou paragem cardiorrespiratória, executando atos de “reanimação” e “ressuscitação”, mediante determinados gestos e técnicas.
Analisando o conjunto de funções habitualmente exercidas pela sinistrada, à data do acidente, constata-se que nenhuma referência é feita à realização de consultas de anestesiologia, num contexto de mero atendimento de utentes/clientes do Centro Hospitalar de …, em regime ambulatório, para avaliação de problemas de saúde justificativos da consulta e prescrição de medicamentos exames específicos.
O exercício da atividade profissional da sinistrada, aquando da ocorrência do acidente, consubstanciava-se na execução de procedimentos anestésicos, na fase cirúrgica (bloco operatório) e pós-cirúrgica, na emergência e na unidade de cuidados intensivos do hospital. Era este o trabalho habitual prestado, pelo qual a trabalhadora era remunerada.
Deste modo, não obstante, como se retira do relatório elaborado pelo IEFP, um médico anestesiologista, genericamente, possa realizar consultas em regime ambulatório para avaliação pré-anestésica, nomeadamente consultas de avaliação médica aquando da proposta de cirurgias ou procedimentos dolorosos, esta função não era habitualmente exercida pela sinistrada no contexto laboral em que estava inserida à data do acidente.
Assim sendo, com arrimo nos factos assentes, é possível afirmar que, devido às sequelas decorrentes do acidente de trabalho que se aprecia nos autos, a sinistrada ficou inapta para o exercício das funções que habitualmente exercia. Nesse sentido se pronunciou a maioria dos peritos, bem como o IEFP. Pode ler-se no relatório desta última entidade que a sinistrada não possui a robustez e destreza física, nomeadamente no braço esquerdo, que as funções que habitualmente desempenhava no seu posto de trabalho exigem, pois as tarefas que executava, de elevado rigor técnico e cientifico, exigem uma utilização precisa, praticamente em permanência, do seu braço esquerdo, nomeadamente para segurar/amparar/posicionar/suportar, de forma coordenada com o outro braço, a cabeça dos pacientes aquando do processo de anestesia em contexto de operações cirúrgicas levadas a cabo em bloco operatório. Conclui-se, neste relatório, por remissão tacitamente concordante com a Declaração Médica do Diretor de Departamento de Anestesiologia, que, em relação às funções habitualmente exercidas pela sinistrada, a mesma «está fisicamente inapta para o desempenho de procedimentos anestésicos».
Destarte, a sinistrada não se encontra apta a retomar as funções que habitualmente desempenhava, com carácter permanente, no seu posto de trabalho, aqui entendido num sentido substancial, correspondendo às funções efetivamente exercidas pelo trabalhador numa concreta organização empresarial[2].
Com interesse para a resolução da questão sub judice, escreveu-se no acórdão da Relação de Lisboa, de 07/03/2018, P. 1445/14.4T8FAR.L1-4:
«Carlos alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Almedina, 2ª ed. a pag. 96, escreve que a incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual é “uma incapacidade de 100% para a execução do trabalho habitual do sinistrado, no desempenho da sua específica função, atividade ou profissão”.
Porém, tal não significa que só quando o sinistrado não pode executar nenhuma das tarefas que anteriormente desempenhava no seu posto de trabalho é que se está perante uma IPATH. Significa tão só que se o sinistrado deixou de poder executar todas as anteriores tarefas ou, pelo menos, o seu conjunto fundamental, a incapacidade para o trabalho habitual é considerada total.
De facto, é entendimento do STJ (Ac. do STJ de Uniformização de Jurisprudência de 28/5/2014, Proc. n.º 1051/11.5TTSTB.E1.S1 (Revista), 4ª Secção), com o qual também se concorda, que “...na linha da jurisprudência definida nesta secção os casos de IPATH são situações típicas de não reconvertibilidade do sinistrado em relação ao seu anterior posto de trabalho.” “A reconversão em relação ao posto de trabalho prevista naquela norma materializa-se no regresso do sinistrado ao desempenho das funções que tinha quando ocorreu o acidente, apesar das limitações em termos de capacidade que trabalho que do mesmo decorreram.

