Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
305/16.9T8EVR.E1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: CASAMENTO
UNIÃO DE FACTO
PATRIMÓNIO
DISSOLUÇÃO
LEI APLICÁVEL
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 02/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I – Casamento e união de facto são situações materialmente diferentes, não se justificando, nem havendo fundamento legal para estender a esta situação de facto as normas que disciplinam o casamento e respetivos efeitos.
II - Não sendo possível a aplicação analógica das normas reguladoras das relações patrimoniais do casamento às uniões de facto, essas relações ficam sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais, só assim sucedendo se os membros da união de facto tiverem acordado sobre tais relações, nomeadamente através dos designados contratos de coabitação.
III - Podendo, em alguns casos, o instituto do enriquecimento sem causa ser chamado a resolver as situações em que se discutam os efeitos patrimoniais da dissolução da união de facto, é necessário que a parte que dele se pretenda socorrer articule os factos integradores da correspondente causa de pedir e deduza o respetivo pedido. (sumário do relator)
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
J… instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra R…, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 14.427,73, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 03.04.2014 até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que autor e ré viveram em união de facto desde o ano de 2006 até 09.03.2014, tendo durante a pendência da vida em comum adquirido em conjunto vários bens, os quais à data da rutura da vida em comum tinham os valores que indica, sendo um desses bens um veículo automóvel, com a matrícula …, adquirido pelo valor de € 24.708,00, dos quais € 7.709,20 foram amortizados por via da entrega do veículo …, propriedade do autor.
À data da cessação da vida em comum autor e ré tinham, em conjunto, direito a reembolso de IRS respeitante ao ano de 2013, no valor de € 840,00 e existia também passivo, resultante de créditos contraídos junto de várias entidades bancárias e financeiras, cujo valor total ascendia a € 12 400,96, sendo que tais dívidas beneficiavam de planos de amortização, com pagamentos em prestações, tendo as partes acordado em pôr termo à compropriedade nos referidos bens e proceder à sua divisão, sendo todos os bens do ativo adjudicados à ré, o mesmo sucedendo com o reembolso do IRS, e no que respeita ao passivo foi acordado que uma parte do mesmo seria da responsabilidade do autor e outra parte seria da responsabilidade da ré.
Das divisões feitas ficou a caber à ré de valores do ativo a quantia de € 17.480,00 e de valores de passivo o montante de € 3.131,75, ficando a caber ao autor o valor do passivo de € 9.269,31, pelo que feitas as devidas compensações, resultou um saldo credor a favor do autor de € 14.427,73, cujo montante a ré não pagou.
A ré contestou, impugnando parte da factualidade alegada, contrapondo que não lhe foi adjudicado o ativo de € 17.480,00, mas apenas o de € 2.144,00, sendo adjudicado ao autor o ativo de € 4.901,07, e quanto ao passivo ficou a cargo da ré efetuar o pagamento da quantia de € 11.822,21 e não de € 3.131,75, sendo ainda o autor devedor à ré das dívidas próprias que esta pagou e que identifica, no montante de € 23.556,51.
Deduziu ainda a ré reconvenção, pedindo que a partilha seja feita nos termos do acordo junto como “Doc. nº 1” e o autor/reconvindo condenado a pagar-lhe a quantia de € 2.095,00. Mais pede a condenação do autor como litigante de má-fé, em multa e indemnização que o Tribunal julgue mais adequada.
O autor apresentou réplica, a qual, por despacho proferido em 05.01.2017, foi mandada desentranhar com fundamento na sua extemporaneidade.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar e admitido o pedido reconvencional, com subsequente identificação do objeto do litígio e indicação dos factos assentes e enunciação dos temas da prova, sem reclamação.
No início da audiência de julgamento ocorrida em 06.11.2017, a ré veio ampliar o pedido reconvencional, o que obteve provimento parcial nos ternos da decisão proferida a fls. 257 e 258.
