Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
12/13.4GDEVR.E1
Relator: MARTINHO CARDOSO
Descritores: OFENSAS CORPORAIS
QUALIFICAÇÃO
ESPECIAL CENSURABILIDADE DO AGENTE
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Ocorre a ofensa à integridade física qualificada sempre que do facto resulta uma especial censurabilidade ou perversidade que possa ser imputada ao arguido por força da ocorrência de qualquer dos exemplos-padrão enumerados no nº 2 do artigo 132º do Código Penal, ou, tendo estes uma natureza exemplificativa, sem deixarem de ser elementos constitutivos de um tipo de culpa, qualquer outra circunstância substancialmente análoga.
II - Estando em causa dois murros desferidos pelo arguido na cabeça da sua ainda esposa, dos quais resultou para a ofendida, como consequência direta e necessária, traumatismo crânio-encefálico leve, sem sintomatologia associada ao mesmo e dores, e que não lhe determinaram quaisquer dias para a cura, se não existe na descrição da ocorrência revelações de qualidades do agente especialmente desvaliosas que demonstrem uma especial perversidade, já existe, contudo, uma forma de realização do ato especialmente desvaliosa, a merecer uma especial censurabilidade compatível com a previsão do artigo 132º, nº 1, do Código Penal - por ter sido prosseguida pelo agente à frente da empregada doméstica da família, com o que o arguido procurou ter uma assistência, um público e uma perspetiva de publicidade social que aumentasse de forma exponencial, para a sua mulher, a vergonha e a infâmia de ter sido agredida pelo marido.
Decisão Texto Integral:

I
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


Nos presentes autos de Processo Comum com intervenção de tribunal singular acima identificados, da Comarca de Évora, Instância Local, Secção Criminal, J2, em que MJRG se constituiu assistente e deduziu pedido cível contra o arguido MGR, este foi, na parte que agora interessa ao recurso, condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de:
-- Um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.º 143.°, n.º 1, 145.°, n.º 1 al.ª a) e 2, e 132.°, n.º 2 al.ª b), do Código Penal, na pena de 100 dias de prisão, substituídos por idêntico tempo de multa, à razão diária de 20 €; e
-- Um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à razão diária de 20 €.
Em cúmulo jurídico material (em virtude da diversa natureza das penas parcelares), pena única de 160 dias de multa, à razão diária de 20 €, num total de 3.200 €.
Mais foi o arguido condenado a pagar as quantias de 1.600 € à assistente e de 147 € ao Hospital do Espírito Santo.
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Inconformado com o assim decidido, o arguido interpôs o presente recurso – de apelação, diz ele –, apresentando as seguintes conclusões:
1- Os depoimentos das testemunhas CR, LBA e as declarações da assistente são incoerentes e contraditórios entre si e entre o relatório clínico e o depoimento da testemunha (médica que observou a assistente) SP; pois enquanto nos depoimentos e declarações situam a parte atingina na fronte ou na testa … o relatório clínico e a testemunha SP situam as queixas e o local atingido segundo relato da “vitima” no parietal direito
2- Igualmente desconformes e contraditórios são os depoimentos das testemunhas CR e LBA sobre o posicionamento de ambas aquando dos alegados murros, pois segundo a CR entre ela e os pais se encontrava apenas ela e segundo a LBA, encontravam-se as duas testemunhas…Versões incompatíveis, sobre factos absolutamente essenciais e reveladoras da falta de credibilidade das testemunhas, cujos depoimentos estão carregados de parcialidade e de carga emocional decorrente da relação de parentesco e animosidade relativamente ao pai, a primeira, e do vinculo de trabalho subordinado da segunda á assistente.
3- Por outro lado é contrária ás regras da experiencia comum admitir-se como possível que com duas pessoas de permeio, alguém possa atingir com o braço/mão direita o lado direito da cabeça de quem se encontre em frente …
4- Pelo que jamais poderia ser dada por provada a factualidade subjacente ao crime de ofensa à integridade física, incorrendo a Mª Juiz a quo em erro de julgamento, quer na interpretação da prova produzida quer em face da insuficiência de prova do libelo acusatório.
5- Deu-se na sentença recorrida por provado que o arguido “… gritou repetidamente as seguintes expressões, dirigindo-as à assistente: "vai para a puta que te pariu", "sua filha da puta", "quando te conheci estavas cheia de dívidas, pulgas e carraças" porém contraditoriamente na fundamentação refere a sentença que embora as primeiras não tenham relatado uma das expressões descritas na acusação "filha da puta", mas tão só as demais, tratou-se tão só de uma omissão no relato e não uma negação da ocorrência, tendo, no entanto, tal expressão sido relatada pela testemunha LBA, sendo que quanto a esta expressão em concreto, o arguido não negou de forma peremptória tê-la proferido, antes pelo contrário, admitiu essa possibilidade, embora o não recorde concretamente….
6- Ora quando é a própria assistente que não relata a expressão “sua filha da puta” alegadamente a si dirigida … nem a filha da assistente e do arguido o fazem mas apenas a empregada LBA … no mínimo é audacioso dar tal factualidade por provada, pois partir do principio que há apenas uma omissão de relato por parte da assistente e filha para dar tal como provado não só é temerário como é ilegal …incorrendo a M Juiz a quo em erro de julgamento
7- A expressão " cheia de dívidas, pulgas e carraças" não passa de um regionalismo tendente a dizer que a pessoa visada ao tempo nada tinha de seu … não visando nem sendo de molde a ofender a assistente, de resto na sentença recorrida refere-se, como assente, o contexto em que o arguido o fez ao dizer que o arguido respondeu à assistente dizendo "teu são as pulgas e as carraças porque quando casaste comigo estavas cheia de dívidas", alegando que era às dívidas que estava a referir-se ao mencionar as pulgas e carraças”; aliás todas as expressões proferidas resultaram de um do estado de espírito que dominava o arguido e em desabafo corrente de um alentejano, as expressões saíram-lhe com o hábito, podemos criticar a linguagem, mas ela não exprime nem carrega consigo o peso de ofensa tanto mais que a própria assistente admite o uso de tais expressões no marido, ora arguido era normal … o que vale dizer que nunca a mesma se importou muito ou se sentiu ofendida com tal facto …
8- Entendeu-se por outro lado que atenta a circunstância de a assistente ser cônjuge do arguido este praticou um crime de ofensa à integridade física qualificado, p. e p. pelos arts. 143°, n° 1 e 145°, n° 1, al. a) e n° 2 do Código Penal, com referência ao art. 132°, no 2, ai. b) do mesmo diploma legal , e não já de um crime de ofensa à integridade física simples.
9- Pese embora se diga na douta sentença que as circunstancias que determinam a qualificação não são de funcionamento automático, o que é certo é que não deixou de o fazer, pois basta-se com o facto de o arguido saber que a assistente era seu cônjuge … e que “no caso dos autos as circunstâncias que rodearam a prática da infracção (e que se mostram descritas nos factos provados) não têm a virtualidade de afastar o funcionamento do exemplo padrão consagrado pelo legislador penal, encontrando-se dentro dos casos normais que estiveram na mente do legislador ao fazer constar entre os exemplos padrão do no 2 do artigo 132° a relação conjugal”
10- … Ou seja, na sentença em recurso, é feito o raciocínio ao contrario com aplicação automática da qualificação, quando é certo que o tipo legal apenas refere que é susceptível de revelar especial perversidade ou censurabilidade (sendo estes conceitos distintos) o facto de a “vitima” ser cônjuge ou ex cônjuge do arguido; assim ao invés da douta sentença, que não traduz uma especial censurabilidade ou perversidade, a conduta imputada ao arguido pois a não ser assim, estaríamos a renegar a plasticidade que se quis conferir ao artigo 132º (ex-vi dos arts. 143°, n° 1 e 145°, n° 1, al. a) e n° 2 do Código Penal) e transformar o tipo qualificado no tipo fundamental, de aplicação comum à generalidade das situações…. E o certo é que nada há nos autos nem resulta da prova produzida que suporte a especial perversidade ou censurabilidade…
11- Assim fez-se na douta sentença errada intrepretação e aplicação dos arts. 132º, 143°, n° 1 e 145°, n° 1, al. a) e n° 2 do Código Penal) que assim resultaram violados.
