Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1601/19.9T8STR-A.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: CONTRATO DE SOCIEDADE
DIREITOS SOCIAIS
INTERESSE PESSOAL DO SÓCIO
INTERESSE PROTEGIDO
INTERESSE DA EMPRESA
PROCEDIMENTO CAUTELAR
NULIDADE
Data do Acordão: 02/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I - Para efeitos de integração na alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, «direitos sociais» são os que integram a esfera jurídica do sócio, por força do contrato de sociedade, sendo inerentes à qualidade e estatuto de sócio e dirigidos à proteção dos seus interesses sociais.
II - Os “direitos sociais” ou corporativos, integráveis na previsão legal do referido normativo pressupõem: a) que o autor tenha a qualidade de sócio; b) que o direito que visa realizar através da ação se alicerce no contrato de sociedade; c) que com o pedido formulado vise a proteção de um qualquer dos seus interesses sociais.
III – Visando-se com o presente procedimento cautelar apenas a paralisação da posição das sócias até decisão final na ação principal, com o objetivo de assegurar o efeito útil da decisão a proferir na naquela ação, onde está em discussão a nulidade de negócios realizados, nomeadamente a transmissão de quotas, por simulação, é competente para o seu julgamento o Juízo Central Cível.
IV – Acresce que a competência em razão da matéria para as providências cautelares não tem autonomia, visto o procedimento cautelar estar na dependência da ação principal. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
J…, ao abrigo do disposto nos artigos 362º e seguintes do CPC, e por apenso à ação declarativa que corre termos pelo Juízo Central Cível de Santarém – Juiz 2 (proc. nº 1601/19.9T8STR), instaurar procedimento cautelar comum contra M… e A…, pedindo que sejam decretadas as providências cautelares não especificadas requeridas, devendo ser ordenada a intimação de ambas as requeridas e, bem assim, de qualquer terceiro que venha a ser conhecido como detentor de quotas atualmente detidas por qualquer das duas, e/ou resultante de divisão destas mesmas quotas, para:
a) Se absterem de exercer os direitos sociais e económicos inerentes às quotas que (formalmente) detêm, representativas do capital social da sociedade comercial “C…, LDA.”, independentemente de a detenção estar registada na certidão comercial da sociedade;
b) Se absterem de exercer os direitos sociais e económicos inerentes às quotas que (formalmente) detêm, representativas do capital social da sociedade comercial “S…, LDA.”, independentemente de a detenção estar registada na certidão comercial da sociedade;
c) Em qualquer dos casos, para as requeridas (e o eventual terceiro) se absterem de, relativamente às duas identificadas sociedades, designadamente:
i) exercer o direito de voto para:
- destituição de órgãos sociais;
- designação de órgãos sociais e respetiva remuneração;
- aumento ou redução de capital;
- realização de prestações suplementares ou suprimentos e restituição ou reembolso dos mesmos;
- transformação, fusão, cisão, dissolução e liquidação das Sociedades;
- consentimento à divisão e cessão de quotas;
- exclusão de sócios;
- aumento ou redução das atividades das Sociedades;
- alteração dos Estatutos das Sociedades;
- distribuição de lucros;
- impedir o requerente de exercer o seu direito de voto;
- impedir o requerente de assumir o cargo de gerente em ambas as sociedades;
ii) Transmitir, prometer transmitir, onerar, prometer onerar ou, por qualquer forma, dispor ou criar qualquer ónus ou encargo sobre as quotas, a favor de terceiro;
iii) Proceder à cobrança ou recebimento de qualquer lucro/dividendos que venha a ser distribuído pelas sociedades;
iv) Praticar qualquer ato, seja de que natureza for, que impeça, modifique ou afete o efeito útil da ação principal da qual este procedimento cautelar constituirá apenso.
As requeridas deduziram oposição invocando, além do mais, a incompetência material do Juízo Central Cível, do Tribunal da Comarca de Santarém, entendendo ser o competente o Juízo de Comércio, deste mesmo tribunal.
Para o efeito alegaram, em síntese, que :
- Para apreciação e julgamento da presente ação é competente o juízo de comércio territorialmente competente ao abrigo do disposto no artigo 128.º, n.º 1, al. c), da LOSJ.
