Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
444/10.0GBSLV.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DOCUMENTAÇÃO DA PROVA
DEFICIÊNCIAS DA GRAVAÇÃO DA PROVA
PROVA DE FACTOS
Data do Acordão: 12/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: 1. O registo da prova não se destina ao tribunal de julgamento, e sim ao tribunal da Relação, bem como aos sujeitos processuais que pretendam interpor e instruir o seu recurso da matéria de facto.

2. O processo penal deve assumir apenas o protagonismo estritamente necessário à prossecução da sua finalidade, que é a realização de um direito material. Assim, as consequências do deficiente cumprimento do disposto nos arts 363º e 364º do CPP nunca podem ser descontextualizadas do caso concreto.

3. A atribuição de tais consequências pressupõe determinar se as deficiências de gravação são essenciais, no sentido de imprescindíveis, à decisão do recurso. Não impedindo as deficiências o controlo efectivo da prova pelo Tribunal de Recurso, elas não têm quaisquer consequências.

4. Na ausência de regra tarifada em processo penal para prova de relação matrimonial e paterno-filial, e não tendo o arguido nunca impugnado materialmente tais factos, nem mesmo em recurso, a consideração de que os mesmos se verificam basta-se com a prova oral produzida bem como com a própria identificação das pessoas em causa. Tal prova não é, de todo o modo, pressuposto necessário da condenação por crime de violência doméstica - a prova do “casamento” sempre seria dispensável para o preenchimento do tipo de crime “violência doméstica”, atenta a “relação análoga à dos cônjuges” com que o tipo se basta e igualmente demonstrada no processo.

5. Os depoimentos de testemunhas que afirmam não ter assistido aos factos pelos quais o arguido é acusado não impõem a conclusão de que os factos não aconteceram – ainda mais quando o crime de violência doméstica raramente é presenciado por alguém que não o agressor ou a vítima.
Decisão Texto Integral:



Acordam na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No processo nº 444/10.0GBSLV do 1º juízo do tribunal Judicial de Silves foi proferido acórdão que condenou o arguido LS, casado, reformado da G.N.R., nascido a 22/03/1970, pela prática, em autoria material, de um crime de maus tratos do artº 152º, nºs 1, al. a), e 2 do Código Penal (na redacção anterior à entrada em vigor da Lei nº 59/2007), de que é vítima CS, na pena (parcelar) de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão; de um crime de maus tratos do artº 152º, nº 1, al. a), do Código Penal (na redacção anterior à entrada em vigor da Lei nº 59/2007), de que é vítima PS, na pena (parcelar) de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; de um crime de maus tratos do artº 152º, nº 1, al. a), do Código Penal (na redacção anterior à entrada em vigor da Lei nº 59/2007), de que é vítima BS, na pena (parcelar) de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão.

Na procedência dos pedidos cíveis, foi ainda condenado, a título de indemnização por danos não patrimoniais, no pagamento da quantia de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), e juros, a CS, de €5.000,00 (cinco mil euros) e juros, a PS, e de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) e juros, a BS.

Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, concluindo da forma seguinte:

“1.Por deficiente registo da prova gravada, o que consubstancia vício de nulidade, deve ser renovada a produção de prova relativamente aos depoimentos das testemunhas AA, FS e MS. Para o caso de assim não se entender, deverá conhecer-se do objecto do presente recurso que se firma nas seguintes razões:

2.O arguido deve ser absolvido de todos os crimes de maus tratos por cuja prática foi condenado por vicio de insuficiência dos meios de prova para a decisão da matéria de facto dada como provada, mormente a relação de parentesco entre arguido e duas das vítimas e a existência de vínculo matrimonial entre aquele e a assistente, bem como a ausência de qualquer suporte probatório de natureza clínica que comprove a existência das lesões verbalizadas por assistente e demandante cível.

3. A reapreciação dos depoimento de AA, FS e MS os quais se acham gravados nos intervalos referidos supra, e conjugada essa reapreciação com o princípio in dubio pro reo, temos que não podem ser dados como provados nenhum dos factos constantes da acusação, impondo-se desta feita a absolvição do arguido quanto a tais crimes.

