Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1119/19.0T8STR.E1
Relator: MARIA JOÃO SOUSA E FARO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACTO MÉDICO
PRESUNÇÃO DE CULPA
Data do Acordão: 01/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I- A perfuração do intestino no decurso da realização de um exame de colonoscopia, exame médico objecto de um contrato de prestação de serviços médicos sem finalidade curativa, constitui, só por si, um acto ilícito, violador da integridade física do apelante;
II- Uma vez que tal exame foi ajustado com o hospital no qual o apelado exerce a sua actividade, esta ligação intrínseca significa que o regime aplicável às consequências dessa execução deve ser o regime da responsabilidade contratual; aliás, dificilmente se poderá sustentar que a protecção da integridade física do paciente não integra o âmbito de protecção de um contrato de prestação de serviços médicos.
III- Aplicando à responsabilidade civil por acto médico o regime geral da responsabilidade contratual impende sobre o prestador de serviços médicos uma presunção de culpa, por via do disposto no art.º 799º, nº1 do Cód. Civil, que lhe cumpre ilidir caso se pretenda eximir da sua obrigação de indemnizar o lesado.
IV- Ainda que estivesse ciente de que tal exame comporta risco de perfuração do intestino e o tivesse aceite, necessário era que se tivesse apurado, no caso concreto, ter tal evento ocorrido por determinadas circunstâncias alheias à perícia do próprio médico;
V – Aliás, não constitui causa de exculpação a demonstração singela de que, na sequência de um determinado tipo de cirurgia, ocorre uma franja de casos em que se produzem determinadas sequelas no paciente (percentagem racional de risco típico). A estatística em causa nada esclarece sobre a proporção que, dentro dessa percentagem de risco, deve ser imputável a uma deficiente aplicação da técnica cirúrgica. Caberá sempre apurar a causa efectiva de tais sequelas.
(Sumário pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO
1. A. intentou contra B…, médico da Clínica Instituto Médico Scalabitano, acção declarativa pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização no valor de € 71.600,00, por danos patrimoniais e não patrimoniais.
Alegou, para o efeito, que era doente do R. e que este lhe prescreveu terapêutica de colonoscopia a ser levada a efeito na Clínica Instituto Médico Scalabitano. No dia 24.06.2016, submetido a colonoscopia realizada pelo R., este perfurou-lhe o intestino por não ter sabido utilizar os instrumentos de corte dos pólipos que estava autorizado a remover. Em consequência da lesão, teve de ser operado no Hospital de Santarém, que lhe determinou 35 dias de doença, com impossibilidade de desempenhar as tarefas quotidianas, ficando acamado e sem fala, dependente de terceiro e sofrendo dores e angústia persistente.
Citado, o R. apresentou contestação impugnando os factos alegados pelo A. e requerendo a intervenção da Companhia de Seguros Ageas, S.A.
Admitida a intervenção a título principal da Companhia de Seguros Ageas, S.A., veio esta apresentar contestação, impugnando os factos e aderindo à contestação do R., alegando que o capital seguro tem o limite de € 150.000,00.

Realizado julgamento, foi, subsequentemente proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu o Réu do pedido.

2. É desta sentença que recorre o Autor, formulando, na sua apelação, as seguintes (extensíssimas) conclusões:
i. O A. foi sujeito a exame colonoscópico realizado pelo R.
