Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
480/20.0TXEVR-C.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
RELATÓRIO PERICIAL
Data do Acordão: 09/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - Os relatórios dos serviços prisionais e dos serviços de reinserção social referenciados nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 173º do CEPMPL, constituem elementos de que o juiz se socorre e que apreciará livremente, para poder formular o juízo sobre se estão ou não verificados os pressupostos substanciais da concessão da liberdade condicional.

2 - Não enferma de inconstitucionalidade material a norma do artigo 173º n.º 1 b) do CEPMPL, por não garantir ao recluso, que sendo ouvido pelos Técnicos da DGRSP, que vão elaborar o relatório ali mencionado, o direito a que essa entrevista seja gravada em áudio, em violação do direito a um efetivo recurso e do artigo 32º n.º 1 da CRP.

3 - Os relatórios dos serviços prisionais e dos serviços de reinserção social e as conclusões neles formuladas, pelos Técnicos que os elaboram, alicerçadas nos elementos recolhidos, sendo a entrevista ao recluso um desses elementos e que devem versar sobre os itens previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 173º do CEPMPL, não constituem prova pericial, a qual está sujeita ao regime previsto nos artigos 154º e seguintes do CPP.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. No âmbito do processo 480/20.8TXEVR-C, do Tribunal de Execução de Penas de Évora - Juízo de Execução de Penas de Évora - Juiz 1, foi proferida decisão, datada de 28/05/2021, de não concessão da liberdade condicional ao recluso (...), melhor identificado nos autos, atualmente preso no Estabelecimento Prisional de Beja.
1.2. Inconformado, o recluso interpôs o presente recurso para este Tribunal da Relação, formulando as conclusões que seguidamente se transcrevem[1]:
«1. O condenado apresentou-se voluntariamente na prisão poucos dias antes do Natal de 2020 para cumprir o remanescente da pena e a que foi condenado.
2. O que diz “prima facie” da sua personalidade. Mas que o douto Tribunal não relevou.
3. O condenado manteve sempre bom comportamento prisional no EP de Beja. (Facto que a douta sentença não entendeu relevante).
4. Os Serviços de Vigilância do EP de Beja (que convivem diariamente com o condenado deram parecer favorável nos autos para que ao arguido fosse concedida a L.C.), facto que não mereceu qualquer relevância na recorrida sentença, sem a mínima explicação.
5. O Relatório dos Serviços de Reinserção Social existente nos autos configura prova proibida, (art.º 126.º n.º 2 alínea a) “in fine” do CPP dado ter sido efetuado com base numa entrevista não gravada com o condenado e onde lhe não foi solicitado o “consentimento informado” para eventual análise psicológica. Ainda assim a pessoa que o entrevistou tece considerações/afirmações sobre o estado psicológico do arguido, (denegrindo-o) - e sobre alegada tendência para desculpabilização/vitimização, o que, segundo o arguido, não corresponde à verdade do que sucedeu nessa entrevista.
6. O art.º 173.º n.º 1 b) do CEPMPL aprovado pela Lei 115/2009 de 15 de Outubro revela-se materialmente inconstitucional por não garantir ao condenado o direito a ser ouvido pelos Técnicos do DGRSP a que vão elaborar esse Relatório, em entrevista gravada em áudio. Essa não possibilidade inquina o lídimo direito a um efectivo recurso previsto na Lei. Pelo que a citada omissão viola o disposto no art.º 32.º n.º 1 da CRP.
7. Do excesso de pronúncia – art.º 379.º n.º 1 alínea c) do CPP. Da valoração de um meio de prova “enganoso- O douto Tribunal conheceu do que não podia/ou não devia conhecer – e o Relatório baseado numa entrevista (não gravada) entre o arguido e Técnico da DGRSP constitui “meio enganoso” de prova –:
8. Constituindo o citado Relatório “prova proibida” por abusiva intromissão na vida privada do condenado (são-lhe colocadas questões de natureza pessoal e privada sem a advertência que as mesmas podem ser usadas contra ele e sem que o condenado tenha possibilidade de provar o que efetivamente declarou), a douta sentença não podia valorar esse Relatório “máxime” as conclusões do mesmo que denigrem a imagem do condenado perante o TEP. Por isso foi cometida, pela instância, a nulidade de excesso de pronúncia, prevista no art.º 369.º do CPP
9. O condenado declarou aceitar a liberdade condicional. Os Serviços de Vigilância do EP de Beja deram a sua anuência a que esta lhe fosse concedida. Nem a natureza do crime, nem o facto de este “não ser aceite socialmente” seriam impeditivos, no caso vertente, para que fosse concedida a LC ao recorrente.
10. Uma vez que este reúne – como resulta dos autos – todos os requisitos constantes do art.º 61.º n.º 1 e 2 do Código Penal.
11. Uma mera sugestão do Relatório Social não datada no tempo e que surge apenas como pura especulação de que seria desejável “a oportuna integração do recluso em programa visando a prevenção da violência doméstica” – o que é sublinhado na douta sentença a pág. 4 não podia ter a virtualidade de impedir a concessão ao arguido da concessão de LC.
12. Mais: essa integração do arguido no tal programa pode fazer-se em meio natural.
Nenhuma lei o impede de o fazer em meio livre, pelo que a apontada sugestão, foi erradamente interpretada na recorrida sentença.
13. A recorrida sentença terá assim violado por mero erro interpretativo quer o disposto no art.º 61.º n.º 1 e 2 do CP, quer o art.º 127.º do CPP (quanto à incorreta valoração da prova considerando válida prova proibida).
14. O conteúdo negativo de um Relatório da DGRSP consistindo em meras opiniões ou meros juízos de valor desses mesmos Técnicos da DGRSP não assentes em qualquer prova legal e isenta e desacompanhado do “consentimento informado” do examinado, mão deveria ter sido valorado como meio de prova, por se tratar de “prova proibida” de meio enganoso de prova, a cair na previsão do art.º 126.º n.º 2 a) “in fine” do CPP
15. Os factos dados como provados no caso “subjuditio” quanto à conduta prisional do recorrente ao longo do seu tempo de reclusão apontam para uma (re)valorização positiva da sua personalidade, que se traduz “in concreto” no muito bom comportamento institucional manifestado, no cumprimento e observância de todas as regras do EP e no correcto comportamento tido, ao longo do tempo de reclusão.
