Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
196/14.4JELSB.E1
Relator: JOSÉ PROENÇA DA COSTA
Descritores: ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA
TRÁFICO DE DROGA
Data do Acordão: 10/11/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. Para a existência do crime de associação criminosa para a prática de actividades de tráfico de droga, devem existir uma pluralidade de indivíduos, com o mínimo de estrutura organizatória e com um sentimento comum de ligação dos seus membros a um qualquer processo de formação da vontade colectiva;
II. Assim, verifica-se este crime quando duas ou mais pessoas decidiram criar uma estrutura de carácter permanente, organizada e estável, com vista a dedicar-se ao crime de tráfico de droga ou para a prática de branqueamento de bens e capitais provenientes do tráfico, e a existência de um qualquer processo de formação de vontade colectiva;
III. Tal não ocorre se entre os arguidos existia uma conjugação de esforços e vontades, com vista à prossecução de um fim comum - o transporte e desembarque de droga visando a obtenção de proventos económicos - que não ultrapassa a noção de comparticipação criminosa, em que cada um dos co-arguidos actuou, tendo em vista o seu próprio e exclusivo benefício, o lucro pessoal que esperavam obter – e não um interesse superior que, de certa forma, os ultrapassasse –, sabendo que para atingirem tal desiderato necessitavam da colaboração e da intervenção de outros indivíduos.
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 196/14.4JELSB.

Acordam, em Conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora.
No âmbito dos Autos de Inquérito, com o n.º 196/14.4JELSB, a correrem termos, ora, pela Comarca de Santarém - Instância Central - Secção Criminal – J3, o M.mo Juiz de Instrução veio, por Decisão Instrutória prolatada a de 24 de Maio de 2015, entre o mais, a não Pronunciar os arguidos BB, CC, DD, EE e FF pela prática, em co-autoria, de um crime de Associação Criminosa, p. e p. pelo art.º 28.º, n.º 2, do Dec. Lei, n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

Inconformado com o assim decidido traz a Magistrada do Ministério Público o presente recurso, onde formula as seguintes conclusões:
1 – Na Decisão Instrutória ora recorrida, os Arguidos BB, CC, DD, não foram pronunciados quanto ao crime de associação criminosa, p. e p. pelo art.º 28.º, do referido Dec. Lei, n.º 15/93, de 22 de Janeiro, uma vez que o M.mo JIC concluiu que os factos descritos na acusação não são suficientes para preencher o crime em causa.
2 – Ao invés, consideramos, que a situação descrita na acusação – se bem que circunscrita agora à actuação dos arguidos CC, BB e DD, juntamente com pelo menos um outro indivíduo de identidade não apurada, configura um processo de formação de vontade colectiva e que os factos apontam para a existência de uma estrutura organizada e que reveste a estabilidade e permanência exigida pelo tipo do crime de associação criminosa.
3 – Tal decorrendo, desde logo, dos factos que foram dados como provados pelo M.mo JIC, no despacho ora recorrido, de que o arguido DD praticou o crime de tráfico de estupefacientes, tais como:
- A apreensão de 450 embalagens de cocaína no interior da máquina exportada pelo DD (cfr. auto de busca e apreensão (fls, 1698 a 1764) ao armazém, …).
- As intercepções telefónicas nas quais se encontram espelhados os contactos e a proximidade mantida entre os arguidos DD e CC.
- O depoimento da testemunha … fls. 3406, que indicia o relacionamento entre os arguidos BB, CC e DD.
- As imagens constantes do Apenso A onde é possível verificar, não só os contactos e a proximidade existente entre os arguidos CC e BB, mas, também, a presença do arguido DD em Lisboa e os contactos com o arguido CC.
- A constatação de que o arguido DD deslocou-se a Portugal nas seguintes datas: 5-10-2013 a 9-10-2013, 28-01-2014 a 21-02-2014, sendo que no dia 20-02-2014 deslocou-se a Paris com o arguido BB, 3-10-2014, 27-07-2015, sendo que o arguido CC deslocou-se ao Brasil entre 18 e 24 de Maio de 2015, indiciadoras de que o propósito das mesmas seria o de camuflar nas máquinas exportadas um transporte de cocaína.
- A presença do arguido CC no dia 27 de Julho de 2015 no aeroporto de Lisboa, altura em que chegou a Portugal o arguido DD.
