Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1140/12.9TDEVR-A.E1
Relator: ANA BARATA DE BRITO
Descritores: ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
COMPETÊNCIA
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. A autoridade judiciária competente para notificar a acusação é o MP e não o juiz.
2. Se detectada, pelo juiz, no momento do art. 311º do CPP, uma ilegalidade consistente na notificação irregular da acusação ao arguido, deve o juiz providenciar pela reparação, podendo ordenar a devolução dos autos ao MP para que proceda a essa notificação.
3. Esta prática não viola o acusatório e não interfere com a autonomia do MP, pois do que se trata é viabilizar que o MP supra a irregularidade que cometeu e diligencie pela notificação da sua acusação, autonomamente elaborada.
Decisão Texto Integral:






Processo nº 1140/12.9TDEVR-A.E1

Acordam na Secção Criminal:
1. No Processo nº 1140/12.9TDEVR da Comarca de E foi proferido despacho em que se decidiu ordenar a devolução dos autos ao DIAP, a fim do MP suprir a irregularidade consistente na falta de notificação da acusação à arguida.
Inconformado com o decidido recorreu o Ministério Público, concluindo:
“1 ª - A falta de notificação da acusação a um dos arguidos - por ter sido remetida para morada diferente da constante do TIR - configura uma irregularidade, nos termos do art. 123º do Código de Processo Penal, por referência aos arts. 196º e 113º/l, c), ambos do mesmo diploma.
2ª• Esta irregularidade, conhecida oficiosamente pelo Mmo. Juiz, no momento em que profere o despacho a que alude o art. 311º do Código de Processo Penal, é de correcção oficiosa pelo mesmo Juiz, enquanto titular da fase processual em causa, conforme dispõe o art. 123º/2 do Código de Processo Penal.
3ª- Correcção essa a efectuar pelos serviços da secção judicial, no caso o 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de E.
4ª- Não pode o Juiz, como o fez no despacho ora em crise, ordenar ao Ministério Público que repare tal irregularidade e proceda à notificação.
5ª- A devolução dos autos ao Ministério Público efectuada contém implícita a ordem de um Juiz para que o Ministério Público repita a notificação, o que viola a estrutura acusatória do processo penal e os princípios da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz, constitucionalmente consagrados – art. 219º da Constituição da República Portuguesa.
6ª - Pelo exposto, não poderia o Mmo. Juiz ter ordenado a devolução dos autos ao Ministério Público para reparação da irregularidade na notificação, ordenando, consequentemente, a sua repetição.
7ª - Deveria, ao invés, ter ordenado aos serviços da secção judicial - 2º juízo criminal do Tribunal Judicial de E - a notificação da acusação à arguida AT- Agropecuária Uni pessoal, Lda .
8ª - Não o tendo feito, o Mmo. Juiz violou o disposto no art'. 123º/1 e 2 do Código de Processo Penal, que interpretou erradamente, contrariando também o disposto no art. 219º da Constituição da República Portuguesa.
Pelo exposto, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que, em cumprimento do disposto no artº 123º/2 do Código de Processo Penal, ordene a reparação oficiosa da irregularidade e a notificação da acusação à arguida AT- Agropecuária Unípessoal, Lda., na morada constante do TIR, a efectuar pelos serviços da secção judicial de processos, fazendo-se, desta forma.”
Não houve resposta ao recurso.
Neste Tribunal, a Sra. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:
“Compulsados os autos, verifica-se que, com vista à notificação à sociedade arguida AT- Agropecuária Unipessoal Lda. da acusação proferida nos autos lhe foi remetida carta simples com prova de depósito, a qual foi depositada no receptáculo do endereço postal.
Sucede que o endereço para onde foi remetida a carta simples com prova de depósito não coincide com o endereço indicado no Termo de Identidade e Residência, prestado a fls. 15 pela sociedade arguida, representada pelo arguido AC, o qual não coincide com o endereço indicado por este arguido no TIR que ele próprio prestou a fls. 20. Com efeito, no primeiro dos referidos termos de identidade e residência, indica-se como endereço para efeitos do recebimento de notificações a seguinte morada: "Av. JD, 8, r/c Esq, E".
