Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
14/13.0GTPTG.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
Data do Acordão: 11/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário:
I - Quanto à verificação do especial grau de negligência previsto no art. 137º/2 CP sob a designação de negligência grosseira, que o CP não define, está em causa um grau especialmente elevado da negligência que agrava a punição, ou seja, uma intensificação da negligência não só ao nível da culpa como da ilicitude. Ou seja, exige-se do ponto de vista do tipo de ilícito que se esteja perante ação particularmente perigosa e de um resultado de verificação altamente provável e ao nível da culpa que o agente revele uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, plasmando na sua conduta qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez cf. F.Dias/Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do C.Penal, T.I, 2ª ed. p. 185.

II - Ao não moderar a velocidade de veículo pesado que conduzia à aproximação de curva e entroncamento, o arguido agiu de forma particularmente perigosa, pois dificilmente conseguiria parar ou fazer a curva sem colocar em perigo outros utentes da via, nomeadamente através de colisão com outros veículos ou, como sucedeu, provocando a projeção da pesada carga ou parte dela para a via, configurando-se assim como muito provável que pudesse atingir outro veículo provocando a morte ou grave lesão física dos seus ocupantes, resultado que se verificou.

III - Também do ponto de vista do tipo de culpa, não pode deixar de considerar-se especialmente irresponsável e insensata a conduta estradal do arguido, o que é fortemente indiciado pelas circunstâncias em que ocorreu o sinistro, pois não sendo credível a versão do arguido, como vimos, não pode deixar de acompanhar-se o tribunal de primeira instância ao concluir ter o arguido desconsiderado temerariamente os riscos da aproximação ao entroncamento e à curva com a velocidade que imprimia ao veículo nas concretas circunstâncias em que conduzia, quer tenha sucedido, do ponto de vista psicológico, que seguia distraído, com excesso de confiança ou qualquer outra que o levasse à incontornável desconsideração pelo perigo que provocava.

SUMARIADO PELO RELATOR
Decisão Texto Integral:
Em conferência, acordam os Juízes na 2ª subsecção criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório

1. – Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos no Juízo Local Criminal de Elvas do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre foi sujeito a julgamento JM, casado, maquinista, nascido a 02.07.1959, a quem o MP imputara a prática de:

- Uma contra-ordenação muito grave, prevista e punível pelo art.º 146.º alínea o);

- Duas contra-ordenações graves, previstas e puníveis pelo art.º 145.º n.º 1 alíneas e) e f);

- Cinco contra-ordenações leves, previstas e puníveis pelos art.ºs 11.º n.ºs 2 e 4, 18.º n.ºs 2 e 4, 24.º n.ºs 1 e 3, 25.º nºs 1 alíneas g), h) e 2, por referência aos art.ºs 1.º alíneas g) e f), 2.º n.º 1, 5.º n.º 1, 6.º n.º 1, 11.º n.º 2, 16.º n.º 1, 29.º n.ºs 1 e 3, 56.º n.ºs 1 e 3 alíneas a), b), d) e j), 105.º, 106.º n.ºs 1 alínea b) e 2 alínea b), 110.º n.º 2, 131.º, 134.º n.ºs 1, 2 e 3, 135.º n.º 3 alínea a), 138.º n.º 1, 139.º n.ºs 1 e 3, todos do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 82/2011, de 20 de Junho, punidas com coima e com sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados, e, em consequência, e por causa da falta de cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, na prática de:

- Um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelos art.ºs 137.º n.ºs 1 e 2 e 69.º n.º 1 alínea a) do Código Penal, com referência ao art.º 15.º alínea a) do mesmo diploma legal, e pela sanção acessória prevista no do Código Penal, e de

- Um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punível pelo art.º 291.º n.º 1 alínea b) e n.º 3 e pela sanção acessória prevista no art.º 69.º n.º 1 alínea a), todos do Código Penal.

2. – Realizada a audiência de julgamento, o tribunal singular decidiu:

- a) Condenar o arguido JM pela prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, previsto e punível pelo art.º 137.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal e em consequência da prática das contra-ordenações previstas e puníveis nos art.ºs 146.º alínea o), art.º 145.º n.º 1 alínea e), 11.º n.ºs 2 e 4, 18.º n.ºs 2 e 4 e 25.º nº 1 alínea h) e n.º 2, por referência aos art.ºs 1.º alíneas g) e f), 2.º n.º 1, 5.º n.º 1, 6.º n.º 1, 11.º n.º 2, 16.º n.º 1, 29.º n.ºs 1 e 3, 56.º n.ºs 1 e 3 alíneas a), b), d) e j), 105.º, 106.º n.ºs 1 alínea b) e 2 alínea b), 110.º n.º 2, 131.º, 134.º n.ºs 1, 2 e 3, 135.º n.º 3 alínea a), 138.º n.º 1, 139.º n.ºs 1 e 3, todos do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 82/2011, de 20 de Junho, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e na pena acessória de proibição de conduzir veículos rodoviários, nos termos do disposto no art.º 69.º n.º 1 alínea a) do Código Penal pelo período de 6 (seis) meses;

- b) Condenar o arguido JM pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punível pelo art.º 291.º n.º 1 alínea b) e n.º 3 do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, no quantitativo diário de 5,00 € (cinco euros), o que perfaz um montante total de 1.000,00 € (mil euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos rodoviários, nos termos do disposto no art.º 69.º n.º 1 alínea a) do Código Penal pelo período de 6 (seis) meses;

- c) Em cúmulo jurídico aplicar ao arguido, pela prática dos crimes referidos nas alíneas a) e b) supra, a pena acessória única de 6 (seis) meses de proibição de conduzir veículos motorizados;

- d) Condenar o arguido pela prática da contra-ordenação muito grave prevista e punível pelo art.º 146.º alínea o) do Código da Estrada, aplicando-lhe a sanção acessória de inibição de conduzir com a duração de seis (seis) meses;

- e) Condenar o arguido pela prática da contra-ordenação grave prevista e punível pelo art.º 145.º alínea e) do Código da Estrada, aplicando-lhe a sanção acessória de inibição de conduzir com a duração de 3 (três) meses;

f) absolver o arguido da prática das contra-ordenações previstas e punidas pelos art.ºs 145.º n.º 1 alínea f), 25.º n.º 1 alínea g) e n.º 2 do Código da Estrada;

3. – Inconformado, recorreu o arguido formulando as seguintes conclusões que se transcrevem:
«CONCLUSÃO:

1ª- Contrariamente ao constante da sentença recorrida, da prova coligida nos autos e produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, não resultou provado que o Arguido tivesse agido sem tomar as devidas precauções de segurança, que tivesse tido uma conduta imprudente, descuidada, com falta de cuidado, atenção e concentração e com desrespeito pelas regras estradais, bem como que tivesse actuado com leviandade e falta de atenção.

2ª- Os factos constantes dos pontos 18 (quanto a existirem marcas de derrapagem e de travagem), 22 (quanto a que “não obstou a quisesse actuar da forma como actuou e supra descrita”), 24, 25, 26 e 27 da matéria de facto provada na sentença recorrida, foram indevidamente dados como provados, já que, nada há dos autos que permita que os mesmos sejam dados como provados.

3ª- Por isso, impugnam-se os mesmos, devendo ser retirados da matéria de factos provados e considerados como não provados, o que se faz nos termos e ao abrigo, designadamente, dos artºs 412º, nº 3, e segts. do Cód. Proc. Penal.

4ª- O Arguido, nas declarações prestadas no dia 02.02.2017, as quais estão gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 10:46:33 horas e o seu termo pelas 11:25:44 horas, esclareceu o Tribunal sobre a dinâmica do acidente, que entrou no entroncamento que liga a estrada que vem de Vila Fernando à EN nº 4 numa velocidade excessiva para, de forma segura, conseguir efectuar a curva e entrar na EN nº 4.

5ª- Todavia, o Arguido também explica, de forma fundamentada e segura, a razão pela qual tal ocorreu, esclarecendo que os travões não responderam eficientemente à ordem de abrandar ou parar a marcha e, por essa razão, ainda recorreu ao travão de mão e à redução das mudanças, mas que tal não foi suficiente para conseguir efectuar a curva em segurança.

6ª- A Mma Juíza “a quo” não julgou credível a versão do arguido, porquanto entendeu que o Arguido se contradisse nas declarações prestadas “desde logo porque começou por dizer que não houve resposta nenhuma dos travões e, em últimas declarações, após os esclarecimentos da testemunha PM, acabou por referir que, afinal, não tinha dito que não tinha conseguido travar totalmente, contradizendo-se”

7ª- Porém, ouvidas as declarações prestadas pelo Arguido verifica-se que não existem, quaisquer, contradições.

8ª- O Arguido em ambas as declarações esclareceu que, quando teve necessidade de abrandar a marcha, a velocidade porque se estava a aproximar do cruzamento, verificou que os travões do veículo pesado e semi-reboque não responderam em conformidade.

Veja-se

Mma Juíza: quis travar a quanta distância?
Arguido: a 200 metros ou coisa assim vj. minuto 20:33 da apontada gravação digital do depoimento prestado pelo Arguido;

Mma Juíza: Não funcionaram os travões?
Arguido: vi que eles não estavam a corresponder às necessidades que era preciso – vj minuto 20:40 da apontada gravação digital do depoimento prestado pelo Arguido;

Mma Juíza: e então?
Arguido: então pus travão de mão, foi logo a primeira coisa, e tentar reduzir a marcha que trazia para outra mais pequena, tentei reduzir a mudança. Mas fazer e não fazer … – vj. minuto 20:49 da apontada gravação digital do depoimento prestado pelo Arguido;

Mma Juíza: lembra-se em que mudança vinha?
Arguido: era terceira ou segunda alta – vj. minuto 21:11 da apontada gravação digital do depoimento prestado pelo Arguido;

Vi quando cheguei à altura, em que lá está a dita ponte da auto-estrada, encostava-me à berma direito não podia está lá a dita ponte, era para ver se conseguia travar o carro na berma nem que ele se inclinasse, passando a ponte, além meio da ponte vi que só tinha uma alternativa, ver se conseguia fazer a curva um bocadinho mais larga para ver se a conseguia dar aquela velocidade. – vj. minuto 21:20 da apontada gravação digital do depoimento prestado pelo Arguido;

9ª- Assim, o que o Arguido sempre esclareceu é que, quando teve necessidade de abrandar a marcha, a velocidade porque se estava a aproximar do cruzamento, os travões não responderam em conformidade.

10ª- Entende o Arguido que é irrelevante se os travões não responderam totalmente ou parcialmente, pois o certo é que não tiveram a adequação necessária, isto é não provocaram a redução pretendida da velocidade de marcha.