- Ao contrário do que quer fazer crer o requerente (e não o requerido, como por lapso referem), quando o artigo 117º, nº 1, al. c), da LOSJ (e não, ao que se julga, artigo 128º), dispõe que a competência dos juízos centrais cíveis para “Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência”, prevê, salvo melhor entendimento, que compete aos juízos centrais cíveis julgar os procedimentos cautelares que correspondam às ações previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1, e dos n.ºs 2 e 3 do artigo 117.º, da LOSJ.
- Não se prevê que os juízos centrais cíveis devam julgar procedimentos cautelares de ações da competência dos juízos de comércio.
- Não prevendo o legislador no que respeita à competência dos juízos centrais cíveis disposição idêntica à prevista no artigo 128.º, n.º 3, da LOSJ.
- Pelo que, tal só se compreende como um propósito deliberado do legislador de não estender a competência dos juízos centrais a todos os incidentes e apensos que surjam no decorrer das ações cíveis para às quais têm competência, independentemente da matéria versada nos referidos incidentes e apensos.
- A Comarca de Santarém dispõe de juízo de comércio, pelo que não se aplica o disposto no artigo 117.º, n.º 2, da LOSJ.
O requerente respondeu, opondo-se à procedência da invocada exceção.
Seguidamente foi proferida decisão que julgou o Juízo Central Cível de Santarém incompetente, em razão da matéria, para o julgamento do presente procedimento cautelar e, em consequência, absolveu as requeridas da instância.
Inconformado com tal decisão, apelou o requerente, finalizando a respetiva alegação com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«A. O presente procedimento cautelar foi apresentado com caráter incidental à ação declarativa na qual se pretende obter a declaração de nulidade de vários negócios simulados, que, sob processo de n.º 1601/19.9T8STR, corre termos no tribunal a quo (“Ação Principal”), sendo certo que o procedimento não cabe na competência especializada do Juízo de Comércio.
B. A causa de pedir da Ação Principal – que sustenta o fumus boni iuris no procedimento cautelar - assenta, além do mais, na conclusão de múltiplos e sucessivos negócios simulados entre o Requerente, ora Apelante, e M…, entre os quais a transmissão:
a) De duas quotas nos valores nominais de 2.500,00€ e 2.000,00€ representativas de 90% (noventa por cento) do capital social da sociedade S…, LDA, com número único de pessoa coletiva e de matrícula n.º … e sede na Praça …, Lisboa; e
b) De duas quotas nos valores nominais de 18.900,00€ e 15.120,00€ representativas de 90% (noventa por cento) do capital social da sociedade C…, LDA, com número único de pessoa coletiva e de matrícula n.º … e sede na Avenida dos …, n.º … Porto.
C. A mera propositura da Ação Principal e o seu registo na certidão comercial das Sociedades não assegura, por si só, o efeito útil da decisão a proferir quanto à declaração de nulidade da transmissão das Quotas, uma vez que, enquanto a transmissão não for declarada nula por simulação, as quotistas (formais), dado a representatividade que as respetivas quotas detêm sobre o capital social das referidas Sociedades (em conjunto 90%), poderão praticar atos que afetam o real valor económico das quotas, o que torna grave o risco que corre o aqui Apelante, motivo pelo qual pretende ver decretadas as medidas conservatórias necessárias para acautelar o seu direito.
D. Tanto assim que, não obstante o registo da Ação Principal Maria Inácio dividiu uma das (suas) quotas, em cada uma das Sociedades, e ato contínuo transmitiu uma das quotas resultantes da divisão à sua filha, R…, que passou a deter 11% do capital social da C… e 11% do capital social da S… (passando a mãe e a filha a deter em conjunto quotas representativas de 90% do capital social das Sociedades).
E. Assim, ao contrário da tese preconizada na Sentença de 30 de outubro, não estamos perante o exercício de direitos sociais, não se encontrando preenchido o elemento de tipicidade do artigo 128.º da LOSJ. Apenas e tão-só, estamos perante a necessidade de proteger o valor económico das quotas (e de resto das Sociedades, cujo capital social tais quotas representam).