Ora, a notificação por via postal simples apenas pode ter lugar para o endereço constante do TIR (ou outro indicado posteriormente pelo próprio arguido) - artigo- 196°, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal e artigo. 113°, n° 1, al. c) do Código de Processo Penal.
Não o tendo sido (sendo que a sociedade arguida não se confunde com o seu legal representante, são pessoas jurídicas diferentes), não se mostra a sociedade arguida regularmente notificada da acusação proferida nos autos, pelo que não deviam os autos ter sido remetidos à distribuição, dado ser conhecido possível notificar a mesma regulamente da acusação.
A falta de notificação da acusação à arguida configura mera irregularidade, a qual pode ser conhecida pelo juiz aquando do saneamento do processo, nos termos do art. 311º do C. P. P., devendo o acto omitido ser praticado pelo Ministério Público, dado que se trata de um acto de inquérito.
Tal irregularidade tem como consequência a invalidade dos actos subsequentes que ficaram afectados pela mesma, ou seja, além da notificação efectuada por carta com prova de depósito à sociedade, a distribuição dos autos para a fase de julgamento (já que dependentes da regular notificação da arguida).
Assim sendo, e nos termos do disposto no art. 123°, nºs 1 e 2 do C. P. P., a fim de suprir a irregularidade consistente na falta de notificação regular da sociedade arguida, determina-se a remessa dos presentes autos ao DIAP, para que a referida seja regularmente notificada da acusação proferida nos autos (se através de carta simples com PD, no endereço constante do TIR prestado a fls. 15) e após, querendo, requeira a abertura de instrução no prazo que lhe assiste para o efeito.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, a questão a apreciar circunscreve-se a decidir a quem compete ordenar (e fazer cumprir) a notificação da acusação ao arguido, nos casos em que ocorreu distribuição do processo para julgamento sem que essa notificação se ache regularmente efectuada.
Na argumentação do recorrente, a irregularidade cometida, uma vez conhecida oficiosamente pelo Juiz no momento em que profere o despacho a que alude o art. 311º do CPP, é de correcção oficiosa pelo mesmo Juiz, e essa correcção efectua-se pelos serviços da secção judicial.
Esta posição mereceu acolhimento, por exemplo no acórdão TRL de (Rel. Guilhermina Freitas) em que se decidiu: “a Sr.ª Juíza do tribunal a quo pode conhecer oficiosamente da irregularidade relativa à falta de notificação da acusação ao ilustre mandatário do denunciante, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 123.º do CPP na medida em que tal omissão pode vir a afectar a validade de todos os actos processuais posteriores e não se mostra sanada.
(…) Deverá, porém, a Sr.ª Juíza do tribunal a quo ordenar a reparação da irregularidade em causa, da qual conheceu oficiosamente, pelos seus próprios serviços e não ordenar a remessa dos autos aos serviços do MP, como o fez, com essa finalidade, dando sem efeito a distribuição, decisão essa que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz”.
A Sra. Procuradora-geral Adjunta nesta Relação não acompanhou a posição do MP em 1ª instância.
E como bem sinaliza, “é pacífico que estamos perante uma mera irregularidade de conhecimento oficioso, as divergências surgem na definição de quem deve supri-la”.
Prossegue: “Pode o juiz conhecer de tal vício neste momento processual, no âmbito do art. 311º do CPP, ou isso está-lhe vedado? Constatemos que o juiz de julgamento está impedido de se pronunciar quanto à acusação, por mera decorrência do princípio do acusatório. (…) O que se discute é que o MP não notificou o conteúdo da acusação à sociedade arguida na morada adequada, tão só. A inexistência de notificação é uma questão prévia que obsta a conhecer de mérito e que o juiz deve conhecer no momento do art. 311º do CPP. E vendo que a notificação da acusação não foi efectuada, constata o vício processual. Prevê o CPP que a decisão final de inquérito proferida pelo MP – arquivamento ou acusação (arts 277º, nº 3 e 283º, nº 5 do CPP) – que seja este a ordenar essa notificação”.
Conclui, depois, o MP nesta Relação que “a competência para ordenar a notificação da acusação ao arguido ou de suprir qualquer irregularidade que contenda com tal notificação pertence ao MP, como magistratura autónoma e como titular da fase processual em causa”.
Concorda-se com a posição defendida pela Sra. Procuradora-geral Adjunta.