11ª- Por outro lado, a Mma Juíza “a quo” deu como provado – no ponto 18 da matéria de facto provada – que “(…) na faixa de rodagem, existiam marcas de derrapagem e de travagem do veículo pesado de mercadorias (…)” fundamentando-se no depoimento prestado pela PM, Guarda Principal que elaborou o inquérito ao acidente e que fez as inspecções ao local e ao veículo conduzido pelo Arguido, ao fazer constar da sentença recorrida que, “em face das fotografias que compuseram o relatório fotográfico de fls. 205 a 227, maxime segunda fotografia de fls. 209, fotografias de fls. 210 e 211 e primeira fotografia de fls. 212, as marcas que ali se vislumbram no pavimento foram feitas pelos pneus do veículo pesado em derrapagem na sequência de accionamento dos travões – referindo expressamente não existirem marcas de pneus com aquela configuração sem accionamento dos travões – que provocam o bloqueio das rodas (todas ou parte das mesmas) causando o arrastamento do pneumático cuja borracha fica impressa no alcatrão. Esclareceu especificamente que, se os travões não tivessem sido accionados, não existiriam tais marcas no pavimento.”

12ª- A correlação e a extrapolação que a Mma Juíza “a quo” invoca é, manifestamente, insuficiente para justificar a negligência, falta de atenção e de cuidado do Arguido e, consequentemente, possa consubstanciar o preenchimento de todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de homicídio por negligência grosseira e de condução perigosa de veículo rodoviário.

13ª- A identificada testemunha PM, responsável pela elaboração do inquérito, elaborou e juntou aos autos o “Relatório Fotográfico do Acidente de viação”, a fls. 205 e segts., a “Folha de Medições”, a fls. 469 e segts, o “Auto de Exame Directo ao Local”, a fls. 482 e segts., o “Auto de Avaliação de Danos do Veículo” fls. 487 e segts. e o “Relatório Final” a fls. 492 e segts..

14ª- No Relatório Fotográfico do Acidente de viação”, a fls. 205 e segts., na “Folha de Medições”, a fls. 469 e segts. e no “Auto de Exame Directo ao Local”, a fls. 482 e segts., a identificada testemunha apenas faz referências a existência de derrapagens, fazendo, expressamente, constar que no local do sinistro inexistiam marcas de travagem.

15ª- O identificado Guarda Principal PM, para além dos identificados relatórios que elaborou que integraram o inquérito, também foi ouvido, na qualidade de testemunha, por duas vezes, no decurso da audiência de discussão e julgamento, no dia 2.02.2107 e, posteriormente no dia 10.05.2017, após a Mma Juíza “a quo” da audiência de discussão e julgamento realizada no dia 3.05.2017 ter ordenado a reabertura da audiência para nova inquirição da identificada testemunha PM.

16ª- No primeiro depoimento, a identificada testemunha PM, declarou de forma convicta que não existiam marcas de travagem na estrada, existindo apenas marcas de derrape do lado direito – veja-se, designadamente aos minutos 12: 18 e 14:17 da gravação efectuada ao depoimento prestado.

17ª- Porém, já no segundo depoimento, e após insistência por parte da Mma Juíza “a quo” a identificada testemunha, de forma pouco convicta e insegura, e contrariando quer os relatórios por si elaborados quer o primeiro depoimento, fez referência à existência de marcas de travagem na curva.

18ª- Dos depoimentos prestados pela testemunha PM não se pode extrair, com certeza, a convicção de que as marcas existentes na estrada eram apenas de derrape, ou se eram de derrape e travagem.

19ª- Também do mesmo depoimento, não é possível extrair, com certeza e convicção que essas marcas resultaram do Arguido “quiçá por distracção, apenas nesse ponto reparou onde se encontrava e, accionando ali os travões de forma brusca, os pneumáticos começaram a deixar as respectivas marcas, fazendo o veículo curvar ainda em excesso de velocidade para o local e em derrapagem, de forma descontrolada”, conforme a Mma Juíza argumenta na sentença recorrida.

20ª- Da prova produzida, resulta a dúvida ou possibilidade de tais marcas existentes da estrada resultarem do accionamento do travão de mão, tal como o Arguido referiu ter efectuado para abrandar a velocidade do veículo pesado quando se apercebeu que o travão não respondia eficientemente.

21ª- Da prova produzida, restou a dúvida sobre as eventuais marcas que o travão de mão poderia ou não ter deixado, dúvidas essas que o Órgão Policia Criminal que elaborou o inquérito não conseguiu dissipar.

22ª- Donde, não se pode, sem mais, extrapolar para a conclusão que as marcas existentes na curva são demonstrativas de distracção do condutor e, consequentemente, decidir-se pela condenação do mesmo.

23ª- Por outro lado, não é crível que o veículo pesado com o semi-reboque, carregado com toneladas de pedra, apenas tenha travado – “accionado os travões de forma brusca” como consta da sentença recorrida – a meio da curva, isto quando estamos perante uma curva muito acentuada.

24ª- Se assim fosse, e tratando-se de um veículo pesado com semi-reboque, o Arguido não conseguiria, sequer, entrar na curva. Iria, certamente, em frente.

25ª- Não podemos comparar o comportamento de um veículo ligeiro com um veículo pesado com semi-reboque, carregado com dois blocos de granito.

26ª- Também não é credível, que sendo o Arguido motorista de pesados desde 1980 e nunca tenha tido um acidente, conhecendo o local do acidente e sendo o seu primeiro dia de trabalho na empresa proprietária do veículo pesado e a primeira vez que conduzia aquele veículo pesado, se possa considerar ou sequer admitir que o Arguido entrou no identificado cruzamento em excesso de velocidade, sem observar as necessárias precauções, em total desrespeito das regras estradais.

27ª- Por outro lado, a Mma Juíza a “quo” não considerou o facto de a ficha de inspecção periódica do semi-reboque terminar, no dia seguinte ao da ocorrência do acidente e de, na inspecção periódica obrigatória realizada no dia 13.02.2013, ao semi-reboque com a matrícula VI----, terem sido detectadas anomalias no sistema de travagem, conforme ficha de inspecção nº VC 256155 a fls. 102 dos autos.

28ª- Tendo-se limitado a afastar a relevância da ficha de inspecção nº VC 256155 a fls. 102 com o argumento de que “o arguido nunca referiu a falta de travões quando questionado nos momentos seguintes ao do sinistro, o veículo foi inspeccionado pelo OPC e não apresentou anomalias e desconhece-se o que terá ocorrido ao mesmo no período de tempo que mediou entre a entrega daquele ao proprietário e o momento da realização da inspecção técnica.”

29ª- O que não é, de todo, aceitável.

30ª- Antes de mais, a inspecção efectuada pelo OPC (Órgão de polícia criminal) é meramente visual e não mecânica

31ª- e a inspecção periódica realizou-se imediatamente após a entrega do veículo ao seu proprietário.

32ª- Conforme resultou da ficha de inspecção o problema/avaria no sistema de travões era uma realidade que não pode, de todo, deixar de ser considerado

33ª- Necessariamente há uma dúvida que se suscita, que não pode ser menosprezada se aquando do acidente, o 1º eixo da roda esquerda não trava 94% ? e o 3º eixo roda direita trava menos de 82%? Como resultou da inspecção periódica realizada imediatamente após a entrega do veículo ao seu proprietário.

34ª- Há uma dúvida que não pode deixar de ser valorizada.

35ª- Por outro lado, não se pode considerar imprescindível para apuramento da verdade que o Arguido tivesse, imediatamente após o acidente, que ter comunicado a falha do sistema de travões.

36ª- O Arguido foi “transportado para o Hospital de Elvas por se encontrar afectado psicologicamente”, tendo ficado em choque após o acidente.

37ª- E nem todas as pessoas reagem da mesma forma após e numa situação de choque.

38ª- Acresce que, nenhum Órgão de Polícia Criminal no dia do acidente se deslocou ao Hospital para interrogar o Arguido e ou procurar saber o que efectivamente tinha ocorrido.

39ª- Só em 08.05.2013, ou seja, três meses após o acidente, é que o Arguido foi interrogado nos presentes autos para prestar declarações.

40ª- O que é também inadmissível.

41ª- As convicções e conclusões extraídas pelas Mma Juíza “a quo” para fundamentar a condenação do Arguido na prática dos crimes de homicídio por negligência grosseira e condução perigosa de veículo rodoviário não assentam em meios de prova inequívocos.

42ª- Da prova produzida nestes autos subsistiram dúvidas quanto ao funcionamento eficiente dos travões do veículo pesado, não podemos ignorar a ficha técnica da inspecção e a dúvida que ficou relativamente às marcas existentes no pavimento. Serão de travagem? Serão de derrapagem? Serão de travagem e derrapagem? Serão o resultado de o Arguido ter accionado o travão de mão?

43ª- A falta de prova evidente implica, necessariamente, a absolvição do Arguido.

44ª- Pois, sempre que não se logre a prova do facto, em obediência ao princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.

45ª- Assim, e atenta a prova produzida, deverão considerar-se como não provados os factos constantes dos pontos 18, quanto a existirem marcas de derrapagem e de travagem, 22, 24, 25, 26 e 27 da matéria de facto provada constante da sentença recorrida.

46ª- e deve aditar-se aos factos provados que, na inspecção periódica obrigatória realizada no dia 13.02.2013, ao semi-reboque com a matrícula VI----, foram detectadas anomalias no sistema de travagem conforme ficha de inspecção nº VC 256155 a fls. 102 dos autos.

47ª- Não se encontram, pois, reunidos os necessários pressupostos integradores de conduta negligente por parte do Arguido.

48ª- Consequentemente, não se encontram reunidos os elementos dos tipos dos crimes que o Arguido vem condenado.

49ª- Como tal, deve, em virtude do presente recurso, a sentença de fls. ser revogada e substituída por Douto Acórdão que absolva o Arguido.

Sem prescindir,

50ª- e ainda que se considere ter havido negligência na conduta do Arguido - o que apenas se admite por mera lógica de raciocínio jurídico - nunca se pode classificar essa negligência como grosseira, por falta de prova dos factos integradores

51ª- Assim, o Arguido jamais poderia ser condenado nos termos do nº 2 do artº 137º do Cód. Penal, sendo, em consequência, em situação de consideração de existência de negligência, reduzida a pena aplicada ao Arguido e, nesse caso, aplicada uma pena de multa e não de prisão.

52ª- Por outro lado, no caso de condenação em pena de multa, na fixação do seu quantitativo, deverá atender-se à situação económica e financeira do Arguido e dos seus encargos.

53ª Assim, e caso se entenda que o Arguido deve ser condenado pela prática do crime de condução perigosa, o que apenas se admite por lógica de raciocínio, sempre o valor da multa deve ser substancialmente reduzido.

54ª- Em consequência directa e necessária do acidente, o Arguido ficou a padecer de uma doença do foro psicológico, tendo apoio psicológico permanente.

55ª- O Arguido desempenha as funções de maquinista.

56ª- Para o efeito, é indispensável o Arguido ter a possibilidade e esta habilitado para conduzir. motorizados terá como consequência imediata para o Arguido a impossibilidade de desempenhar qualquer actividade na sociedade de que é sócio e, assim, de auferir o seu sustento.

58ª- e será também prejudicial para a saúde mental do Arguido.