4. Ao decidir pela total desconsideração e tais depoimentos, condenando o arguido nos ilícitos imputados violou o Tribunal a quo o princípio in dubio pro reo. ”

Responderam ao recurso o M.P. e a assistente CS, pronunciando-se ambos no sentido da sua improcedência e confirmação do acórdão.

Neste Tribunal, o Senhor Procuradora-Geral Adjunto emitiu parecer, opinando também pela improcedência do recurso.

Colhidos os Vistos, teve lugar a Conferência.

2. Na decisão recorrida consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. O arguido é casado com CS desde 08-08-1992, residindo ambos, até 19-06-2010, data em que esta foi colocada numa Casa de Abrigo de Apoio à Vítima, juntamente com as filhas de ambos, PS (nascida no dia 06-06-1993) e BS (nascida no dia 12-07-2004), em ------
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2. Desde o início do casamento e de forma quotidiana, que o arguido, na residência comum e na presença das filhas de ambos, desferia murros na cabeça, pontapés, bofetadas em todas as zonas do corpo em CS, atirava-lhe objectos contra o corpo, empurrava-a pelas escadas abaixo, lhe desferia golpes com o bastão que lhe estava distribuído pela GNR, bem como a chamava de “puta”, “vaca” e afirmava “és uma vergonha”, “não vales nada” ou “vou falar com a Dra. do Centro de Saúde para te internar”.

3. Ainda durante todo o casamento, por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, o arguido empunhou a arma de fogo que lhe estava distribuída pela GNR ou facas de cozinha, apontava-as a CS e afirmava que um dia a matava com as mesmas.

4. Nesse período, o arguido impediu ainda CS de ter qualquer amigo/a, não permitindo que convivesse com ninguém.

5. Também desde que a menor P. fez dez anos de idade, que o arguido, na residência comum e de forma constante, lhe desferia pontapés, murros e bofetadas em todas as zonas do corpo, ao mesmo tempo que lhe dizia “nunca vais ser nada na vida” ou “vais ser uma vagabunda” e afirmava que um dia a matava, factos que a motivaram, inclusivamente, para tentar fugir a tais agressões, a fugir de casa pelo menos uma vez.

6. Nomeadamente, em data não concretamente apurada mas após o nascimento da menor Paula, após ter sido fisicamente agredida de forma não concretamente apurada, CS afirmou que pretendia abandonar a residência.
7. Acto contínuo, o arguido, de forma a obrigá-la a aí permanecer, pegou na menor P. que ainda era bebé, agarrou numa faca de cozinha e encostou-a ao pescoço desta, afirmando que se a mesma saísse de casa matava a filha de ambos.

8. Tal episódio apenas terminou com a intervenção de uma vizinha.

9. Ainda em data não concretamente apurada do mês de Novembro de 2009, na residência comum e na presença das menores, o arguido empurrou com violência CS e, após esta ter caído no chão, desferiu-lhe pontapés em todo o corpo que lhe provocaram hematomas e dores nas zonas atingidas.

10. O arguido, no entanto, não lhe permitiu receber assistência médica, afirmando que se contasse a alguém a matava, bem como à filha P.

11. Em dia não concretamente apurado de Março de 2010, o arguido, na residência comum e na presença das menores, desferiu diversos murros e bofetadas na face de CS que lhe provocaram hematomas num olho e no nariz.

12. Mais uma vez, CS não recebeu tratamento médico por recear que, caso o fizesse, o arguido concretizasse as ameaças que constantemente fazia de a matar e de matar as suas filhas.

13. Em outro dia (diverso do referido em 11.) não concretamente de Março de 2010, o arguido, na residência comum e na presença das menores, dirigindo-se a CS afirmou que, se contasse a alguém a violência de que era alvo, iria levar a sua filha B. para Espanha e nunca mais a veria.

