Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
128/17.8T8ENT-A.E1
Relator: PAULO AMARAL
Descritores: DESPACHO LIMINAR
CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 04/26/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - No caso de indeferimento liminar de uma petição, não há lugar a uma audiência prévia do Autor quanto aos motivos que levam ao indeferimento.
II - A lei não exige uma interpelação do avalista anterior ao preenchimento do título cambiário.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 128/17.8T8ENT-A.E1
Acordam no Tribunal da Relação de Évora

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que o Banco (…) S.A. move contra (…) e (…) – Prestação de Serviços e Agricultura, Unipessoal, Lda., vieram estes deduzir embargos, alegando em síntese:
- o requerimento executivo não contém a exposição sucinta dos factos que fundamentam o pedido, nem formular o pedido;
- as livranças, não têm força de título executivo porquanto foi violado o pacto de preenchimento;
- o executado não foi interpelado para o pagamento.
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Os embargos foram liminarmente indeferidos com fundamento em que não existe uma adequada alegação de excepção por preenchimento abusivo sendo conclusiva. Por outro lado, nenhum comando legal impunha ao credor a prévia interpelação dos devedores cambiários antes de proceder ao preenchimento da letra e porque, também aqui, o executado nada alega sobre uma putativa convenção nesse sentido que pudesse inquinar o preenchimento ou a exequibilidade do título (v. g., ex vi arts. 405.º e 406.º, ambos do CC).
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Deste despacho recorrem os executados defendendo a sua revogação.
Alegam que a sentença é nula por falta de fundamentação e por violação do princípio do contraditório.
Mais alegam que houve violação do pacto de preenchimento e que o avalista não foi interpelado.
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O exequente contra-alegou defendendo a manutenção do decidido.
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Começaremos pela nulidade do despacho.
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O despacho é sucinto e debruça-se sobre aquilo que os embargantes alegaram. Explica que o modo vago como vem alegada a violação do pacto de preenchimento não permite concluir que tal violação tenha ocorrido; explica também que a lei não exige a interpelação prévia (anterior ao preenchimento do título) do avalista.
Isto está exposto no despacho e não vemos que algo mais tivesse que ser explicado. Assim, é falso dizer que «não é indicada na mesma o motivo, ou fundamento porque é que os Embargos foram julgados improcedentes».
Estão lá indicados e ao alcance de qualquer um.
Pelo exposto, julga-se improcedente a arguição de nulidade.
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O segundo fundamento prende-se com a violação do princípio do contraditório. Entendem os recorrentes que o tribunal, antevendo o indeferimento liminar, deveria tê-los convidado a se pronunciarem sobre tal possibilidade.
Não concordamos.
O despacho liminar não é proferido para as partes, não é proferido para decidir uma questão entre as partes. O despacho liminar só tem um interlocutor: o autor da petição.
Como se escreve no ac. do STA, de 27 de Fevereiro de 2013, «o direito ao contraditório, como decorrência do princípio da igualdade das partes, é um direito que se atribui à parte de conhecer as condutas assumidas pela contraparte, de tomar posição sobre elas e de ser ouvida antes de ser proferida qualquer decisão. A essência do princípio do contraditório está pois no facto de cada parte processual ser chamada a apresentar as respectivas razões de facto e de direito, a oferecer as suas provas ou a pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras. E por isso, a relevância do direito à audiência prévia e do direito de resposta dá-se sobretudo quando o seu exercício representa a garantia de uma parte relativamente à conduta processual da contraparte. Mas, o âmbito de aplicação do nº 3 do artigo 3º parece incluir também o contraditório relativamente a “decisões-surpresa”, com que as partes não podiam contar, por não terem sido objecto de discussão no processo. Nesses casos, para que a parte não seja confrontada e atingida como uma decisão inesperada, impõe-se garantir o contraditório. Razões ligadas à boa administração da justiça e à justa composição do litígio justificam que também nesses casos a contraditoriedade se efective».