12- Não pode pois pelos motivos expostos dar por provada a factualidade conducente à condenação do arguido que por isso deve ser absolvido e por consequência o deve também ser do pedido de indemnização civil.
13- Sempre diremos por cautela de patrocínio que mesmo a entender-se ser bastante a prova produzida para condenar o recorrente, o que não se concede pois que o recorrente não praticou os factos de que veio acusado, que as penas aplicadas são manifestamente excessivas e desproporcionadas, tanto mais que o recorrente tem um registo criminal imaculado.

Termos em que deve a douta sentença recorrida ser revogada, e , com o douto suprimento de V.Exas. absolver-se o arguido quer da pratica dos crimes de que é acusado quer do pedido de indemnização civil , como é de Justiça.
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A Ex.ma Procuradora-Adjunta do tribunal recorrido respondeu, concluindo da seguinte forma:
1.ª o recorrente recorre de facto e de direito.
2º As conclusões apresentadas pelo recorrente não respeitam o disposto no artigo 412.º do CPP quer quanto à enunciação das passagens que pretende invocar para efeitos de impugnação da matéria de facto, quer – no que toca à matéria de direito - quanto à enunciação de verdadeiras conclusões (já que os pontos 5 a 13 mais não são que uma reprodução fiel dos pontos IV a VII da motivação).
2º Deve, por isso, o recorrente ser convidado ao aperfeiçoamento, nos termos do artigo 417.º n.º 3, do Código de Processo Penal.
2.ª Os factos dados como provados sob os n.ºs 3 e 4 têm suporte nos depoimentos conjugados das testemunhas LBA e CR e da assistente, bem como nas declarações do próprio arguido.
3.ª Os depoimentos das testemunhas e da assistente não são contraditórios nem incoerentes, tal como o não são relativamente ao relatório clínico e depoimento da testemunha SP, resultando simplesmente de cada depoimento a perceção tida por cada um dos intervenientes (tendo em consideração as passagens transcritas pelo recorrente e identificadas na motivação).
4ª Ou, se se pretender, nas palavras retiradas do ac. do TRE de 3.6.2014 em discussão semelhante, “as incoerências destacadas pelo recorrente na motivação do recurso, relativamente às declarações prestadas pelo assistente e aos depoimentos das testemunhas que a Mmª Juíza considerou credíveis, e como acima já se assinalou, mais não são do que diferenças naturais entre pessoas que não combinaram versões de factos, e que relataram, a uma distância de dois anos, aquilo que viram e aquilo que lhes deixou uma memória impressiva.
5ª Tal como não são incompatíveis, pela mesma ordem de razões, as declarações das testemunhas CR e LBA quanto ao posicionamento de ambas no momento e perante os factos.
6º Esse posicionamento, sendo relevante para efeitos de formação da convicção, não é, porém, essencial nem consta dos factos dados por provados.
7º Essencial é a prova dos socos desferidos pelo arguido à assistente e, quanto a essa, não poderia a Mmª Juiz ter concluído de forma diversa da plasmada na douta sentença, face à prova produzida em audiência e às passagens constantes da motivação.
8º Não contraria as regras da experiência comum o raciocínio e conclusão da Mmª Juiz quanto à ocorrência das agressões, ainda que existindo duas pessoas de permeio entre o arguido e a assistente pois que as regras da experiência comum confirmam precisamente a possibilidade de, através de um qualquer espaço existente entre vários corpos, se lograr atingir o corpo que se encontre por detrás destes.
9º Não houve assim qualquer erro de julgamento da MMª Juiz, havendo sim discordância do arguido quanto ao modo como o Tribunal formou a sua livre convicção (necessariamente diferente daquela que o arguido formou).
10º Não se vislumbra qualquer vício na formação dessa convicção, seja quanto à prática do crime de ofensa à integridade física (qualificada),s eja quanto à prática do crime de injúria.
11º Tal como não se vislumbra qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
12º Ao dar por provadas as expressões elencadas sob o facto nº 3, a Mmª Juiz fê-lo sem qualquer violação das normas legais, lançando mão do princípio da livre convicção, pelo que valem para este efeito todas as considerações tecidas nas anteriores conclusões.
13º A douta sentença recorrida fez uma correcta e ponderada apreciação da prova produzida, a qual se mostra suficiente para condenar o arguido nas penas aplicadas.
13.ª Perante a matéria de facto provada o arguido praticou os crimes p. e p. pelo art s. 143º, nº 1 e 145º, nºs 1, al.a ) e nº 2, por referência ao art. 132, nº 2, al. b) (crime de ofensa à integridade física qualificada) e 181º, nº 1 do Código Penal (crime de injúria).
14º Com efeito, não sendo automático o preenchimento do crime qualificado pela mera circunstância de existir uma relação conjugal entre arguido e assistente, o legislador pretendeu atribuir a estas situações, ab initio, um desvalor de censurabilidade/perversidade
15º Nada resultou provado que permita “revogar” o valor de censurabilidade atribuído pelo legislador.
16º As expressões dadas por provadas assumem carácter ofensivo, ao contrário do que o recorrente pretende convencer, não valendo a argumentação deste ao invocar a habituabilidade ou o regionalismo de tais expressões para efeitos de lhes retirar aquele desvalor.
17º As penas (parcelares e única) mostram-se adequadas e fixadas em obediência aos critérios legais.
18º Consequentemente, bem andou a Mmª Juiz em condená-lo na pena única de 160 dias de multa à taxa diária de €20 e no pagamento das indemnizações que resultam da douta sentença. .

Pelo que, deve ser mantida a sentença proferida nos presentes autos e negado provimento ao douto recurso,
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Nesta Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Cumpriu-se o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II
Na sentença recorrida e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
-- Factos provados:
1. No dia 24 de Janeiro de 2013, pelas 13:30 horas, o arguido encontrava-se na sua residência e da sua mulher, MJRG (assistente nos autos), sita na (....), nº (…), em (.......), neste Concelho de Évora, na qual ambos residiam, mas estando já separados de facto.
2. Nessa ocasião, o arguido dirigiu-se à sua filha CR, que se encontrava a almoçar com a assistente e que na ocasião pernoitava em casa dos pais, em virtude de um divórcio complicado e na sequência de ter pedido à filha que lhe fornecesse a chave da garagem da sua residência, onde se encontrava colocado um frigorífico onde o arguido colocava os seus géneros alimentícios, facto de que resultou desentendimento entre ambos, disse à mesma que a queria fora de casa".
3. No decurso da discussão gerada, porque a assistente pretendeu defender a sua filha, opondo-se a tal situação e ainda referindo que a casa era sua e que não iria permitir tal coisa, o arguido, fazendo uso da sua força muscular, com a mão direita fechada, desferiu-lhe dois socos na cabeça.
4. Ao mesmo tempo que gritou repetidamente as seguintes expressões, dirigindo-as à assistente: "vai para a puta que te pariu", "sua filha da puta", "quando te conheci estavas cheia de dívidas, pulgas e carraças".
5. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a assistente sofreu traumatismo crânio-encefálico leve, sem sintomatologia associada ao mesmo e dores, tendo sido assistida no Hospital do Espírito Santo, E.P.E., lesões que não lhe determinaram, por forma directa e necessária, quaisquer dias para a cura.