F. De resto, reiteramos que o procedimento cautelar em crise não visa um efeito específico suscetível de integrar um concreto direito social que se pretenda exercer futuramente, em ação a instaurar, mas antes tem por base um litígio cível, pretendendo-se simplesmente a paralisação da posição das sócias até decisão final na Ação Principal, com o claro objetivo de assegurar o efeito útil da decisão a proferir na Ação Principal, relativa à nulidade, in casu, da transmissão das quotas com simulação.
G. O âmago do procedimento cautelar em crise não é a atividade das sociedades, nem tão pouco tem em vista assegurar efeitos de futura ação principal de cariz eminentemente societário relativa ao exercício de direitos sociais tal como plasmados no contrato social e/ou na lei societária e/ou em acordos parassociais, nem sequer a apreciação da matéria carreada aos autos requer especial preparação técnica no âmbito societário, antes requer a intervenção do magistrado judicial "melhor colocado" em razão da matéria de fundo – a simulação - ou seja, o juiz da Ação Principal.
H. Aliás, se atendermos à própria ratio da atribuição de competência especializada ao juízo de comércio, fácil será concluir que in casu o juízo competente será sempre o juízo civil no qual corre a Ação Principal, e nunca outro, isto não perdendo de vista o fumus boni iuris do procedimento cautelar em crise que é, além do mais, a celebração de múltiplos e sucessivos negócios simulados, incluindo a cessão de quotas, cuja anulação se peticiona na Ação Principal.
Sem prejuízo,
I. Ainda que, por hipótese, se pudesse entender estar em causa o exercício de um qualquer direito social, sempre teríamos de ter em linha de conta o preceituado nos n.ºs 1 e 3 do artigo 364.º do CPC, nos quais se consagra o princípio da coincidência.
J. Trata-se, pois de um “especial regime de afectação dos autos do procedimento cautelar”, no qual se pretende “atribuir ao juiz da acção a competência para os termos da providência. Ou seja fazer coincidir no mesmo juiz a competência para decidir quer a acção quer o procedimento cautelar.”2
K. De resto a jurisprudência portuguesa tem vindo a concluir no sentido de que “A competência em razão da matéria para as providências cautelares não tem autonomia porquanto o procedimento cautelar está na dependência da ação principal.”3
L. Constituindo, pois, o procedimento cautelar instaurado um incidente da ação declarativa de condenação em causa (artigo 346.°, n.º 1 do CPC), deve ser apenso a essa ação de que é dependente (artigo 364.°, n.º 3, 1.ª parte do CPC), sendo assim competente para o julgar o juízo da ação principal, in casu, o juízo civil no qual corre termos a ação em que se visa obter a declaração de nulidade de diversos atos realizados com simulação, incluindo a cessão de quotas.
M. Por tudo quanto anteriormente exposto e, sobretudo, atendendo à jurisprudência maioritária que assevera neste mesmo sentido, resulta evidente que a decisão em crise viola o disposto nos art.ºs 78.º, n.º 1, al. c) e 364.º, n.ºs 1 e 3 do CPC; bem como os art.ºs 117.º, n.º 1, al. c) e 128º, n.º 1, alínea c) da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
N. Motivo pelo qual deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo no dia 30 de outubro de 2019.»

As requeridas contra-alegaram, defendendo a manutenção do julgado.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a única questão a decidir é a de saber se o Tribunal de que provém o recurso é, ao invés do decidido, o competente, em razão da matéria, para conhecer do objeto deste procedimento cautelar.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Os factos e a dinâmica processual a considerar para a decisão do recurso, são os que constam do relatório que antecede.

O DIREITO
A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais[1].
Desta definição, podemos passar para uma classificação de competência, a qual em sentido abstrato ou quantitativo, será a medida da sua jurisdição, ou seja a fração do poder jurisdicional que lhe é atribuída, ou a determinação das causas que lhe tocam; em sentido concreto ou qualitativo, será a suscetibilidade de exercício pelo tribunal da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa[2].