Por despacho de fls. 270 proferido em 15.02.2018, foi atualizado o objeto do litígio.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença em cujo dispositivo se consignou:
«Pelo exposto, o Tribunal decide:
a) Julgar improcedente, por não provado, o pedido deduzido pelo autor e, em consequência, absolver a ré do mesmo;
b) Julgar parcialmente procedente o pedido reconvencional deduzido pela ré contra o autor e, em consequência, condenar o autor a pagar à ré a quantia de 2.095,00€ e ainda, nas prestações vincendas que venha a pagar, a que acresce o montante de € 23556,31, relativo a dívidas próprias do autor, anteriores à união de facto e pagas na pendência desta, com fundamento no enriquecimento sem causa do mesmo.
c) Julgar improcedente por não provado o pedido de condenação por litigância de má-fé do autor, absolvendo-o do mesmo.
d) Custas do pedido principal a cargo do autor, nos termos do artigo 527.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
e) Custas do pedido reconvencional a cargo do autor nos termos do artigo 527.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
f) Custas do pedido de condenação como litigante de má-fé, a cargo da ré.»
Inconformado, o autor recorreu não apenas da sentença – invocando erro de julgamento da matéria de facto e de direito -, mas também do despacho saneador “na parte em que julgou o processo isento de nulidades que o invalidassem e que julgou inexistentes nulidades ou questões prévias que cumprisse conhecer” e do despacho que admitiu a ampliação do pedido reconvencional.
A ré/reconvinte contra-alegou, tendo cingido a sua resposta à questão da extemporaneidade da apelação, matéria que foi decidida pelo relator no despacho de 11.02.2019, em que se concluiu pela tempestividade do recurso.
Esta Relação, por acórdão proferido em 14.03.2019, não obstante ter julgado improcedentes vários segmentos do recurso, nomeadamente o respeitante ao despacho de admissão da ampliação do pedido, julgou procedente a apelação e revogou a sentença recorrida na parte em que havia julgado procedente a reconvenção e, em consequência, absolveu o autor do pedido reconvencional.
Entendeu-se, em síntese, no acórdão, que não tendo o autor e a ré/reconvinte formulado o pedido de declaração da dissolução da união de facto, nos termos do art. 8º, nº 3, da Lei nº 7/2001, e sendo tal de conhecimento oficioso, ficava comprometida a procedência da reconvenção, e ainda que assim não fosse entendido, uma vez que a ré/reconvinte não tinha formulado no processo nenhum pedido de restituição por enriquecimento sem causa, não podia a sentença recorrida ter condenado o autor com fundamento em tal instituto.
Inconformada com o assim decidido, foi a vez da ré/reconvinte pedir a revista, tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 10.12.2019, na procedência do recurso, anulado o acórdão recorrido e ordenado a remessa dos autos a esta Relação para conhecer do mérito da reconvenção.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
A única questão a solucionar, tendo em conta o decidido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido nos autos, é a de saber se a reconvenção é ou não procedente com fundamento diverso do enriquecimento sem causa.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos[1]:
Assentes em sede de despacho saneador:
a) Autor e ré mantiveram desde o ano de 2006 até 09/03/2014 residência comum (à Rua …), tomando as refeições em comum, dormindo juntos, com relacionamento afetivo e sexual, com o propósito de vida familiar, afirmando-se como cônjuges de facto e como tal sendo reputados e tratados pela generalidade das pessoas que com eles se relacionava, e tudo isso de modo continuado e duradouro (acordo).
b) Após 09/03/2014, a autora ao contrário do réu, manteve residência da habitação “supra” referida (acordo).
c) Durante a pendência da vida em comum adquiriram em conjunto bens vários, de entre os quais os seguintes: uma máquina de secar roupa, uma máquina de lavar roupa, uma máquina de lavar loiça, uma máquina de fitness, uma máquina fotográfica, uma máquina de café e um veículo automóvel marca Chevrolet, matrícula … (acordo).
d) O veículo automóvel marca Chevrolet, matrícula …, foi adquirido pelo valor de € 24.708,00, dos quais € 7.709,20 amortizados por via da entrega do veículo …, que foi avaliado, faturado e creditado por esse valor, ficando acordado que, os remanescentes 16 998.80 seriam pagos pelo casal (acordo e docs. de fls. 10 e 11).
e) O veículo … pertencia ao autor que o havia adquirido e pago antes do estabelecimento da vida em comum com a ré (acordo e doc. de fls. 12).
f) Autor e ré haviam também contraído passivo, resultante das seguintes operações:
Contrato de mútuo nº …, contraído junto da Caixa de Crédito Agrícola de Vila Nova da Baronia; Crédito contraído junto da COFIDIS, referente ao cartão FNAC; Crédito contraído junto da CETELEM (para aquisição de eletrodoméstico “Bimby”); Crédito emergente de cartão do Banco BPI; Crédito emergente de cartão da Caixa Agrícola de Vila Nova da Baronia; Crédito contraído junto da Caixa Geral de Depósitos (conta ordenado) (acordo).