ii. O exame (colonoscopia) foi prescrito por outro clínico que não o R. (artº 4 da contestação)
iii. O A. agendou no Instituto Médico Scalabitano a realização da intervenção colonoscopia. (artºs 9 e 24 da contestação)
iv. O R. colabora com o Instituto Médico Scalabitano onde realiza colonoscopias. (artºs 10, 12 e 22 da contestação)
v. No dia 21.04.2016, o A. foi submetido à colonoscopia levada a cabo pelo R. (artº 4 da petição inicial)
vi. Na data do agendamento da intervenção para além de ser fornecida a informação relativa ao exame e respetiva preparação foi também fornecido termo escrito de consentimento para que o doente pudesse analisar esta informação com tempo. (artº 25 da contestação)
vii. O R. apenas viu o A. no dia 21 de abril de 2016, data de realização do exame. (artº 26 da contestação)
viii. O R., antes de realizar o procedimento, explicou ao A. o procedimento, os riscos do mesmo. (artº 29 da contestação)
ix. O A. foi informado sobre os riscos de perfuração, hemorragia, infeção, entre outros, bem como sobre o modo de reconhecer essas eventuais complicações, e ainda da possibilidade de execução de biópsias ou polipectomias. (artºs 41 e 42 da contestação)
x. Após estas informações, foi solicitado ao A. que assinasse o termo de consentimento informado (artºs 33 e 44 da contestação)
xi. Após a fase de informação e esclarecimentos seguiu-se o posicionamento, a sedação anestésica e a realização da colonoscopia. (artº 46 da contestação)
xii. A realização do exame decorreu sem quaisquer intercorrências o mesmo sucedendo imediatamente após o mesmo. (artº 47 e 48 da contestação)
xiii. O procedimento foi acompanhado pelo Dr. B…, por um anestesista e por uma enfermeira. (artºs 34 e 35 da contestação)
xiv. No procedimento foram encontrados dois pólipos, com pedículos grossos, que foram retirados - foi realizada a polipectomia para a qual havia consentimento, e encaminhados para biópsia. (artºs 37, 38 e 39 da contestação)
xv. O A. deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital Distrital de Santarém em 26.04.2016, onde lhe foi diagnosticado pneumoperitoneu, assumindo-se perfuração coberta de víscera oca, no contexto de colonoscopia recente. (artº 6 da petição inicial – parte)
xvi. O A. ficou internado no Serviço de Cirurgia até 02.05.2016, para vigilância clínica e antibioterapia empírica de largo espectro, tendo realizado RX abdominal e TAC abdominal e pélvico, com evolução favorável e sem intercorrências. (facto provado ao abrigo do artº 607º, nº 4, CPC)
xvii. Por via da lesão cirúrgica que o R. determinou ao A., teve este de ser operado depois no Hospital de Santarém.
xviii. A doença subsequente e inevitável, perante a nova cirurgia determinou ao A. 35 dias de doença, com incompatibilidade para as tarefas quotidianas que lhe cabiam no lar.
xix. E, no final, ficou o A. inválido, acamado, sem fala, nem poder cuidar de si.
xx. Situação que se iniciou em 24.04.2016 e em que ainda se encontra presentemente.
xxi. Tratando-se de uma má prática médica nas manobras de remoção de pólipos a que o A. procedeu através da colonoscopia.
xxii. Com efeito, o R. não usou os cuidados protocolares e comummente aceites para se evitar a perfuração intestinal.
xxiii. Ademais, limitou-se no final do exame a relembrar ao A. que seguisse para o Hospital de Santarém, acaso sentisse dores e tivesse hemorragias.
xxiv. Foram, aliás, estes sintomas que levaram o A. a recorrer ao Hospital público.
xxv. O R. é um clínico experimentado e só por debilidade de atenção e cuidado do R. é que provocou a perfuração intestinal acima indicada.
xxvi. O R. infringiu a legis artis.
xxvii. Desse ato medico, colonoscopia, realizado pelo R. resulta que causou ao A. penumoperitoneu, assumindo-se perfuração coberta de víscera oca, no contexto de coloscopia recente. (cfr. Nota de alta de 24/05/2016, emitida pelo Hospital Distrital de Santarém)
xxviii. Apresentou também o A. hemiparesia em evolução e vómitos com dois dias de evolução, tudo como consta da Nota de Alta de 24/05/2016 de fls. , junta aos autos.
xxix. Dos autos constam diversos episódios de urgência do recorrente subsequentes à intervenção realizada pelo R. que estão àquela relacionados.
xxx. Da decisão sob recurso não resulta provado que as consequências que advieram para o recorrente foram causa direta e necessária do mau procedimento do R. ou seja de erro medico.
xxxi. A verdade é que no caso em apreço verifica-se a inversão do ónus da prova quanto ao acto médico.
xxxii. Competia ao R. e não ao A. demonstrar que tinha na intervenção realizada ao A. cumprido com todos os procedimentos que lhe eram impostos pelas boas práticas médicas (legis artis) o que não logrou demonstrar.
xxxiii. Na prestação de serviços médicos por hospital privado, com escolha de médico pelo paciente, existe um vínculo contratual entre o hospital e o paciente e entre este último e o médico por si escolhido.