59ª- Pelo que, caso se decida manter a aplicação da pena e sanções acessórias de inibição de conduzir, deverá a mesma circunscrever-se aos fins-de-semana e períodos de férias do Arguido.

60ª- Por último, encontram extintas, por prescrição, as contra-ordenações relativamente às quais o Arguido vem condenado.

61ª- Nos termos do art. 188.º, do CE, o prazo de prescrição do procedimento por contra-ordenação rodoviária é de dois anos, aplicando-se-lhe subsidiariamente o regime geral das contra-ordenações, previsto no DL 433/82, de 23/10, designadamente os regimes de suspensão e interrupção da prescrição previstos respectivamente nos art.27.º-A e 28.º, por força do disposto no art. 132.º, também do CE.

62ª- Ora de acordo com o disposto com os art. 27.º, n.º 3, do RGCO, a prescrição do procedimento contra-ordenacional tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição, acrescido de metade.

63ª- Para efeitos de contagem da prescrição do procedimento contra-ordenacional há que ter em conta o prazo de prescrição de 2 anos, acrescido 1 ano e ressalvada a suspensão que não pode ultrapassar 6 meses.

64ª- Assim, tendo ocorrido os factos em 06/02/2013, a prescrição ocorreu em 06/08/2016.

65ª- Face a todo o exposto, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por Douto Acórdão que, como referido nesta alegação e nas conclusões, altere a matéria de facto dada como provada e absolva o Arguido dos crimes e das contraordenações de que vem condenado, tudo com todas as legais consequências.»

4. – Notificado para o efeito, o MP apresentou resposta ao recurso concluindo pela sua improcedência, exceto quanto à invocada prescrição do procedimento contraordenacional e suas consequências.

5. - Nesta Relação, a senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que, depois de analisar as diversas questões suscitadas, apresentou parecer naquele mesmo sentido.

6.Notificados da junção daquele parecer, o arguido nada acrescentou.

7. - A sentença recorrida (transcrição parcial):

«A. Da matéria de facto provada:
Com relevância para a boa decisão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:

Da acusação pública deduzida pelo Ministério Público:

1 – No dia 6 de Fevereiro de 2013, pelas 12 horas e 30 minutos, no exercício das suas funções de motorista de pesados, o arguido JM conduzia o veículo tractor de mercadorias, da marca Volvo, com a matrícula -NL, com semi-reboque, da marca Trailor, com a matrícula VI----, no acesso à Estrada Nacional 4, Km 170,3, em Terrugem, no sentido Elvas – Borba, transportando dois blocos de granito de grandes dimensões e com toneladas de peso cada um.

2 – Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, e no sentido de trânsito inverso, na Estrada Nacional 4, seguia o veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Rover, modelo 75, com a matrícula --PU, conduzido por PEC, e no qual se fazia transportar, no banco dianteiro direito, MJC.

3 – O local da faixa de rodagem acima mencionado, e tendo em conta o sentido de marcha do arguido, na direcção Oeste-Este, descrevia uma curva muito acentuada à direita, com uma faixa de rodagem, desembocando num entroncamento integrado por uma via recta com duas hemi-faixas de rodagem, uma destinada aos veículos automóveis que seguiam no sentido Oeste-Este, e outra aos veículos automóveis que seguissem em sentido inverso, estando ambas separadas entre si por uma dupla linha longitudinal contínua e por um ilhéu separador em cimento.

4 – No sentido de marcha que o arguido descrevia, antes do entroncamento, existia sinalização vertical de cedência de passagem obrigatória, bem como linha de cedência de passagem delimitada no pavimento.

5 – Nestas exactas circunstâncias, ao descrever a curva muito acentuada à direita, porque conduzia a uma velocidade excessiva para o local e para o veículo pesado e para a carga que transportava, e não inferior a 60 km/hora, o veículo do arguido JM derrapou, não descreveu totalmente a curva, invadiu a faixa de trânsito à qual se encontrava obrigado a ceder a passagem e embateu com os rodados esquerdos do tractor e do semi-reboque no ilhéu separador das vias de trânsito, em cimento, passando por cima deste, partindo-o e quase invadindo parte da hemi-faixa de rodagem na qual circulava PEC, no sentido de trânsito inverso.

6 – Acto contínuo, e devido à força centrífuga exercida pela rotação descontrolada do veículo e do semi-reboque, a única cinta que segurava um dos blocos de granito que o arguido JM transportava no reboque partiu-se e aquele saiu projectado, de forma descontrolada, para a hemi-faixa de rodagem à esquerda, atento o sentido de trânsito do arguido, invadindo assim a hemi-faixa de rodagem destinada ao trânsito dos veículos que seguiam em sentido de marcha contrário ao seu, indo colidir violentamente no veículo automóvel conduzido por PEC, colhendo-o, esmagando-o e arrastando-o até à berma do lado direito, numa extensão total de onze metros.

7 – Em consequência do embate, PEC sofreu escoriações e equimoses extensas na face anterior do tórax, escoriações e equimoses extensas na parede anterior do abdómen, fractura completa exposta do antebraço esquerdo, fractura completa do dedo anelar esquerdo, luxação completa do ombro direito, equimoses no braço direito, ferida contusa perfurante na face anterior da coxa direita, esfacelo da perna direita, fractura exposta do fémur esquerdo a nível da articulação do joelho, fractura exposta da perna esquerda, fractura exposta da articulação tíbio társica, equimoses em ambos os membros inferiores e região da bacia, fractura da laringe e da traqueia, fractura da glândula tiróide, ruptura com esfacelo de todos os órgãos da cavidade toráxica, ruptura com esfacelo de todos os órgãos da cavidade abdominal, fractura completa das quinta, sexta e sétima vértebras dorsais, ruptura com esfacelo de todos os órgãos da cavidade toraco-abdominal, fractura completa a nível do terço inferior do fémur esquerdo, fractura completa dos ossos da perna direita no seu terço médio, fractura completa dos ossos da perna direita no seu terço médio, fractura completa dos ossos da perna esquerda a nível do seu terço médio, fractura dos ossos da perna esquerda a nível da articulação tíbio társica.

8 – As lesões traumáticas toraco-abdominais supra descritas foram causa directa e necessária da morte de PEC, certificada no local, no mesmo dia, pelas 13 horas.

9 – Em consequência do embate do bloco de granito, MJC sofreu politraumatismos, traumatismo torácico grave, traumatismo abdominal grave, traumatismo craneo-encefálico com amnésia ao acidente, traumatismo da coluna dorsal, com fractura de D8/D, derrame pleural bilateral, úlceras de pressão occipital e sagrada, deformação torácica esquerda com afundamento por fracturas múltiplas da grelha costal esquerda, atingindo praticamente todos os arcos costais (primeiro, segundo, terceiro e quarto) com fracturas múltiplas com angulação dos topos fracturianos, fractura do manúbrio e corpo do esterno, fractura bimaleolar com luxação subgastralina, fractura do planalto, fractura da tíbia e perónio e evisceração da parede abdominal, com indicação para cirurgia urgente, tendo permanecido internada no Hospital de São José, em Lisboa, entre 6 de Fevereiro e 23 de Agosto de 2013.

10 – Tais lesões foram directa e necessariamente determinantes, para MJC, da realização das seguintes intervenções cirúrgicas:

a) Ressecção segmentar do cólon transverso e ílion, em 9 de Fevereiro de 2013;
b) Construção de colostomia terminal, com colocação de dreno multitubular, em 14 de Fevereiro de 2013;

c) Cirurgia para redução aberta de fractura da tíbia e perónio, com fixação interna de três parafusos, em 16 de Fevereiro de 2013, e

d) Cirurgia torácica, em 25 de Fevereiro de 2013, com colocação de placas de titânio nos segundo, terceiro e quarto arcos costais à esquerda;

e) Cirurgias em 24 de Maio e em 21 de Junho de 2013, devido a escaras sacrococcígeas.

11 – Tais lesões determinaram ainda, directa e necessariamente, que MJC permanecesse acamada pelo período de cinco meses, requerendo a subsequente realização de sessões de fisioterapia.

12 – A zona da faixa de rodagem onde ocorreu a colisão supra descrita tinha uma largura total de sete metros e oitenta centímetros, tendo a via de rodagem direita a largura de quatro metros e a esquerda três metros e oitenta centímetros, encontrando-se delimitadas por ilhéu separador em cimento, e, atento o sentido de trânsito do arguido, descrevia uma curva com elevada acentuação à direita, mas dotada em toda a sua extensão de boa visibilidade.

13 – A via, de aglomerado asfáltico, encontrava-se em bom estado de conservação, com a superfície seca e limpa, e existia boa visibilidade.

14 – Nestas exactas circunstâncias, inexistiam quaisquer obstáculos e o tráfego era de intensidade reduzida.

15 – Nas exactas circunstâncias supra descritas, o veículo automóvel conduzido por PEC era detectável e visualizável, para o arguido, a uma distância superior a cem metros.

16 – O arguido transportava no semi-reboque dois blocos de granito, de elevadas dimensões e com o peso de toneladas, tendo os mesmos sido ali colocados por si conjuntamente com MJC, operador da pá carregadora, pelas 11 horas e 20 minutos do mesmo dia.

17 – Tais blocos de granito foram pelo arguido assentes sobre dois toros de madeira e, seguidamente, atados, cada um, com uma única cinta, presa a meio de cada bloco.

18 – O arguido conduzia a velocidade não inferior a 60 km/hora e, na faixa de rodagem, existiam marcas de derrapagem e de travagem do veículo pesado de mercadorias conduzido pelo arguido inclusivamente por cima do ilhéu separador em cimento, o qual ficou destruído numa extensão de dez metros.

19 – Nestas exactas circunstâncias, no mesmo dia e com o mesmo veículo pesado e semi-reboque, o arguido JM tinha já percorrido a distância de cinquenta quilómetros entre Barro Branco, em Borba, e a pedreira, em Arronches, local onde carregou o granito e, daqui até ao local onde ocorreu o sinistro, percorreu ainda mais trinta quilómetros, tendo pois percorrido um total de oitenta quilómetros.

20 – O arguido possui habilitação legal para o exercício da condução de veículos automóveis pesados de mercadorias, categorias C, C1,C1E e CE, desde 7 de Agosto de 1980.

21 – O arguido exerceu a função de motorista de pesados, transportando blocos de granito, entre 1 de Junho de 1985 e 31 de Março de 1987, entre 1 de Outubro de 1987 e 31 de Janeiro de 2012 e, pelo menos, até 31 de Agosto de 2015.

22 – O arguido sabia que estava obrigado a circular com o veículo que conduzia na hemi-faixa de rodagem destinada ao seu sentido de marcha e que estava obrigado a cumprir com a velocidade moderada, adequada à carga que transportava e às características da via, com curvas acentuadas e com imposição de cedência de passagem, em que circulava, o que não obstou a quisesse actuar da forma como actuou e supra descrita.