No ac. do TCA Sul, de 18 de Junho de 2015 (citado pelo recorrido), escreve-se o seguinte: no «caso sub judice, examinando a tramitação processual do presente processo não se vislumbra com base em que fundamento se possa concluir que a decisão de 1ª. Instância se deve enquadrar como decisão-surpresa, mais tendo violado o dito princípio do contraditório, desde logo, porque nada na lei processual obriga o Tribunal a ouvir o autor antes de se proferir um despacho de indeferimento liminar. Sendo certo que tal despacho (quer quando ordene a citação do réu, quer quando indefira liminarmente a respectiva petição inicial) pode enfermar de erro de julgamento, mas, se assim for, a parte não está impedida de dele interpor o respectivo recurso, assim assegurando a lei o seu direito».
Por último, podemos invocar o ac. do STJ, de 24 de Fevereiro de 2015, segundo o qual «não é admissível um despacho liminar prévio a um despacho liminar, seria uma decisão em si contraditória, porque se o despacho liminar está legalmente previsto como podendo ser de rejeição liminar, não faria qualquer sentido a parte ser ouvida preliminarmente sobre a aludida eventualidade de vir a ser produzida uma decisão de não admissão de recurso…».
O despacho liminar não se destina a regular um conflito (mesmo que só processual) entre as partes pois que ele só tem um destinatário e um objecto: o autor e a sua petição.
Sendo certo que os recorrentes sabem o que alegaram, não há surpresa no indeferimento quando a petição for inepta.
Por este motivo, julga-se improcedente a arguição de violação do contraditório.
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Em relação ao mais que vem alegado, importa ter em conta o teor da p.i. tendo em conta, no entanto, que nas alegações de recurso os recorrentes retiram do respectivo objecto a ineptidão do requerimento executivo que haviam suscitado na p.i..
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Mas para já adianta-se que foram dadas à execução duas livranças subscritas pela embargante (…) e avalizadas pelo embargante (…). As duas livranças, ambas com a data de vencimento de 11 de Novembro de 2016, têm o valor de € 103.124,17 e € 46.556,88.
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O que vem alegado a respeito da violação do pacto de preenchimento é o seguinte:
13º
O facto de existirem duas livranças que constituem título executivo, não significa obrigatoriamente que essas sejam automaticamente exigíveis, pois já podem ter sido pagas, ou podem ter sido passadas em branco, e à data dos seus vencimentos não existir a intenção por parte dos executados de as emitir.
14º
O título executivo em causa é nulo, pois foi emitido sem autorização dos Executados.
15º
Estamos claramente perante uma Violação do Pacto de Preenchimento.
16º
Sendo que, no caso de se passar duas letras em branco, estas terão de ser preenchidas de harmonia com o facto ou o contrato de preenchimento convencionado.
17º
Não foi o que, na realidade, aconteceu.
18º
Os valores constantes nas livranças foram colocados após o preenchimento da livrança, e sem autorização dos Executados, e, para confirmar tal realidade, basta analisar a data da emissão da letra e a data do seu vencimento.
19º
Passou um ano.
20º
Assim, provado ficou que estamos perante Violação do Pacto de Preenchimento.
21º
A ser assim, e porque o preenchimento de título cambiário em branco com a violação do pacto de preenchimento configura uma falsidade material, perdendo assim a natureza executiva.
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A primeira pergunta que cabe fazer é esta: qual foi o pacto? O que é que as partes combinaram a respeito do preenchimento? Que tempo de vencimento combinaram, que valor combinaram?
Em que é que as livranças não respeitaram o pacto? Quais são as diferenças entre o acordado e o que consta das livranças?
Não se sabe porque os embargantes nada dizem a este respeito.
Por isso, o despacho recorrido está certo quando afirma que não existe uma adequada alegação de excepção por preenchimento abusivo.
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Em relação à falta de interpelação do avalista, é certo que tal vem alegado na p.i., mesmo que de uma forma confusa.
Mas para o caso é indiferente uma vez que, como também se nota no despacho recorrido, nenhum comando legal impõe ao credor a prévia interpelação dos devedores cambiários antes de proceder ao preenchimento da letra e porque, também aqui, o executado nada alega sobre uma convenção nesse sentido, isto é, que exigisse tal interpelação.