6. Como consequência directa e necessária das expressões que o arguido dirigiu à assistente, a mesma sentiu-se ofendida na sua honra e consideração.
7. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção de molestar, como queria, e concretizou, o corpo e a saúde da assistente.
8. Ao dirigir à assistente as supra referidas expressões, o arguido quis e conseguiu atingir a pessoa daquela na sua honra e consideração enquanto pessoa humana bem sabendo que tais expressões em concreto e em abstrato são ofensivas.
9. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e criminalmente puníveis.
10. Na sequência da conduta do arguido, a assistente ficou com medo, passando, juntamente com a filha com a qual dormia no mesmo quarto, a colocar atrás da porta um bengaleiro, com medo que o arguido entrasse e a atingisse de novo.
11. A mesma sentiu humilhação e vexame, por os factos terem sido na presença da filha e empregada doméstica.
12. Passou a sentir estados de ansiedade enorme, que perturbaram a sua vida diária, os quais resultaram dos factos, mas também do clima habitual de conflito com o arguido resultante da situação de separação de ambos, continuando a viver na mesma casa.
13. Recorreu a medicação ansiolítica para controlar o seu estado.
14. As despesas efetuadas pelo Hospital do Espírito Santo com a assistência prestada a MJRG referida em 5, ascendem a € 147.
15. O arguido é (…..) reformado e (....), auferindo uma pensão de reforma no montante de € 1700.
16. Vive com uma companheira, que é (…..), em casa pertença dos pais dela.
17. A sua companheira aufere um vencimento mensal de € 6000.
18. O arguido tem dois filhos, ambos maiores de idade.
19. O arguido tem como habilitações literárias a licenciatura em (….), o mestrado em (….) e o doutoramento em (…..).
20. Não são conhecidos ao arguido antecedentes criminais.
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-- Factos não provados:
Com relevo para a discussão da causa, não se provou:
1- A expressão usada pelo arguido na ocasião referida em 2 dos factos provados e que dirigiu à sua filha foi exatamente "corro contigo daqui a murro e pontapé, meto tudo o que está aqui no olho da rua (tendo-se provado apenas genericamente que foi nos termos referidos em 2 dos factos provados).
2- Na ocasião referida em 3 dos factos provados, o arguido abeirou-se da assistente.
3- Constitui inverdade que quando casou com o arguido a assistente tivesse dívidas.
4- A porta do quarto referido em 10 dos factos provados não tinha trinco.
5- A assistente recorreu a medicação antidepressiva.
6- A assistente é pessoa de elevada educação e idoneidade, é professora aposentada e nunca havia sido confrontada com tais comportamentos por parte de ninguém.
7 - A assistente passou a sair de casa várias vezes ao dia para não se cruzar com o arguido, quando ali permanecia.
8- A assistente sempre foi honesta, esposa dedicada e trabalhadora.
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Não se considerou nos factos provados e não provados a matéria conclusiva ou de direito constante da acusação particular e pedido de indemnização civil, mormente no que respeita às inverdades referentes às expressões dirigidas pelo arguido à assistente, uma vez que, quanto a verdade das imputações apenas pode respeitar a factos e não a juízos ofensivos, sendo certo que as expressões dirigidas pelo arguido à assistente assentam em juízos ofensivos, apenas a referência a dívidas respeita a factos concretos.
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Fundamentação da decisão de facto:
O tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade.
Concretamente, revelaram-se fundamentais para criar a convicção do Tribunal, os seguintes meios de prova:
Declarações do arguido
Segundo o arguido, que relatou a situação de vivência na mesma casa, mas já em separação de facto com a assistente, instou a filha, que se encontrava a almoçar com a mãe, pelos motivos que se fizeram constar nos factos provados (segundo o arguido a assistente pretendia envenena-lo, tendo sido esse convencimento que o levou a utilizar um frigorífico que se encontrava na residência da filha, contígua à sua), tendo ela negado dar-lhe a chave, pelo que lhe disse que devia sair de casa, ripostando a assistente que era tudo dela, que não tinha ali nada. A tal respondeu o arguido "teu são as pulgas e as carraças porque quando casaste comigo estavas cheia de dívidas", alegando que era às dívidas que estava a referir-se ao mencionar as pulgas e carraças. Nessa ocasião a assistente e a filha "cresceram para si", tendo-se a empregada doméstica colocado na sua frente, dizendo-lhe para ir embora, com as duas mãos no peito, estando a filha CR atrás da empregada e a assistente atrás desta última. Porque a assistente instou a filha a pegar numa cadeira, elevou a mão, num gesto como se fosse atingir a assistente com um estalo, sem que tenha chegado a concretizar tal conduta. Admite, não recordando, tê-la apelidado de "filha da puta".
O arguido prestou também declarações acerca da sua situação pessoal.
Declarações da assistente
A assistente, MJRG, confirma o circunstancialismo e os motivos pelos quais surgiu o desentendimento com o arguido, tendo sido na sequência de a mesma referir ao arguido que não punha a filha na rua, que mesmo lhe desferiu os dois socos com o braço direito, o qual esticou em frente, bem como proferiu as expressões descritas na acusação (apenas não referiu o uso da expressão "filha da puta"). Nega ter instado a filha a bater no arguido. Mais referiu a deslocação ao hospital na sequência desses factos e o estado em que ficou, também nos termos que se fez constar nos factos provados.
Prova testemunhal
A testemunha CR, filha do arguido e assistente, confirmou o motivo da discussão nos termos relatados nos factos provados (negando que recusasse fornecer a chave ao pai, mas tão só tendo-o questionado porque queria mudar o frigorífico de lugar outra vez e acerca das despesas em que não participava) e que, tendo-se a mãe colocado de pé, defendendo-a e referindo que a mesma não iria para a rua como arguido lhe ordenava, foi a mesma (assistente) atingida pelo arguido com dois socos, estando a depoente no meio de ambos. Que, embora estivesse de costas para a mãe, ouviu os óculos da mesma caírem na sequência do soco, após o braço do arguido passar por cima do seu ombro direito na direção da assistente e ouviu esta a dizer "bateste-me". Mais relatou as expressões proferidas, com exceção de "filha da puta". Nega ter sido instada pela assistente a agredir o arguido.
No mais, relatou deslocação da assistente ao hospital e estado em que ficou após. A testemunha LBA, empregada doméstica que se encontrava, na ocasião, no desempenho dessas funções na residência que era da assistente e do arguido, refere ter ouvido discussão, o que a motivou deslocar-se à cozinha. Aí confirma ter o arguido dito à filha CR para ir para a rua, ao que a assistente se opôs, tendo então ele proferido as expressões descritas na acusação (esta testemunha descreve todas as expressões descritas na acusação), tendo desferido pelo menos um murro na assistente, que provocou a queda dos óculos da mesma. Não obstante referir que o mesmo gesticulava, com certeza apenas pode confirmar o desferir de um soco, com o braço direito, estando a depoente e a testemunha CR, ambas entre o arguido e a assistente. Nega ter a assistente, previamente a tal, incitado a filha a bater no arguido.
Mais relatou o estado em que ficou a assistente, nos termos que se deixaram descritos nos factos provados, bem como que a mesma tem um cabide de pé, pesado, no seu quarto.
NMGR, filho do arguido e assistente, refere ter recebido da irmã CR um telefonema, aparentando a mesma estado de transtorno e solicitando-lhe que chamasse ao local a GNR, alegando que o pai desferira na mãe dois socos. Mais refere ter ainda nesse dia falado com a assistente ao telefone e relatou o estado de choro e abalo que a mesma apresentava, estado que verificou ainda a quando pela primeira vez após os factos entrou em casa da mãe, relatando-lhe ela também o receio que sentia do arguido.