Assim, a incompetência será a «insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida da jurisdição suficiente para essa apreciação. Infere-se da lei a existência de três tipos de incompetência jurisdicional: a incompetência absoluta, a incompetência relativa e a preterição do tribunal arbitral»[3].
No caso em apreço, a questão suscitada tem a ver com a incompetência absoluta do Tribunal recorrido, em razão da matéria.
Como é sabido e constitui jurisprudência constante quer do Tribunal de Conflitos, quer do STJ, quer do STA, a competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a ação é proposta, concretamente, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada na petição inicial, isto é, no confronto entre o respetivo pedido e a causa de pedir, sendo que em sede da indagação a proceder em termos de se determinar a competência material do tribunal é irrelevante o juízo de prognose que, hipoteticamente, se pretendesse fazer relativamente á viabilidade da ação, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão[4].
Dispõe o artigo 64° do CPC[5] que «[s]ão da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional», acrescentando o artigo 65°, do mesmo Código, que «[a]s leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada».
Importa, assim, atender à Lei nº 62/2013 de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário [LOSJ]) para ver se, in casu, existe alguma jurisdição especializada.
No art. 117º, nº 1, als. a) e c), da LOSJ, preceitua-se que compete aos juízos centrais cíveis a preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000,00, bem como preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência.
Já as ações relativas ao exercício de direitos sociais, suspensão e de anulação de deliberações sociais, que abrange os respetivos incidentes e apensos, compete aos tribunais de comércio (cfr. 128º, nº 1, als. c) e d) e nº 3, da LOSJ).
Ora, o presente procedimento cautelar foi instaurado como incidente da ação declarativa, com processo comum, que desde 07.06.2019 corre os seus termos pelo Juízo Central Cível de Santarém – Juiz 2.
Escreveu-se na decisão recorrida:
«(…) para a decisão a tomar, há que verificar quais os pedidos formulados na ação principal e na causa de pedir.
Com efeito, com fundamento em simulação, o autor peticiona o seguinte, entre o mais, a título principal:
1) Declarar nulos todos os contratos de cessões de créditos, os contratos de cessões de quotas, a dação em cumprimento, o contrato de compra e venda e os 4 contratos de arrendamento comercial em causa na petição inicial;
2) Em consequência, nos termos do n.º 1 do art.º 289.º do Código Civil, condenar a ré a restituir ao autor:
a) as duas quotas do valor nominal de 2.500,00 € e 2.000,00 € no capital social da S…,
b) as duas quotas do valor nominal de 18.900,00 € e 15.120,00 € no capital social da C…;
c) a fração autónoma correspondente à letra AA, correspondente ao 6ºA para habitação do prédio urbano sito na Rua dos … – Loures;
d) a moradia sita na … – Benavente, e
e) restituir as rendas recebidas ao abrigo dos arrendamentos comerciais de 8.000,00 € por mês desde dezembro de 2018, acrescidas dos juros de mora que se vencerem, à taxa legal, sobre tal montante desde a condenação até ao seu efetivo e integral pagamento.
Subsidiariamente, com fundamento em erro na formação da vontade, formula o requerente (autor na ação) os seguintes pedidos:
1) Anular todos os contratos de cessões de créditos, os contratos de cessões de quotas, a dação em cumprimento, o contrato de compra e venda e os 4 contratos de arrendamento comercial em causa nesta petição;
2) Em consequência, nos termos do n.º 1 do art.º 289.º do mesmo Código Civil, condenar a ré a restituir ao Autor:
a) as duas quotas do valor nominal de 2.500,00 € e 2.000,00 € no capital social da S…;
b) as duas quotas do valor nominal de 18.900,00 € e 15.120,00 € no capital social da C…;
c) a fração autónoma correspondente à letra AA, correspondente ao 6.º A para habitação do prédio urbano sito na Rua dos … – Loures;
d) a moradia sita na … – Benavente, e
e) restituir as rendas recebidas ao abrigo dos arrendamentos comerciais de 8.000,00 € por mês desde dezembro de 2018, acrescidas dos juros de mora que se vencerem, à taxa legal, sobre tal montante desde a condenação até ao seu efetivo e integral pagamento.