É incontroversa a definição da autoridade judiciária competente para ordenar/efectuar a notificação da acusação ao arguido. O MP encontra-se legalmente vinculado a diligenciar para que seja dado conhecimento ao acusado da acusação que formula. E os autos só são distribuídos para julgamento uma vez notificada a acusação e esgotados os prazos para requerer a instrução, se a ele puder haver lugar.
A competência para notificar a acusação é do MP e não do juiz.
Se detectada depois, por um juiz, no momento da prolação do despacho a que se refere o art. 311º do CPP, a ilegalidade consistente numa notificação irregular – equiparada necessariamente a falta de notificação – deve esse juiz ordenar oficiosamente a reparação da irregularidade, já que ela afecta o valor do acto praticado. É o que resulta do art. 123º do CPP.
Nada obsta a que, nesse caso, a sanação oficiosa da irregularidade possa passar por se providenciar que a autoridade judiciária competente para notificar a acusação ao arguido proceda a essa mesma notificação (não necessariamente por notificar directamente), devolvendo-se os autos ao MP para esse efeito.
Foi este o procedimento que o despacho recorrido adoptou, pelo que não ocorreu violação do art. 123º do CPP, como propugna o recorrente.
Mas argumenta ainda o recorrente que a decisão em crise afecta a estrutura acusatória do processo e o princípio da autonomia do MP, e viola também o art. 219º da CRP.
Do preceito constitucional invocado resulta que “compete ao MP exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade”, gozando de “autonomia nos termos da lei”.
Com todo o respeito por posição contrária, não se vê que a posição adoptada na decisão recorrida colida com o preceito constitucional invocado, pois ela não afecta a autonomia do MP.
A estrutura acusatória do processo pressupõe a existência de uma identidade investigadora e acusadora, por um lado, e de uma entidade julgadora, pelo outro.
É ao MP que compete presidir e dirigir o inquérito, investigando autonomamente a existência de um crime, determinando quem foram os seus agentes e a responsabilidade que lhes cabe, pronunciando-se a final, e deduzindo acusação quando for caso disso.
Compete-lhe a promoção do processo, a direcção do inquérito, a elaboração da acusação. Nestas matérias o juiz não pode intervir e, concretamente, não resulta que nelas se tenha realmente imiscuído.
No caso presente, todos os poderes do MP se mostram exercidos de forma autónoma, sem quebra da separação funcional e institucional entre o Ministério Público e o julgador.
Do que se trata é apenas de viabilizar ao MP que supra a irregularidade que cometeu, diligenciando pela notificação da sua acusação, decisão que elaborou autonomamente.
Como se refere no acórdão do TRE de 21-10-2014 (Rel. Carlos Berguete) “ver no despacho recorrido a violação da autonomia do Ministério Público constitui, salvo melhor opinião, um preconceito sem sentido, uma vez que, ao ordenar a remessa dos autos ao Ministério Público, mais não fez do que acolher essa autonomia, em questão que se prende com a estrita observância das formalidades legais (a notificação da acusação), a que o Ministério Público está sujeito (art. 1.º da Lei n.º 47/86), e não relativa a acto de inquérito que contenda com as finalidades deste previstas no art. 262.º do CPP.
(…) Razões de celeridade e de economia processual não servem, também, para o infirmar, atenta a notória facilidade com que o procedimento omitido pode ser efectuado e sem delongas, mormente em detrimento da decisão de interpor recurso” (no caso presente, o recurso foi interposto há um ano e só agora chegou às mãos da Relatora, para decisão).
E remata-se: “Mediante o despacho sob censura, apenas se tratou de facultar a sanação do vício pela autoridade judiciária que no mesmo incorreu, sem que a sua interpretação, que foi fundamentada, contenda com a estrutura acusatória do processo e a autonomia do recorrente.
Sem prejuízo da merecida consideração pelo seu estatuto, não se configura que lhe assista razão válida para ter enveredado por atribuir ao despacho a natureza de uma ordem e de efeito para além daquele que ao mesmo ficou subjacente.”

4. Face ao exposto, acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de E em:
Julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas.

E, 05.05.2015

(Ana Maria Barata de Brito)

(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)