xxxiv. Em acto médico do qual resultaram danos na integridade física do paciente existe um concurso aparente entre a responsabilidade civil aquiliana ou extracontratual e a responsabilidade contratual; Ainda assim, o regime aplicável será o da responsabilidade contratual por ser, em regra, o que se apresenta como o mais favorável ao lesado/doente.
xxxv. No âmbito de contrato de prestação de serviços médicos, com fins curativos ou terapêuticos, a obrigação do médico é, via de regra, uma obrigação de meios;
xxxvi. Destarte, para a verificação do pressuposto de ilicitude não basta ao lesado demonstrar a não verificação ou a desconformidade do resultado almejado, sendo mister a demonstração de que o médico incumpriu as «leges artis» concretamente aplicáveis ao caso.
xxxvii. Se a prestação de serviços médicos se reconduz à realização de um exame – colonoscopia -, é de considerar verificado o pressuposto da ilicitude quando a lesão sofrida (perfuração cólica) seja em altíssimo grau estranha ao cumprimento do fim do contrato (probabilidade inferior a 1%) e a sua gravidade resulte desproporcionada quando comparada com os riscos normais para o lesado, inerentes àquela concreta intervenção ou acto médico.
xxxviii. Nas sobreditas circunstâncias, o consentimento informado do doente (o conhecimento de risco de perfuração cólica) não exclui a ilicitude do acto médico, pois que o consentimento não abrange a lesão física perpetrada.
xxxix. Verificada a ilicitude, por força do preceituado no art. 799º, n.º 1 do Código Civil incumbe ao médico afastar a presunção de culpa, comprovando que os procedimentos adoptados eram os exigidos pelas «legis artis» aplicáveis ao caso ou que a lesão sobreveio por causa de força maior e/ou facto imputável ao lesado.
xl. Ora, a factualidade precedentemente elencada é, em nosso julgamento, por si só, bastante para que possa dizer-se, com segurança, que estamos em face de um contrato consensual celebrado entre o Autora e o R., que lhe prestou o consequente serviço de saúde (intervenção médica – colonoscopia), actuando, pois, este no cumprimento de tais serviços de saúde
xli. Como assim, juridicamente, a relação médico-doente deverá ser enquadrada na figura conceitual do contrato – negócio jurídico constituído por duas ou mais declarações de vontade, de conteúdo oposto, mas convergente, ajustando-se na comum pretensão de produzir resultado unitário, embora com um significado para cada parte.
xlii. E isto porque se verificam, aqui, todos os seus elementos: - de um lado, a manifestação da vontade do doente no sentido de lhe ser prestada assistência médica, com os respectivos serviços de internamento e/ou acompanhamento por profissionais de saúde, e/ou de ser observado e tratado pelo médico no seio de instituição hospitalar (clinica); do outro, a aceitação, por parte destes últimos, desses encargos, comprometendo-se a desenvolver a actividade idónea para atingir essa mesma finalidade convergente.
xliii. É certo, diga-se, que, nesta matéria, a jurisprudência tem reiteradamente afirmado que, se no caso confluírem a violação de um direito subjectivo absoluto (saúde ou integridade física) e a violação de deveres contratuais emergente do contrato de prestação de serviços médicos, se pode colocar a possibilidade de concurso entre o quadro normativo da responsabilidade contratual e da responsabilidade extracontratual, assistindo, pois, ao paciente/lesado a faculdade de aproveitar as soluções de cada regime (responsabilidade contratual ou responsabilidade extracontratual), conforme lhe aprouver e se mostre, em concreto, mais vantajoso para a salvaguarda dos seus interesses.
xliv. Neste sentido, como se refere no AC STJ de 22.09.2011, «estando em causa direitos absolutos, como de integridade física, põe-se a questão de saber se não concorrem na negligência médica a responsabilidade contratual e a extracontratual. (…) [e]xiste, por isso, um concurso aparente de normas, que deve ser resolvido pela prevalência da responsabilidade contratual, por ser a mais adequada para a defesa dos interesses do lesado.»
xlv. Como assim, sem prejuízo de tal concurso da responsabilidade extracontratual e contratual, a doutrina e a jurisprudência sempre considera este último regime como o aplicável por se mostrar «mais conforme ao princípio geral da autonomia privada e por ser, em regra, mais favorável ao lesado.