23 – O arguido sabia que a lei obriga as pessoas a conduzir com cuidado, atenção e respeito pelas regras estradais, e tinha plena consciência de que devia conduzir com atenção e com velocidade moderada, a fim de poder executar manobras cuja necessidade fosse de prever, e especialmente, abrandando a marcha do veículo pesado de mercadorias com carga instável nas curvas muito acentuadas existentes na via pública por forma a completá-las em segurança para si, para as pessoas que transportasse consigo e para os demais utentes da via pública, e por forma a cumprir com a sinalização de cedência de passagem.

24 – Ao conduzir da forma por que o fez, transportando carga pesada e à velocidade em que o fazia, o arguido agiu sem tomar as devidas precauções de segurança que o traçado – com curva muito acentuada –, a carga – de grandes dimensões e pesada que transportava –, as dimensões do veículo e do semi-reboque e as características do local impunham, adequando a velocidade do veículo que conduzia aos mesmos, e violando desta forma os deveres objectivos de cuidado a que estava obrigado.

25 – O arguido previu como possível que, ao conduzir sem observar as precauções de segurança acima mencionadas, com total desrespeito pelas regras estradais, poderia perder o controlo do veículo que conduzia e perder a carga que transportava e originar uma situação de perigo e de lesão para a vida e integridade física para os utentes da via, como efectivamente viria a suceder, facto que não o inibiu de actuar da forma por que o fez, pois confiou que tal não ocorreria.

26 – O arguido previu como possível que, ao conduzir sem observar as precauções de segurança acima mencionadas, com a sua conduta imprudente e descuidada, decorrente da sua total falta de cuidado, atenção e concentração, e com desrespeito pelas regras estradais, com elevada probabilidade poderia perder o controlo do veículo e da carga que transportava, não conseguindo travar o mesmo no espaço livre e visível de que dispunha à sua frente, ou perdendo os blocos de granito que, pelo seu peso e dimensões, originariam necessariamente uma situação de perigo e de lesão efectiva para a vida e a integridade física dos demais utentes da rodovia, como efectivamente viria a suceder, facto que não o inibiu de actuar da forma por que o fez, pois confiou que tal não ocorreria.

27 – Agiu o arguido de forma particularmente leviana e descuidada, com muito elevada falta de prudência e omitindo os cuidados mais elementares, pois, transportando em veículo pesado uma carga de blocos de granito de grandes dimensões e que pesava toneladas, sobre toros, presa a meio por uma cinta, podendo cair ou ser projectada aquando da trajectória do veículo, e conhecendo o traçado de tal via, por já antes o haver percorrido, sabendo existir um curva muito acentuada, ainda assim não moderou a velocidade à trajectória e à carga que transportava, pese embora fosse previsível que seria altamente provável uma derrapagem e a concretização de um acidente.

28 – O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal e contra-ordenacional.

Quanto às condições pessoais do arguido e antecedentes criminais:

29 – À data dos factos, bem como no presente, o arguido vivia/e com o seu agregado, composto por ele e cônjuge, em residência própria. A habitação consiste numa pequena moradia unifamiliar, que adquiriram através de empréstimo bancário. A casa dispõe de condições habitabilidade e infraestruturas básicas necessárias e espaços físicos suficientes para os elementos do agregado. Está implantada no perímetro urbano da cidade de Borba.

30 – O arguido caracteriza a relação intrafamiliar como positiva e harmoniosa, numa dinâmica pautada por laços afectivos e de respeito mútuo e normativo, avaliação corroborada pelo cônjuge.

31 – Profissionalmente o arguido, após um período de desemprego recebendo o respectivo subsídio, iniciou actividade profissional como motorista de pesados na empresa “Multigranito”, sendo o primeiro trabalho que desenvolveu para aquela empresa e o qual está na origem dos factos constantes dos presentes autos. Seguidamente iniciou um período de baixa médica psiquiátrica, com acompanhamento clínico psicológico, que mantém no Hospital de Elvas.

32 – No presente, o arguido é sócio gerente, conjuntamente com o filho, numa empresa que ambos constituíram de aluguer de máquinas industriais “Maquinas…, Ld.ª”, tendo utilizado para a sua constituição o valor remanescente da totalidade do subsídio de desemprego.

33 – Em contexto económico a família detém uma situação relativamente equilibrada, mantendo um estilo de vida com uma gestão doméstica cuidada, conseguindo responder eficazmente às necessidades do agregado. Porquanto, o arguido aufere um vencimento líquido mensal médio de 676,00 € (seiscentos e setenta e seis euros), onde já estão incluídos os duodécimos de férias e de Natal. O cônjuge está reformado por invalidez recebendo uma pensão mensal de 246,00 € (duzentos e quarenta e seis euros). Referiu como despesa mais relevante para além das do quotidiano, o encargo com empréstimo bancário da habitação no valor mensal de 290,00 € (duzentos e noventa euros). Avalia que a actividade empresarial decorre com alguns resultados positivos e favoráveis.

34 – Ao nível da saúde refere ser diabético e consequentemente dependente de insulina, identificando também alguma problemática a nível da tiróide.

35 – JM, actualmente com 57 anos, sempre residiu em Borba de onde é natural, sendo o mais novo de oito filhos de uma família de estrato socioeconómico humilde: o pai era trabalhador rural e a mãe doméstica, cujo processo de socialização ocorre num contexto familiar com transmissão dos valores e normas sociais.

36 – JM iniciou o percurso escolar aos seis anos, tendo concluído a antiga quarta classe já em regime nocturno e com quinze anos, com várias retenções, revelando dificuldades de aprendizagem e desinteresse pelas actividades lectivas. Seguidamente iniciou o seu percurso laboral como auxiliar de motorista de pesados e mais tarde como manobrador de máquinas e motorista de pesados.

37 – Tem mantido um percurso profissional relativamente regular e estável.

38 – Com 23 anos casou com actual cônjuge e deste matrimónio tem um filho com 34 anos, que no presente tem vida autónoma.

39 – JM não tem uma ocupação estruturada dos seus tempos livres e refere que os mesmos são ocupados em casa junto da esposa e de uma neta.

40 – Apresenta uma estrutura de personalidade onde se destaca capacidade de apreciação crítica face ao seu trajecto de vida, descentração, responsabilidade face aos deveres de cidadania, pensamento consequencial e autocontrolo. É um indivíduo com competências sociais e com um estilo de vida estruturado, valorizando a sua integração no meio comunitário de residência e as suas relações sociais, que se constituem como factores de protecção, não evidenciando ser possuidor de qualquer problemática desajustada.

41 – Apresenta capacidades de raciocínio autocrítico, face à presente situação jurídico-penal, ainda que a justifique com falha mecânica que provocou o acidente.

42 – Refere constrangimento pela existência do processo em causa, pois é a primeira vez que se vê envolvido em processo judicial e em contacto com as autoridades judiciais.

43 – Quer o arguido quer a família salientam o sofrimento que estes factos provocaram, tendo o arguido recorrido a apoio psicológico. A família mantém-se unida e apoiante, sendo referida maior coesão.

44 – O arguido não possui antecedentes criminais.

B. Da matéria de facto não provada:

Não resultou provado, com relevo para a boa decisão da causa:

1 – Que os blocos de granito que o arguido transportava encontravam-se em equilíbrio instável, que as cintas que os prendiam eram finas e estreitas, podendo cair ou serem projectados com as oscilações do percurso.

2 – Que não havia sinais de travagem na faixa de rodagem.

C. Motivação:
Tendo sempre como horizonte orientador o disposto no art.º 127.º do Código de Processo Penal, considerando o princípio de que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre apreciação, o Tribunal fundou a sua convicção nos elementos probatórios que de seguida se analisam.

A identificação e descrição das vias rodoviárias por onde ambos os veículos intervenientes no sinistro transitavam, respectiva sinalização vertical e vestígios encontrados no local, a identificação dos veículos e seus condutores e a posição dos mesmos no final do acidente foram tidos por assente tal como constava descrito na acusação pública uma vez que correspondem à análise directa e imediata realizada pelos militares da Guarda Nacional Republicana que elaboraram o croquis do acidente, a descrição dos mesmos e as medições no local, mostrando-se conforme a realidade do espaço físico onde ocorreram os factos, conforme consta do teor de fls. 15 a 24. Na sequência, foi ainda realizado exame ao local, onde o Tribunal pôde perceber directamente tais realidades e o cálculo de inclinação de fls. 678, que caracterizou de forma mais completa a via de trânsito de onde o arguido surgiu relativamente à EN n.º 4.

O arguido apresentou-se em audiência muito penalizado com os factos, com uma postura serena, adequada e colaborante, tendo prestado declarações sobre toda a matéria à qual foi questionado, admitindo em grande parte os factos vertidos na acusação pública salvo no que se refere à causa do sinistro.

Descreveu desde logo o seu enquadramento profissional, datando a sua carreira e referindo as suas funções e, após, de forma pormenorizada, relatou a sua jornada de trabalho no dia 6 de Fevereiro de 2013: era a primeira vez que carregava pedras para a empresa com a qual havia estabelecido contrato de trabalho dias antes. Saiu de Borba (Barro Branco) em direcção a Arronches onde carregou o semi-reboque que levou atrelado ao veículo tractor de mercadorias, da marca Volvo, com a matrícula --NL. Com a ajuda de MJC, analisaram os blocos de granito a carregar, escolheram a face mais regular de cada um, muniram a superfície do semi-reboque de barrotes de madeira, que alinharam de forma adaptada a cada uma das pedras, e colocaram-nas no topo dos mesmos, com o auxílio de uma empilhadora conduzida pelo referido MJC. Finda esta etapa do trabalho, passaram sobre cada um dos blocos uma cinta em tecido, protegida no contacto com as arestas das pedras por calços em borracha e esticadas com recurso a esticador próprio. Na sequência, o arguido iniciou, sozinho, o percurso rodoviário previsto para a carga.

Neste particular, quanto ao método de carga, as declarações de JM foram corroboradas tanto pelo próprio MJC que, de forma serena e desinteressada, referiu anos de experiência em tais carregamentos e afirmando que naquele carregamento em concreto todos os procedimentos haviam sido assegurados de acordo com aquilo que é o correcto e, bem assim, pela testemunha AT, também motorista de pesados e experiente em cargas de pedra há vários anos, amigo do arguido mas que declarou de forma objectiva e lógica, merecendo a credibilidade do Tribunal.

O arguido confirmou o percurso realizado desde o local do carregamento em Arronches, não tendo descrito qualquer anomalia ou facto estranho que tivesse detectado durante o mesmo. No entanto, referiu que, ao aproximar-se do entroncamento com a EN n.º 4, a cerca de duzentos metros do mesmo tentou abrandar a marcha do veículo e os travões não responderam, não se recordando se tentou ou não accionar o travão de mão para o efeito. Mencionou que optou por entrar na EN n.º 4 fazendo a curva da melhor forma possível, mas com a velocidade que trazia o veículo acabou por derrapar e embater no ilhéu que existia no eixo da EN n.º 4. Foi nesse momento em que ouviu um grande barulho e, olhando pelo retrovisor, percebeu que pelo menos uma das pedras que transportava se havia soltado e caído na faixa de rodagem. Apenas se apercebeu da gravidade da situação quando saiu do veículo, já imobilizado, e viu o veículo automóvel ligeiro esmagado pelo bloco de granito.