16. Incorreu ainda o Tribunal a quo, numa importante omissão de pronuncia sobre factos relevantes, como a conduta do arguido durante os 11 meses de liberdade, as suas escolhas, as suas decisões, factos esses documentados devidamente nos autos, por prova documental, objectivamente comprovados.
17. Ou seja, tudo o quanto poderia e deveria militar a favor do condenado, levando á expectável concessão da Liberdade Condicional, foi desatendido pelo Tribunal.
18. Com o devido respeito, que é muito e bem devido, mas, não desvalorizando o crime pelo qual o arguido veio condenado, que é grave como bem se sabe, e ele também, a verdade é que, não é comum que entre os condenados por este crime, ou outros com a mesma gravidade, se encontrem muitos com a capacidade que este recluso teve de assumir responsabilidade, mudar de casa, emprego, amigos e família, para não melindrar a própria vitima, pensando nela e no seu bem estar, e do justo receio que a mesma pudesse sentir com a proximidade com o arguido.
19. Lamenta-se apenas que a ponderação não tenha sido criteriosa, fundamentada facticamente e objectivamente, versando sobre todos estes factos, e não só sobre o relatório junto aos autos.
20. Note-se que o primeiro relatório feito pela equipa da pulseira eletrónica, ao contrário, observou o arguido de uma forma muito diferente.
Pelo que deverá ser revogada e substituída por outra, que por mais douta e acertada conceda a liberdade condicional ao recorrente,
Assim fazendo Vossas Excelências Venerandos e Preclaros Desembargadores, a melhor e mais sábia JUSTIÇA!»
1.3. O recurso foi regularmente admitido.
1.4. O Ministério Público, junto da 1ª Instância, apresentou resposta ao recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
«1 - Por sentença proferida no âmbito dos autos à margem referenciados, não foi concedida a liberdade condicional a (...), tendo este atingido metade do cumprimento da pena de 3 anos de prisão, que lhe foi aplicada no processo nº 1634/18.2GLSNT da Instância Central de Sintra – Secção Criminal – J4 – da Comarca de Lisboa Oeste, pela prática de um crime de violência doméstica.
2 - Tal decisão baseou-se nos elementos constantes dos autos, designadamente nos relatórios juntos a fls. 57 a 59 e 68 a 73, na ficha biográfica de fls. 60/61, no CRC de fls. 62 a 65 e nas declarações do recluso de fls. 87, encontrando-se a sentença recorrida devidamente fundamentada de facto e de direito.
3 - A esses elementos estão subjacentes fortes razões de prevenção especial que se fazem sentir em relação ao condenado, derivadas de uma sofrível interiorização crítica relativamente à sua conduta criminosa e suas consequências, de um percurso de ressocialização/reaproximação ao meio livre que não se mostra minimamente consolidado e bem assim dos seus antecedentes criminais.
4 - Tanto vale por dizer, que não é razoável efectuar um juízo de prognose positivo de que aquele uma vez em liberdade adopte um comportamento conforme à lei penal e afastado da prática de novos crimes.
5 - Acresce que, em face da gravidade, danosidade e alarme social do crime em causa são, também, muito elevadas as exigências de prevenção geral positiva, pelo que tal libertação antecipada não se mostra compatível com a defesa da ordem e da paz social.
6 - Por consequência, não se mostrando verificados os pressupostos materiais/substanciais previstos nas alíneas a) e b) do n º 2 do artigo 61 º do CP, não é legalmente admissível a concessão da liberdade condicional.
7 - Precisamente por isso, quer o Conselho Técnico quer o Ministério Público emitiram pareceres desfavoráveis à concessão da liberdade condicional.
8 - Pelo que bem andou o Tribunal "a quo" ao não conceder a liberdade condicional ao recluso, sendo evidente que na decisão recorrida foi feita uma correcta e adequada ponderação dos factos e aplicação do direito.
Nesta conformidade, deverão V.as Ex.as negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
Assim, será feita justiça.»
1.5. Neste Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso não dever merecer provimento e de dever manter-se a decisão recorrida.
1.6. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do CPP, tendo o recorrente exercido o direito de resposta, contraditando os fundamentos aduzidos pelo Exm.º PGA no parecer que emitiu e reiterando o pedido de que seja dado provimento ao recurso.
1.7. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
As conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respetivo objeto – cf. artigo 412º, nº. 1, do CPP –, isto sem prejuízo, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
Assim, atentas as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso apresentada, constituem questões a decidir as seguintes:
- Se o Relatório dos Serviços de Reinserção Social a que o Tribunal a quo atendeu na decisão recorrida, constitui prova proibida;
- Nulidade da decisão recorrida, por excesso de pronúncia e por omissão de pronúncia;
- Saber se estão verificados os pressupostos da concessão da liberdade condicional.
2.2. Decisão recorrida
Para que possamos apreciar as questões suscitadas no recurso, importa ter presente o teor da decisão recorrida, que se passa a transcrever:
«(…)
«I - Relatório
O presente processo de liberdade condicional reporta-se a (...) (melhor identificado nos autos), recluído no Estabelecimento Prisional de Beja.
Para apreciação dos pressupostos da liberdade condicional ao meio da pena que cumpre foram juntos os relatórios previstos no art.º 173 n.º 1 do Código de Execução das Penas.
O Conselho Técnico reuniu, emitindo o respectivo parecer, e foi ouvido o recluso. Também o MºPº emitiu o seu parecer.