«Como se nota bem no ac. da Relação de Coimbra, de 6 de Outubro de 2015, “uma tal interpelação prévia do avalista não é reclamada, ao menos expressamente, pela lei cambiária, o que explica que quem sustente uma tal exigência (…) não indique o texto legal em que ela, directa ou indirectamente, se contém”. Na verdade, o título cambiário torna-se completo com o seu preenchimento não estando os requisitos da sua validade intrínseca dependentes do conhecimento anterior pelo devedor do modo como ele se irá completar» (do ac. desta Relação de 25 de Março de 2017).
No mesmo sentido vai o recente acórdão do STJ, de 25 de Maio de 2017, onde se escreve o seguinte:
«(…) o acordo visando o preenchimento do título não tem em si implícita a obrigação de prévia comunicação ao avalista das circunstâncias que o credor considera que legitimam o preenchimento reportadas à relação extracartular.
«O avalista em branco de uma letra ou livrança incompleta, mas cujo preenchimento se fará com recurso ao que foi convencionado no pacto de preenchimento, pode não ser parte na relação extracartular, como no caso não foi.
«Será que, como sustenta o recorrente, que se acha nessa situação, deveria, previamente ao preenchimento do título, ser informado da situação de incumprimento, a montante, imputável à subscritora da livrança, mutuária no contrato de financiamento bancário?
«A nosso ver a resposta é negativa por não se poder desconsiderar o regime do aval e a responsabilidade do avalista no contexto da sua intervenção no pacto de preenchimento».
Ainda mais recente, no ac. do STJ, de 28 de Setembro de 2017, escreve-se o seguinte:
«E quanto à invocada necessidade de interpelação do avalista como condição prévia do preenchimento da livrança, não se subscreve o entendimento perfilhado pelo embargante, já que não se traduz em exigência que resulte da lei, mormente da LULL, nem se mostra que decorra sequer do pacto de preenchimento.
«Para que assim fosse, necessário seria que o embargante tivesse alegado e provado que a necessidade dessa interpelação emergia do próprio pacto de preenchimento, o que não fez. Nem tão pouco essa falta de interpelação se reconduz minimamente em situação de má-fé ou de falta grave na aquisição do título por parte da exequente.
«Assim, não se mostrando que o ulterior preenchimento da livrança viole o pacto de preenchimento, tem-se por validamente constituída a obrigação de aval à subscritora assumida pelo embargante pelo montante e com a data de vencimento nela inscrito».
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É que, na verdade, em parte alguma da LULL se encontra tal exigência e nem o princípio da boa fé o exige. Sendo o aval uma garantia abstracta, um acto de confiança na pessoa do subscritor, o avalista sujeita-se ao preenchimento sem o seu conhecimento (e, menos ainda, consentimento). Como escreve Paulo Sendin, com a «declaração de confiança do avalista, constitui-se um valor patrimonial específico para o direito de crédito. A garantia do aval é, por isso, cumulativa, não subsidiária» (Letra de Câmbio, vol. II, Almedina, Coimbra, s. d., p. 733). Dito de uma forma mais directa, o aval é uma garantia objectiva; o avalista não garante que o avalizado pagará mas sim que o título será pago, não assume uma obrigação alheia mas sim uma própria, sua (cfr. Luigi B. d’Espinosa, «Avallo», EdD, IV, 579). Em suma, e como diz a LULL, o «dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada» (art.º 32.º, I).
Por estas razões é indiferente que os recorrentes não tenham tido conhecimento do preenchimento da livrança; tomaram conhecimento dele com o seu acionamento. Como se escreve no citado acórdão do STJ (de 28 de Setembro de 2017), «(…) tão pouco a falta de interpelação para efeitos de vencimento da obrigação exequenda se inclui naquela categoria de inexigibilidade, já que fica suprida pela citação do executado, conforme decorre dos artigos 805.º, n.º 1, do CC e 610.º, n.º 2, alínea b), do CPC».
Assim, a conclusão que se tira é que a dita interpelação prévia não é obrigatória.
Não o sendo, em nada fica afectada a execução numa situação em, como no caso dos autos, o título foi preenchido sem que antes se tivesse comunicado ao avalista o modo como ele o iria ser.
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Pelo exposto, houve boas razões jurídicas para rejeitar liminarmente os embargos de executado.
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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pelos recorrentes.
Évora, 26 de Abril de 2018
Paulo Amaral
Francisco Matos
José Tomé de Carvalho