g) À data da cessação da vida em comum, os valores daquelas verbas de passivo eram os seguintes: € 9.269,21; € 387,31; € 644,44; € 750,00; € 600,00 e € 750,00, respetivamente (acordo).
h) Tais dívidas beneficiavam de planos de amortização, com pagamentos em prestações (acordo).
i) Autor e ré convencionaram pôr termo à compropriedade nos bens referidos e proceder à divisão deles (acordo).
j) Quanto ao passivo, convencionaram que a verba de passivo relativa ao Contrato de mútuo nº …, contraído junto da Caixa de Crédito Agrícola de Vila Nova da Baronia, no montante de € 9269,21 ficava da responsabilidade do autor e as demais identificadas na alínea f) ficariam da responsabilidade da ré (acordo e doc. de fls. 30 e 31).
k) A última das divisões (veículo automóvel marca Chevrolet, matrícula … do passivo elencado em f), teve lugar a 03.04.2014, data essa em que formalizaram também o acordo quanto ao passivo (acordo e doc. de fls. 30 e 31).

Da contestação/reconvenção:
l) Aquando da separação, autor e ré celebraram e subscreveram livremente o acordo corporizado no documento de fls. 31 e 31 vº., cujo teor se dá por inteiramente reproduzido (acordo e doc. de fls. 31 e 31 vs.).
m) Tal acordo foi feito na sequência de partilha que ambos fizeram entre si e que consideravam compensar a parte de cada um no património comum (acordo e doc. de fls. 31 e 31 vs.).
n) No âmbito da sua convivência em união de facto a ré contraiu um empréstimo junto da Caixa de Crédito Agrícola, em 29 de Agosto de 2006, alegadamente para obras na respetiva habitação, mas que foi usado para pagar dívidas do autor (não impugnado – artºs. 587, nº 1 e 574, nºs 1 e 2 do CPC).
o) Tendo sido pagas, já no âmbito da convivência, as seguintes dívidas próprias do autor e anteriores à união:
- 9.309,79 € referentes à liquidação total do veículo automóvel de matrícula …;
- 366,98 € referentes ao pagamento de uma prestação do veículo …, anterior à liquidação total;
- 1.700,00 € a J…
- 1.200,00 € à … S.A.;
- 354,76 € de custos referentes ao processo de execução instaurado contra o autor pela …;
- 1.878,49 € referentes a mais-valias originadas na venda do fogo do autor na sequência de partilha no âmbito do seu divórcio;
- 1.800,00 € a A…;
- 1.089,00 € referentes a advogada contratada pelo autor;
- 600,00 € referentes a provisão ao advogado Dr. H…, mediante empréstimo à ré de sua mãe e referente a processo de partilha no âmbito de um anterior casamento do autor;
- 54,00 € referentes a custas do processo de partilha supra referido;
p) - 5.203,49 € referentes ao Proc. nº 116/04.4TBPRL (não impugnado – artºs. 587, nº 1 e 574, nºs 1 e 2 do CPC).
q) Assim, foram pagos no âmbito da união de facto dívidas próprias do autor no montante de 23.556,51 € (não impugnado – arts. 587º, nº 1 e 574, nºs 1 e 2 do CPC).

Do julgamento
Da petição inicial:
r) Enquanto autor e ré viveram juntos, uma máquina de culinária Bimby, foi adquirida pelo valor aproximado de € 1000.
s) Em 09.03.2014, autora e ré aguardavam o reembolso de IRS respeitante ao ano imediatamente transato - de 2013 - no montante de € 840,00.
t) Nos termos acordados entre as partes, o reembolso de IRS referido veio a ser arrecadado pela ré.