14. Em dia não concretamente apurado de Junho de 2010, o arguido, na residência comum e na presença da menor B., após CS se ter recusado a dar-lhe dinheiro, desferiu, com uma esfregona, diversos golpes no corpo desta e da menor P., bem como diversas bofetadas e socos na face de ambas.

15. Com as agressões referidas, o arguido, para além das dores nas zonas atingidas, causou na menor P. traumatismos na face e nos membros e uma equimose arredondada de cor esverdeada no terço inferior da face lateral da coxa direita e em CS traumatismos nos membros e na cabeça e uma equimose esverdeada no terço médio da face posterior do braço esquerdo.

16. No dia seguinte e pela mesma razão, o arguido, na residência comum e na presença da menor B., agarrou numa chave de fendas e com a mesma tentou agredir CS e a menor P, ao mesmo tempo que afirmava que as matava, tendo estas sido obrigadas a fugir da residência de forma a escapar às agressões.

17. No dia 19 de Junho de 2010, o arguido, na residência comum e na presença da menor B, dirigindo-se a CS, afirmou, mais uma vez, que a ia matar, facto que motivou a que esta, com receio de que o mesmo concretizasse tal ameaça, fugisse da residência comum na companhia das suas filhas e solicitasse o auxílio das Autoridades competentes.

18. Nesse mesmo dia, CS e as suas filhas menores foram colocadas numa Casa de Abrigo.

19. Embora a menor B apenas fosse agredida com uma bofetada de vez em quando, o arguido obrigava-a a assistir às agressões de que a sua mãe e irmã eram alvo ao mesmo tempo que a ameaçava de também ser agredida caso tentasse aproximar-se da sua mãe.

20. O arguido sabia e quis agir da forma supra descrita, com o propósito concretizado de molestar física e/ou psicologicamente, de forma reiterada e persistente, CS, humilhando-a, rebaixando-a e criando um clima de terror nocivo à sua estabilidade emocional, com o fim de fazer valer a sua vontade pelo recurso a tal violência.

21. Também, ao agir da forma descrita em 5., 7., 14., 15., 16. e 19. e não se coibindo de, ao longo dos anos, agredir física e psicologicamente a sua progenitora na sua presença, o arguido previu e quis ainda molestar psicologicamente as menores P e B, criando um clima de terror nocivo à sua estabilidade emocional e ao seu saudável crescimento, bem sabendo que, pela sua idade eram incapazes de oferecer qualquer resistência.
22. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem serem proibidas as suas descritas condutas.

23. Em consequência das condutas do arguido, CS viveu, durante cerca de 18 anos em clima de terror, quase todos os dias chorava e temia pela sua vida e pela vida das suas filhas, vivendo nervosa, em sobressalto e sofrendo em silêncio.

23. O arguido proibi-a de ter amigos e de conviver com a família de origem.

24. Era forçada a ficar em casa, de baixa médica, quando eram bem visíveis as marcas das agressões do arguido.

25. Sofreu angústia por ver a filha P, a partir dos 10 anos de idade, a ser violentamente agredida pelo arguido e a filha B a assistir às agressões.

26. PS, em consequências das descritas condutas do arguido, chorava frequentemente, ia à escola com as marcas das agressões, manifestava grande nervosismo, vivia aterrorizada, com medo e intranquilidade e perdeu a auto-estima.

27. BS, quando assistir às agressões infligidas pelo pai, à mãe e à irmã, ficava aflita e nervosa e chorava muito, e continuando a revelar sinais de nervosismo.

28. O arguido/demandado foi notificado para contestar os pedidos de indemnização civil em 16/05/2011 (cfr. fls. 270 e artº 113º, nº 3 do C.P.P.).

29. O arguido é o mais velho de dois irmãos, nascidos de um casal de condição social mediana e que esteve emigrado no Brasil, no Rio de Janeiro, onde o arguido nasceu.

30. O agregado familiar regressou a Portugal, quando o arguido tinha cerca de 16 anos, fixando-se em Chaves, onde o progenitor se estabeleceu num negócio próprio.