4- Acrescente-se ainda que a própria natureza do transporte da cocaína para Portugal e a quantidade (500Kg) que, através de tal meio, se conseguiu introduzir no território nacional, com os elevadíssimos lucros que através da sua posterior distribuição se lograria obter é, desde logo, reveladora da existência de uma associação, já que sem o suporte dado por uma forte estrutura organizacional, dificilmente os arguidos teriam conseguido ultrapassar todos os obstáculos de natureza física e nomeadamente os alfandegários com vista a alcáçar tal objectivo.
5- Sendo que os arguidos agiram forçosamente em comum e de forma duradoura, com o fim abstracto de cometimento de crimes de tráfico de estupefacientes, desde logo no período próximo que antecedeu o momento da vinda da primeira máquina para Portugal, cuja exportação do Brasil para território nacional já se inseria num plano superior – em última ratio – de preparação para posterior transporte da cocaína nos autos.
6- Sendo reconhecido que a prova da existência de uma associação criminosa, de quem a promoveu, fundou ou dirigiu ou, simplesmente, a apoiou ou dela fez parte, é uma prova muito difícil de alcançar. Já que, não havendo confissões, raramente existe prova directa, entende-se que este é um dos casos em que precisamente a convicção do julgador deverá ser formada através da avaliação conjunta de todos os indícios existentes nos autos e de acordo com as regras da experiência comum.
7- Em suma, existem nos autos os indícios suficientes para que os arguidos DD, CC e BB sejam submetidos a julgamento, para além dos ilícitos pelos quais foram pronunciados, também pelo crime de associação criminosa, p. e p. pelo art.º 28.º, do referido Dec. Lei, n.º 15/93, de 22 de Janeiro.

Respondeu ao recurso o arguido DD, Dizendo:
1. Bem andou a douta decisão instrutória ao não pronunciar os arguidos pelo crime de associação criminosa;
2. O recorrente não apresentou recurso em matéria de facto quanto aos factos indiciados;
3. Nos factos indiciados na decisão instrutória imputa-se aos arguidos actos relacionados com um transporte de cocaína por via marítima do Brasil para Portugal- ponto 1 a 15.
4. E que o plano dessas pessoas era este.
5. Para que se possa preencher, ainda que indiciariamente, o crime que agora reclama o recorrente, falta:
a. A reiteração criminosa;
b. A estabilidade;
c. E que o grupo seja tendencialmente permanente.
6. Requisitos que ficam definitivamente afastados apenas pela leitura do ponto 1 a 15 da decisão instrutória.
7. Acresce, como bem o salienta a decisão recorrida, ser inexistente uma vontade autónoma e superior dos arguidos.
8. Não se violou, por isso, qualquer das normas apontadas pelo recorrente.

Nesta Instância, a Sra. Procuradora Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido do recurso merecer provimento.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

É do seguinte teor o Despacho recorrido, na parte que ora importa:
Vejamos agora os elementos constitutivos do crime de associação criminosa p e p pelo art.º 28° do DL 15/93, de 22 de Janeiro e verificar se os mesmos se mostram indiciados nos autos e/ou se os factos descritos na acusação são suficientes para preencher o crime em causa.
Estabelece o citado artigo 28.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, sob a epígrafe "Associações criminosas":
1- Quem promover, fundar ou financiar grupo, organização ou associação de duas ou mais pessoas que, actuando conce1iadamente, vise praticar algum dos crimes previstos nos artigos 21.º e 22.º é punido com pena de prisão de 10 a 25 anos. (redacção da Lei n. º 45/96, de 03-09).
2 - Quem prestar colaboração, directa ou indirecta, aderir ou apoiar o grupo, organização ou associação referidos no número anterior é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
3 - Incorre na pena de 12 a 25 anos de prisão quem chefiar ou dirigir grupo, organização ou associação referidos no n.º 1 (redacção da citada Lei n.º 45/96).
4-Se o grupo, organização ou associação tiver como finalidade ou actividade a conversão, transferência, dissimulação ou receptação de bens ou produtos dos crimes previstos nos artigos 21.º e 22.º, o agente é punido:
a) Nos casos dos n.ºs 1 e 3, com pena de prisão de 2 a 10 anos;
b) No caso do n.º 2, com pena de prisão de um a oito anos.
Com efeito, trata-se de um crime de perigo abstracto em que o específico bem jurídico protegido é a paz pública.