Pode, assim, afirmar-se que um trabalhador que foi vítima de um acidente de trabalho é reconvertido em relação ao posto de trabalho que tinha antes do acidente quando o pode retomar, apesar das limitações funcionais de que seja portador em consequência do acidente sofrido.
Quando esse regresso não seja possível, quando essa retoma não seja possível, o trabalhador não é suscetível de reconversão nesse posto de trabalho.”

Assim, não se pode falar em IPATH se o sinistrado retoma a totalidade das suas funções ou, pelo menos, o seu conjunto fundamental, embora com limitações decorrentes das lesões sofridas no acidente. Nesta caso, o sinistrado, pese embora os constrangimentos e esforço acrescido continua a conseguir executar as tarefas inerentes ao seu posto de trabalho.
Se não consegue, não é reconvertível em relação ao seu posto de trabalho e, em consequência, está afetado de IPATH.»
Regressando ao caso que nos ocupa, tendo ficado demonstrado que a sinistrada, em consequência das sequelas decorrentes do acidente de trabalho não pode retomar as funções que exercia aquando do acidente, é correto tê-la considerado afetada de IPATH.
Destarte, sufragamos o juízo decisório da 1.ª instância que considerou que a sinistrada está absolutamente incapacitada de retomar o seu trabalho habitual.
A aptidão para a realização de consultas de anestesiologia enquadra-se na capacidade residual da sinistrada.
E, na realidade, a sua entidade patronal assegurou-lhe outra ocupação, outro posto de trabalho, dentro da organização empresarial, compatível com a sua situação, competências e capacidade residual.
Face a todo o exposto, reafirma-se que a sinistrada está afetada de IPATH, pelo que se mostra, igualmente, improcedente, o fundamento de recurso agora analisado.
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VII. Errada aplicação da lei no cálculo do valor da pensão anual e vitalícia.
Por fim, alega a recorrente que o cálculo do valor da pensão anual e vitalícia deveria ter sido determinado de acordo com as regras definidas no artigo 48.º, n.º 3, alínea c) da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro e não pela revogada Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, indicada na sentença recorrida.
Na sequência, pede a reformulação da sentença, substituindo-se o valor da pensão indicado na alínea i) da decisão, pelo montante de € 24.678,28.
A recorrida, nas suas contra-alegações reconhece que, certamente por lapso, indicou-se na sentença recorrida, para o cálculo da pensão, legislação que foi revogada pela Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro. Todavia, o cálculo realizado obedece ao disposto neste último diploma legal, que é o aplicável.
O acidente de trabalho que se aprecia nos autos ocorreu em 14-12-2015, pelo que lhe é inquestionavelmente aplicável a Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro – artigo 187.º, n.º 1 da aludida lei.
O tribunal de 1.ª instância revela pouco cuidado na indicação da legislação que aplica, pois, na fundamentação de direito, na sentença recorrida, tanto menciona a Lei n.º 98/2009, como a Lei n.º 100/97.
Certo é que a pensão anual e vitalícia, no caso dos autos, deve ser calculada de harmonia com o preceituado no artigo 48.º, n.º 3, alínea b) [e não de acordo com a alínea c) invocada pela recorrente] da Lei n.º 98/2009. Ora, o cálculo efetuado respeita o preceituado na alínea, pelo que o valor da pensão anual e vitalícia fixado mostra-se correto e não tem de ser retificado.
Mostra-se, igualmente, destituída de fundamento a pretensão da recorrente, nesta parte.
Concluindo, o recurso mostra-se improcedente.
*
VIII. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando-se, em consequência, a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique.

Évora, 12 de setembro de 2018
Paula do Paço (relatora)
Moisés Silva
João Luís Nunes
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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: Moisés Silva; 2.ª Adjunto: João Luís Nunes
[2] Cfr. Acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2014, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 123, pág.3561.