31. O arguido integrou o sistema de ensino no Brasil, tendo em Portugal lhe sido dada equivalência ao 8º ano de escolaridade, concluiu o 9º ano de escolaridade em Portugal, mas revelou desinteresse pelos estudos, acabando por desistir de estudar.

32. Cumpriu o serviço militar obrigatório na força aérea, onde fez um contrato de dois anos.

33. Posteriormente integrou a Guarda Fiscal, tendo transitado para a Guarda Nacional Republicana no contexto da reformulação daquela instituição.

34. Na década de 90 veio exercer funções para o Algarve, onde revelou problemas de integração laboral com registo de irregularidades que desencadearam a sua reforma compulsiva, em 2006 e envolvimentos judiciais.

35. Neste contexto foi condenado nos processos judiciais nºs ----/08.0TASLV e ---/05.3GAPTM abaixo referidos.

36. Contraiu matrimónio aos de 21 anos de idade, com CS, tendo o casal se autonomizado das respectivas famílias de origem e mantendo com as mesmas incompatibilidades relacionais, com registo de algum isolamento sócio - familiar.

37. Quando vieram residir para o Algarve, adquiriram habitação através de empréstimo bancário.

38. A vivencia conjugal foi caracterizada por conflituosidade, com referência a agressões físicas e verbais perpetuadas no tempo.

39. Nos últimos anos por divergências e problemas económicos e de gestão financeira acentuaram-se os conflitos.

40. O arguido encontra-se em processo de divórcio, residindo sozinho e isolado da família, na habitação onde anteriormente viveu com a família, tendo sido inibido de se aproximar da mesma.

41. O arguido vive exclusivamente da sua pensão de reforma que aufere, no montante de cerca de €399,00 (trezentos e noventa e nove euros) por mês.

42. Manifesta vontade de integrar o mercado de trabalho, mas revela dificuldades de adaptação laboral.

43. Recentemente trabalhou na área da restauração, experiência que não teve seguimento, alegadamente, por considerar abusivo o que lhe era exigido.

44. Não salienta actividades de tempos livres específicas, ou referências sociais no geral, tendo recentemente iniciado um relacionamento de namoro.

45. Apresenta instabilidade emocional, adoptando uma atitude ansiosa e vitimizante e, paralelamente revela algumas capacidades de sociabilidade, associadas à necessidade de agradar e a um auto-conceito elevado.

46. O arguido não voltou a estar com a esposa e as filhas, mas, apesar de com elas estar proibido de contactar, efectuou algumas tentativas de contacto, através de mensagens de telemóvel, nomeadamente para a filha mais velha.

47. O arguido não interiorizou a gravidade dos factos por si praticados, nem se mostrou arrependido do seu cometimento.

48. Por sentença de 03/12/2008, proferida no processo nº ----/08.0TASLV, do 2º Juízo do Tribunal de Comarca de Silves, o arguido foi condenado na pena de 60 (sessenta) dias de multa, pela prática, em 18/01/2008, de um crime de desobediência p. e p. pelo artº 348º do Código Penal.

49. Por sentença de 25/06/2009, proferida no processo nº ---/05.3GAPTM, do 1º Juízo Criminal do Tribunal de Comarca de Portimão, o arguido foi condenado na pena de 100 (cem) dias de multa, pela prática, em Junho de 2002, de um crime de abuso de poder p. e p. pelo artº 382º do Código Penal.

50. A demandante CS é funcionária no Centro de Saúde, auferindo €449,00 (quatrocentos e quarenta e nove euros) por mês de vencimento e tem as outras demandantes PS e BS a seu cargo.”

E foram dados como não provados os factos seguintes:

“- quais as datas concretas em que ocorreram os factos referidos nos pontos 11., 13. e 14. dos factos provados;

- qual a data concreta desde a qual o arguido se encontra reformado da GNR;

- os factos (que aqui dou por integralmente reproduzidos) constantes dos arts 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º e 9º da douta contestação do arguido de fls. 292 e 293.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, independentemente do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº2 do CPP (AFJ de 19.10.95), a questão submetida a apreciação respeita à impugnação da matéria de facto.