A mera existência de uma associação destinada à prática de crimes cria um perigo de perturbação que, só por si, viola a paz pública e assim se justifica uma dispensa antecipada de tutela.
Na doutrina como na jurisprudência, reconhece-se, sem discrepâncias, que para a existência de uma associação é essencial que a convergência de vontades de uma pluralidade de pessoas dê origem a uma realidade autónoma, referenciável e que transcenda a vontade e os interesses dos seus membros.
Nas palavras do Professor Figueiredo Dias, é necessário que "a associação surja, na objectividade das representações dos seus membros, nas suas experiências individuais ou de interacção, como um centro autónomo de imputação e motivação, como entidade englobante, com metas ou objectivos próprios".
Também consensual é a ideia de que o acordo para a comissão de crimes não deve ter um limite temporal.
Exige-se a continuidade e permanência do acordo que dá base à associação destinada à prática de crimes.
É essa duradoura actuação em comum, a par do fim abstracto de cometimento de crimes, que distingue a associação Criminosa da mera comparticipação.
É, geralmente, reconhecido que a prova da existência de uma associação criminosa, de quem a promoveu, fundou ou dirigiu ou, simplesmente, a apoiou ou dela fez parte, é uma prova muito difícil de alcançar (hiperbolizando, poderíamos falar aqui em probatio diabolica), já que, não havendo confissões, raramente existe prova directa.
Vejamos, desde já, os «factos» descritos na acusação através dos quais o M. P. imputa o crime em causa aos arguidos:
Em data não concretamente apurada, anterior a 05.10.2013, os arguidos CC, BB, DD, EE e FF passaram a integrar um grupo de pessoas que desenvolvia o projecto de se abastecer de produtos estupefacientes, designadamente cocaína, em centenas de quilos e de posteriormente o transportar, por via marítima para Portugal.
O arguido FF encontrava-se no Brasil, no Estado de S. Paulo, fugido às autoridades portuguesas, uma vez que tinha sido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, no âmbito do processo 19/05.5JELSB, na pena de 10 anos e 6 meses de prisão, por acórdão transitado em julgado em 09.05.2013.
A este arguido cabiam as missões de contactar os fornecedores de estupefacientes localizados no Brasil e de se abastecer desses produtos.
Mais lhe competia, na sequência do previamente acordado entre todos, após o recebimento dos estupefacientes em Portugal, angariar compradores de estupefacientes, em Portugal, Espanha e França.
Os arguidos CC, BB, DD, EE e FF procediam, depois, à entrega de estupefacientes àquelas pessoas contactadas pelo último arguido, sempre a troco do recebimento de quantias monetárias.
Aqueles arguidos repartiam os lucros das vendas dos estupefacientes entre si, em proporções não desvendadas.
Em data não concretamente apurada, mas anterior a 05.10.2013, os mencionados arguidos e outros elementos do supracitado grupo, cujas identidades não foi possível apurar, no desenvolvimento do referido plano, decidiram que os estupefacientes seriam transportados do Brasil para Portugal, ocultados no interior de máquinas industriais.
Para esse efeito, os arguidos CC e BB utilizavam a sociedade comercial "GG, Lda." (actualmente denominada…), com sede em …, da qual o primeiro era sócio, que procedia à importação das mencionadas máquinas.
As referidas máquinas eram exportadas do Brasil, pela sociedade comercial "…", explorada pelos arguidos DD e EE, com sede em Santa Catarina, naquele país.
Os arguidos BB, CC, DD, EE, FF e HH actuaram em conjugação de vontades e esforços, no desenvolvimento de um plano por todos previamente urdido, com o propósito concretizado de receber e carregar, do Brasil até Portugal, o referido produto estupefaciente, cuja natureza, características e quantidade conheciam, com o fito de o entregar a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.
Os arguidos BB, CC, DD, EE e FF agiram, também, com o desígnio conseguido, de integrar uma rede de pessoas que se agrupou com o escopo de introduzir produtos estupefacientes em Portugal.
Cumpre verificar se estes factos ou conclusões são suficientes para preencher o crime em causa.
Em primeiro lugar, entendemos que o uso recorrente da expressão "em data não concretamente apurada, anterior a 5-10-2013" não deverá ser de utilizar, pelo que a mesma representa de indefinição, na medida em conduz a extrapolações e projecta para um tempo passado, sem qualquer limite temporal, a actividade criminosa. Com efeito, as garantias de defesa e o rigor que se impõe neste tipo de situações ficam seriamente compreendidos.