II - FUNDAMENTAÇÃO
A - OS FACTOS
Julgo provados os seguintes factos com relevância para a causa:
1 - Por decisão proferida no Proc. n.º 1634/18.2GLSNT da Secção Criminal (Juiz 4) da Instância Central de Sintra, o recluso foi condenado, pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de 3 (três) anos de prisão (e ainda no pagamento de indemnização à vítima, bem como a estabelecimento hospitalar) – dou aqui por reproduzida a decisão condenatória constante dos autos;
2 - Apresentando-se voluntariamente em 2/12/2020 para cumprimento da pena, operado tempo de desconto correspondente a período de prisão preventiva antes sofrida, o recluso perfez metade da pena em 7/4/2021, prevendo-se os seus 2/3 para 8/10/2021 e o termo para 8/10/2022;
3 - O recluso não regista outras condenações susceptíveis de consideração jurídica;
4 - Declarou aceitar a liberdade condicional, bem como compreender o seu significado;
5 - O Conselho Técnico emitiu, por maioria dos seus elementos, parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional (com único parecer favorável emitido pelos serviços de vigilância);
6 - Também o MºPº foi desfavorável a tal;
**
7 - Da ficha biográfica do recluso não constam averbados reparos disciplinares, mas os serviços de tratamento penitenciário dão conta da existência de uma repreensão escrita, em Julho de 2019 (por agressão leve a outro recluso);
8 - Cumpre a pena em regime comum e ainda não usufruiu de licenças de saída jurisdicional;
9 - O recluso solicitou colocação laboral, mostrando interesse em participar nas actividades de cariz sócio cultural que venham a ser organizadas pelo Estabelecimento Prisional. Enquanto tal não sucede, ocupa o seu tempo lendo e praticando desporto;
10 - Em liberdade irá viver com a actual companheira e a filha desta, contando com o apoio de outros familiares. Pretendendo retomar o seu trabalho em oficina de reparação auto (actualmente encontrando-se em situação de licença sem vencimento);
11 - Acaba por identificar os factos que se lhe imputam, explicando-se com descontrolo de sua parte, provocado pelo facto de ter ingerido bebidas alcoólicas em excesso (sendo que pelos serviços de tratamento penitenciário é referida tendência do recluso para vitimização e desculpabilização pelo sucedido, considerando importante a sua inserção em programa de prevenção da violência doméstica).
12 - O recluso está ciente de que deve indemnização por danos causados na vítima, mas não se reportou aos mesmos. Afirma-se envergonhado pelo seu comportamento.

B - CONVICÇÃO DO TRIBUNAL
Para prova dos factos descritos o tribunal atendeu aos seguintes elementos constantes dos autos, analisados de forma objectiva e criteriosa:
a) Certidão da decisão condenatória e liquidação da pena;
b) Certificado do Registo Criminal do recluso;
c) Ficha biográfica do recluso e relatório dos serviços de educação;
d) Relatório dos serviços de reinserção social;
e) Declarações do recluso, ouvido no dia 17/5/2021.

C - O DIREITO
Segundo o n.º 9 do Preâmbulo do D.L. nº 400/82 de 23 de Setembro, a liberdade condicional tem como objectivo “…criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão”. Este instituto tem, pois, uma “finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização” [1 - Neste sentido, vide Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, p. 528.]
Segundo o art.º 61 do Código Penal, são pressupostos (formais) de concessão da liberdade condicional:
1 - Que o recluso tenha cumprido metade da pena e, no mínimo, 6 meses de prisão, ou dois terços da pena e, no mínimo, 6 meses de prisão, ou ainda 5/6 da pena, para os casos de penas superiores a 6 anos;
2 - Que aceite ser libertado condicionalmente;
São, por outro lado, requisitos (substanciais) indispensáveis:
A) Que fundadamente seja de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes;
B) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social (requisito que não se mostra necessário aquando dos 2/3 da pena, conforme resulta do disposto no nº 3 do preceito em causa).
Relativamente a estes requisitos, resulta claro que o primeiro se prende com uma finalidade de prevenção especial, visando o segundo satisfazer exigências de prevenção geral. [2 - Neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Direito Prisional Português e Europeu, Coimbra Editora, 2006, p. 356; também António Latas – Intervenção Jurisdicional na Execução das Reacções Criminais Privativas da Liberdade – Aspectos Práticos, Direito e Justiça, Vol. Especial, 2004, p. 223 e 224, nota 32.]
Assim, e considerando que a condução da vida do libertado condicionalmente de modo socialmente responsável e sem o cometimento de novos crimes constitui o objectivo da liberdade condicional, a possibilidade de, no caso concreto, tal escopo ser efectivamente alcançado há-de revelar-se através dos seguintes aspectos:
1) As circunstâncias do caso (valoração do crime cometido - seja quanto à sua natureza, seja quanto às circunstâncias várias que estiveram na base da determinação concreta da pena, nos termos do art.º 71 do Código Penal – e da medida concreta da pena em cumprimento);
2) A vida anterior do agente (relaciona-se com a existência ou não de antecedentes criminais);
3) A sua personalidade (para além de uma valoração fundamentalmente estatística decorrente dos antecedentes criminais [quantos mais, mais se indicia uma personalidade não conforme ao direito e potencialmente não merecedora da liberdade condicional], considera-se a possibilidade de o recluso ter enveredado para um percurso criminoso por a isso ter sido conduzido, ou não, por circunstâncias que não controlou ou não controlou inteiramente);
4) A evolução desta durante a execução da pena de prisão (essa evolução deve ser perceptível através de algo que transcenda a esfera meramente interna psíquica do recluso, ou seja, através de padrões comportamentais temporalmente persistentes que indiciem um adequado processo de preparação para a vida em meio livre).
Deve sublinhar-se que a evolução positiva da personalidade do recluso durante a execução da pena de prisão não se exterioriza nem se esgota necessariamente através de uma boa conduta prisional, muito embora haja uma evidente identidade parcial.
Assim, os referidos padrões poderão revelar-se, quer em termos omissivos (através da ausência de punições disciplinares ou de condutas especialmente desvaliosas, como o consumo de estupefacientes, quando não motive as referidas punições), quer activamente (através do empenho no aperfeiçoamento das competências pessoais – laborais, académicas, formativas) ao longo do percurso prisional do recluso.

*
No caso dos autos estão reunidos os pressupostos formais de que depende a concessão da liberdade condicional: o recluso já cumpriu metade da pena, e consente na sua libertação condicional.
Mas o mesmo não ocorre, a nosso ver, quanto aos requisitos substanciais, concordando-se com os pareceres negativos emitidos pelo Conselho Técnico e pelo MºPº.