Em síntese, defende o recorrente que a prova produzida em audiência não permite concluir pela resposta de “provado” relativamente à factualidade considerada como tal, pelo que deveria ter sido absolvido.

Suscita no entanto, como questão prévia, a nulidade por deficiência detectada no registo da prova, pedindo a repetição dos depoimentos deficientemente gravados das testemunhas AA, FS e MS.

A questão da deficiência da gravação da prova (oral) é aqui suscitada, adequadamente, como questão prévia.

E também fora arguida - como nulidade - junto do tribunal de julgamento, que a dirimiu no sentido da improcedência. Para tanto considerou que, não tendo sido estes três depoimentos relevantes para a sua decisão, as deficiências de gravação porque inoperantes, não gerariam nulidade. Mas, aqui, sem razão.

Na verdade, o registo da prova não se destina ao tribunal de julgamento, e sim ao tribunal da Relação, bem como aos sujeitos processuais que pretendam interpor e instruir o seu recurso da matéria de facto.

De acordo com o despacho que decidiu a nulidade, o que não foi relevante para o tribunal de julgamento também não o poderá ser para o tribunal de recurso.

Ora, o que pretende o recorrente é precisamente demonstrar que o tribunal de 1ª instância decidiu mal ao não ter valorado a sua prova, prova que pretende ver legitimamente reapreciada em 2ª instância.

Mas as consequências do incumprimento ou do deficiente cumprimento do disposto nos arts 363º e 364º do CPP - que tratam da documentação e forma da documentação das declarações orais - nunca pode ser descontextualizado do caso concreto.

Em matéria de direito, ou de realização dos direitos, a forma serve a substância. O processo penal tem o papel de realização do direito substantivo, devendo assumir apenas o protagonismo estritamente necessário à prossecução da sua finalidade, que é a realização de um direito material.

Também a decisão desta questão prévia se não basta com a resposta singela de deficiência de gravação – nulidade.

Importa, antes de mais, determinar se as deficiências de gravação são essenciais, no sentido de imprescindíveis, à decisão do recurso. Apenas perante resposta afirmativa será de lhes atribuir uma consequência.

Os três depoimentos encontram-se gravados em condições deficientes, à semelhança, aliás, do que acontece com toda a prova, como ora constatámos por via da reaudição das gravações.

Só que estas deficiências não tornam a prova imperceptível, sendo possível acompanhar o desenrolar e o sentido de todas as declarações e depoimentos, independentemente da inteligibilidade de todas as palavras.

Constatamos, em suma, que podemos efectivamente exercer o controlo da prova, no que respeita à possibilidade da sua r(re)apreciação, como tribunal ad quem.

Vejamos, então, a impugnação da matéria de facto.

Pretende o arguido impugnar a matéria de facto, em conformidade com o que a lei lhe possibilita (art. 428º do CPP). Para tanto, impõe-se que proceda de acordo com o disposto no art. 412º, nº3 do CPP e com obediência às formalidades nele exigidas.

Estabelece este normativo que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas, fazendo-se, essa especificação, por referência ao consignado na acta devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP).

Discutindo o acerto da factualidade dada como provada na decisão, o recorrente conseguiu dar cumprimento às exigências enunciadas, especificando as provas que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida, e fê-lo apesar das deficiências detectadas nas gravações.

Como pontos de facto, indica:

- o “casamento” e a “filiação”, só demonstráveis, em seu entender, por documento autêntico, que não se encontra nos autos;

- todos os restantes factos que integram os crimes imputados ao arguido.

E fazendo referência aos três depoimentos - procedendo até às transcrições das partes que considera relevantes - pretende que deles sejam retiradas conclusões probatórias diferentes daquelas a que chegou o tribunal. Para tanto argumenta que nenhuma destas três testemunhas confirmou os factos provados, tendo antes deposto no sentido da demonstração da total correcção do procedimento do arguido para com as vítimas.