A matéria de facto descrita na acusação é suficiente para integrar a figura da associação criminosa? Estaremos perante um pacto que tenha dado origem a entidade diversa, autónoma, transpessoal, que valha por si, referenciável por si mesma, que anteriormente inexistisse? Dele emana especial perigosidade e maior carga de danosidade social? O pacto deu origem a alguma realidade nova, emergente, diversa, autónoma, personalizada, que se sobrepusesse à vontade e aos interesses dos pré existentes membros singulares? Os arguidos seriam condenados igualmente mesmo que nenhum crime houvesse sido cometido?
Tendo os ensinamentos supra-referidos e fazendo a sua aplicação ao caso concreto teremos de concluir pela resposta negativa a todas as questões supra- referidas.
Com efeito, verifica-se que a acusação se limita a tecer considerações genéricas, conclusivas, vagas e referir apenas quem dava ordens a quem, quem obedecia a quem e quais os propósitos do grupo. Ora, para a verificação do crime de associação criminosa a lei não se basta com meras referências conclusivas e vagas, é necessário concretizar, através de factos reais e concretos, essas conclusões e juízos de valor.
A subsunção jurídica terá de ser feita a partir dos factos descritos na acusação e será a partir deles, uma vez provados em sede de audiência de julgamento, que os arguidos serão condenados pela autoria do crime que lhes é imputado. Com efeito, não será possível argumentar-se na fundamentação de direito com algo que não consta como facto provado e não será possível dar como provado algo que não seja um facto real e concreto. Não é possível ancorar a subsunção jurídica em considerações vagas, conclusivas, abstractas e inócuas, como, por exemplo «passaram a integrar um grupo de pessoas que desenvolvia o projecto de se abastecer de produtos estupefacientes», «a este arguido cabiam as missões de contactar os fornecedores...», «...na sequência do previamente acordado entre todos.», «os arguidos repartiam os lucros das vendas dos estupefacientes.» Tendo em conta o caso concreto e o descrito na acusação, verifica-se que a situação descrita, não configura, deste modo, qualquer processo de formação de vontade colectiva e nem os factos, ou melhor as conclusões, apontam para a existência de uma estrutura minimamente organizada.
A situação em concreto configurará, em alguns casos, a existência de compartição criminosa na forma de co-autoria.
A associação criminosa distingue-se da comparticipação pela estabilidade e permanência que a acompanha, embora o fim num e noutro instituto possa ser o mesmo; mas o elemento distintivo fundamental da associação criminosa em relação à comparticipação reside na estrutura nova que se erige, uma estrutura autónoma superior ou diferente dos elementos que a integram e que não aparece na comparticipação. É mais que a actuação conjunta de várias pessoas.
Exige-se para o preenchimento do tipo que haja uma estabilidade e permanência. Exige-se, também, o animus associativo prévio entre os indivíduos e que todos actuem de modo coeso, é necessário, pois, que a união dos envolvidos esteja qualificada por uma vínculo associativo duradouro e estável, distinto da comunhão de esforços meramente ocasional.
Conclui-se, assim, que a associação composta pelos arguidos BB, CC e DD seria uma organização, sem ser contudo uma associação criminosa, sem ter dado origem a uma realidade autónoma, diferente e superior às vontades e interesses dos seus membros.
Como refere Figueiredo Dias, in Associações Criminosas, pág. 32, "não basta à existência de uma «associação», por menos estruturada que ela possa ser, o mero acordo ou a decisão conjunta de uma pluralidade de pessoas com vista à prática de crimes - sob pena de irremediável confusão entre o tipo de associações criminosas e a figura da co-autoria". E como ensina o mesmo Autor, no Comentário, pág. 1158, deve ser excluída "qualquer [actualidade que não releve da especial perigosidade da associação, da sua autónoma danosidade social e da sua específica dignidade penal".
Assim sendo, nem os autos, nem a acusação fornecem elementos factuais e indícios probatórios suficientes que sustentem uma decisão de pronúncia pelo crime de associação criminosa p e p pelo art.º 28° do DL 15/93 de 22 de Janeiro, razão pelo qual se impõe, desde já, decisão de não pronúncia relativamente a todos os arguidos a quem foi imputado a comissão deste crime.