Também subsidiariamente, com base no instituto do enriquecimento sem causa, é pedido:
1) Declarar que, com a celebração dos ditos contratos de cessões de créditos, cessões de quotas, dação em cumprimento, compra e venda e 4 arrendamentos comerciais, houve enriquecimento sem causa da ré à custa do autor nos termos do disposto no art.º 473.º do Código Civil e em consequência, condenar a ré a restituir ao autor tudo aquilo com que injustamente se locupletou, a saber:
a) as duas quotas do valor nominal de 2.500,00 € e 2.000,00 € no capital social da S…;
b) as duas quotas do valor nominal de 18.900,00 € e 15.120,00 € no capital social da C…;
c) a fração autónoma correspondente à letra AA, correspondente ao 6.ºA para habitação do prédio urbano sito na Rua dos … – Loures;
d) a moradia sita na … – Benavente, e
e) restituir as rendas recebidas ao abrigo dos arrendamentos comerciais de 8.000,00€ por mês desde dezembro de 2018, acrescidas dos juros de mora que se vencerem, à taxa legal, sobre tal montante desde a condenação até ao seu efetivo e integral pagamento.»
E, mais adiante, escreveu-se:
« Ora, os pedidos formulados nesta providência cautelar são construídos tendo por assente uma relação eminentemente societária, na qual o requerente é sócio (tendo 10% do capital social) das sociedades “C…, LDA., e “S…, LDA.” e através deste processo pretende-se que as requeridas, que são alegadamente e igualmente titulares do capital das referidas sociedades (juntas são titulares alegadamente de 90% do capital) se abstenham de praticar um conjunto de atos que são totalmente indissociáveis da vida societária, tais como destituição de órgãos sociais, designação de órgãos sociais, aumento ou redução de capital, realização de prestações suplementares ou suprimentos e restituição ou reembolso dos mesmos, transformação, fusão, cisão, dissolução e liquidação das ditas sociedades, consentimento à divisão e cessão de quotas, exclusão de sócios, impedir o requerente de exercer o seu direito de voto, transmitir, prometer transmitir, onerar, prometer onerar ou, por qualquer forma, dispor ou criar qualquer ónus ou encargo sobre as quotas, a favor de terceiros, até que se obtenha uma decisão na ação principal.
(…).
Os atos que acima se transcreveram constituem o exercício dos respetivos direitos sociais e, por seu turno, as deliberações tomadas em assembleia da sociedade constituem deliberações sociais. Por conseguinte, os atos relativamente aos quais o requerente pretende ver impedidos de realizar pelas requeridas, sendo ele, igualmente, sócio das sociedades, constituem atos materialmente sociais.
A sua pretensão funda-se na prática desses atos sociais (sendo que a ação principal tem como fundamento e causa de pedir, para além do mais, a existência de simulação nos contratos de cessão de quotas, nas sociedades supra mencionadas, do requerente para a requerida M…) sendo no sentido da abstenção da prática de direitos sociais pelas sócias, ora requeridas, bem como de prevenção da possibilidade da tomada de deliberações sociais que afetem os seus direitos societários, pelo que expressamente abrangida pela competência atribuída aos Juízos de Comércio na alínea c), do artigo 128.º, da LOSJ.»
Com o devido respeito, não subscrevemos este entendimento.
A causa de pedir da ação principal assenta essencialmente na conclusão de vários negócios alegadamente simulados entre o requerente e a requerida M…, ali ré, nomeadamente as seguintes transmissões:
- de duas quotas nos valores nominais de 2.500,00€ e 2.000,00€ representativas de 90% (noventa por cento) do capital social da sociedade S…, LDA, com número único de pessoa coletiva e de matrícula n.º … e sede na Praça … Lisboa; e
- de duas quotas nos valores nominais de 18.900,00€ e 15.120,00€ representativas de 90% (noventa por cento) do capital social da sociedade C…, LDA, com número único de pessoa coletiva e de matrícula n.º … e sede na Avenida dos …, Porto.