HMR, militar da GNR e amigo dos filhos do arguido e assistente, foi contactado duas vezes pela filha da assistente, em virtude de desentendimento dos progenitores, revelando a mesma estado de aflição, mas não recordando se a mesma fez alusão a agressões, tendo encaminhado militares da GNR ao local.
JJC, ex-marido da testemunha CR, conhece o arguido por esse motivo desde 2006, tem o mesmo como uma pessoa de trato fácil e não violenta. Refere ter uma ocasião ouvido uma discussão entre o arguido, a filha e a assistente, o que ocorreu na sequência de a filha parecer ter ficado desagradada com o facto de o arguido se encontrar na sua residência, o que ocorreu por o mesmo se encontrar a dar-lhe noções de agricultura (uma vez que ela entrou, viu o pai e saiu, tendo ele seguido a mesma e a discussão ocorrido de seguida, sem que consiga precisar o conteúdo da discussão).
A testemunha SP, médica que assistiu a assistente no Serviço de Urgência do Hospital do Espírito Santo, esclareceu que não obstante a assistente não apresentar sintomatologia habitualmente associada ao traumatismo craniano (revelando apenas dor local) ou crânio-encefálico, que medicamente se considera a existência de tal tipo de traumatismo sempre que ocorre qualquer embate na região craniana, podendo, sim, divergir o grau do mesmo, sendo certo que por vezes mesmo traumatismos mais graves não apresentam sintomatologia associada. Mais esclareceu (sendo de resto tal do conhecimento geral), a possibilidade de existência de dor resultante de um embate em determinada parte do corpo, sem que a mesma se mostre associada a hematoma, em particular na zona parietal craniana, como é o caso.
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Prova documental e pericial
F ai ainda valorado o relatório de episódio de urgência de fls. 163 a 164, o relatório de perícia médico-legal de fls. 22 a 24, quanto às lesões sofridas pela assistente, em conjugação quanto a estas com o depoimento da testemunha SP Ribeiro, nos termos supra referidos e que clarificou esses factos.
Foi ainda valorada a certidão do assento de casamento de fls. 71 a 72 e 135 a 136 (quanto à relação conjugal entre arguido e assistente, de resto reconhecida por ambos), a fatura de fls. 256 e certidão de dívida de fls. 255 (quanto ao valor das despesas de assistência médica da assistente no HES) e o certificado de registo criminal de fls. 291 dos autos (quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido).
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Perante a prova produzida, não restam dúvidas acerca da prática dos factos pelo arguido.
Com efeito, desde logo no que concerne ao desferir dos socos, não obstante
negados pelo arguido, foram relatados não só pela assistente como pela testemunha LBA (embora esta apenas tenha certeza de um soco, mas referindo que o assistente gesticulava) e pela testemunha CR, que viu o gesto do arguido de impulsionar o braço na direção da assistente que se mostrava atrás de si, passando por cima do seu ombro direito, tendo da primeira vez ouvido o barulho dos óculos da mãe a caírem, facto este também relatado pela assistente e testemunha LBA.
É certo que no seu depoimento a testemunha CR não referiu que a testemunha LBA se encontrava também entre a assistente e o arguido, referindo tão só que a própria depoente se encontrava nessa posição. Mas também não o negou, apenas não fez referência a tal interposição da LBA. De resto, é o próprio arguido que reconhece que no local e entre si e a assistente se encontravam as testemunhas CR e LBA. Também o próprio arguido reconhece ter elevado o braço, num gesto como se fosse desferir uma chapada à assistente, apenas negando ter chegado a tal concretização. Porém, apesar dessa negação, as declarações mostram-se contrariadas nessa parte pelas declarações da assistente e depoimentos das testemunhas CR e LBA, nos termos supra expostos, que conjugados contrariam claramente as declarações do arguido.
De resto, contrariamente ao defendido pelo arguido em sede de alegações, é claramente possível que com duas pessoas no meio o arguido conseguisse, ainda assim, atingir a assistente. Desde logo porque duas pessoas no meio não significa que a assistente estivesse completamente oculta pelo corpo das demais, nem qualquer das pessoas o referiu. A possibilidade de o braço ser esticado por cima do ombro das testemunhas que se encontravam entre o arguido e assistente ou até no meio destas, bem como a possibilidade de esticar o braço na direção da assistente e impulsionar/esticar o corpo para a frente, na direção da assistente, possibilitam claramente o atingir da assistente, não obstante a existência de duas pessoas entre si e o arguido. Tal não é, assim, impossível, como pretende o arguido. De resto, não pode olvidar-se que os acontecimentos obedecem a uma dinâmica, não são estáticos.
No que concerne às expressões proferidas pelo arguido, também foram relatadas pela assistente e testemunhas CR e LBA, nos termos que constam da acusação e não nos termos relatados pelo arguido. Embora as primeiras não tenham relatado uma das expressões descritas na acusação "filha da puta", mas tão só as demais, tratou-se tão só de uma omissão no relato e não uma negação da ocorrência, tendo, no entanto, tal expressão sido relatada pela testemunha LBA, sendo que quanto a esta expressão em concreto, o arguido não negou de forma perentória tê-la proferido, antes pelo contrário, admitiu essa possibilidade, embora o não recorde concretamente.
Por fim refira-se, quanto aos factos não provados, que o decidido se funda na circunstância de não ter sido produzida prova quanto aos mesmos, já que pelas testemunhas do pedido de indemnização civil não foram os mesmos relatados ou confirmados.
III
De acordo com o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (diploma do qual serão todos os preceitos legais citados sem menção de origem), o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na motivação e é por elas delimitado, sem prejuízo da apreciação dos assuntos de conhecimento oficioso de que ainda se possa conhecer.
De modo que as questões postas ao desembargo desta Relação são as seguintes:
1.ª – Que foi por ter avaliado mal a prova testemunhal produzida em julgamento que o tribunal "a quo" deu como provado que o arguido praticou os crimes pelos quais depois o condenou;
2.ª – Que as expressões usadas pelo arguido não tem natureza injuriosa;
3.ª – Que a ofensa à integridade física praticada pelo arguido não deve ser qualificada pelos art.º 145.°, n.º 1 al.ª a) e 2, e 132.°, n.º 2 al.ª b), do Código Penal; e
4.ª – Que as penas aplicadas são excessivas.
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Vejamos:
No tocante à 1.ª das questões postas:
Temos pois que ir ouvir as gravações da prova produzida em julgamento, designadamente a indicada pelo recorrente, para aferir o que se passou.
Não olvidando o ensinamento de Germano Marques da Silva, in Fórum Justitiae, Ano 1, n.º 0, pág. 22, de que «o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância».
Acreditar num depoente e não acreditar noutro é uma questão de convicção. Essencial é que a explicação do tribunal porque é que acredita naquele e já não acredita no outro seja racional e tenha lógica.
E quem está numa posição privilegiada para avaliar essa credibilidade é, sem dúvida, o tribunal da 1.ª Instância, que beneficiou da oralidade e da imediação que teve com a prova.
Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre eles num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.
Aliás, segundo recentes pesquisas neurolinguísticas, numa situação de comunicação presencial, apenas 7% da capacidade de influência é exercida através da palavra, sendo que o tom de voz e a fisiologia, ou seja, a postura corporal dos interlocutores, representam, respectivamente, 38% e 55% desse poder – vide Lair Ribeiro, “Comunicação Global”, Lisboa, 1998, pág. 14. Ora se a audição de uma gravação permite fruir com fidelidade aqueles 7% de capacidade de influência exercida através da palavra e ainda, mas nem sempre, os 38% referentes ao tom de voz, sobram os 55% referentes à fisiologia, ou seja, a postura corporal dos interlocutores, a que o tribunal de 2.ª Instância nunca terá acesso.