Como consabido, são as conclusões retiradas pelo recorrente da sua motivação que definem o objecto do recurso.
Como decorre das conclusões formuladas pela Magistrada recorrente, visa-se com o presente recurso apreciar e decidir se deve, ou não, subsistir o despacho recorrido na parte em que não pronunciou os arguidos BB, CC e DD, pela prática, em co-autoria, de um crime associação criminosa, p. e p. pelo art.º 28.º, do referido Dec. Lei, n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Como consabido, a instrução é formada pelo conjunto de actos de instrução (art.º 289.º,n.º 1, do Cód. Proc. Pen.) tendentes á comprovação judicial da decisão de deduzir a acusação ou arquivar o inquérito, conforme decorre do disposto no art.º 286.º, do mesmo diploma adjectivo.
Só sendo de proferir despacho de pronúncia caso se tenham recolhido indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, cfr. art.º 308.º, n.º 1, do Cód. Proc. Pen.
A lei define o que se deve considerar por indícios suficientes, considerando-se, como tal, aqueles de que resulte “uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança”, ver art.º 283.º, n.º 2, do Cód. Proc. Pen.
No ensinamento do Prof. Germano Marques da Silva, a respeito, refere-se que nas fases preliminares do processo não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos e antes e tão só indícios, sinais de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido.
Na pronúncia o Juiz não julga a causa; verifica se se justifica, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, que o arguido seja submetido a julgamento (…).
A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulta uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força delas, uma pena ou uma medida de segurança (art.º 283.º, n.º2), não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgador a final[1].
No mesmo sentido, vemos o Ac. Relação do Porto[2], de 20.01.1993, onde se escreveu que para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige que a prova, no sentido de certeza moral, da existência do crime, bastando-se com a exigência de indícios, de sinais, dessa ocorrência.
Isto, porém, não significa que a lei confira aos mencionados despachos um estatuto de ligeireza.
E prossegue o dito aresto, a simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências, morais, quer jurídicas; submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo se não mesmo um vexame.
É por isso que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo que aquela possibilidade razoável de “condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa”: o Juiz só deve pronunciar quando, por elementos de prova recolhidos nos autos, forma a convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido ou “os indícios são suficientes quando haja uma lata probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
Como refere a Prof. Fernanda Palma, a relação entre os indícios e a possibilidade de condenação é que caracteriza os indícios.
Com efeito, os indícios de que resulta a possibilidade de condenação são indícios suficientes para a condenação, o que significa que revelam uma espécie de causalidade para aquele resultado, mas tal qualificação não se refere directamente á natureza dos indícios, nomeadamente a sua caracterização como fortes, fracos ou de média intensidade. Na lógica do Código de Processo Penal, os indícios que justificam a acusação (ou a pronúncia) são, segundo me parece, necessariamente graves ou fortes, no sentido de serem factos que permitem uma inferência do tipo probabilístico da prática do crime (enquanto facto) de elevada intensidade, permitindo estabelecer uma conexão com aquela prática altamente provável.
E é, assim, porque só os indícios de elevada intensidade são suficientes, isto é, justificam um juízo normativo de “possibilidade razoável” da condenação[3].
No ensinamento de Jorge Noronha e Silveira, para a suficiência dos indícios não deve bastar uma maior possibilidade de condenação do que de absolvição. Só uma forte ou alta possibilidade pode justificar a dedução da acusação ou a prolação de um despacho de pronúncia. Não apenas por ser esta a solução que melhor se adapta á particular estrutura do processo penal, como também por ser a única que consegue a imprescindível harmonização entre o critério normativo presente no juízo de afirmação da suficiência dos indícios e as exigências do principio da presunção de inocência do arguido.
E prossegue, por todas estas razões, afirmar a suficiência dos indícios de pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação. Não logrando atingir essa convicção o M.P. deve arquivar o inquérito e o Juiz de Instrução deve lavrar despacho de não pronúncia[4].
No fundo, a indicação suficiente é, no dizer do Supremo Tribunal, a verificação suficiente de um conjunto de fatos que, relacionados e conjugados, componham a convicção de que, com a discussão ampla em julgamento, se poderão vir a provar em juízo de certeza e não de mera probabilidade, os elementos constitutivos do crime/da infracção porque os agentes virão a responder.[5]
Ou como referia Luís Osório, por indícios suficientes se devem ter aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado.[6]
Com base nos ensinamentos expostos vejamos, pois, se é, ou não, de manter o despacho de pronúncia prolatado e aqui posto em crise com o presente recurso.