Aceitou, manifestando espontâneo acordo com o teor do disco de tacógrafo de fls. 163, ter entrado na curva (já na faixa de rodagem da EN n.º 4) a cerca de 60 kms por hora, reconhecendo que tal velocidade era excessiva tanto para poder ceder passagem aos veículos que já transitassem naquela via como para descrever em segurança a curva que se lhe apresentou.

Ouvida a testemunha JTC, Cabo da Guarda Nacional Republicana, este relatou ao Tribunal que tomou conta da ocorrência com a colaboração de um expressivo contingente policial atenta a gravidade e consequências do sinistro, e que tomou logo declarações ao único interveniente no acidente que estava apto a fazê-las – o arguido, atento o óbito no local da condutora do veículo atingido pelo bloco de pedra e do estado crítico em que se encontrava a segunda ocupante do mesmo. Referiu que o arguido se apresentava transtornado com as consequências do acidente mas que estava perfeitamente consciente, sem ferimentos visíveis e sem sinais de estado de choque. Acrescentou que, quando questionado, o arguido declarou não saber qual a causa do acidente, o que escreveu nas declarações atribuídas ao mesmo, na participação cujo teor confirmou, mais concretamente a fls. 152 verso e 164 dos autos. Directamente instado sobre se o arguido referiu alguma anomalia no veículo que conduzia, mais precisamente falha nos travões, o mesmo referiu que não. Aliás, completou as suas afirmações dizendo que, uma vez que nada do género foi referido, depois de ser inspeccionado em termos visuais, a apreensão do veículo pesado foi levantada, tendo o mesmo sido devolvido ao proprietário conforme consta do teor de fls. 117, 127, 149 e 150.

A testemunha PJM, Guarda Principal da GNR que elaborou o inquérito ao acidente e que fez as inspecções ao local e ao veículo conduzido pelo arguido foi ouvido e prestou esclarecimentos de forma isenta e desinteressada. Referiu que uma vez que nenhum indício de anomalias no veículo havia sido reportada pelo arguido, o mesmo foi sujeito a uma inspecção visual, tendo o militar concluído conforme consta de fls. 228 a 235, nomeadamente no sentido de que os órgãos de travagem, de direcção, de suspensão e que os pneumáticos (pressão, estado e profundidade do relevo) estavam em bom estado – cfr fls. 113/114. Mais concluiu, em face das fotografias que compuseram o relatório fotográfico de fls. 205 a 227, maxime segunda fotografia de fls. 209, fotografias de fls. 210 e 211 e primeira fotografia de fls. 212, que as marcas que ali se vislumbram no pavimento foram feitas pelos pneus do veículo pesado em derrapagem na sequência de accionamento dos travões – referindo expressamente não existirem marcas de pneus com aquela configuração sem accionamento dos travões – que provocam o bloqueio das rodas (todas ou parte das mesmas) causando o arrastamento do pneumático cuja borracha fica impressa no alcatrão. Esclareceu especificamente que, se os travões não tivessem sido accionados, não existiriam tais marcas no pavimento.

Ouvida a ofendida sobrevivente MJC a mesma referiu nada se recordar do momento dos factos, não servindo as suas declarações para qualquer esclarecimento sobre a verdade material.

O Tribunal não julgou credível a versão do arguido, no sentido de que tentou accionar os travões do veículo a uma distância de duzentos metros do entroncamento e não logrou fazê-los funcionar, pelo que atingiu o entroncamento com a velocidade que trazia e que não conseguiu fazer diminuir atenta a inclinação da via em que seguia: desde logo porque começou por dizer que não houve resposta nenhuma dos travões e, em últimas declarações, após os esclarecimentos da testemunha PJM, acabou por referir que, afinal, não tinha dito que não tinha conseguido travar totalmente, contradizendo-se. Por outro lado, ficou provado que a partir do meio da curva (já no traçado da EN n.º 4) aparecem marcas de travagem e derrapagem, tendo o Tribunal ficado convicto que, quiçá por distracção, apenas nesse ponto o arguido reparou onde se encontrava e, accionando ali os travões de forma brusca, os pneumáticos começaram a deixar as respectivas marcas, fazendo o veículo curvar ainda em excesso de velocidade para o local e em derrapagem, de forma descontrolada. Noutra vertente, analisada a inclinação da via de trânsito por onde circulava o arguido e onde refere que o veículo “embalou”, a mesma apresentou-se ligeira (conforme consta da conclusão a que o estudo de fls. 678).
Bateu-se ainda o arguido, em defesa da sua versão dos factos, com o argumento de que o sistema de travões do pesado de mercadorias apresentava anomalias, tal como comprovado na inspecção periódica ao veículo realizada no dia seguinte ao do levantamento da respectiva apreensão e entrega ao respectivo proprietário (fls. 150). Ora, não obstante tal resultado, conforme já se referiu à saciedade, o arguido nunca referiu a falta de travões quando questionado nos momentos seguintes ao do sinistro, o veículo foi inspeccionado pelo OPC e não apresentou anomalias e desconhece-se o que terá ocorrido ao mesmo no período de tempo que mediou entre a entrega daquele ao proprietário e o momento da realização da inspecção técnica. E, uma vez que não foi reportada qualquer anomalia pelo arguido nos momentos imediatamente posteriores ao acidente, o veículo não foi sujeito a perícia independente.

A titularidade pelo arguido de habilitação legal para o exercício da condução de veículos automóveis pesados de mercadorias e respectivas categorias resultaram confirmadas através da informação do IMT de fls. 535.

Ora, levando em conta que a versão dos factos exposta pelo arguido em sede de audiência de discussão e julgamento não teve apoio em qualquer meio de prova, tendo sido aliás contrariada pela sua própria conduta imediatamente posterior aos factos (sendo esta mais credível exactamente pela mínima distância temporal relativamente ao momento do acidente) e, bem assim, pelas declarações dos militares da Guarda Nacional Republicana acima identificados tanto na vertente da descrição do contacto com o arguido no local do sinistro como pelos vestígios encontrados no pavimento da via rodoviária deixados pelos pneumáticos do veículo pesado quando accionado o respectivo sistema de travagem, concluímos que JM sabia que estava obrigado a circular com o veículo que conduzia na hemi-faixa de rodagem destinada ao seu sentido de marcha e que estava obrigado a cumprir com a velocidade moderada, adequada à carga que transportava e às características da via, com curvas acentuadas e com imposição de cedência de passagem, em que circulava, o que não obstou a quisesse actuar da forma como actuou e supra descrita.

Sabia, da mesma forma e com os mesmos fundamentos, sendo pessoa encartada há décadas, que a lei obriga as pessoas a conduzir com cuidado, atenção e respeito pelas regras estradais, e tinha plena consciência de que devia conduzir com atenção e com velocidade moderada, a fim de poder executar manobras cuja necessidade fosse de prever, e especialmente, abrandando a marcha do veículo pesado de mercadorias com carga instável nas curvas muito acentuadas existentes na via pública por forma a completá-las em segurança para si, para as pessoas que transportasse consigo e para os demais utentes da via pública, e por forma a cumprir com a sinalização de cedência de passagem.

JM, agiu sem tomar as devidas precauções de segurança que o traçado – com curva muito acentuada –, a carga – de grandes dimensões e pesada que transportava –, as dimensões do veículo e do semi-reboque e as características do local impunham, adequando a velocidade do veículo que conduzia aos mesmos, e violando desta forma os deveres objectivos de cuidado a que estava obrigado.

Apesar de ser condutor profissional há vários anos, ao escolher actuar com leviandade e falta de atenção o arguido não pode ter deixado de prever, como previu, ser possível que, ao conduzir sem observar as precauções de segurança acima mencionadas, com total desrespeito pelas regras estradais, poderia perder o controlo do veículo que conduzia e perder a carga que transportava e originar uma situação de perigo e de lesão para a vida e integridade física para os utentes da via, como efectivamente viria a suceder, facto que não o inibiu de actuar da forma por que o fez, pois confiou que tal não ocorreria.

O arguido não podia ainda deixar de prever, como previu, ser possível que não conseguiria travar o veículo pesado que conduzia no espaço livre e visível de que dispunha à sua frente, ou perdendo os blocos de granito que, pelo seu peso e dimensões, originariam necessariamente uma situação de perigo e de lesão efectiva para a vida e a integridade física dos demais utentes da rodovia, como efectivamente viria a suceder, facto que não o inibiu de actuar da forma por que o fez, pois confiou que tal não ocorreria, sabendo, por todos, que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal e contra-ordenacional.

Os factos elencados sob os pontos 7- a 11- da matéria de facto provada resultaram assentes através da análise do teor da documentação clínica e médico-legal referente às vítimas do acidente constantes dos autos.

Quanto à respectiva situação sócio-económica, o arguido declarou de forma clara e sincera, merecendo igualmente a credibilidade do Tribunal, tendo a respectiva caracterização pormenorizada sido complementada através do teor do relatório social junto aos autos pela DGRSP.

Finalmente, quanto à inexistência de antecedentes criminais os mesmos foram confirmados através da análise do teor do Certificado junto aos autos a fls. 611.

Quanto à matéria de facto não provada, no que respeita ao acondicionamento da carga que o arguido transportava, desde logo se refira que foi provado o facto contrário, ficando assente que a carga em causa apresentava-se bem acondicionada, de acordo com as regras utilizadas genericamente no sector de transporte de blocos de pedra, o que foi confirmado através das declarações das testemunhas MJC e AST, objectivas e coincidentes entre si, ao ponto de merecerem a credibilidade do Tribunal.

Quanto à existência de rastos de travagem no pavimento da faixa de rodagem, pela testemunha PJM foi confirmado que tais marcas foram feitas através da impressão da borracha de alguns dos pneumáticos do conjunto tractor/semi-reboque conduzido pelo arguido, causada pelo accionamento dos travões.

III. Fundamentação de direito:
Do enquadramento jurídico-penal:
(…)
No âmbito dos presentes autos apurou-se que a conduta omissiva do arguido, violadora de normas de cuidado que lhe eram exigíveis, foi a causa directa e necessária da morte de PEC.

Determinada acção ou omissão será causa de certo evento se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava à face da experiência comum como adequada à produção do referido evento, havendo fortes probabilidades de o originar. A existência de nexo causal entre a acção ou omissão do agente e o resultado produzido, se é condição necessária da imputação objectiva, não o é suficientemente; é ainda necessário que o evento seja objectivamente previsível como consequência da violação do dever objectivo de cuidado, ou seja, da diligência objectiva, diligência que toma, em relação a cada espécie de crime, o sentido do cuidado exigido para evitar o mal desse crime. O que se provou nesta acção.