Da contestação:
u) Aquando da separação o autor ficou com os seguintes bens:
- 1 frigorífico (no valor de € 250,00);
- 1 bicicleta de estrada (no valor de € 840,00);
- 1 bicicleta de campo (no valor de € 200,00);
- 1 GPS Tom Tom (adquirido por € 99,00);
- 1 portátil Samsung (adquirido por € 275,99);
- 1 telemóvel Nokia (adquirido por € 34,00);
- 1 Aspirador (adquirido por € 34,90);
- 1 Mota, marca Zundap, no valor de € 400,00;
- Diversas ferramentas, parte delas adquiridas por € 1.117,18;
- Louças diversas, roupa de cama e de mesa, no valor de € 150,00;
- Veículo automóvel Opel Corsa …, no valor de € 1.500,00.
v) A ré durante o período da união de facto auferia entre € 20.000,00 e € 21.000,00 ilíquidos anuais.
w) O autor auferia cerca de € 600,00 mensais ilíquidos, isto é, cerca de € 7.000,00 anuais.
x) A máquina de lavar roupa (que foi comprada para substituir a da ré que avariou), custou em Fevereiro de 2011, € 270,00, a máquina de lavar louça, custou em Março de 2010, € 239,00, a máquina de culinária Bimby, custou em Fevereiro de 2013, € 966,00.
y) Esta máquina (Bimby) foi adquirida com recurso a crédito com prestações mensais de € 27,36.
z) Entre a data da compra e a separação do casal foram pagas apenas 12 prestações, isto é, € 328,32, tendo a ré pago as que se venceram posteriormente.
aa) Os materiais para a construção de um alpendre (telheiro) importaram, em Outubro de 2016, em € 400,00 e foram exclusivamente pagos com o recurso a dinheiros da ré.
bb) O sofá referido em 2) foi adquirido pela ré antes do início da convivência com o autor.
cc) O veículo automóvel referido na al. d) foi adquirido em 09.09.2009 com recurso a crédito da CETELEM, no montante de € 17.200,00.
dd) Daquele empréstimo foram, durante a convivência, pagas 54 prestações, ficando em falta o pagamento de € 8.543,24.
ee) Como autor e ré haviam acordado que este bem ficaria para a ré, bem como a obrigação do pagamento do crédito, esta verba do passivo não foi referida no Acordo referido em m) e l), porque o valor ainda em dívida e o valor comercial do carro eram idênticos. Neste particular, o valor do ativo era compensado pelo valor do passivo, cujo pagamento ficou a cargo e está a ser feito pela ré.
ff) Em 25 de Outubro de 2007 foi contraído novo crédito para consumo ao BPI, no montante de € 10.000,00, que foi utilizado por autor e ré.
gg) Aquando do termo da convivência entre autor e ré, a quantia ainda em dívida referente a este crédito era de € 8.750,46.
hh) Cujo pagamento tem sido exclusivamente suportado pela ré.
ii) É a ré quem tem vindo a pagar as prestações referentes à amortização do crédito de € 9.269,21 mencionado em g).
jj) À ré foi adjudicado o ativo de € 2.114,00.
kk) Ao autor foi-lhe adjudicado o ativo de € 4.901,07.
ll) À ré foi adjudicado o passivo de 11,882,21.

A sentença considerou não provados os seguintes factos:
a. À data da rutura da vida em comum, os bens descritos em c) tinham os seguintes valores:
- máquina de secar roupa - € 500;
- máquina de lavar roupa - € 400;
- máquina de lavar loiça - € 250;
- máquina de fitness - € 150
- máquina fotográfica - € 80;
- máquina de café - € 40;
- veículo automóvel marca Chevrolet, matrícula … - € 14.000.
b. Autor e ré adquiriram em conjunto máquina de culinária Bimby, materiais de construção, para construção de um telheiro na casa referida em a), no valor de € 500 e um sofá, no valor de € 220.
c. Nos termos das convenções de divisão, todos os bens de ativo foram adjudicados à ré, ficando na sua posse e propriedade.
d. À ré ficou a caber de valores do ativo € 17.480,00, e de valores do passivo € 3.131,75.
e. Ao autor ficou a caber o valor do passivo de € 9.269,31.
f. Resultando um saldo credor em favor do autor do montante de € 14.427,73.
g. A ré não procedeu ao pagamento daquele valor.
h. O autor necessitava desse atempado pagamento, quer para fazer face aos encargos de amortização do passivo que assumia, quer para fazer face ao estabelecimento da nova residência a que, por efeitos da vida em comum, se via forçado, encargos esses que, em resultado da omissão da ré, não pôde satisfazer integralmente.
i. A contribuição para a aquisição dos bens identificados em a) não foi de igual montante.

O DIREITO
Escreveu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido nestes autos:
«(…), no caso concreto, resulta, inclusive, do despacho que admitiu a ampliação do pedido e que foi confirmado pela Relação, que o fundamento que sustenta o pedido reconvencional, para além do incumprimento do acordado quanto ao passivo “adjudicado” ao autor, que justificou a condenação no pagamento da quantia de € 2.095,00, e ainda, nas prestações vincendas que a ré/reconvinte venha a pagar, se fundou na compensação que a ré alega ter direito, no montante de € 23.556,51, respeitante a dívidas próprias do autor, anteriores à união de facto e pagas na pendência desta.