xlvi. Com efeito, este último regime mostra-se mais favorável ao lesado não só em matéria de culpa (pois que, ao contrário do que sucede na responsabilidade extracontratual – art. 487º, n.º 1 do Cód. Civil -, se presume a culpa do devedor – art. 799º do Cód. Civil), como, ainda, em matéria de prazo de prescrição (que, em matéria de responsabilidade contratual, é de vinte anos, ao passo que no âmbito da responsabilidade extracontratual é, via de regra, de três anos – arts. 309º e 498º, n.º 1 do Cód. Civil), ou, ainda, em matéria de responsabilidade por actos de auxiliares, atenta a diversidade de regimes (e de prova) que resulta do preceituado nos arts. 500º [aplicável em sede de responsabilidade extracontratual] e 800º [aplicável em sede de responsabilidade contratual], ambos do Cód. Civil.
xlvii. Destarte, e para concluir, quanto à natureza da responsabilidade médica deverá ter-se por assente que a mesma assume, pois, via de regra, a natureza de responsabilidade contratual, consumindo a responsabilidade extracontratual que poderá também concorrer no caso, posição que, no caso vertente, se perfilha, sendo certo que, «in casu», além da questão do incumprimento contratual (na perspectiva de cumprimento defeituoso) se coloca, ainda, a questão da ofensa da integridade física do A., atenta a comprovada perfuração verificada neste último e das subsequentes complicações ao nível da sua saúde.
xlviii. A inexecução da prestação contratual, como violação do contrato, é um acto ilícito, elemento integrante da responsabilidade contratual.
xlix. No domínio desta responsabilidade, como já antes se referiu, presume-se a culpa, mas, na falta de norma que o permita, o mesmo não acontece relativamente aos restantes requisitos da responsabilidade civil, designadamente a ilicitude.
l. Deste modo, quando o médico privado ou a entidade privada prestadora de cuidados de saúde, por causa que lhe seja imputável, não efectue, ou efectue defeituosamente, a prestação de cuidados a que se obrigou, causando danos ao doente, credor dessa prestação, por regra, constitui-se na obrigação de reparar o prejuízo causado – cfr. arts. 798º e 562º, ambos do Cód. Civil.
li. Como assim, é preciso que o facto do não cumprimento (acção ou omissão) se revista de ilicitude, a qual, no domínio da responsabilidade contratual, se traduz numa relação de desconformidade entre o comportamento devido, que seria necessário para a realização da prestação devida, e o comportamento tido pelo agente (art. 762º do Cód. Civil).
lii. Para além desta desconformidade em que se traduz a ilicitude, é necessário, ainda, que o devedor tenha actuado com culpa, isto é, de forma subjectivamente censurável; Em termos gerais, ter agido culposamente significa ter o devedor actuado de tal forma que a sua conduta lhe deva ser pessoalmente censurada e reprovada. A conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas do caso, se conclua que ele podia e devia ter agido de outro modo.
liii. Esta censura pode ter lugar a título de dolo ou sob a forma de negligência.
liv. O dolo implica uma adesão consciente da vontade do devedor ao não cumprimento da obrigação.
Lv. O devedor sabe que a sua conduta activa ou omissiva provocará o não cumprimento da obrigação e, mesmo assim, não a modifica, porque quer ou aceita esse resultado. Na culpa sob a forma de negligência, a censura funda-se na circunstância de o devedor não ter agido com o cuidado, com a diligência, com o zelo exigíveis para executar a conduta que é necessária ao cumprimento do seu dever contratual.
lvi. No que se refere em específico aos médicos, o que, logicamente, é extensível às próprias unidades privadas de prestação de cuidados de saúde em geral, pode afirmar-se que eles «estão obrigados para com os seus doentes, quer pelos específicos deveres que resultam do contrato com eles celebrado, quer de um genérico dever de cuidado e tratamento que a própria deontologia profissional lhes impõe. Espera-se dos médicos, enquanto profissionais, que dêem provas de um razoável e meridiano grau de perícia e competência (…). Sempre que tal perícia e cuidado não são postos em prática, em termos de ser prestado um tratamento errado ou ser omitido o tratamento adequado, estamos perante uma actuação negligente.»
lvii. O médico ou a entidade prestadora de cuidados de saúde deve, pois, exercer a sua actividade ou profissão com o maior respeito pelo direito à saúde dos doentes e da comunidade e deve ter sempre um comportamento profissional adequado à dignidade da sua profissão, obrigando-se – quando aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente – à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a saúde, suavizar os sofrimentos e prolongar a vida, no pleno respeito pela dignidade do ser humano.