Efectivamente, a falta de adequação da velocidade com que o arguido entrou na EN n.º 4, em curva, provocou o deslocamento de um dos blocos de granito cuja força motivou a quebra da cinta que o segurava e que, por efeito centrífugo, saiu projectado do pesado e foi embater no veículo conduzido por PEC na EN n.º 4, no sentido de trânsito contrário ao do arguido. Tal embate esmagou quase totalmente o veículo 35-11-PU, provocando as lesões melhor descritas no relatório da autópsia realizada ao cadáver de Patrocínia e que foram causa directa e necessária do seu falecimento.

A conduta negligente do arguido, profissional da condução de veículos pesados de mercadorias com anos de experiência, mostrou-se particularmente temerária, levando-se em conta que o pesado que conduzia vinha carregado com toneladas de pedra o que, ainda assim, não o coibiu de, levianamente, descuidar o seu dever de adequar a velocidade do mesmo em face à curva e entroncamento que se lhe apresentaram, travando tarde demais para que conseguisse descrever a sua trajectória em segurança.

Face ao exposto, terá de concluir-se que o resultado morte é imputável à conduta do arguido JM, que terá de ser condenado pela prática do crime de homicídio por negligência grosseira que lhe é imputado.

b) Do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punível pelo art.º 291.º n.º 1 alínea b) e n.º 3 e pela sanção acessória prevista no art.º 69.º n.º 1 alínea a), todos do Código Penal:

Refere o art.º 291.º n.º 1 alínea b) do Código Penal que “quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada (…) violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita; e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”.
(…)
No que ao caso concreto interessa, a violação grosseira das regras de circulação rodoviária é aquela que se traduz numa actuação temerária, de ousadia perante o perigo quase certo de ocorrência de sinistro, atenta as circunstâncias do caso concreto, sendo, por isso, mais intenso o dever de evitar o comportamento – neste sentido, Marques da Silva in Crimes Rodoviários, Universidade Católica, 1.ª Edição, 1996, página 46.

Trata-se de um crime de perigo concreto, sendo a produção do perigo um elemento do tipo, e que se caracteriza por haver, no caso concreto e naquele momento preciso, a comprovação do risco de lesão dos bens protegidos, ou seja, a forte probabilidade de ocorrência de dano ou do resultado, ou pelo menos a colocação em causa da segurança dos bens jurídicos tutelados, ainda que a sua lesão fique dependente do acaso, mas em que a lesão do bem jurídico se afigure possível ou provável – ver no primeiro sentido, mais restritivo, H. Yescheck in Tratado de Derecho Penal, Volume II, página 359; Faria Costa in O Perigo em Direito Penal, 1992, páginas 580 e seguintes; na segunda acepção, Rui Carlos Pereira in O Dolo de Perigo, 1995, página 32; Oliveira Mendes in O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, páginas 45 e 47 e Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 19.09.2007, processo n.º 074323 e de 29.10.2008, processo n.º 0814409, ambos disponíveis in www.gde.mj.pt.

Das várias formas de comportamento descritas deve resultar um perigo concreto para a vida, integridade física, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado. Não basta, por conseguinte, ao preenchimento do tipo legal, a insegurança na condução, ou a violação grosseira das regras de circulação rodoviária, tornando-se necessário, que da análise das circunstâncias do caso concreto, se deduza a ocorrência desse mesmo perigo concreto.

Quanto ao tipo subjectivo de ilícito, prevê o referido inciso legal que o condutor actue com dolo ou com negligência: com dolo, em qualquer das suas formas – na acção e na criação de perigo; com dolo na acção, mas sendo o perigo criado por negligência inconsciente ou consciente; quer a acção quer a criação de perigo decorrendo de mera negligência.

Na presente situação, o arguido conduziu o veículo pesado de mercadorias com a matrícula --NI imprimindo-lhe velocidade excessiva para o local, colocando assim em perigo os demais utentes da via, nomeadamente o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula --PU que seguia na mesma via de trânsito em sentido contrário, que teve o destino já sobejamente supra descrito – em face da matéria que resultou provada, é evidente o perigo concreto que o arguido causou para a vida e integridade física das ocupantes do referido ligeiro.

Esta condução foi executada com negligência grosseira – pois está provado que o arguido agiu de forma temerária, descuidada, violando as regras estradais e com dolo eventual em relação à criação do perigo, uma vez que resultou igualmente provado que sabia que a sua actuação era idónea a provocar sinistros, a colocar em perigo a vida, integridade física e bens patrimoniais de valor elevado dos restantes condutores da via e, mesmo assim, não se absteve de praticar tais condutas, conformando-se com isso. Ou seja, sem qualquer justificação plausível, o arguido não se coibiu de fazer uma condução distraída, imprudente e violadora das regras relativas ao tráfego automóvel.

Como tal haverá que reconhecer que o arguido preencheu com a sua conduta todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punível pelo art.º 291.º n.º 1 alínea b) e n.º 3 do Código Penal. IV. Da relação entre os ilícitos contra-ordenacionais e os crimes cometidos pelo arguido:

Da análise dos factos provados nos presentes autos sobre a causa do sinistro que vitimou PEC e MJC resulta inequívoco que a mesma foi o facto de o arguido não ter adequado a velocidade que trazia na marcha do pesado que conduzia, ter feito a curva já no traçado da EN n.º 4 de forma insegura e em derrapagem, de ter embatido e subido no ilhéu separador de sentidos de trânsito o que provocou a perda de parte da carga que transportava, indo esta embater no veículo --PU.

Donde, concluímos que as contra-ordenações praticadas pelo arguido e acima enunciadas foram causais do acidente de viação, sendo ao mesmo imputável a prática do crime de homicídio por negligência grosseira.

(…)V. Da relação entre os crimes cometidos pelo arguido:

Sendo protegidos no crime de condução perigosa, além da segurança das comunicações rodoviárias, os bens jurídicos individuais vida e integridade física postos em perigo pela conduta do agente, ainda que estes reflexamente, ocorrendo uma lesão destes últimos como resultado daquela conduta, os referidos bens jurídicos de natureza pessoal passam a ser protegidos não só pelas disposições combinadas dos art.ºs 291.º e 294.º mas também, de forma genérica, pelos crimes dos art.ºs 137.º e 148.º do Código Penal.

Tais disposições penais encontram-se, assim, numa relação de consumpção – uma, a de protecção mais ampla consome a protecção que a outra já visa e que deixa de ser aplicada sob pena de clara violação do princípio ne bis in idem.

O insigne Professor Eduardo Correia ensina que, nestes casos, “a eficácia da consumpção não só está dependente da circunstância de efectivamente concorrerem dois preceitos cujos bens jurídicos se encontrem numa relação de mais para menos, mas ainda de que, no caso concreto, a protecção visada por um seja esgotada, consumida pelo outro, coisa que nem sempre acontece”. Donde, comparando-a com a situação de especialidade, sustentava que “enquanto a especialidade se pode afirmar em abstracto, só em concreto se pode afirmar a consumpção dum pelo outro” (in A Teoria do Concurso em Direito Criminal – Unidade e Pluralidade de Infracções, páginas 131-132).

Ora, tendo em conta o teor do art.º 291.º, complementado pelos art.ºs 137.º e 148.º, pode afirmar-se que o dano na vida ou na integridade física consome o perigo. O art.º 137.º n.º 2 do Código Penal preceitua que o agente é punido com pena de prisão até cinco anos, em caso de negligência grosseira.

E relativamente à criminalidade estradal, o tipo do art.º 137.º acaba por ter, também nas situações de negligência grosseira, um campo de aplicação mais lato do que o crime do art.º 291.º agravado pelo resultado. O que permite inferir que se ocorrer a morte de terceiro em consequência da violação grosseira de outras regras de circulação rodoviária, o agente não comete este crime, obtendo-se a sua punição pela norma mais geral do art.º 137.º n.º 2.

Quanto à morte da vítima PC, a punição do arguido deve ser feita com base na moldura penal do art.º 137.º n.º 2 do Código Penal, com prevalência sobre a norma do art.º 291.º n.º 1 alínea b) e n.º 3, agravada pelo resultado, por existir um concurso aparente de infracções.

No entanto, no caso dos autos tal raciocínio não afasta, contudo, a aplicação do art.º 291.º, tendo nos presentes autos ficado provado que também foi vítima das condutas do arguido a ofendida MJC, que sofreu lesões físicas. Levando em conta que JM não foi acusado pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência (art.º 148.º n.º 4 do Código Penal), será a sua conduta punida, quanto aos factos relacionados com a referida ofendida sobrevivente, ao abrigo disposto na alínea b) do n.º 1 e n.º 3 do art.º 291.º do Código Penal.
(…) »
Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso.
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

a) No caso presente, o arguido começa por impugnar a decisão proferida em matéria de facto, na parte em que julgou provados os factos descritos nos pontos 18, 22 e 24 a 27 da factualidade provada que, por aplicação do princípio in dubio pro reo, devem ser julgados não provados, com a consequente absolvição do arguido pelos crimes por que vem condenado e, se assim não se entender, o arguido não deve ser condenado por negligência grosseira1;

b) O arguido invoca ainda a prescrição do procedimento contraordenacional relativamente às contra-ordenações pelas quais vem condenado, julgando-se, consequentemente, extinto aquele mesmo procedimento;

c) Entende ainda que a pena de multa que lhe foi aplicada pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelo art.º 291º do C.Penal é excessiva, pelo que sempre o valor da multa deve ser substancialmente reduzido.

d) Caso não seja absolvido dos crimes pelos quais vem condenado, pretende ainda o arguido cumprir a pena acessória de proibição de conduzir em fins de semana e férias.

2. Decidindo.
2.1 A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Os factos impugnados, que preenchem os elementos típicos do crime de homicídio por negligência grosseira p. e p. pelo art.º 137º/2 e de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punível pelo art.º 291.º n.º 1 alínea b) e n.º 3, todos do Código Penal, são, lembremo-lo, do seguinte teor:

«18 – O arguido conduzia a velocidade não inferior a 60 km/hora e, na faixa de rodagem, existiam marcas de derrapagem e de travagem do veículo pesado de mercadorias conduzido pelo arguido inclusivamente por cima do ilhéu separador em cimento, o qual ficou destruído numa extensão de dez metros.

22 – O arguido sabia que estava obrigado a circular com o veículo que conduzia na hemi-faixa de rodagem destinada ao seu sentido de marcha e que estava obrigado a cumprir com a velocidade moderada, adequada à carga que transportava e às características da via, com curvas acentuadas e com imposição de cedência de passagem, em que circulava, o que não obstou a que quisesse actuar da forma como actuou e supra descrita. [O itálico é nosso e corresponde à parte impugnada pelo arguido]

24 – Ao conduzir da forma por que o fez, transportando carga pesada e à velocidade em que o fazia, o arguido agiu sem tomar as devidas precauções de segurança que o traçado – com curva muito acentuada –, a carga – de grandes dimensões e pesada que transportava –, as dimensões do veículo e do semi-reboque e as características do local impunham, adequando a velocidade do veículo que conduzia aos mesmos, e violando desta forma os deveres objectivos de cuidado a que estava obrigado.