Entendeu o despacho recorrido que nem os autos, nem a acusação fornecem elementos factuais e indícios probatórios suficientes que sustentem uma decisão de pronúncia pelo crime de associação criminosa p e p pelo art.º 28° do DL 15/93 de 22 de Janeiro, razão pelo qual se impõe, desde já, decisão de não pronúncia relativamente a todos os arguidos a quem foi imputado a comissão deste crime.
Desde já importa referir, como bem o alerta o arguido DD na sua resposta ao recurso, que se não questiona a base factual estabelecida na decisão instrutória, seja ao nível dos factos indiciados, seja ao nível dos factos não indiciados.
Dispõe-se no art.º 28.º, do Dec. Lei n.º 15/93, de 15 de Janeiro, sob epígrafe de associações criminosas, que:
1 - Quem promover, fundar ou financiar grupo, organização ou associação de duas ou mais pessoas que, actuando concertadamente, vise praticar algum dos crimes previstos nos artigos 21.º e 22.º é punido com pena de prisão de 10 a 25 anos.
2 - Quem prestar colaboração, directa ou indirecta, aderir ou apoiar o grupo, organização ou associação referidos no número anterior é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
3 - Incorre na pena de 12 a 25 anos de prisão quem chefiar ou dirigir grupo, organização ou associação referidos no n.º 1.
4 - Se o grupo, organização ou associação tiver como finalidade ou actividade a conversão, transferência, dissimulação ou receptação de bens ou produtos dos crimes previstos nos artigos 21.º e 22.º, o agente é punido:
a) Nos casos dos n.os 1 e 3, com pena de prisão de 2 a 10 anos;
b) No caso do n.º 2, com pena de prisão de um a oito anos.

Como se vem entendendo, com o crime de associação criminosa reveste a natureza de crime de perigo abstracto, permanente e de participação necessária, onde se protege, essencialmente, a paz pública, no sentido das expectativas sociais de uma vida comunitária livre da especial perigosidade de organizações que tenham por escopo o cometimento de crimes.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, trata-se de intervir num estádio prévio, quando a segurança e a tranquilidade públicas não foram ainda necessariamente perturbadas, mas se criou já um especial perigo de perturbação que só por si viola a paz pública.[7]
Sendo que no tipo de crime em apreço se está perante uma autoria plural ou coletiva, por contraposição à autoria singular e diversa da atuação num quadro de coautoria ou comparticipação criminosa e de uma outra figura de comparticipação criminosa que é o bando.
E como refere o Prof. Figueiredo Dias, o problema mais complexo de interpretação e aplicação que aqui se suscita é, na verdade, o de distinguir cuidadosamente – sobretudo quando se tenha verificado a prática efetiva de crimes pela organização – aquilo que é já associação criminosa daquilo que não passa de mera comparticipação criminosa. [8]
Para a existência do crime de associação criminosa para a prática de actividades de tráfico de droga, devem existir uma pluralidade de indivíduos, com o mínimo de estrutura organizatória e com um sentimento comum de ligação dos seus membros a um qualquer processo de formação da vontade colectiva. Assim, verifica-se este crime quando duas ou mais pessoas decidiram criar uma estrutura de carácter permanente, organizada e estável, com vista a dedicar-se ao crime de tráfico de droga ou para a prática de branqueamento de bens e capitais provenientes do tráfico, e a existência de um qualquer processo de formação de vontade colectiva.[9]
Ou como refere Maria Leonor Assunção por associação criminosa deve entender-se uma qualquer estrutura organizada destinada à prática de crimes, uma pluralidade de pessoas unidas por um qualquer processo de formação de vontade coletiva, que pressupõe um mínimo de estrutura organizativa, um substrato dotado de certa estabilidade ou permanência, catalisador de uma realidade autónoma, diferente e superior às vontades e interesses das singulares pessoas, os seus membros.[10]
Sendo elementos típicos do crime de associação criminosa:
1 – Uma pluralidade de pessoas;
2– Uma certa duração, que não tem de ser determinada, mas que tem necessariamente de existir para permitir a realização do fim criminoso pela associação. Só com esta componente se poderá atingir o limiar mínimo de revelação de um ente autónomo, que supere um mero acordo ocasional de vontades;
3– Um mínimo de estrutura organizativa que sirva de substrato material à existência de algo que supere os simples agentes, devendo requerer-se uma certa estabilidade ou permanência das pessoas que compõem a organização, que não tem de ser tipicamente cunhada, mas antes pode ser concretizada pelas formas mais diversas;
4– É indispensável que exista um qualquer processo de formação da vontade coletiva;
5– Um sentido comum de ligação, por parte dos membros da associação a algo que, transcendendo-os, se apresenta como unidade diferente de qualquer uma das individualidades componentes e a que eles referem a sua atividade criminosa.[11]
Consumando-se o crime com a fundação da associação com a finalidade de praticar crimes, ou – relativamente a associados não fundadores - com a adesão ulterior, sendo o agente punido independentemente dos crimes cometidos pelos associados e em concurso real com estes.