Recordemos, então, como o tribunal justificou a convicção sobre a factualidade:

No que concerne aos factos constantes dos pontos 1. a 27., o Tribunal baseou-se no depoimento da assistente, que revelou conhecimento directo dos mesmo por os ter presenciado e, na parte em que deles foi vítima, teve que os suportar, tendo-os relatado, de forma precisa, clara e, não obstante ser ofendida, fê-lo de forma isenta, merecendo a credibilidade do Tribunal.

Tal factualidade foi confirmada, ainda, pelo depoimento da demandante PS, que relatou e esclareceu, com precisão, clareza e isenção os factos praticados pelo seu pai, tantos de que foi vítima, como os que presenciou a sua mãe e irmã sofreram. Ambas relataram, ainda, as consequências, para qualquer delas, bem como para a menor B das condutas do arguido, no que é ainda corroborado, quanto aos factos mais recentes e relativamente às consequências físicas, pela documentação clínica/relatórios médico legais de fls. 47 e segs e de fls. 51 e segs, que pela isenção e especial preparação da entidade que os elaboraram mereceram a credibilidade do Tribunal.

Para prova dos factos constantes dos pontos 29. a 46., socorreu-se o Tribunal do relatório social junto aos autos, que pelas suas fontes, metodologia e isenção da entidade que o elaborou, foi para nós merecedor de credibilidade.

Quanto ao valor concreto da reforma auferida pelo arguido (parte do ponto 41. dos factos provados), mereceram crédito as suas declarações, como igual crédito mereceu o depoimento da demandante CS, quanto à sua situação económica (factos constantes do ponto 50. dos factos provados).

No que concerne ao facto constante do ponto 47. dos factos provados, baseou-se no Tribunal, na constatação feita, em julgamento, da postura adoptada pelo arguido e da sua atitude em relação aos factos imputados na acusação e bem assim, não só a ausência de qualquer conduta demonstrativa de arrependimento, por parte do arguido, nomeadamente (a ausência de) um simples pedido de desculpa às suas vítimas, como ainda a postura corporal e as expressões faciais adoptadas, entre os quais os olhares fulminantes que dirigiu à sua esposa e à sua filha quando, terminados os depoimentos destas, o arguido regressou à sala de audiência.
Relativamente aos antecedentes criminais, o Tribunal baseou-se no C.R.C. do arguido, junto aos autos.
Quanto aos factos não provados.

Os restantes factos não resultaram provados por, quanto a eles, não se ter produzido qualquer prova.

Aliás, as testemunhas de defesa revelaram nada saber, limitaram-se a referir que nada presenciaram.

O arguido negou os factos imputados e ainda se tentou vitimizar, ensaiando a versão de que ele é que era agredido pela sua esposa, o que não nos mereceu qualquer credibilidade, desde logo pela diferença considerável de compleição física existente entre ambos, bem como, pela forma pouco convicta, vaga e nada circunstância com que o arguido o referiu. “

Relativamente ao primeiro ponto de facto – casamento do arguido e da assistente, e relação de paternidade/filiação entre o arguido e as duas outras vítimas – constata-se da própria contestação escrita do arguido, que este os aceita como verdadeiros, considerando-se como “um casal” juntamente com a assistente, e um pai das suas duas filhas. Das suas declarações em julgamento decorre igualmente a total ausência de impugnação destes factos e a sua aceitação como verdadeiros. Também de todos os depoimentos, particularmente do depoimento da testemunha de defesa FS, pai do arguido, decorre a mesma concordância.

Nem mesmo em recurso impugna materialmente estes factos, limitando-se a uma impugnação estritamente formal.

E sem razão.