25 – O arguido previu como possível que, ao conduzir sem observar as precauções de segurança acima mencionadas, com total desrespeito pelas regras estradais, poderia perder o controlo do veículo que conduzia e perder a carga que transportava e originar uma situação de perigo e de lesão para a vida e integridade física para os utentes da via, como efectivamente viria a suceder, facto que não o inibiu de actuar da forma por que o fez, pois confiou que tal não ocorreria.

26 – O arguido previu como possível que, ao conduzir sem observar as precauções de segurança acima mencionadas, com a sua conduta imprudente e descuidada, decorrente da sua total falta de cuidado, atenção e concentração, e com desrespeito pelas regras estradais, com elevada probabilidade poderia perder o controlo do veículo e da carga que transportava, não conseguindo travar o mesmo no espaço livre e visível de que dispunha à sua frente, ou perdendo os blocos de granito que, pelo seu peso e dimensões, originariam necessariamente uma situação de perigo e de lesão efectiva para a vida e a integridade física dos demais utentes da rodovia, como efectivamente viria a suceder, facto que não o inibiu de actuar da forma por que o fez, pois confiou que tal não ocorreria.

27 – Agiu o arguido de forma particularmente leviana e descuidada, com muito elevada falta de prudência e omitindo os cuidados mais elementares, pois, transportando em veículo pesado uma carga de blocos de granito de grandes dimensões e que pesava toneladas, sobre toros, presa a meio por uma cinta, podendo cair ou ser projectada aquando da trajectória do veículo, e conhecendo o traçado de tal via, por já antes o haver percorrido, sabendo existir um curva muito acentuada, ainda assim não moderou a velocidade à trajectória e à carga que transportava, pese embora fosse previsível que seria altamente provável uma derrapagem e a concretização de um acidente.».

Vejamos então.
a) O arguido entende não ter resultado provado que “existiam marcas de derrapagem e de travagem do veículo pesado de mercadorias conduzido pelo arguido”, contrariamente ao descrito no ponto 18 da factualidade provada. Mais propriamente, o que resulta da sua motivação de recurso é que entende não existirem marcas de travagem do veículo por si conduzido, mas apenas de derrapagem, por ser o que considera resultar do que fez constar a testemunha PJM, militar da GNR que procedeu a exame ao local do sinistro, no “Relatório Fotográfico do Acidente de viação”, a fls. 205 e segts, no “Auto de Exame Directo ao Local”, a fls. 482 e segts e na “Folha de Medições”, a fls. 469 e segts., onde se refere especificamente que no local inexistiam marcas de travagem e que apenas existiam marcas de derrape, sendo ainda de considerar as declarações prestadas em audiência pela mesma testemunha a 02.02.2017, de que transcreve alguns trechos, resultando destes elementos, no seu entender, que “os testemunhos prestados pelo mesmo [PJM] revelaram-se contraditórios e, manifestamente insuficientes, para consubstanciar a prova de factos sobre as causas do acidente”.

Não é, porém, o que resulta da conjugação de todos aqueles elementos com as declarações prestadas pela testemunha PJM aquando da reabertura da audiência, determinada em 03.05.2017, conforme ata de fls 690, para ouvi-lo novamente em declarações para esclarecimentos de dúvidas suscitadas à senhora juíza (…)].

Na verdade, esta testemunha, confrontada nessas últimas declarações pela senhora juíza, e posteriormente pela senhora advogada do arguido, com os vestígios de pneus deixadas no asfalto, em linha reta, conforme se vê das fotos de fls 210 e 211, nomeadamente em contraste com os vestígios de perfil muito diferente de fls 209, declarou que os vestígios de fls 210 e 211 só podem ter sido deixados pelos pneus depois de acionado o respetivo sistema de travagem.

Assim, é verdade que as declarações da testemunha PJM não coincidem entre si em todos os momentos em que depôs em audiência, bem como em confronto com os termos do auto de exame direto ao local, por si elaborado, nomeadamente a fls 484 onde escreveu inexistirem no local marcas e vestígios de travagem e existirem “marcas de derrape do veículo pesado de mercadorias na via”, mas tal não significa que da apreciação global do conjunto formado pelo auto e pelas suas diferentes declarações em audiência persistam contradições entre tais elementos que, afetando a credibilidade da testemunha, deixassem dúvida insanável por resolver.

Com efeito, decorre das suas últimas declarações que aquela testemunha se referia no auto de exame direto a sinais de “derrapes” ou derrapagens, por oposição a vestígios contínuos, bem marcados, que pudessem ter sido deixados por travagem a fundo [que realmente não existiam no local] e ao ser confrontado pela senhora juíza com os vestígios de alguns metros em linha reta bem visíveis na foto 3, a fls 210, acabou por explicar-se. Eliminando, assim, a contradição aparente mesmo entre aquele auto de exame direto, a fls 484 e o relatório final elaborado pela mesma testemunha (fls 492 a 499), onde, referindo-se à tese do arguido que atribuía a velocidade excessiva a falta de travões do veículo, já dizia parecer-lhe não ser aquela a causa da velocidade excessiva, dado que no local existiam vestígios de marcas de travagens.

Isto é, apreciadas as suas declarações e as referências escritas em auto como uma sequência que terminou nos esclarecimentos prestados pela testemunha na reabertura da audiência em 03.05.2017, ficou claro o sentido e alcance da sua perceção dos vestígios de travagem e derrapagem, correspondente ao sentido tomado pelo tribunal a quo e que é objetivamente conforme com o que resulta das fotos de fls 210, 211 e 209, à luz das regras da experiência, e foi vertido no ponto 18 da factualidade provada. Improcede, pois, a impugnação do recorrente relativamente a este mesmo ponto.

b) Importa apreciar agora, em conjunto, a impugnação relativamente aos pontos 22 e 24 a 26, que encerram o essencial da versão acusatória julgada provada, à qual contrapõe o arguido na sua motivação de recurso que efetivamente entrou na curva muito acentuada à direita, conduzindo a uma velocidade excessiva para o local e para o veículo pesado e para a carga que transportava, e não inferior a 60 km/hora, conforme descrito no ponto 5 da factualidade provada, porque a cerca de 200m de entrar no entroncamento referido em 3 da factualidade provada, o sistema de travagem com pedal do veículo falhou, o que o levou a acionar o travão de mão, mas tal não foi suficiente para lhe permitir fazer a dita curva a velocidade adequada para o local.

Invoca a favor desta sua tese as suas próprias declarações em audiência, a circunstância de terem sido detetadas anomalias no sistema de travagem, conforme ficha de inspecção nº VC 256155 a fls. 102 dos autos, realizada no dia 13.02.2013 ao semi-reboque com a matrícula VI---, possuir habilitação legal desde 1980, exercer a função de motorista de pesados, transportando blocos de granito, durante muitos anos, conforme discriminado nos pontos 20 e 21 da factualidade provada, apresentar uma TAS de 0,00 g/l e que todas as análises referentes a estupefacientes e psicotrópicos tiverem resultado negativo, bem como que nada consta relativamente ao Arguido no que concerne a infrações graves e muito graves, conhecer bem o local do acidente, ser o seu primeiro dia de trabalho para aquela entidade patronal e ser a primeira vez que o Arguido conduzia aquele veículo pesado.

Por tudo isto não é credível que se possa considerar que o Arguido entrou no identificado cruzamento em excesso de velocidade, sem observar as necessárias precauções, em total desrespeito das regras estradais, concluindo que o tribunal a quo devia ter julgado não provada a factualidade impugnada pelo menos com base no princípio in dubio pro reo.

Quanto aos fundamentos da sua impugnação em matéria de facto, começamos por deixar claro que a omissão do resultado da inspeção ao semi-reboque com a matrícula VI-5672 no dia 13.02.2013 na enumeração da factualidade provada, é irrelevante no caso concreto, pois o tribunal a quo teve em consideração aquele facto indiciário ou secundário, embora considerando-o incapaz de sustentar a tese do arguido pelas razões expostas na apreciação crítica da prova e que, em sede de reapreciação da prova, se complementam, no sentido de ser praticamente nulo o valor probatório da 2ª via de inspeção junta pelo arguido de fls 202 a 204 dos autos (anterior numeração de fls 101 a 103) , pelas seguintes razões.

Em primeiro lugar, aquela inspeção teve lugar depois do sinistro, bem podendo suceder que a apontada deficiência nos travões do semi-reboque tivesse tido lugar na ocasião do sinistro, sendo certo que o chamado Exame pericial feito por OPC aos órgãos dos veículos, assim designado com elevado grau de imprecisão, pois não só não estamos perante perícia com o sentido próprio que resulta do art.º 151 do CPP, como o mero exame realizado por OPC – sem especiais conhecimentos de mecânica, como é natural – é meramente aparente, superficial, e nada se diz ali, mesmo a nível superficial, relativamente ao semi-reboque.

Em segundo lugar, a 2ª via de inspeção de fls 203 não pormenoriza as deficiências verificadas no semi-reboque e eventuais consequências das mesmas, e, sobretudo, aquelas deficiências referem-se apenas à roda esquerda do 1º eixo e à roda direita do 3º eixo, pelo que não se assinalaram quaisquer deficiências nas restantes 4 rodas do semi-reboque , do mesmo modo que não há sequer notícia de deficiência nos travões das rodas do trator. Sempre estaríamos, pois, longe da situação de “falta de resposta dos travões” do veículo conduzido pelo arguido que pudesse justificar que a 200 metros do entroncamento o travão de pedal não funcionasse completamente, levando o condutor a recorrer ao travão manual, mesmo que no momento do sinistro aquelas deficiências já se verificassem.

Por outro lado, como bem se diz na sentença recorrida, é muito significativo, por contrariar manifestamente as regras da experiência comum, que o arguido deixasse de referir logo após o sinistro tão clamorosa falha de travões, perante consequências tão nefastas na vida e integridade física das vítimas, sendo certo que consta do ponto 19 da factualidade provada que o arguido conduzira aquele mesmo veículo durante cerca de 80Km pouco antes do sinistro, contrariamente ao que afirma em sede de recurso, sem que se refira nos autos qualquer problema com o sistema de travagem.

Por último, não é de censurar a ausência de perícia, em sentido próprio, ao sistema de travagem do veículo, dada a ausência de indícios de qualquer falha a esse nível, nomeadamente por nada ser referido a esse propósito pelo condutor e ora arguido.

Quanto aos demais factos alegados pelo arguido, como seja a sua experiência profissional anterior com veículo pesados, a antiguidade na titularidade de licença de condução, ausência de TAS ou de vestígios de estupefacientes no momento da condução, ausência de antecedentes relativamente a contraordenações graves ou muito graves, são factos indiciários, de relevância diminuta, que de acordo com as regras da experiência não têm a virtualidade de pôr em dúvida a prova da versão acusatória face aos meios de prova considerados pelo tribunal a quo e agora reapreciados. Quanto a circunstâncias como ser o primeiro dia de trabalho e conhecer bem o local, têm mesmo natureza ambivalente, na medida em que pode inferir-se delas que o arguido não conhecia bem o veículo e poder ter assumido algum excesso de confiança face ao conhecimento do local e às condições extraordinariamente favoráveis da via e de tráfego que se verificavam então.

c) Particularmente no que respeita ao ponto 27 da factualidade provada, cujo teor se relaciona diretamente com a qualificação da negligência como negligência grosseira, alega o arguido que, correspondendo a negligência grosseira à falta grave e indesculpável, ou seja, à chamada culpa grave que consiste na omissão dos deveres de cuidado que só uma pessoa especialmente negligente, descuidada e incauta deixaria de observar, pressupondo um comportamento temerário, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência, uma imprudência e temeridade inútil e indesculpável, dos autos não resultam provados factos suscetíveis de integrar o conceito de negligência grosseira, para o que não basta estar-se perante contraordenação grave ou muito grave.