Vertendo estes ensinamentos ao caso concreto, não deixaremos de afirmar a razão que atravessa o despacho recorrido quando refere que que a associação composta pelos arguidos BB, CC e DD seria uma organização, sem ser contudo uma associação criminosa, sem ter dado origem a uma realidade autónoma, diferente e superior às vontades e interesses dos seus membros.
Sendo que a facticidade que poderia vir, eventualmente, a integrar a figura criminológica de associação criminal foi tida por não indiciada, como bem se refere na Decisão Instrutória, págs 20 a 22 e que aqui se dão por inteiramente reproduzidos para todos os devidos efeitos legais.
Factualidade que o M.P. não põe em crise e, por tal, se terá de ter por estabelecida – formação de caso julgado formal.
Nem os factos invocados nas conclusões 3 e 4 se mostram aptos a vir integrar factualmente o crime de associação criminosa, já que insuficientes para demonstrarem a existência de uma realidade autónoma, diferente e superior às vontades e interesses de cada um dos membros que a integram, nem uma estrutura organizativa minimamente hierarquizada e estável.
Agindo os arguidos segundo os seus próprios interesses e não segundo um interesse superior que, de certa forma, os ultrapassasse.
Verificando-se, isso sim, uma conjugação de esforços e vontades, com vista à prossecução de um fim comum - o transporte e desembarque de droga visando a obtenção de proventos económicos - que não ultrapassa a noção de comparticipação criminosa, em que cada um dos co-arguidos actuou, tendo em vista o seu próprio e exclusivo benefício, o lucro pessoal que esperavam obter, sabendo que para atingirem tal desiderato necessitavam da colaboração e da intervenção de outros indivíduos.
Razões são, e sem necessidade de outros quaisquer considerandos, para que se conclua no sentido da improcedência da pretensão recursiva trazida pela Magistrada do M.P., mantendo-se, na íntegra a Decisão revidenda.

Termos são em que Acordam em negar provimento ao recurso, mantendo-se, in tottum, a Decisão Instrutória.
Sem custas, por não devidas.

(texto elaborado e revisto pelo relator).

Évora, 11 de Outubro de 2016
José Proença da Costa (relator)
António Clemente Lima

__________________________________________________
[1] Ver, Curso de Processo Penal, Vol. II, págs. 182 e segs..
[2] Na C.J., ano XXIII, tomo IV, págs. 261.
[3] Cfr. Da Acusação e Pronúncia num Direito Processual Penal de conflito entre presunção de inocência e a realização da Justiça punitiva, págs. 121-123, in I Congresso de Processo Penal.
[4] Ver, o Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, págs.171.
[5] Ver, Ac. de 10.12.92, no Processo n.º 427747.
[6] Ver, Comentário ao Código de Processo Penal Português, Vol. IV, págs. 411.
[7] Ver, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 1157.
[8] Ver, Ob.cit, pág., p. 1158.
[9] Ver, entre outros, os Acórdãos do S.T.J., de 18/12/02, in base de dados do ITIJ; e de 23/11/01, in CJ, Tomo III, pág. 220
[10] Assunção, Maria Leonor, in “Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias”, no texto com o Titulo “Do Lugar Onde o Sol se Levanta, Um Olhar Sobre a Criminalidade Organizada”, p. 106 a 113.

[11] Ver, As Associações Criminosas no Código Penal Português de 1982, in Separata da Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 119, n.º 3751 a 3760, p. 35 a 38.