Toda a prova oral aponta no sentido da conclusão a que chegou o tribunal – o arguido era à data dos factos casado com a assistente, e o arguido é pai das vítimas P e B. A filiação destas decorre igualmente das respectivas identificações. E a prova do “casamento” sempre seria dispensável para o preenchimento do tipo de crime “violência doméstica”, atenta a relação análoga à dos cônjuges com que o tipo se basta e igualmente comprovada no processo.

Por último, na ausência de regra tarifada para prova destes factos em processo penal, factos que o arguido materialmente sempre aceitou e nunca impugnou, e que se encontram inquestionavelmente demonstrados pelas provas que referimos, improcede nesta parte o recurso.

Passando ao segundo ponto de facto, pretende o arguido que do depoimento das três testemunhas que ofereceu resulta prova suficiente para confirmar a sua negação dos factos e infirmar a prova da acusação.

Podemos afirmar, de acordo com a prova produzida em audiência e ora (re)examinada, e também exactamente conforme exame crítico de prova efectuado na sentença, o seguinte, relativamente ao ponto de facto em crise:

- a assistente prestou declarações por forma a confirmar integralmente todos os factos provados;

- a filha do arguido, PS, prestou declarações igualmente descritivas e confirmativas dos factos provados

- o arguido negou a prática dos factos provados;

- a versão da assistente mostrou-se credível ao tribunal por razões que explica encontrando-se ainda suportada pela documentação clínica/relatórios médico legais de fls. 47 e segs e de fls. 51 e segs;

- a versão do arguido não foi suportada por qualquer outra prova verdadeiramente de sinal contrário à prova da acusação, já que dos depoimentos ora em (re)apreciação nada pode ser retirado de directamente oposto à prova da acusação.

Na verdade, dizer-se que “nunca se viu” não é o mesmo que afirmar-se que “nunca aconteceu”. E do facto de nenhuma das três testemunhas de defesa – dois vizinhos e o pai do arguido – ter visto o arguido a maltratar as vítimas, não se retiram as consequências que pretende.

Os crimes de violência doméstica ocorrem, por regra, na reserva da privacidade. Raramente são presenciados ou observados. São por isso crimes em cuja revelação do facto assume particular importância o depoimento ou declaração da testemunha-vítima, crimes relativamente aos quais, a prova se resume, muitas vezes, à pessoa da vítima.

No caso, a versão das vítimas foi ainda suportada por outra prova, como se disse.

E não se mostra infirmada por prova verdadeiramente de sinal contrário, para além das declarações do arguido que não convenceram.

Podemos, pois, assentar em que existe total conformidade entre o que foi dito e aquilo que o tribunal ouviu e refere ter ouvido; que nenhuma das provas em causa é proibida ou foi produzida fora das normas procedimentais que regem os meios de prova em apreciação; que o tribunal justificou adequadamente a opção que faz relativamente à escolha e graduação dos conteúdos probatórios; que, perante provas de sinal contrário, atribuiu-lhes conteúdo positivo ou negativo de uma forma racionalmente justificada, apelando às regras da lógica e da experiência comum, e sem violação do princípio do in dúbio.

Consigna-se, por último, que o tribunal ad quem procede à reapreciação da prova com a amplitude consentida pelo nº 6 do art. 412º do CPP, tratando-se de um verdadeiro poder-dever de audição, não apenas das passagens indicadas pelo recorrente, mas de todas as que considere relevantes para a boa decisão do recurso e, reapreciando as provas à luz do mesmo princípio da livre apreciação, assim sindicando a convicção do juiz de julgamento em 1ª instância.

Mas fá-lo com a limitação decorrente da ausência de imediação, só devendo alterar o aí decidido se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (alínea b) do n.º 3 do artigo 412º do CPP)

Visa a correcção de erros de julgamento que, em reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão quanto aos «pontos de facto» ora sindicados a pedido do recorrente, não se detectam, não impondo as provas decisão diversa da recorrida.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da 2ª Secção do Tribunal da Relação de Évora em:
Julgar improcedente o recurso confirmando o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente que se fixam em 5UC.

Évora, 13.12.2011

(Ana Maria Barata de Brito)

(António João Casebre Latas)