Na verdade, e se o recluso mantém postura globalmente correcta, mostrando-se disponível para o trabalho, o certo é que, e apesar do tempo de pena decorrido, ainda não revela suficiente juízo crítico acerca da gravidade e desvalor do crime cometido. Foi assumindo os factos, embora sem que tal lhe surgisse espontaneamente, mas antes porque instado directamente pelo tribunal. E, se se sente envergonhado pelo que fez (que considera ser algo sem exemplo na sua forma de estar), a verdade é que nada refere a propósito dos concretos e graves prejuízos causados na vítima, essa sim, a pessoa visada tutelar com a incriminação em causa. Não revela, pois, de forma clara uma assunção integral do seu comportamento criminoso, situação também notada por quem de perto mais convive consigo (serviços de tratamento penitenciário), tendo mesmo sido sugerido – e o que se aplaude – a oportuna integração do recluso em programa visando a prevenção da violência doméstica.
Existe, pois, a nosso ver, caminho a percorrer neste aspecto, importante vertente de prevenção especial também visada alcançar com a pena imposta.
O recluso ainda não iniciou o processo da flexibilização da pena, o que nos parece também necessário que ocorra logo que reunidos os devidos pressupostos, para que se possa avaliar a sua forma de estar em meio menos contentor, sobretudo agora que irá dispor de um novo apoio familiar (note-se que os factos são de Outubro de 2018, que o recluso esteve em prisão preventiva desde Novembro de 2018 a Janeiro de 2020, e que reentra na prisão a 2/12/2020, sendo que, no entretanto, iniciou novo relacionamento afectivo que, porque recente, ainda carecerá de consolidação).
Cumpre ainda ter presente a medida da pena em execução, fase de execução da mesma e, sobretudo, natureza do tipo de crime cometido. É um crime grave, bastante reprovável e não aceite socialmente, provocando sentimentos de revolta e intolerância, mas, e apesar disso, frequente, impondo-se uma actuação eficaz por parte do Direito para que seja mantida a confiança na sua vigência e, simultaneamente, se dissuada a prática de novas situações semelhantes. No caso, os factos surgem acompanhados de grande violência, reflectida depois nos danos causados.
De tudo o referido, resultam ainda elevadas as exigências de prevenção, geral e especial, surgindo a continuação da prisão como o meio adequado e necessário para as satisfazer.
III - DECISÃO
Pelo que, não concedo a liberdade condicional a (...).
(…).»

2.3. Conhecimento do recurso
2.3.1. Sustenta o recorrente que o Relatório dos Serviços de Reinserção Social a que o Tribunal a quo atendeu da decisão recorrida, constitui prova proibida, traduzindo-se num meio enganoso de prova, nos termos previstos no artigo 126º, n.º 2, alínea a) “in fine” do CPP.
Para fundamentar esse entendimento, invoca o recorrente que o referido relatório foi elaborado com base numa entrevista, não gravada, realizada ao recluso e que não lhe foi solicitado o “consentimento informado” para eventual análise psicológica, tendo a Técnica da DGRSP que elaborou esse relatório, tecido «considerações/afirmações sobre o estado psicológico do arguido, (denegrindo-o) - e sobre alegada tendência para desculpabilização/vitimização, o que (…) não corresponde à verdade do que sucedeu nessa entrevista
Apreciando:
O processo de liberdade condicional, tendo em vista a apreciação da possibilidade de concessão dessa medida ao recluso, é instruído com os elementos que permitam ao juiz tomar uma decisão fundamentada e conscienciosa, nesse âmbito.
Assim, de harmonia com o disposto no artigo 173º, n.º 1, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL), aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro, «Até 90 dias antes da data admissível para a concessão de liberdade condicional, o juiz solicita, fixando prazo:
a) Relatório dos serviços prisionais contendo avaliação da evolução da personalidade do recluso durante a execução da pena, das competências adquiridas nesse período, do seu comportamento prisional e da sua relação com o crime cometido;
b) Relatório dos serviços de reinserção social contendo avaliação das necessidades subsistentes de reinserção social, das perspectivas de enquadramento familiar, social e profissional do recluso e das condições a que deve estar sujeita a concessão de liberdade condicional, ponderando ainda, para este efeito, a necessidade de protecção da vítima;
c) Oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do condenado, outros elementos que se afigurem relevantes para a decisão
Decorre da alínea b) do n.º 1 do artigo 173º do CEPMPL que o relatório dos serviços de reinserção social tem de conter a avaliação:
- das necessidades subsistentes de reinserção social;
- das perspetivas de enquadramento familiar, social e profissional do recluso;
- das condições a que deve estar sujeita a concessão de liberdade condicional; e,
- no caso de existir vítima, deve ponderar, ainda, para efeito de concessão de liberdade condicional, a necessidade de proteção da vítima.
Os relatórios dos serviços prisionais e dos serviços de reinserção social referenciados nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 173º do CEPMPL, constituem elementos de que o juiz se socorre e que apreciará livremente, para poder formular o juízo sobre se estão ou não verificados os pressupostos substanciais da concessão da liberdade condicional.
Como refere o agora Desembargador Joaquim Boavida[2] «Não pode perder-se de vista que os relatórios não constituem um fim em si mesmos, tendo, pelo contrário, a finalidade de recolher informação para ser fornecida ao juiz do tribunal de execução de penas. Complementarmente, podem também fornecer um juízo técnico relativamente aos itens sobre que versam.»
Na elaboração dos referidos relatórios os respetivos Técnicos que os elaboram realizam entrevista ao recluso, podendo este anuir em concede-la ou recusar-se a fazê-lo. E, no caso, de ser efetuada a entrevista ao recluso, não constitui exigência legal que essa entrevista seja gravada, pelo que, carece de total fundamento a invocação pelo recorrente, de que a não gravação da entrevista que lhe foi efetuada, nesse âmbito, por cercear o seu direito ao exercício do contraditório, obstaria a que o relatório dos serviços de reinserção social, que levou em linha de conta essa entrevista, pudesse ser considerado/valorado pelo TEP, na decisão recorrida, constituindo prova proibida, por que obtida mediante meio enganoso, nos termos previstos no artigo 126º, n.º 2, alínea a) “in fine” do CPP.