Com o presente procedimento cautelar, não se visa um qualquer efeito específico suscetível de integrar um concreto direito social que se pretenda exercer futuramente, mas apenas a paralisação da posição das sócias até decisão final na ação principal, com o objetivo de assegurar o efeito útil da decisão a proferir naquela ação, onde está em discussão a nulidade de negócios realizados, designadamente a transmissão das aludidas quotas, por simulação.
A jurisprudência tem vindo, aliás, a apurar o conceito de direitos sociais, merecendo referência, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 18.04.2016[6], assim sumariado:
«I - A aferição da competência material do tribunal é feita com base na relação jurídica controvertida tal como a configura o autor, ou seja, nos precisos termos em que foi proposta a ação
II - Para efeitos de integração na alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, «direitos sociais» são os que integram a esfera jurídica do sócio, por força do contrato de sociedade, sendo inerentes à qualidade e estatuto de sócio e dirigidos à proteção dos seus interesses sociais.
III - Os “direitos sociais” ou corporativos, integráveis na previsão legal do normativo citado pressupõem: i) que o autor tenha a qualidade de sócio; ii) que o direito que visa realizar através da ação se alicerce no contrato de sociedade; iii) que com o pedido formulado vise a proteção de um qualquer dos seus interesses sociais.
IV - A secção cível é competente para conhecer da acção sempre que a configuração dada pelo autor não permita a sua integração nos direitos sociais tal como definidos em II e III.»
Posição idêntica foi assumida no Acórdão da Relação de Coimbra de 03.05.2016[7], em cujo sumário se escreveu:
«1. Os direitos sociais são os direitos cuja matriz, directa e imediatamente, se funda na lei societária (lei que estabelece o regime jurídico das sociedades comerciais) e/ou no contrato de sociedade.
2. Na atribuição de competência especializada ao Tribunal do Comércio/Secção de Comércio para preparar e julgar as acções relativas ao exercício dos direitos sociais releva a circunstância de estarmos perante matérias que exigem especial preparação técnica e sensibilidade e envolvem dificuldades/complexidades que podem repercutir-se também na respectiva solução.
3. A determinação da competência material do tribunal deve assentar na estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na petição inicial da acção.
4. Não pretendendo a A. exercer direitos sociais reconhecidos ou previstos nas normas do Código das Sociedades Comerciais e importando apenas verificar e reconhecer direitos decorrentes da lei civil substantiva (no confronto com a invocada actuação dos Réus), a competência para a preparação e julgamento da causa está atribuída à Jurisdição Comum/Cível.»
Ora, como bem refere o recorrente nas suas alegações, «[o] âmago do procedimento cautelar em crise não é a atividade das sociedades, nem tão pouco tem em vista assegurar efeitos de futura ação principal de cariz eminentemente societário relativa ao exercício de direitos sociais tal como plasmados no contrato social e/ou na lei societária e/ou em acordos parassociais, nem sequer a apreciação da matéria carreada aos autos requer especial preparação técnica no âmbito societário, antes requer a intervenção do magistrado judicial “melhor colocado” em razão da matéria de fundo – a simulação - ou seja, o juiz da Ação Principal».
Na verdade, o objeto da ação principal e do procedimento cautelar nada tem a ver com a prática de atos sociais, estando sim em causa a declaração de nulidade da transmissão de quotas sociais, por alegada simulação.
Mas, ainda que assim não fosse, como é, sempre seríamos confrontados com o que se dispõe nos nºs 1 e 3 do o art. 364º do CPC, nos quais se consagra o princípio da coincidência.
Escreveu-se a este propósito no Acórdão desta Relação de 19.01.2015:[8]
«A competência em razão da matéria para as providências cautelares, instauradas como incidente, como a generalidade das questões processuais que lhes digam respeito, não tem autonomia porquanto o procedimento cautelar está na dependência da acção principal [8]. Assim e por força do disposto no art.º 91º, nº 1 e 364º, nº 3, do CPC, o tribunal que for materialmente competente para conhecer da acção é também competente para conhecer dos seus incidentes, independentemente de serem processados por apenso ou nos próprios autos. Esta regra é também válida para os procedimentos cautelares que sejam preliminares à propositura da acção de que dependam.