Vejamos.
No caso presente, não obstante a profusão de normas do Código da Estrada indicadas no dispositivo da sentença recorrida a propósito da condenação do arguido como autor de um crime de homicídio com negligente grosseira p. e p. pelo art. 137º/2 CP, o que está em causa é, em primeira linha, ter o arguido subido o ilhéu separador entre os dois sentidos de trânsito da EN n.º 4, com o que praticou a contraordenação muito grave prevista no art.º 146º al. o), e ter desrespeitado o dever de moderar a velocidade à aproximação de curva e entroncamento p. e p. pelo art. 25º nº1 f), ambos do C. Estrada, que qualifica as contraordenações respetiva como grave no art. 145º/1/e.
No caso concreto, a violação do dever de cuidado (tipo de ilícito nos crimes negligentes) traduziu-se, pois, no desrespeito de normas jurídicas positivamente estabelecidas no Código da Estrada, que disciplinam as situações de perigo mais comuns na circulação rodoviária de modo a excluir os riscos que excedem a medida permitida naquela mesma atividade.

Quanto à verificação do especial grau de negligência previsto no art. 137º/2 CP sob a designação de negligência grosseira, que o CP não define, está em causa um grau especialmente elevado da negligência que agrava a punição, ou seja, uma intensificação da negligência não só ao nível da culpa como da ilicitude. Ou seja, exige-se do ponto de vista do tipo de ilícito que se esteja perante ação particularmente perigosa e de um resultado de verificação altamente provável e ao nível da culpa que o agente revele uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o comando jurídico-penal, plasmando na sua conduta qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatezcf. F.Dias/Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do C.Penal, T.I, 2ª ed. p. 185.

Ora, ao não moderar a velocidade de veículo pesado que conduzia à aproximação da curva e do entroncamento, o arguido agiu de forma particularmente perigosa, pois dificilmente conseguiria parar ou fazer a curva sem colocar em perigo outros utentes da via, nomeadamente através de colisão com outros veículos ou, como sucedeu, provocando a projeção da pesada carga ou parte dela para a via, configurando-se assim como muito provável que pudesse atingir outro veículo provocando a morte ou grave lesão física dos seus ocupantes, resultados que se verificaram.

Também do ponto de vista do tipo de culpa, não pode deixar de considerar-se especialmente irresponsável e insensata a conduta estradal do arguido, o que é fortemente indiciado pelas circunstâncias em que ocorreu o sinistro, pois não sendo credível a versão do arguido, como vimos, não pode deixar de acompanhar-se o tribunal de primeira instância ao concluir ter o arguido desconsiderado temerariamente os riscos da aproximação ao entroncamento e à curva com a velocidade que imprimia ao veículo nas concretas circunstâncias em que conduzia, quer tenha sucedido, do ponto de vista psicológico, que seguia distraído, com excesso de confiança ou de qualquer outra forma que o levasse à incontornável desconsideração pelo perigo que provocava.

Nada há, pois, a censurar ao tribunal recorrido pelo teor do ponto 27 da factualidade provada, retomado na apreciação crítica da prova, pelo que improcede a impugnação em matéria de facto também nesta parte.

d) Concluímos, pois, que da reapreciação da prova indicada na motivação de recurso e respetiva fundamentação, não resulta que o tribunal a quo tivesse decidido contra o arguido em situação de dúvida ou que as provas produzidas impedissem a certeza processualmente exigível, ou seja, para além de qualquer dúvida razoável, pelo que não se verifica erro de julgamento em matéria de facto que justificasse a procedência da impugnação da decisão que julgou provados os factos descritos sob os pontos, 22 e 24 a 27, da factualidade provada.

2.2. A medida concreta da pena de multa aplicada pelo crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelo art.º 291º do C. Penal.

Como é sabido, o Código Penal de 1982 adotou o chamado modelo ou sistema de dias-de-multa, segundo o qual a determinação concreta desta pena faz-se, no essencial, em dois momentos distintos, obedecendo as respetivas operações a diferentes critérios e teleologia.

Em primeiro lugar deve fixar-se o número de dias de multa, de acordo com os critérios estabelecidos no nº1 do art. 71º do C. Penal (cfr art. 47º nº1 do C. Penal) , ou seja, em função da culpa e das exigências de prevenção, dentro dos limites definidos na lei.

No segundo momento, deve o tribunal fixar o quantitativo diário, genericamente estabelecido no art. 47º nº 2 do C.Penal, entre 5 e 500 euros, na atual versão, introduzida pela Lei 59/2007 de 4 de setembro, em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

O montante final obtém-se multiplicando ambos os fatores.

Ora, o arguido insurge-se genericamente contra a pena de multa que lhe foi aplicada, apodando-a de excessiva e argumenta com o valor do seu vencimento líquido mensal médio, o valor da pensão auferido pelo seu cônjuge e referindo despesas que suporta, concluindo que a Mma Juíza ao ter fixado em 200 dias de multa à taxa diária de Eur. 5,00, não atendeu à situação económica e financeira do Arguido e dos seus encargos, pelo que sempre o valor da multa deve ser substancialmente reduzido.

Deste modo, considerando que o arguido apenas invoca razões concernentes à sua situação económica e financeira, que esta apenas releva para o quantitativo diário da multa e que o quantitativo fixado corresponde ao mínimo legal (cf. art. 47º/2 CP), é manifestamente improcedente o recurso do arguido nesta parte.

2.3. Do cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir em fins de semana e férias.

É igualmente manifestamente improcedente o recurso do arguido quanto à sua pretensão de cumprir a pena acessória de proibição de conduzir em fins de semana e férias, porquanto é pacífico o entendimento, que seguimos desde sempre, que a pena acessória de proibição de conduzir prevista no art. 69º do C. Penal apenas pode ser cumprida de forma contínua.

Com efeito, a lei penal não prevê que aquela pena possa ser cumprida em fins de semana, férias, ou de qualquer outra forma descontínua ou interpolada, pelo que tal não é legalmente admissível, obstando a que os tribunais o permitam, em resultado da reserva de lei formal acolhida no art. 165º nº 1 c) da CRP, de acordo com o qual só Lei da AR rege em toda a matéria de crimes e penas, ditando que os tribunais não possam introduzir alterações ao regime legalmente fixado em toda a matéria das penas, incluindo o que respeita às sua formas de cumprimento. Temos seguido, pois, a afirmação lapidar dos Prof. F. Dias e Costa Andrade de que, “ O princípio em exame [nulla poena sine lege] significa (…) ser completamente vedado ao juiz, seja embora na base da mais esclarecida e avançada consciência político-criminal, criar instrumentos sancionatórios criminais que não se encontrem estritamente previstos em lei anterior.”. – cfr Direito Penal-Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do crime-1996, fascículos em curso de publicação pp. 168 e 169.

Deve, pois, o arguido cumprir a pena acessória de proibição de conduzir de forma contínua, improcedendo o seu recurso também nesta parte, como referido.

2.4 – Da prescrição do procedimento contraordenacional
O arguido vem condenado pela prática de uma contraordenação muito grave prevista e punível pelo art.º 146.º alínea o) do Código da Estrada e uma contraordenação grave prevista e punível pelo art.º 145.º alínea e) do Código da Estrada, por factos praticados em 06.02.2013, conforme julgado assente na factualidade provada e não é discutido em sede de recurso, e pretende que o respetivo procedimento contraordenacional seja julgado extinto, por prescrição verificada já aquando da prolação da sentença recorrida. O MP em 1ª instância e nesta Relação pronunciaram-se nesse mesmo sentido e, na verdade, tem o arguido razão.

Com efeito, de acordo com o disposto nos artigos 188º e 132º, do Código da Estrada aprovado pelo Dec.-lei 144/94 de 3 de maio, com as alterações introduzidas até ao Dec.-lei 40/2016 de 29 de julho, o prazo de prescrição das contraordenações estradais é de dois anos, sem prejuízo do regime de suspensão e de interrupção previsto nos artigos 27º, 27º-A e 28º, do Regime geral do ilícito de mera ordenação social aprovado pelo Dec.-lei 433/82 de 27.10 com as alterações introduzidas até à Lei 109/2001 de 24.12.

Nos termos daquele art. 27º-A nº 1 als b) e c) a prescrição do procedimento contraordenacional suspende-se enquanto estiver pendente a partir do envio do processo ao Ministério Público até à sua devolução à autoridade administrativa, nos termos do artigo 40.º e enquanto estiver pendente a partir da notificação do despacho que procede ao exame preliminar do recurso da decisão da autoridade administrativa que aplica a coima, até à decisão final do recurso. Dispõe o seu nº2, porém, que a suspensão com estes fundamentos não pode exceder o prazo de 6 meses.

Por sua vez, o citado art. 28º do RGCO, que regula os termos da interrupção da prescrição, estabelece no seu nº3 que a prescrição do procedimento tem sempre lugar quando desde o início, ou seja, desde a data da infração, independentemente da verificação de qualquer causa interruptiva, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade, ressalvado o tempo de suspensão, independentemente do tempo efetivamente decorrido até à decisão final do recurso.

Assim sendo, o prazo máximo de prescrição do procedimento criminal, depois de descontados os períodos máximos legalmente previstos de suspensão e interrupção, é de três anos e seis meses.

Uma vez que, in casu, ambas as contraordenações ocorreram no dia 06.02.2013, o prazo prescricional referido completou-se em 03.08.2016, pelo que o procedimento contraordenacional encontra-se extinto por prescrição desde data anterior à prolação da sentença recorrida, o que se decide em substituição, revogando-se a sentença na parte em que condenou o arguido pelas referidas contraordenações. Julga-se, pois, o recurso procedente nesta parte.

III. DISPOSITIVO
Nesta conformidade, acordam os Juízes na 2ª subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder parcial provimento ao recurso do arguido, JM, revogando a sentença recorrida na parte em que o condenou pela prática de uma contraordenação muito grave prevista e punível pelo art.º 146.º alínea o) do Código da Estrada e de uma contraordenação grave prevista e punível pelo art.º 145.º alínea e) do Código da Estrada, decidindo, em substituição, julgar extinto o respetivo procedimento contraordenacional por prescrição.

Mantém-se em tudo o mais a sentença recorrida.

Sem custas – cf. aqrt. 513º CPP.

Évora, 22 de novembro de 2018

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

António João Latas
Carlos Jorge Berguete