E não enferma de inconstitucionalidade material a norma do artigo 173º n.º 1 b) do CEPMPL, por não garantir ao recluso, que sendo ouvido pelos Técnicos da DGRSP, que vão elaborar o relatório ali mencionado, o direito a que essa entrevista seja gravada em áudio, em violação do direito a um efetivo recurso e do artigo 32º n.º 1 da CRP.
Como supra se referiu a finalidade tida em vista com a elaboração do relatório dos serviços de reinserção social (tal como do relatório dos serviços prisionais) é a de recolha de informação para ser fornecida ao juiz do tribunal de execução de penas, para o habilitar a decidir sobre a concessão, ou não, da liberdade condicional.
O juiz de execução de penas, com base nos elementos recolhidos, entre os quais, os relatórios dos serviços prisionais e dos serviços de reinserção social, o parecer do conselho técnico e o que resultar da audição do recluso, que, no caso de aceitar a liberdade condicional, é questionado pelo juiz sobre aspetos que considere pertinentes para a decisão a tomar, sendo esta diligência reduzida a auto (cfr. artigo 176º, n.º 5, do CEPMPL), decide sobre a concessão, ou não, da liberdade condicional.
Uma vez que a audição do recluso, pelo juiz do TEP, é reduzida a auto, ficando a constar do mesmo as respostas dadas pelo recluso às perguntas colocadas e sendo recorrível a decisão que venha a tomar sobre a concessão da liberdade condicional (cfr. artigo 179º, n.º 1, do CEPMPL), fica assegurado, ao recluso, o direito ao recurso.
Não se verifica, por isso, a inconstitucionalidade material da norma do artigo 173º, n.º 1, al. b) do CEPMPL, invocada pelo recorrente.
Invoca, ainda, o recorrente que não lhe foi solicitado consentimento informado, para que pudesse ser realizado o relatório dos serviços de reinserção social, versando sobre aspetos da sua personalidade, o que obstaria à valoração desse relatório, como meio de prova, constituindo prova proibida, por abusiva intromissão na vida privada do recluso, sendo-lhe colocadas questões de natureza pessoal e privada e não sendo o recluso advertido de que as respostas dadas poderiam ser usadas contra si.
Vejamos:
Há que ter presente que os relatórios dos serviços prisionais e dos serviços de reinserção social e as conclusões neles formuladas, pelos Técnicos que os elaboram, alicerçadas nos elementos recolhidos, sendo a entrevista ao recluso um desses elementos e que devem versar sobre os itens previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 173º do CEPMPL, não constituem prova pericial, a qual está sujeita ao regime previsto nos artigos 154º e seguintes do CPP.
Os ditos relatórios ainda que versando sobre aspetos relacionados com a evolução da personalidade do recluso durante a execução da pena e que se refletem na postura do recluso perante o crime cometido e necessidades subsistentes de reinserção social, não consubstanciam uma perícia sobre a personalidade, prevista no artigo 160º do CPP e em relação à qual o juízo técnico e cientifico inerente se presume subtraído à livre apreciação do julgador (artigo 163º, n.º 1, do CPP), estando aqueles relatórios, designadamente, as opiniões dos técnicos que os elaboram e que se mostrem alicerçadas nos elementos recolhidos e constantes dos mesmos relatórios, sujeitos à livre apreciação do Tribunal.
Os relatórios dos serviços prisionais e dos serviços de reinserção social para efeitos de concessão da liberdade condicional, como se refere no Ac. da RP de 31/10/2012[3], «não são vinculativos, constituindo, apenas, um importante contributo informativo sobre aspectos relativos às condições pessoais do recluso, à sua personalidade, à evolução durante o período de reclusão, a projectos futuros de vida, etc., que habilita o tribunal a fazer uma avaliação global orientada pelos princípios jurídicos que regem esta matéria.»
O recluso, ora recorrente, estando inteirado de que estavam a ser reunidos elementos com vista à apreciação da concessão da liberdade condicional, ao meio da pena, sendo contatado pelo técnico dos serviços de reinserção social, que lhe colocou algumas questões, respondeu às mesmas, tendo o Sr. Técnico que o entrevistou, em face das respostas dadas pelo recluso e em conjugação com outros elementos recolhidos, extraído ilações e formulado conclusões sobre as necessidades de ressocialização do recluso que considera subsistirem.
O recluso, ora recorrente, estava inteirado da finalidade visada com a entrevista que lhe foi realizada pela Sr.ª Técnica da DGRSP e tanto basta para que se considere que estava devidamente informado, ao anuir em responder às perguntas que, nesse âmbito, lhe foram colocadas.
As conclusões extraídas pela Sr.ª Técnica da DGRSP, com base nas respostas dadas pelo recluso às perguntas colocadas, em conjugação com outros elementos recolhidos em que as alicerça, obviamente que não podiam ser abrangidas pelo consentimento do recluso, pelo que, não se verifica nem a falta de consentimento informado, nem processo enganoso de prova, que inquine o relatório elaborado pelos serviços de reinserção social.
Assim e contrariamente ao que sustenta o recorrente, o mencionado relatório dos serviços de reinserção social, não constitui prova proibida, podendo ser utilizado e valorado, como meio de prova, pelo TEP, para efeitos de apreciação da liberdade condicional do recluso, ora recorrente.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.

2.3.2. Argui o recorrente a nulidade da decisão recorrida, por excesso de pronúncia e por omissão de pronúncia
Vem o recorrente arguir a nulidade da decisão recorrida, por excesso de pronúncia, nos termos dos artigos 379º, n.º 1, al. c), do CPP, concretamente, por ter valorado o Relatório da DGRSP, que, na ótica do recorrente, constitui prova proibida, por se basear numa entrevista (não gravada) entre o arguido e Técnico da DGRSP que por conter considerações sobre a personalidade do ora recorrente, sem que este tivesse prestado consentimento informado.
A apreciação desta questão mostra-se prejudicada, em face do supra decidido em 2.3.1., considerando-se que o relatório elaborado pela DGRSP constituiu meio de prova válido, nada impedindo a sua valoração, pelo Sr. Juiz do TEP, na decisão recorrida.