Na verdade, é isso que decorre do disposto no art.º 364º, nº 2, do CPC, quando aí se estabelece que o procedimento (antecipado), «requerido antes de proposta a acção… é apensado aos autos desta, logo que a acção seja instaurada e se a acção vier a correr noutro tribunal, para aí é remetido o apenso, ficando o juiz da acção com exclusiva competência para os termos subsequentes à remessa». Significa isto que o juiz que tem a seu cargo a providência cautelar logo que tenha conhecimento da pendência da acção principal deve, oficiosamente, ou a requerimento dos interessados, remete-la para apensação àquela, assim como o juiz da acção deverá solicitar a sua apensação.
Mas se a providência for intentada no decurso da acção, estatui o nº 3 daquele normativo, que «… deve o procedimento ser instaurado no tribunal onde esta corre e processado por apenso, a não ser que a acção esteja pendente de recurso; neste caso a apensação só se faz quanto o procedimento cautelar estiver findo ou quando os autos da acção principal baixem à 1ª instância». O que quer dizer que, requerida a providência depois de instaurada a causa principal, ela deve correr necessariamente por apenso ao processo dessa causa, motivo por que será logo instaurada no tribunal onde esta o foi.
Consagra-se nestes incisos do art.º 364º do CPC, o princípio da coincidência em matéria de competência do Tribunal (seja absoluta, seja relativa). A este propósito, comentava Abrantes Geraldes [9] (a propósito do art.. 383º do CPC antigo e cuja redacção era idêntica à do nº 2 e 3 do actual art.º 364) que «nestes casos, a competência por conexão sobrepõe-se aos restantes critérios».
A ideia subjacente a este especial regime de afectação dos autos do procedimento cautelar, é a de se atribuir ao juiz da acção a competência para os termos da providência. Ou seja fazer coincidir no mesmo juiz a competência para decidir quer a acção quer o procedimento cautelar. Como salienta Cura Mariano, a tramitação do procedimento cautelar dever ser efectuada por apenso ao processo principal, «o que não só significa que os respectivos autos devem estar ligados por linha, como o tribunal competente para este último processo define também o tribunal competente para o procedimento cautelar, logo que aquele seja instaurado». O princípio da coincidência acima referido - ser competente para o julgamento da providência cautelar, o tribunal que é competente para o julgamento da acção – não é senão um dos meios de melhor concretizar a instrumentalidade e dependência da providência cautelar em relação à acção, dependência de que as soluções constantes das várias alíneas do art.º 373º do CPC, constituem consequência [10].»
Pretendendo-se com a ação principal obter a declaração de nulidade de diversos negócios realizados, incluindo a referida transmissão de quotas, por alegada simulação, é competente para o seu julgamento o Juízo Central Cível de Santarém – onde, aliás, corre a ação -, o qual pelo que se deixou exposto, é também o Tribunal materialmente competente para apreciar e decidir o procedimento cautelar comum instaurado pelo recorrente.
O recurso merece, pois, provimento.
As custas são da responsabilidade das recorridas, pois que decaíram no recurso (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se o normal prosseguimento dos autos.
Custas pelas recorridas.
*
Évora, 13 de fevereiro de 2019
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso
Tomé Ramião
__________________________________________________
[1] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pp. 88 e 89.
[2] cfr Manuel de Andrade, ibidem e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e Incompetência dos Tribunais Comuns, p. 7, este último citado no acórdão do STJ de 30.04.2019, proc. 100/18.0T8MLG-A.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, assim como os demais adiante citados sem indicação de origem.
[3] cfr Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, p. 128.
[4] Cfr., inter alia, o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, proc. 07/12 e os acórdãos do STJ de 13.03.2008, proc. 08A391, e 12.02.2009, proc. 09A0078.
[5] Em consonância, aliás, com o artigo 211º da CRP: «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.» «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
[6] Proc. 84362/15.3YIPRT.P1, também citado nas alegações de recurso.
[7] Proc. 851/14.9TBCLD-A.C1.
[8] Proc. 1423/15.6T8STR.E1. No mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Guimarães de 09.04.2019, proc. 1466/15.0T8BCL-A.G1 (ambos os acórdão foram citados nas alegações de recurso).