Ora, sendo estes os fundamentos da reconvenção admitida nos autos (nos termos inicialmente deduzidos e objecto de ampliação do pedido), não podia a Relação julgar, desde logo, improcedente a reconvenção, por não ter sido formulado qualquer pedido de restituição com fundamento no enriquecimento sem causa, sem conhecer, ainda que em termos diversos da 1.ª instância, de um outro fundamento jurídico – aquele, aliás, que foi formulado pela demandante – que justificasse o pedido de pagamento ou de compensação formulado pela ré/reconvinte.»
A questão que importa dirimir é, assim, a de saber se da factualidade dada como provada, resulta a emergência do direito invocado pela ré/reconvinte de ser compensada do pagamento de dívidas próprias do autor que efetuou na pendência da união de facto, bem como da quantia de € 2.095,00, em consequência do denominado “Acordo de Partilha” celebrado entre as partes.
Escreveu-se a este propósito na sentença recorrida:
«Articulando o presente caso com os pressupostos do enriquecimento sem causa, importa referir que, de facto, o pagamento, por parte da ré, de grande parte das despesas efectuadas com aquisição de bens por ambos usufruídos durante a união, constituiu um empobrecimento do património daquela, em virtude do enriquecimento do autor. Na verdade, o autor para além de se ter subtraído ao pagamento de todos aqueles gastos custeados pela A., usufruiu de bens para os quais, segundo a matéria dada como assente, pouco ou nada, contribuiu.
Não resulta que, em algum momento, a R. estivesse imbuída num espírito de generosidade tal, que a levasse a assumir responsabilidades, financeiramente, onerosas, independentemente da manutenção da relação de vida em comum mantida com o R.. Parece-nos, sim, que todos os gastos custeados pelo R. com a aquisição de bens móveis, bem como, todos os créditos assumidos, foram-no no pressuposto da existência de uma relação de vida em comum com o A.. O mesmo se poderá concluir dos empréstimos contraídos para pagamento de dívidas próprias do A., acção essa que, certamente resultou de uma ponderação conjunta de ambos os conviventes, que concluíram que tal investimento se repercutiria numa melhoria das condições de vida de ambos.
A isto acresce que, pese embora a nossa legislação nacional e a europeia à qual devemos obediência, consagre o direito de igualdade de género, como alicerce fundamental de uma sociedade civilizada, o país onde se inserem as partes, mormente, a região onde o pleito se discute, ainda se mostra socialmente embrenhado em valores tradicionais, que remetem os cidadãos do género feminino para um papel tradicional, complemente desfasado das conquistas hodiernas e repercussão que o respectivo mérito, traduzido nas responsabilidades sociais e profissionais que assumem na sociedade, que potenciam, quer, o aproveitamento económico de que o autor beneficiou durante a união de facto, quer a desculpabilização social da sua conduta o que, na minha perspectiva, urge ser corrigido e sancionado.
Por todo o exposto, não subsistem dúvidas que a decisão justa, nesta situação de vida, é a de declarar completamente improcedente o pedido deduzido pelo autor e declarar procedente o pedido reconvencional deduzido pela ré».
Este enquadramento jurídico não foi aceite por esta Relação no Acórdão anteriormente proferido, na ponderação de que a ré/reconvinte, em parte alguma da contestação/reconvenção – local próprio para formular o pedido e a causa de pedir –falou em enriquecimento sem causa, diretamente ou invocando disposições legais que se lhe refiram, nem deduziu sequer pedido relativo a uma qualquer obrigação de restituir um qualquer eventual enriquecimento[2].
Vejamos, então, se a matéria de facto apurada sustenta o pedido reconvencional deduzido pela ré, com outro fundamento jurídico que não o enriquecimento sem causa[3].
O art. 1º, nº 2, da Lei 7/2001, de 11.05, na redação dada pela Lei 23/2010, de 30.8, define união de facto como a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.
Podendo ser considerada uma relação jurídica familiar, concretizando um direito, que é constitucionalmente garantido – o direito de constituir família (art. 36º, nº 1, da CRP) – tal não significa que deva ser concedido aos unidos de facto um tratamento igual ao que é dispensado aos cônjuges.