Ainda assim sempre se dirá que, nunca se estaria perante uma nulidade, por excesso de pronúncia, na medida em que como decorre do disposto na al. c) do n.º 1 do artigo 379º do CPP, o excesso de pronúncia ocorre quando o Tribunal conheça de questão de que não podia conhecer, o que não seria o caso. Quando exista valoração pelo tribunal de prova proibida, a nulidade daí decorrente tem como consequência a invalidade do ato em que se verifica, bem como dos que dele dependerem e aquela puder afetar (artigo 122º, n.º 1, do CPP), a determinar, sempre que possível, a repetição do ato ou atos em que se verifique.
Invoca, ainda, o recorrente que a decisão recorrida enferma de nulidade por omissão de pronúncia sobre factos relevantes, designadamente, sobre a conduta do ora recorrente durante os 11 meses em que permaneceu em liberdade, as suas escolhas, as suas decisões, factos esses objetivamente comprovados nos autos, por prova documental, sendo que tudo o que poderia e deveria militar a favor do condenado, levando à expectável concessão da Liberdade Condicional, foi desatendido pelo Tribunal.
Vejamos:
A nulidade da sentença por omissão de pronúncia, prevista no artigo 379º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, ocorre: «Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)
Em nosso entender, a falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide sobre as questões, entendendo-se por questão o dissídio ou o problema concreto a decidir[4] e não sobre factos concretos com relevo para a decisão da causa que constituíam o objeto do processo ou lhe cabia apurar.
Quando se verifica a falta de pronúncia por parte do tribunal sobre de factos relevantes para a decisão, o vício que ocorrerá será o da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, previsto no artigo 410º, n.º 2, al. a), do CPP.
Ora, analisada a decisão recorrida, consideramos que não enferma do referenciado vício.
Desde logo, importa referir que, contrariamente ao que alega o recorrente, os Serviços Prisionais pronunciaram-se em sentido desfavorável à concessão da liberdade condicional.
E, em nosso entender, os factos que o recorrente entende que deveriam ter sido dados como provados, respeitantes à sua conduta, escolhas e decisões tomadas, durante os 11 meses em que permaneceu em liberdade, a aguardar o trânsito em julgado da sentença condenatória, da qual interpôs recurso, não se mostram essenciais, nem assumem a relevância que o recorrente lhes atribuiu, em termos de poderem levar a inquinar ou a arredar o juízo formulado pelo Tribunal a quo, desfavorável à concessão da liberdade condicional, concluindo não estarem verificados os pressupostos substanciais previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 61º do Código Penal.
Não se verifica, portanto, a pretensa nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia, a que alude o artigo 379º, nº. 1, al. c) do CPP.
E também não enferma a decisão recorrida do vício da insuficiência da matéria factual provada para a decisão, previsto no artigo 410º, n.º 2, al. a), do CPP.

2.3.3. Importa, por último, apreciar se estão verificados os pressupostos da concessão da liberdade condicional
O recorrente defende que, ao contrário do decidido na decisão recorrida, estão reunidos os pressupostos previstos no artigo 61º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código Penal, para a concessão de liberdade condicional a meio da pena.
O Ministério Público defende posição contrária, manifestando concordância com a decisão recorrida.
Apreciando:
Conforme consta do preâmbulo do Código Penal, ponto 9, a libertação condicional tem como objetivo «criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão
Regulada nos artigos 61º a 64º do Código Penal e 173º a 188º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, a liberdade condicional assume hoje a natureza de um incidente de execução da pena de prisão.
Sobre os pressupostos para a concessão da liberdade condicional, a meio da pena, situação que está em causa nos autos, dispõe o artigo 61º do Código Penal:
«1. A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado;
2. O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses, se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social.
(…).»
Temos, assim, que a concessão de liberdade condicional, a meio da pena, está dependente da verificação dos seguintes pressupostos:
- Que o recluso tenha cumprido metade da pena e, no mínimo, 6 meses de prisão;
- Que aceite ser libertado condicionalmente.
- Que exista a formulação de um juízo de prognose favorável, no sentido de que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
- Que a libertação do condenado se revela compatível com a defesa da ordem e da paz social.
Os dois primeiros pressupostos, de índole formal e que respeitam ao consentimento do condenado e ao período de prisão já cumprido, este último quando está em causa o cumprimento de uma única pena de prisão (o mesmo poderá não acontecer quando se trate do cumprimento de penas sucessivas), não suscitam problemas e, no caso vertente, mostram-se preenchidos.
Já assim não acontece – e é precisamente essa a questão suscitada no presente recurso – com os pressupostos ditos substanciais ou materiais, previstos nas alíneas a) e b) do nº. 2 do artigo 61º do Código Penal e que são, por um lado, que seja de esperar fundadamente que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes; e, por outro lado, a compatibilidade da libertação com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
O primeiro destes pressupostos assegura uma finalidade de prevenção especial, de socialização, enquanto o último prossegue um escopo de prevenção geral, positiva de integração.
A concessão da liberdade condicional, neste caso, depende, assim, não só de um juízo de prognose favorável especial-preventivamente orientado[5], assente na ponderação de razões de prevenção especial, mas também de exigências de tutela do ordenamento jurídico, consubstanciadas na reafirmação da validade e vigência da norma penal violada com a prática do(s) crime(s), com as quais se tem em vista a realização do fim de prevenção geral (de integração).
Para a formulação do juízo de prognose sobre o comportamento do condenado, em liberdade, o tribunal atenderá, aos critérios estabelecidos na al. a) do nº. 2 do artigo 61º do Código Penal, quais sejam: 1) as circunstâncias do caso; 2) a vida anterior do agente; 3) a sua personalidade e 4) a evolução desta durante a execução da pena de prisão.
Assim, se ponderados tais critérios, for possível concluir, em termos de fundadamente ser expetável (aceitando, obviamente, “um risco prudencial”[6]), que uma vez em liberdade, o condenado conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, será formulado juízo de prognose favorável e, consequentemente, a liberdade condicional poderá ser concedida, o que não acontecerá na situação inversa.