Por outras palavras: deve ter sempre o cuidado de conservar a vida humana, estando obrigado a prestar ao doente os cuidados de saúde ao seu alcance, de acordo com os seus conhecimentos e o estado actual da ciência médica, por forma a preservar-lhe, na medida que seja possível, a saúde.
lviii. O cumprimento de tais deveres reporta-se, como é bom de ver, sobretudo com as denominadas «leges artis», entendidas estas como o conjunto de regras da arte médica, isto é, das regras reconhecidas pela ciência médica em geral como as apropriadas à abordagem de um determinado caso clínico, na concreta situação em que tal abordagem ocorre.
lix. Neste mesmo sentido, refere VERA LÚCIA RAPOSO, que as «leges artis» se traduzem nos métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a «standards» contextualizados de actuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica como os mais adequados e eficazes.»
lx. Em face das precedentes considerações, dir-se-á, pois, que ter o médico ou a unidade de prestação de cuidados e saúde agido culposamente significa que, perante as circunstâncias concretas do caso, podia e devia ter actuado de modo diferente. Diversamente, a actuação já não será culposa quando, consideradas essas mesmas circunstâncias, ele não possa ser reprovado ou censurado por ter actuado como actuou.
lxi. O ponto de partida para qualquer acção de responsabilidade por prestação de serviços de saúde ou médicos é, pois, o da desconformidade da concreta actuação do agente no confronto com aquele padrão de conduta medianamente profissional que um médico ou um profissional da área da saúde medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e/ou profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes, na mesma data. Este padrão de conduta será, no entanto, mais exigente se o médico é um especialista na área respectiva ou lhe é reconhecida uma especial competência técnica.
lxii. Assim, em tese geral, a culpa deve ser apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, nos termos do art. 487º, nº 2, aplicável ex vi do art. 799º, nº 2, ambos do Cód. Civil, o que significa que se trata de uma apreciação não em concreto, tendo em vista o comportamento habitual do lesante, mas sim em abstracto, sendo que as consequências que advieram para o A. não são comuns nem habituais neste tipo de procedimentos a que o A se sujeitou.
lxiii. Destarte, para se averiguar se o agente agiu com culpa, compara-se a sua conduta com a que teria um bom pai de família, que é um homem totalmente abstracto.
Mas no funcionamento ou aplicação prática do critério, releva fazer a distinção entre circunstâncias externas e internas e indagar como teria procedido um bom pai de família colocado nas mesmas circunstâncias externas e só nessas em que procedeu o agente; Se um bom pai de família, nas mesmas circunstâncias concretas externas, tivesse procedido de outro modo, a conduta do agente será errada e haverá culpa.
lxiv. Como tal, também no domínio da responsabilidade por prestação de cuidados de saúde ou responsabilidade médica a culpa, em geral, é aferida pelo zelo, pelas qualidades, pelo discernimento que, em cada caso concreto, teria tido um médico ou outro profissional desta área, normalmente competente e cuidadoso, um profissional que, sem ter de ser excepcionalmente competente, atinja, pelo menos, o nível médio dos da sua classe.
lxv. Daí que deva agir de acordo com o cuidado, a perícia e os conhecimentos compatíveis com os padrões por que se regem os médicos sensatos, razoáveis e competentes do seu tempo», exigindo-se-lhe que actue com aquele grau de cuidado e competência que é razoável esperar de um profissional do mesmo ofício, agindo em semelhantes circunstâncias.
lxvi. Por conseguinte, actuará com negligência, cumprindo defeituosamente a sua obrigação, o médico ou instituição prestadora de cuidados de saúde que não exercite todo o seu zelo, nem ponha em prática toda a sua capacidade técnica e científica na execução das suas tarefas para proporcionar a cura ao doente ou para lhe proporcionar os serviços acordados.
lxvii. No tocante, ainda, ao apuramento do incumprimento, importa destrinçar, também, no domínio específico da responsabilidade civil médica, a obrigação de meios e a obrigação de resultado.