Casamento e união de facto são situações materialmente diferentes, não se justificando, nem havendo fundamento legal para estender a esta situação de facto as normas que disciplinam o casamento e respetivos efeitos.
Sendo, porém, inegável que a união de facto passou a ser uma opção de vida de muitos casais, em detrimento do casamento, permitindo, tal como este, a realização pessoal dos seus membros, o direito, acompanhando esta evolução, tem consolidado o reconhecimento dessa realidade social e alargado os seus efeitos.
Apesar disso, importa reconhecer que o regime legal da união de facto tem «carácter fragmentário e disperso», embora não «necessariamente lacunoso», por ser de admitir ter sido intenção do legislador conferir efeitos limitados às uniões de facto[4].
Na verdade, para além de pontuais normas de proteção, próprias de diversas áreas (trabalho, fiscal, funcionalismo público e segurança social), o regime legal nada prevê sobre as relações patrimoniais entre os membros da união de facto: não existe um regime de bens, nem têm aplicação as regras que disciplinam os efeitos patrimoniais do casamento, independente do regime de bens – administração de bens, dívidas, liquidação e partilha.
Assim, afastada a possibilidade de aplicação analógica das normas reguladoras das relações patrimoniais do casamento, as relações patrimoniais entre os membros da união de facto ficam sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais[5], exceto se aqueles tiverem acordado nesse sentido, nomeadamente através dos designados contratos de coabitação[6], já que nada impede que os unidos de facto acordem livremente na divisão dos bens que integram o acervo patrimonial constituído no seio da união de facto, quando esta terminar.
E foi isto que sucedeu in casu, tendo autor e ré celebrado o acordo que faz fls. 30-31 dos autos, que denominaram “Acordo de Partilha”, o qual, aliás, constitui a causa de pedir da reconvenção deduzida pela ré.
Com efeito, esta peticionou que se fizesse «a partilha nos termos constantes do Acordo junto como Documento nº 1 e o A./reconvindo ser condenado a pagar à R. a quantia de 2.095,00€ (…) e ainda nas prestações vincendas que venha a pagar».
Em sede de audiência e julgamento veio a ré ampliar aquele pedido, peticionando também a condenação do autor a compensá-la no valor das dívidas próprias dele, que foram pagas na pendência da união de facto.
Comecemos por analisar se é devida a quantia inicialmente peticionada pela ré/reconvinte, tendo por base o já mencionado “Acordo de Partilha” de fls. 30-31 dos autos.
Nos termos do referido acordo, o passivo é o que se encontra discriminado nas alíneas a) a f) da cláusula 2ª, e diz respeito a empréstimos contraídos junto de várias entidades financeiras na pendência da união de facto, sendo que nos termos da cláusula 4ª do mesmo acordo, o autor obrigou-se “a saldar o débito referido na al. a) da cláusula 2ª”.
Ora, o débito referido na alínea a) da cláusula 2ª é referente a um contrato de mútuo contraído junto da Caixa de Crédito Agrícola de Vila Nova de Baronia, sendo o montante em dívida de € 9.269,21, sendo que essa dívida, tal como as restantes, beneficiava de um plano de amortização, com pagamentos em prestações, como está, aliás, provado [alíneas f), g) e h), dos factos provados].
Mais resultou provado que é a ré/reconvinte quem tem vindo a pagar as prestações referentes à amortização da dívida que, nos termos do acordo referido, o autor se obrigou a pagar, sendo que o valor das prestações pagas pela ré quando deduziu o pedido reconvencional ascendia a € 2.095,00.
Por conseguinte, nada há opor à procedência do pedido reconvencional nos termos inicialmente deduzido, estando o autor obrigado a pagar à ré a referida quantia, acrescida dos montantes correspondentes às prestações vencidas que a mesma tenha pago e dos valores referentes às prestações vencidas que a mesma venha eventualmente a suportar.
O mesmo, porém, não se pode dizer quanto às dívidas próprias do autor que foram pagas na pendência da união de facto e discriminadas nas alíneas o) e p) dos factos provados.
No acordo a que se vem aludindo, estipularam as partes na cláusula 8ª.
«Os outorgantes vinculam-se reciprocamente ao cumprimento do presente acordo, assim se extinguindo as obrigações patrimoniais entre ambos decorrentes da dissolvida união de facto.»