E como faz notar Joaquim Boavida[7]: «Na dúvida, a liberdade condicional não será concedida. É sabido que na fase de julgamento, a dúvida sobre a realidade de um facto é resolvida a favor do arguido, em decorrência do princípio in dúbio pro reo. Na fase de execução da pena de prisão e da consequente apreciação da liberdade condicional esse princípio não tem aplicação. A lei exige, na al. a) do nº. 2 do artigo 61º do Código Penal, para que o condenado seja colocado em liberdade, que seja possível concluir por um juízo de prognose favorável sobre o seu comportamento futuro sem reincidência, ou seja, exige um juízo positivo e só nesse caso a medida será aplicada. Portanto, em caso de dúvida séria, que não possa ser ultrapassada, sobre o caráter favorável da prognose, o juízo deve ser desfavorável e a liberdade condicional negada.»
O legislador faz ainda depender a concessão da liberdade condicional, cumprida que esteja metade da pena, da exigência de essa medida se revelar “compatível com a defesa da ordem e da paz social (al. b), do nº. 2 do artigo 69º).
Estão a qui em causa considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.
Como refere o Prof. Figueiredo Dias[8]«o reingresso do condenado no meio social, apenas cumprida metade da pena a que foi condenado pode perturbar gravemente a paz social e pôr assim em causa as expetativas comunitárias na validade da norma jurídica violada.»
O juiz tem de averiguar se a libertação condicional do recluso poderá abalar a consciência jurídica comunitária.
Como salienta Joaquim Boavida[9]: «Não estão apenas em causa as repercussões sociais da libertação no meio comunitário onde o condenado pretende fixar a sua residência, mas também na sociedade na sua globalidade.»
E o mesmo autor[10], aponta elementos objetivos que podem auxiliar na determinação das necessidades de prevenção geral positiva, quais sejam: a frequência do tipo de crime praticado pelo recluso no meio comunitário de residência ou na sociedade em geral; a suscetibilidade de a libertação gerar alarme social no meio comunitário local onde o condenado pretende fixar a sua residência; a repercussão que da libertação para as vítimas e a apreciação que o meio social faz da situação; os crimes que afetam bens jurídicos que a sociedade considera como fundamentais e relativamente aos quais exige uma redobrada tutela.
Tendo presentes estas considerações e baixando ao caso concreto:
Tal como já referimos supra, os pressupostos formais da liberdade condicional mostram-se preenchidos, pois que o recluso, ora recorrente, já cumpriu mais de metade da pena de três anos de prisão a que foi condenado e declarou aceitar a liberdade condicional.
Em relação aos pressupostos substanciais ou materiais, entendeu o Tribunal a quo não estarem verificados, o que fundamentou do seguinte modo:
«No caso dos autos estão reunidos os pressupostos formais de que depende a concessão da liberdade condicional: o recluso já cumpriu metade da pena, e consente na sua libertação condicional.
Mas o mesmo não ocorre, a nosso ver, quanto aos requisitos substanciais, concordando-se com os pareceres negativos emitidos pelo Conselho Técnico e pelo MºPº.
Na verdade, e se o recluso mantém postura globalmente correcta, mostrando-se disponível para o trabalho, o certo é que, e apesar do tempo de pena decorrido, ainda não revela suficiente juízo crítico acerca da gravidade e desvalor do crime cometido. Foi assumindo os factos, embora sem que tal lhe surgisse espontaneamente, mas antes porque instado directamente pelo tribunal. E, se se sente envergonhado pelo que fez (que considera ser algo sem exemplo na sua forma de estar), a verdade é que nada refere a propósito dos concretos e graves prejuízos causados na vítima, essa sim, a pessoa visada tutelar com a incriminação em causa. Não revela, pois, de forma clara uma assunção integral do seu comportamento criminoso, situação também notada por quem de perto mais convive consigo (serviços de tratamento penitenciário), tendo mesmo sido sugerido – e o que se aplaude – a oportuna integração do recluso em programa visando a prevenção da violência doméstica.
Existe, pois, a nosso ver, caminho a percorrer neste aspecto, importante vertente de prevenção especial também visada alcançar com a pena imposta.
O recluso ainda não iniciou o processo da flexibilização da pena, o que nos parece também necessário que ocorra logo que reunidos os devidos pressupostos, para que se possa avaliar a sua forma de estar em meio menos contentor, sobretudo agora que irá dispor de um novo apoio familiar (note-se que os factos são de Outubro de 2018, que o recluso esteve em prisão preventiva desde Novembro de 2018 a Janeiro de 2020, e que reentra na prisão a 2/12/2020, sendo que, no entretanto, iniciou novo relacionamento afectivo que, porque recente, ainda carecerá de consolidação).
Cumpre ainda ter presente a medida da pena em execução, fase de execução da mesma e, sobretudo, natureza do tipo de crime cometido. É um crime grave, bastante reprovável e não aceite socialmente, provocando sentimentos de revolta e intolerância, mas, e apesar disso, frequente, impondo-se uma actuação eficaz por parte do Direito para que seja mantida a confiança na sua vigência e, simultaneamente, se dissuada a prática de novas situações semelhantes. No caso, os factos surgem acompanhados de grande violência, reflectida depois nos danos causados.
De tudo o referido, resultam ainda elevadas as exigências de prevenção, geral e especial, surgindo a continuação da prisão como o meio adequado e necessário para as satisfazer.
III - DECISÃO
Pelo que, não concedo a liberdade condicional a (...)
Concordamos com a fundamentação expendida pelo Tribunal a quo para concluir não estarem verificados, no caso e relativamente ao recluso, ora recorrente, os pressupostos da concessão da liberdade condicional previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2, do artigo 61º do C.P., não assistindo, razão ao recorrente, quando defende a posição contrária.