É que há sempre coisas que os juízes de julgamento viram enquanto ouviam e não ficaram na gravação e das quais, por isso, o tribunal de recurso nunca se aperceberá, sendo por vezes precisamente essas que fazem a diferença e levam o tribunal a quo a tombar para o lado do provado em vez do não provado ou vice-versa.
Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a oralidade e a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.
A prova testemunhal não é, pois, para ser avaliada aritmeticamente. Ou como se o depoimento de uma testemunha fosse para ser considerada com o rigor de uma escritura de um notário.
Como explicitava Enrico Altavilla, em “Psicologia Judiciária, Personagens do Processo Penal”, 4° vol., Arménio Amado, Editor, Sucessor-Coimbra, 1959, pág. 112. «(...) o testemunho não é a exacta reprodução de um fenómeno objectivo, porque é modificado pela subjectividade da testemunha, e se, por isso, duas testemunhas dificilmente podem prestar depoimentos idênticos, deduzir da diversidade que se nota na sua acareação, que uma delas deva, necessariamente, estar de má fé, é um erro».
Por isso é que o art.º 127.º, do Código de Processo Penal, dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente; salvo quando a lei dispuser diferentemente, o que não é o caso.
Conforme refere o Prof. Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal, II-27) as regras ou normas da experiência "são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto, sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade” e a livre convicção "é um meio da descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade, portanto, uma conclusão livre porque subordinada à razão e à lógica e não limitada por prescrições formais exteriores".
Certo que a livre apreciação da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos, que determina dessa forma uma convicção racional e, portanto, objectivável e motivável – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4-11-98, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1998, III-201.
Mas quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum – acórdãos do STJ de 6-3-02, Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2.002, II-44 e da Relação de Évora de 25-5-04, Colectânea de Jurisprudência, 2.004, III-258.
No caso dos autos e em última análise, o que o recorrente pretende é substituir a convicção do tribunal pela sua. E embora desenvolva um quadro argumentativo com o qual pretende demonstrar, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade, não logrou convencer-nos disso, ou seja, de que a decisão do tribunal "a quo" em matéria de facto não é possível ou não é plausível.
É que não basta que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal "a quo" por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção ‘era possível’. Exige-se-lhe que indique a prova que imponha uma outra convicção.
De resto, do que o art.º 412.º, n.º 3 al.ª b), do Código de Processo Penal, fala é da indicação pelo recorrente da provas que imponham uma decisão diversa da recorrida, não de provas que eventualmente também permitam outra decisão de facto.
Ora a discordância do arguido no tocante à matéria de facto assente como provada baseia-se nos seguintes pontos:
a) Em que parte da cabeça foi a assistente atingida com os murros, se na fronte, na testa ou no parietal;
b) Se no momento em que foram dados os murros, a filha e a empregada estavam entre o arguido e a assistente e estavam em fila indiana ou uma delas de lado e qual delas estava mais à frente do arguido ou mais atrás;
c) Com duas pessoas de permeio, o arguido não conseguiria dar murros à assistente; e
d) Que o arguido tenha dito sua filha da puta.
Vejamos:
Em que parte da cabeça foi a assistente atingida com os murros, se na fronte, na testa ou no parietal (ou, como muito cientificamente perguntava o Ilustre defensor do arguido em julgamento: Se no parietal, se no frontal, se no occipital, se…?) e se no momento em que foram dados os murros, a filha e a empregada estavam entre o arguido e a assistente e estavam em fila indiana ou uma delas de lado e qual delas estava mais à frente do arguido ou mais atrás e se com as duas de permeio o arguido não conseguiria dar murros à assistente – bem, se com isto o arguido pretende pôr em causa que tenha desferido murros na assistente, não vai a lado nenhum, porque, quer tenham sido Se no parietal, se no frontal, se no occipital, se… e independentemente de as três mulheres estarem em fila indiana ou não ou uma delas, a empregada LBA, estar de lado, o que se segue é que todas as testemunhas presenciais da ocorrência, além da própria assistente, são unânimes em afirmar que o arguido deu dois murros na cabeça da assistente e era disso que ele vinha acusado e ficou provado, não também Se no parietal, se no frontal, se no occipital, se… – sendo o que basta para integrar o tipo base da ofensa à integridade física.
E no tocante a que com duas pessoas de permeio, o arguido não conseguiria dar murros à assistente, quantos murros não foram já dados em confusões destas ou doutras e com pessoas de permeio a ver se evitam a agressão! É que o recorrente parece que está a dispor os figurantes como se estivessem a posar calmamente para um retrato, fazendo de conta que naquela situação não há movimentos rudes e encontrões, em que as distâncias bruscamente tanto encolhem como alongam.
Mas, já agora, as três mulheres, a assistente, a filha e a empregada, não estavam realmente em perfeita fila indiana; a LBA entretanto também se meteu assim de lado e ele disferiu dois murros na minha mãe, e eu tive a certeza que lhe acertou porque eu senti os óculos dela caírem no chão – disse a filha do arguido. E LBA: Não, o senhor doutor, o senhor MGR, o senhor MGR estava quase ao meu lado, eu estava quase ao lado do senhor MGR e eu tentei desviar o senhor MGR.

No tocante a que o arguido tenha dito sua filha da puta, declarou ele em julgamento:
Filha da puta, meritíssima, não sei se disse se não, como eu disse há pouco houve um momento em que toda a gente gritou, mas isso são expressões, são expressões corriqueiras do dia-a-dia, eu também não lhe posso dizer que não a disse, porque a posso ter dito, mas nem recordo se eu disse, mas no meio de uma zanga depois de me estarem a enxovalhar daquela da maneira, depois até de me estarem a privar até de um frigorífico, tando eu já chorar, admito perfeitamente que ter dito essa palavra o que não significa que eu estivesse a dizer que a mãe da senhora era mal comportada, quer dizer é uma expressão que sai, saiu, não sei se saiu se não, porque também toda a gente gritou naquele momento.
E LBA, com sublinhado nosso:
Era galho, foda-se, é tudo assim, filha… pronto, nunca tinha “ouvisto” o senhor falar assim, pronto fiquei admirada fui lá e ouvi esses palavrões (…)
Como se costuma dizer, para bom entendedor, reproduzir metade da expressão basta, atento o inequívoco sentido do resto.
Assim, a situação quanto a esta expressão é tal e qual como a descreve o tribunal "a quo" na sua fundamentação da decisão da matéria de facto:
No que concerne às expressões proferidas pelo arguido, também foram relatadas pela assistente e testemunhas CR e LBA, nos termos que constam da acusação e não nos termos relatados pelo arguido. Embora as primeiras não tenham relatado uma das expressões descritas na acusação "filha da puta", mas tão só as demais, tratou-se tão só de uma omissão no relato e não uma negação da ocorrência, tendo, no entanto, tal expressão sido relatada pela testemunha LBA, sendo que quanto a esta expressão em concreto, o arguido não negou de forma perentória tê-la proferido, antes pelo contrário, admitiu essa possibilidade, embora o não recorde concretamente.

Carece, pois, de fundamento a impugnação da matéria de facto feita pelo recorrente.
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No tocante à 2.ª das questões postas, a de que as expressões usadas pelo arguido não tem natureza injuriosa:
Alega o recorrente que a expressão ”cheia de dívidas, pulgas e carraças" não passa de um regionalismo tendente a dizer que a pessoa visada ao tempo nada tinha de seu.
E que "vai para a puta que te pariu" e "sua filha da puta" são estereótipos da linguagem corrente (…), sem valor semântico e sem carga injuriosa ou ofensiva (…)
Que a expressão ”cheia de dívidas, pulgas e carraças" seja um regionalismo, nunca o ouvimos, nem consta do honorável «Dicionário Aberto de Calão e Expressões Idiomáticas», de José João Almeida, acessível na Internet por pesquisa sob aquele título, ou do «Dicionário de Insultos» de Sérgio Luís de Carvalho, Livraria Bertrand, 2014. Mas talvez seja.