Assim, se fosse vontade das partes que as dívidas próprias do autor, liquidadas na pendência da união de facto, tivessem de ser suportadas exclusivamente pelo autor, não teriam deixado de o dizer no denominado “Acordo de Partilha”, onde discriminaram com alguma minúcia os elementos do passivo e quem ficava responsável pelo seu pagamento.
E não será muito difícil compreender porque foi essa a vontade das partes, pois uma das dívidas próprias do autor (a de maior valor) diz respeito à liquidação total do veículo … pertencente ao autor, no montante de € 9.309,79, a que acresce outra dívida de € 366,98 respeitante ao pagamento de uma prestação desse mesmo veículo, anterior à liquidação total do mesmo [alínea o) dos factos provados].
Ora, na pendência da união de facto autor e ré adquiriram o veículo automóvel marca Chevrolet, matrícula …, pelo valor de € 24.708,00, dos quais € 7.709,20 foram amortizados por via da entrega do veículo …, que foi avaliado, faturado e creditado por esse valor, ficando acordado que, os remanescentes 16 998.80 seriam pagos pelo casal [alínea d) dos factos provados].
Significa isto que o pagamento daquela dívida própria do autor se destinou à aquisição pelos membros da união de facto de um outro veículo, o qual, aliás, foi adjudicado à autora nos termos da cláusula 5ª do acordo a que vimos aludindo.
Acresce que tendo autor e ré vivido em união de facto durante cerca de oito anos, não custa admitir que o pagamento das restantes dívidas do autor na pendência daquela união, tenha sido considerado compensado no âmbito da gestão da economia doméstica delineada pelas partes, assim se explicando, aliás, que autor e ré não as tenham englobado no passivo do denominado “Acordo de Partilha”.
Uma nota final sobre a aplicação ao caso em apreço do regime jurídico do enriquecimento sem causa:
Já vimos que o instituto pode ser chamado a resolver as situações em que se discutam os efeitos patrimoniais da dissolução da união de facto.
Não assim, no caso dos autos.
Na verdade, na contestação/reconvenção a ré não só não articulou os factos integradores da correspondente causa de pedir, como nem sequer deduziu pedido relativo a qualquer obrigação de restituir um qualquer eventual enriquecimento, pelo que, como já escrevemos no Acórdão anteriormente proferido, não podia a sentença recorrida ter condenado o autor com fundamento no enriquecimento sem causa.
O recurso procede, pois, em parte.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação, na parcial procedência da apelação, em revogar a sentença recorrida na parte que julgou parcialmente procedente a reconvenção e condenou o autor no pagamento da quantia de € 23.556, 31, mantendo, no mais, a decisão recorrida.
As custas da reconvenção e do recurso são da responsabilidade da ré e do autor, na proporção do respetivo decaimento.
Évora, 13 de fevereiro de 2020
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso
Tomé Ramião
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[1] Os quais foram mantidos integralmente no acórdão desta Relação anteriormente proferido nos autos.
[2] Relembre-se que este foi um fundamento adicional invocado para a improcedência da reconvenção, pois o fundamento essencial aduzido no Acórdão, para essa decisão, assentou no facto de nenhuma das partes ter formulado o pedido de declaração da união de facto entre si (art. 8º, nº 3, da Lei nº 7/2001), entendimento este que não foi acolhido pelo STJ.
[3] Havendo pedido formulado nesse sentido, reconhecemos que em certos casos, não sendo viáveis, perante o circunstancialismo fáctico provado, outras soluções jurídicas, resta, para resolver os problemas patrimoniais causados pela rutura da união de facto, o recurso ao enriquecimento sem causa - vide Acórdão do STJ de 27.06.2019, proc. 944/16.8T8VRL.G1.S2, disponível, como os demais adiante citados, em www.dgsi.pt, com citação de doutrina e jurisprudência ilustrativa desse entendimento.
[4] Neste sentido, Júlio Gomes, O enriquecimento sem causa e a união de facto, em Cadernos de Direito Privado, 58-5, citado no acórdão do STJ a que se alude na nota 3, que aqui seguimos de perto.
[5] Neste sentido Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, 5ª ed., p. 82.
[6] Sobre a celebração de contratos de coabitação nas uniões de facto, vide Ana Rita Ferraz Laranja Pontes, Os efeitos patrimoniais decorrentes da cessação da união de facto: a divisão do património no final da vida em comum, in https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/16339/1/TESE%20DOC.%201.pdf.