Com efeito:
Quanto ao juízo de prognose acerca do comportamento futuro do recluso, em liberdade:
Ponderando as circunstâncias do caso, revelando o recluso, ora recorrente, uma personalidade com traços de impulsividade e de violência, refletida nos factos por cuja prática foi condenado, estando a cumprir pena por crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), do Código Penal (tendo como vítima a, na altura, sua companheira), assumindo os factos/crime gravidade acentuada (tendo o ora recorrente, atropelado, com o veículo automóvel que conduzia, a vítima, sofrendo esta múltiplas e graves lesões, sendo submetida a duas intervenções cirúrgicas e não estando as lesões médico-legalmente consolidadas decorrido mais de um ano sobre os factos), tendo sido praticados na presença e com a permanência no interior do veículo automóvel da filha da vítima, na altura, com apenas 2 anos de idade e considerando a postura do ora recorrente, face ao crime cometido, sendo que, pese embora, admita tê-lo praticado, tenta, de certo modo, desculpabilizar-se, convocando fatores externos para justificar a sua conduta, referindo que «houve descontrolo de sua parte, provocado pelo facto de ter ingerido bebidas alcoólicas em excesso» e ainda que se afirme envergonhado pelo seu comportamento, não coloca a tónica nos danos sofridos pela vítima, como seria normal que o fizesse, caso aquela afirmação sobre o seu estado de alma tivesse correspondência com a realidade, com a virtualidade de poder levar a considerar existir suficiente interiorização do desvalor da sua conduta criminosa, o que não é o caso, sendo a postura do recluso face aos factos/crime cometidos, reveladora de que e necessita de consolidar essa interiorização, sendo esse um fator determinante, para que não volte a delinquir.
O ora recorrente, não tendo, até à data prolação da decisão recorrida, beneficiado de saída jurisdicional[11], não tem averbada qualquer sanção por infração disciplinar e tendo solicitado colocação laboral, tal ainda não se efetivou, ocupando o seu tempo com a leitura e a prática de desporto e tendo projeto de vida, de quando for restituído à liberdade, ir viver com a sua atual companheira (com quem iniciou relacionamento em 2020, tendo esta uma filha que integrará o agregado familiar) e tendo perspetiva de trabalho, na atividade que vinha desenvolvendo, numa oficina de reparação auto, fator este que se revela positivo.
Contudo, a evolução que até ao momento o recluso, ora recorrente regista, não oferece ainda suficiente segurança, tendo em conta o seu comportamento anterior, para sustentar juízo de prognose favorável acerca da sua capacidade – objetiva – para no futuro, em meio livre, conseguir pautar o seu comportamento de modo socialmente responsável e sem reiterar a prática de crimes. Para que o sinal de sentido inverso possa vir a ser afirmado, no futuro, é determinante que o ora recorrente consolide a interiorização crítica do desvalor da sua conduta criminosa e, no caso desse seu comportamento violento estar, de alguma forma, como o próprio manifesta, associado ao descontrolo, provocado pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas, procurando, se necessário, ajuda para superar esta problemática, fatores que serão determinantes para que, em meio livre, não venha a reiterar a prática de crimes, mormente da natureza daquele por cuja prática se encontra a cumprir pena.
Por outro lado, quanto às exigências de prevenção geral que subjazem ao requisito previsto na al. b) do n.º 2 do artigo 61º do CP – da compatibilidade da libertação com a defesa da ordem e da paz social –, na perspetiva em que se impõe que, nesta sede, sejam ponderadas, tendo em conta a gravidade do crime de violência doméstica por cuja prática o recluso se encontra a cumprir pena e as concretas circunstâncias em que foi praticado, bem como as graves consequências sofridas pela vítima, que só por mera casualidade, não foram ainda mais trágicas, engrossando a cifra negra das mortes consequentes deste tipo de crime, gerador de grande alarme social e de forte reprovação social, a concessão da liberdade condicional, a meio da pena, seria sentida pela comunidade – entenda-se da comunidade em geral[12] – como sinal de enfraquecimento da tutela dos bens jurídicos protegidos, pelo crime de violência doméstica e dificilmente seria compreendida ou aceite pela comunidade.
Nesta conformidade, entendemos que, neste momento, ainda não é possível fazer um juízo de prognose favorável em relação ao recluso/recorrente, no sentido de que, caso seja colocado em liberdade condicional, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes e, nessa medida, a sua libertação antecipada, a meio da pena, não afigura compatível com a defesa ordem jurídica e da paz social, em termos de se poder concluir que o risco de libertação já possa ser comunitariamente suportado.
Por conseguinte, concluímos não estar verificados os pressupostos da concessão da liberdade condicional previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2, do artigo 61º do C.P., pelo que, tem de manter-se a decisão de não concessão da liberdade condicional ao recluso/recorrente, que respeitou os critérios legais e não violou as normas legais invocadas pelo recorrente.
Improcede, pois, o recurso.

3 – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto por e, em consequência, manter a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 3 (três) UC´s. (artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais)


Notifique.
Évora, 07 de setembro de 2021
Fátima Bernardes
Fernando Pina

_________________________________________________
[1] Corrigindo-se alguns erros ortográficos detetados.
[2] In A Flexibilização da Prisão, Almedina, 2018, pág. 168.
[3] Proferido no proc. n.º 3536/10.1TXPRT-H.P1, acessível in www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido, cfr., entre outros, Cons. Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição, Almedina, pág. 1132.
[5] Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 540.
[6] Jescheck – Tratado de derecho penal. Parte general, 3ª edição, Barcelona, Boch, pág. 770.
[7] In ob. cit. pág. 137
[8] In ob. e loc. cit.
[9] In ob. cit., pág. 147.
[10] In ob., cit., págs. 147 a 150.
[11] Não podendo atender-se, nesta sede recursiva, a licença jurisdicional concedida em data posterior e que é alegada pelo recorrente na motivação de recurso.
[12] Cfr., neste sentido, Ac. da RE de 05/02/2019, proferido no proc. 669/16.4TXTEVR-H.E1, acessível em www.dgsi.pt, onde se faz notar que «A compatibilidade da liberdade condicional com a defesa da ordem e da paz social referida na al. b) do nº2 do art. 61º C. Penal, não deve ser aferida apenas por referência ao meio social onde o crime foi cometido, ou onde vivia o agente, ou onde se prevê que o agente passe a viver ou, mesmo, onde vivia ou vive a vítima ou outras pessoas relacionadas com o crime.»