De acordo como art.º 181.º do Código Penal, a injúria compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém.
Nelson Hungria, citado por Leal Henriques e Simas Santos no seu Código Penal Anotado, 3.ª ed., 2.º vol., pág. 494, dizia que injúria «é a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo ou vilipêndio contra alguém», dirigida ao próprio visado. «O bem jurídico lesado pela injúria é, prevalentemente, a chamada honra subjectiva, isto é, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal».
No crime em análise não se protege, pois, a susceptibili­dade pessoal de quem quer que seja, mas tão só a dignidade individual do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas.
Uma das características da injúria é a sua relatividade, o que quer dizer que o carácter injurioso de determinada palavra ou acto é fortemente dependente do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre.
Daí que só em cada caso concreto se possa afirmar se há ou não comportamento delituoso.
A injúria não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez, ou mesmo com a grosseria, que são comportamentos que apenas podem traduzir falta de educação.
A injúria é mais do que isso e, quando se pune um acto injurioso, não se visa a protecção da susceptibilidade pessoal deste ou daquele, mas tão só da sua dignidade, da sua honra e consideração, como atrás se disse.
A honra constitui o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, como sejam o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, isto é, a dignidade subjectiva, o património pessoal e interno de cada um; e a consideração o merecimento que o indivíduo tem no meio social, ou seja, o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, que constituem a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma, a opinião pública: ob. e loc. cit. e ainda, no tomo I do “Comentário Conimbricense do Código Penal”, as anotações a este respeito produzidas por José de Faria Costa ao art.º 181.º
Assim, as expressões em apreço, no contexto da situação em que foram proferidas, de evidente ódio do arguido para com a sua na altura ainda esposa (apesar de já não fazerem vida como marido e mulher, ainda que continuando a viver debaixo do mesmo tecto), só podem ser entendidas como carregadas de um indesmentível desvalor objectivamente ofensivo; o arguido não estava ali a namorar ou a cortejar a mulher, estava a ver se de forma fulminante a atingia o mais fundo que conseguisse na altura.
Tanto assim que, embora a assistente tenha dito em julgamento: Pronto, “vai para a puta que te pariu”, isso era normal (…), o que se segue é que a intenção de ofender resulta até de dessa vez as expressões terem sido proferidas com a empregada a ouvir:
Era galho, foda-se, é tudo assim, filha… pronto, nunca tinha “ouvisto” o senhor falar assim, pronto fiquei admirada fui lá e ouvi esses palavrões (…)
É que, mesmo que aquelas expressões sejam banais na região aonde arguido e assistente vivem, as mesmas só não serão injuriosas quando for patente – em resultado inequívoco das circunstâncias – que tais palavras foram proferidas sem que houvesse, da parte de quem as disse, intenção de ofender.
(A este propósito e no mesmo sentido: acórdão da Relação do Porto de 27-2-85, Colectânea de Jurisprudência, 1985, I-282).
Ora o que a respeito da intenção com que aquelas expressões foram proferidas ficou assente como provado na sentença recorrida foi que:
8. Ao dirigir à assistente as supra referidas expressões, o arguido quis e conseguiu atingir a pessoa daquela na sua honra e consideração enquanto pessoa humana bem sabendo que tais expressões em concreto e em abstrato são ofensivas.
9. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e criminalmente puníveis.
Caem assim por terra as objecções do recorrente a este respeito.
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No tocante à 3.ª das questões postas, a de que a ofensa à integridade física praticada pelo arguido não deve ser qualificada pelos art.º 145.°, n.º 1 al.ª a) e 2, e 132.°, n.º 2 al.ª b), do Código Penal:
Dispõem aqueles preceitos legais:
Artigo 145.º
Ofensa à integridade física qualificada
1 - Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:
a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º;
(…)
2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º
Artigo 132.º
Homicídio qualificado
1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, (…)
2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
(…)
b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, (…)
Adaptando o texto para as ofensa à integridade física, vem sendo entendido pela doutrina e jurisprudência, de que destacamos o acórdão do STJ de 29-5-2008, proferido no proc. 08P827, relatado pelo Exmº Conselheiro Rodrigues da Costa, acessível em www.dgsi. pt, e que passaremos a seguir de perto, que quando o legislador prevê um tipo simples, acompanhado de um tipo privilegiado e um tipo agravado, é no crime simples ou no crime-tipo que desenha a conduta proibida enquanto elemento do tipo e que prevê o quadro abstracto de punição dessa mesma conduta; nos tipos privilegiado ou qualificado, define os elementos atenuativos e agravativos que modificam o tipo base conduzindo a outros quadros punitivos (Acs. de 15-3-2007, Proc. n.º 340-07 e de 24-5-07, Proc. n.º 33/07, ambos da 5.ª Secção do STJ).
O crime de ofensa à integridade física qualificada é definido a partir da enunciação de uma cláusula geral – se forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente – contida no n.º 1 do art.º 145.º do Código Penal e concretizada ou desenvolvida no n.º 2 do art.º 132.º, através de exemplos-padrão, por remissão expressa do n.º 2 daquele art.º 145.º.
Esses dois critérios – um generalizador e outro especializador – são complementares e têm mútua implicação. A partir deles, poder-se-á sintetizar assim a estrutura do tipo agravado: ocorre a ofensa à integridade física qualificada sempre que do facto resulta uma especial censurabilidade ou perversidade que possa ser imputada ao arguido por força da ocorrência de qualquer dos exemplos-padrão enumerados no n.º 2 do art.º 132.º, ou, tendo estes uma natureza exemplificativa, sem deixarem de ser elementos constitutivos de um tipo de culpa, qualquer outra circunstância substancialmente análoga - cfr. Figueiredo Dias, "Comentário Conimbricence do Código Penal", anotação ao art.º 132.º, adaptado para as ofensa à integridade física.
Com esta formulação dual pretende assinalar-se a interacção recíproca que intercede entre o chamado critério generalizador e os exemplos-padrão. É que não é pelo facto de se verificar em concreto uma qualquer das circunstâncias referidas nos exemplos-padrão ou noutras substancialmente análogas que fica preenchido o tipo, deduzindo-se daquelas a especial censurabilidade ou perversidade; é preciso que, autonomamente, o intérprete se certifique de que da ocorrência de qualquer daquelas circunstâncias resultou em concreto a especial censurabilidade ou perversidade. Como inversamente, não será um maior desvalor da atitude do agente ou da personalidade documentada no facto que dará origem ao preenchimento do tipo de culpa agravado, sendo necessário que essa atitude ou aspectos da personalidade mais desvaliosos se concretizem em qualquer dos exemplo-padrão ou em qualquer circunstância substancialmente análoga.
Só dessa forma, para além de se respeitar o princípio constitucional da legalidade e da máxima determinação penal possível, como uma garantia fundamental do cidadão, se evitará, por um lado, o arbítrio do juiz, que poderia ser impelido a criar, autenticamente, tipos legais agravados sem ter nenhuma legitimidade para tal, segundo os princípios ínsitos ao Estado de Direito democrático ou a ver-se forçado a subsumir a factualidade ao tipo agravado, sempre que fossem provadas circunstâncias que coubessem nos moldes dos exemplos-padrão, caso estes fossem meros elementos do tipo de ilícito (cfr. acórdão do STJ de 3-10-2002, proc. n.º 2709/02, da 5.ª secção).
O tipo agravado de ofensa à integridade física é um tipo qualificado de culpa: trata-se de punir mais severamente, no quadro de uma moldura penal agravada em relação ao crime de ofensa à integridade física simples (o tipo matricial), condutas que, em razão da verificação de certas circunstâncias com uma estrutura essencialmente típica, traduzam vertentes do facto ou da conduta do agente particularmente desvaliosas em razão da sua personalidade ou da forma como ele imprime à sua actuação uma marca que acentua o desvalor do facto, em relação ao desvalor inerente a qualquer tipo de ofensa à integridade física.
Quer dizer que o agente deve e tem de poder ser merecedor de um especial juízo de culpa ou de censura ético-jurídica em razão desse especial desvalor de que a prática do facto se revestiu.
A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto de este ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica, quando podia e devia ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobre a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor, sendo, por natureza, graduável, dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo, igualmente, um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica, superando as proibições impostas.
A lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na atitude interna do agente, que revela formas de realização do acto especialmente desvaliosas, e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas (Figueiredo Dias, ob. cit., tomo I, pág. 29; Acórdãos do STJ de 21-3-2007, Proc. n.º 153/07; de 23-5-2007, Proc. n.º 1495/07; de 31-10-2007, Proc. n.º 3222/07 e de 5-12-2007, Proc. n.º 3879/07, todos da 3.ª da Secção).
Ora situando-nos na gravidade relativa do caso dos autos, em que estão em causa dois murros desferidos pelo arguido na cabeça da sua ainda esposa, dos quais resultou para a ofendida, como consequência directa e necessária, traumatismo crânio-encefálico leve, sem sintomatologia associada ao mesmo e dores, e que não lhe determinaram quaisquer dias para a cura, se não vemos na descrição da ocorrência revelações de qualidades do agente especialmente desvaliosas que demonstrem uma especial perversidade, já vemos contudo uma forma de realização do acto especialmente desvaliosa a merecer uma especial censurabilidade compatível com a previsão do art.º 132.º, n.º 1 – por ter sido prosseguida pelo agente à frente da empregada doméstica da família, com o que o arguido procurou ter uma assistência, um público e uma perspectiva de publicidade social que aumentasse de forma exponencial para a sua mulher a vergonha e a infâmia de ter levado porrada do marido.
Está pois correcta a integração da ofensa à integridade física pela previsão qualificada dos art.º 145.°, n.º 1 al.ª a) e 2, e 132.°, n.º 2 al.ª b), do Código Penal.
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No tocante à 4.ª das questões postas, a de que as penas aplicadas são excessivas:
O tribunal "a quo" fundamentou assim a escolha e graduação das penas:
2- Da Escolha e Medida da Pena
A moldura penal abstrata do crime de ofensa à integridade tisica qualificada é de 30 dias a 4 anos de prisão (arts. 145°, n° 1, al. a) e 41°, n.º 1 do Código Penal).
Por seu lado, a moldura abstrata do crime de injúria é de 30 dias a 3 meses de prisão ou multa de 10 a 120 dias (arts. 181°, n.º 1 in fine, 41°, n° 1 e 47°, n° 1, todos do Código Penal).
Uma vez que o crime de injúria praticado pelo arguido é punido com penas alternativas de prisão ou multa, há que proceder antes de mais à operação de escolha da pena, de acordo com o critério apontado no art. 70° do Código Penal.
Da leitura desse artigo resulta que o tribunal deverá dar preferência à aplicação da pena de multa sempre que "esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição", que são, segundo o art. 40° do mesmo diploma legal “a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade."
Assim, a escolha da pena depende apenas de considerações de prevenção geral e especial, não se considerando aqui a culpa, que apenas será valorada na determinação da medida da pena.
No caso, apesar de o arguido ter praticado dois crimes na mesma ocasião, ambos muito praticados na comarca, sendo o mesmo primário e estando integrado socialmente, não sendo muito gravosa a sua conduta, entende-se que a aplicação ao arguido de uma pena de multa se revela suficiente para afastar o arguido da prática de futuros crimes e para reafirmar a confiança da comunidade na validade da vigência da norma violada, pelo que se opta por aplicar ao arguido pena dessa natureza quanto ao crime de injúria por si praticado, havendo de seguida que determinar, de harmonia com os princípios e critérios constantes do art. 71º do Cód. Penal a medida concreta da mesma, bem como da pena a aplicar ao crime de ofensa à integridade física.
De harmonia com esse artigo, a determinação da medida da pena far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as circunstâncias apontadas no n.º 2 daquele normativo.
"Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização, in casu, das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime - ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente - limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.”
"A medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto. Há uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias. ( ... ) Mas abaixo desse ponto ótimo outros existem em que aquela tutela é ainda efetiva e consistente, e onde portanto a medida da pena pode ainda situar-se sem que esta perca a sua função primordial - até se alcançar um limite mínimo abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação a pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar".
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração - entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos - podem e devem atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles assim que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a medida possível, servir a reintegração do agente na comunidade.
Por outro lado, a medida da pena não pode em caso algum ultrapassar a medida culpa. "A culpa constitui um limite inultrapassável a todas e quaisquer considerações preventivas.”
"Até ao limite máximo consentido pela culpa, é a medida exigida pela tutela dos bens jurídicos que vai determinar em definitivo a medida da pena"
De resto, dificilmente surgirão conflitos entre a culpa e a prevenção geral positiva, pois as razões justificativas da culpa são em princípio também comunitariamente compreensíveis e aceitáveis.
De acordo com o art. 71º-2, não devem ser tomadas em consideração na medida da pena as circunstâncias que façam já parte do tipo de crime: nisto se traduz o essencial do princípio da proibição da dupla valoração, ou seja, não devem ser utilizadas pelo julgador para agravar ou atenuar a responsabilidade do agente, circunstâncias que já tenham sido tomadas em consideração pelo legislador ao estabelecer a moldura penal do facto. Isto não obsta a que a medida da pena seja elevada ou baixada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de um elemento típico e, portanto, da concretização deste segundo as especiais circunstâncias do caso.
Assim, considerando:
- quanto ao crime de ofensa à integridade física, o grau de ilicitude do facto, no qual se não considera a circunstância de o arguido ter agido contra cônjuge, pois tal circunstância foi já considerada pelo legislador na previsão do tipo; depõe contra o arguido o facto de a agressão ter surgido sobre a assistente quando a mesma se encontrava tão só a defender a filha o casal, embora atenuada pelo facto de ter sido gerada uma discussão a que não é estranha a situação em que viviam o arguido e a assistente (separados de facto, mas na mesma residência); a intensidade da agressão é mediana (dois socos, que não terão sido desferidos com muita violência, dada a ausência de lesões visíveis) e as lesões foram reduzidas; a atuação com dolo direto;
- quanto ao crime de injúria, serem de carácter bastante ofensivo as expressões proferidas e terem sido proferidas na presença de terceiros, embora com ligação à assistente, a sua filha e empregada doméstica;
- o arguido tem a seu favor a inserção social e ausência de antecedentes criminais.
*
Tudo ponderado, atendendo aos limites abstratos das penas, afiguram-se adequadas as penas de 100 dias de prisão quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada e 60 dias de multa quanto ao crime de injúria.
*
Nos termos do disposto no art. 43°, n° 1 do Cód. Penal, substitui-se tal pena de prisão por idêntico tempo de multa (100 dias), já que a execução da prisão não se revela necessária para afastar o arguido da prática de futuros crimes, atenta a sua absoluta inserção social e ausência de antecedentes criminais.
*
O montante diário da muita fixar-se-á em função da situação económica e financeira do arguido e dos seus encargos pessoais, entre € 5 e € 500, (art. 47°, n.º 2 do C. P.).
Face a tal situação e encargos conhecidos, considera-se adequado fixar em € 20 o montante diário da multa (note-se que os rendimentos do agregado familiar do arguido - € 7700 são claramente muito acima da média, não existindo descendentes a cargo e vivendo o agregado em casa pertença do pai da companheira do arguido, não suportando também despesas com o seu pagamento).
*
Pese embora se verifique que o arguido praticou dois crimes antes de ter transitado em julgado a condenação por qualquer deles, mostrando-se, assim, numa relação de concurso (art. 30°, n.º 1 do Código Penal), havendo, por isso, que lhe aplicar uma pena única (art. 77°, n.º 1 do Código Penal), tal pena terá de corresponder à soma de ambas as penas aplicadas.
Com efeito, tal como resulta do n.º 3 do art. 77° do Código Penal, "se as penas aplicadas forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante dos critérios estabelecidos nos números anteriores" .
O disposto neste preceito aplica-se mesmo nos casos em que a pena de prisão seja substituída por multa. Com efeito, mesmo nestes casos a pena de prisão mantém a sua natureza, já que, em caso de não pagamento da multa, o arguido terá de cumprir na totalidade a pena de prisão que foi substituída por multa (art. 43°, n.º 2 do Código Penal). Diversamente ocorre quando se verifica o não pagamento da multa aplicada como pena principal, em que a sua conversão em prisão será reduzida a 2/3 (art. 49°, n° 1 do Código Penal).
Sendo diversas as consequências do incumprimento de ambas as penas, precisamente em virtude da sua diversa natureza, terá esta que ser mantida e aplicada ao arguido uma pena de multa única, que corresponda à soma de ambas as penas de multa aplicadas (a aplicada em substituição da prisão e a aplicada como pena principal). Esta foi, de resto, a solução preconizada de forma expressa pelo legislador quanto aos crimes punidos simultaneamente com pena de prisão e multa, nos casos em que essa prisão seja substituída por multa, tal como resulta do disposto no art. 6°, n° 1 do DL 48/95, de 15/03, diploma que aprovou o Código Penal.
Assim sendo, o arguido vai condenado na pena única de 160 dias de mula (sendo 100 dias da multa aplicada em substituição da prisão e 60 dias da multa aplicada como pena principal), o que à taxa diária de € 20, perfaz o montante global de € 3200 (três mil e duzentos euros).

Recorde-se, pois, que as penas foram as parcelares de 100 dias de prisão, substituídos por idêntico tempo de multa, à razão diária de 20 €, pelo crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.º 143.°, n.º 1, 145.°, n.º 1 al.ª a) e 2, e 132.°, n.º 2 al.ª b), do Código Penal; e a de 60 dias de multa, à razão diária de 20 €, pelo crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1, do Código Penal.
Em cúmulo jurídico material (em virtude da sua diversa natureza), pena única de 160 dias de multa, à razão diária de 20 €, num total de 3.200 €.
Que o recorrente se queixa de serem excessivas.
Ora se a pena única resulta de um cúmulo jurídico material, supomos que o arguido estará a questionar as penas parcelares.
Acontece que ele não explica porque é que acha que as penas são exageradas; por exemplo, se em relação à pena de 100 dias de prisão preferiria antes que fosse substituída por outra pena de substituição em vez da de multa ou se acha que a própria pena substituída é exorbitante ou se entende que os dias de multa e o seu montante diário relativamente ao crime de injúria não se mostram adequados – são tudo aspectos cuja auscultação o recorrente nos sonegou, deixando-nos no mundo abstracto de se queixar tão-só de que as penas são exageradas, e como argumento de que o são alegar apenas que tem um registo criminal imaculado.
Na verdade, a conclusão 13.ª do recurso é a reprodução exacta da motivação apresentada a tal respeito, dizendo esta:
VII
DA MEDIDA DAS PENAS
Sempre diremos por cautela de patrocínio que mesmo a entender-se ser bastante a prova produzida para condenar o recorrente, o que não se concede pois que o recorrente não praticou os factos de que veio acusado, que as penas aplicadas são manifestamente excessivas e desproporcionadas, tanto mais que o recorrente tem um registo criminal imaculado.
Bem, se o único argumento usado pelo arguido para questionar as penas é o de ser delinquente primário, então diremos que a ausência de antecedentes criminais, mesmo que entendida no sentido de bom comportamento anterior, «tem escassa relevância quando esse bom comportamento não é superior ao comum e normal nas pessoas da classe do agente da infracção em idênticas condições de vida e de cultura» – acórdão do STJ, de 4-7-1984, Boletim do Ministério da Justiça n.º 339-223.
De resto, a primariedade do arguido já se mostra ter sido devidamente considerada pelo tribunal de julgamento, por exemplo na opção pela multa no crime de injúria, que prevê pena de prisão e multa.
E não havendo mais argumentos na motivação do recurso e não se vislumbrando na parte da sentença relativa à escolha e medida da pena qualquer pormenor que seja de conhecimento oficioso e mereça reparo – e diremos genericamente apenas mais o seguinte:
Quanto a pena principal de prisão (depois substituída por multa):
No tocante à escolha e graduação da pena que a um arguido há-de ser imposta, é a medida da sua culpa que condiciona decisivamente a pena concreta a aplicar-lhe.
Para além de ser fundamento, a culpa concreta é o máximo de condenação possível e nunca, em caso algum, as razões de prevenção poderão impor uma pena que ultrapasse essa culpa concreta do agente (Figueiredo Dias, “Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Notícias Editorial, pág. 238 e ss.).
Do que se trata é de sancionar um delinquente concreto que, num determinado circunstancialismo, cometeu um facto jurídico-penalmente relevante, desvalioso, merecedor de censura penal.
Deve assumir-se a pena como sanção adequada, proporcionada aos factos e ao agente, e, procurando-se com ela dar satisfação aos fins de prevenção-ressocialização do agente, evitar-se que outros cometam infracções semelhantes.
Há que ponderar, na situação concreta, como elementos ou factores a reflectirem-se na culpa, a gravidade da ilicitude, a intensidade do dolo, os fins ou motivos que determinaram o crime, as condições pessoais do agente e sua situação económica e, em suma, em todo o demais condicionalismo mencionado não só no corpo como nas respectivas alíneas do n.º 2 do art.º 71.º do Código Penal.
No tocante aos presentes autos, a decisão recorrida valorou correctamente todos os índices necessários no caso concreto à fixação daquela pena, que se mostra justa e ponderada.
Quanto à pena de multa:
A pena de multa deve traduzir-se num processo que vise o tratamento justo do caso concreto, adequado à vontade e intenções da lei, garantindo-se a validade e vigência da norma violada perante a comunidade.
Assim, ao aplicar-se uma pena de multa e para que se mantenha a validade e vigência da norma violada, é necessário que do cumprimento desta pena resulte um efectivo sacrifício para o condenado.
Pelo que é correcta a afirmação de que a multa tem de representar simultaneamente, uma censura do facto e uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma penal violada.
Ou, como bem refere Jesheck, in “Tratado de Derecho Penal”, vol. I, pág. 1077, a multa deve, pois, traduzir-se num encargo sensível não podendo converter-se num negócio cómodo para o condenado.
No caso vertente, afigura-se-nos que o tribunal “a quo” procedeu criteriosamente à avaliação das circunstâncias apuradas, para este efeito relevantes, tendo sido observados os critérios legais na determinação da medida da pena e esta mostra-se ajustada à culpa do agente e às exigências de prevenção.
Pelo que, tudo visto e ponderado, têm-se por justas e adequadas as penas fixadas pelo tribunal "a quo".
IV
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e manter na íntegra a decisão recorrida.
Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade de tratamento das questões suscitadas, em cinco UC’s (art.º 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).

Évora, 05-05-2015
(elaborado e revisto pelo relator, que escreve com a ortografia antiga)


João Martinho de Sousa Cardoso

Ana Maria Barata de Brito