lxviii. Com efeito, não obstante o interesse desta distinção ser cada vez mais objecto de reservas por parte da doutrina e da jurisprudência [sustentando-se que, mesmo nas obrigações de meios, sempre existe a vinculação a uma prestação e a um fim, correspondente ao interesse do credor, certo é que, a nosso ver, no domínio da responsabilidade civil médica, a aludida distinção assume particular relevo.
lxix. Segundo a aludida classificação, nas prestações de resultado, o devedor vincular-se-ia efectivamente a obter um resultado determinado, respondendo por incumprimento se esse resultado não fosse obtido. Nas prestações de meios, o devedor não estaria obrigado à obtenção do resultado, mas apenas a actuar com a diligência necessária para que esse resultado seja obtido, não respondendo, pois, pela não obtenção do resultado, desde que lograsse demonstrar ter empregue todo seu melhor empenho ou diligência para o obter, ainda que fracassando na consecução do resultado almejado.
lxx. Como refere L. MENEZES LEITÃO, op. e loc. cits., «o interesse da distinção, em termos de regime, resulta na forma de estabelecimento do ónus da prova. Nas obrigações de resultado, bastaria ao credor demonstrar a não verificação do resultado para estabelecer o incumprimento do devedor, sendo este que, para se exonerar de responsabilidade, teria que demonstrar que a inexecução é devida a uma causa que não lhe é imputável. Pelo contrário, nas prestações de meios não é suficiente a não verificação do resultado para responsabilizar o devedor, havendo que demonstrar que a sua conduta não correspondeu à diligência a que se tinha vinculado.»
lxxi. Ora, temos por inquestionável que a execução de um contrato de prestação de serviços médicos consubstancia, por regra, uma obrigação de meios, embora possa, em alguns casos, excepcionais, assumir- se como uma obrigação de resultado.
lxxii. Com efeito, «o corrente, na prática, é o acto médico envolver da parte do médico, enquanto prestador de serviços que apelam à sua diligência e ciência profissionais, a assunção de uma obrigação de meios».
lxxiii. Neste sentido, é «communis oppinio» na doutrina e na jurisprudência que a obrigação contratual assumida pelo médico é, em princípio, uma obrigação de meios, pois que o simples facto de o doente não ter obtido a cura que almejava (e que o médico procurou alcançar com recurso às melhores técnicas e sua melhor diligência/prudência) não prova a responsabilidade do médico, cabendo àquele demonstrar que o processo que visava obter a cura não foi conduzido com a adequada diligência, isto é, foi levado a cabo com violação das regras ou procedimentos que a ciência médica tem, à data da intervenção ou do tratamento aplicado, como adequados ao caso específico - «leges artis».
lxxiv. A obrigação do médico, em termos gerais, consiste, de facto, em prestar ao doente os melhores e mais adequados cuidados ao seu alcance, de acordo com a sua aptidão profissional e em conformidade com as «leges artis» e os conhecimentos científicos actualizados e comprovados ao tempo da prestação, no intuito de lhe restituir a saúde, suavizar o sofrimento e salvar ou prolongar a vida. Nesta fórmula ampla se compreende toda a actividade profissional, intelectual ou técnica que tipicamente se pode designar por «acto médico.»
lxxv. Dito de outro modo: o médico não assegura, nem pode assegurar, ao menos em princípio, a cura da enfermidade do paciente, tanto mais que tal cura não depende, apenas, de intervenção médica, mas também de vários factores endógenos e exógenos, entre os quais relevam designadamente, a resistência do doente, a sua capacidade de regeneração e o estado geral do seu organismo.
lxxvi. Então, o médico erra não quando não atinge o resultado da cura ou da atenuação do mal ou do sofrimento do paciente, mas quando não utiliza com diligência, perícia e consideração as técnicas e conhecimentos reconhecidos pela ciência médica, para o concreto caso clínico, que definem, em cada momento, as «leges artis».
lxxvii. Como assim, incumbirá, pois, ao doente, na ausência de uma qualquer presunção de ilicitude – que não existe, pois que a presunção se refere apenas e só à culpa (art. 799º, n.º 1 do Cód. Civil) - o «burden of proof» da invocada inexecução contratual por parte do médico, através da demonstração da violação, no caso em apreço, das «leges artis» aplicáveis, demonstração esta que, enquanto elemento constitutivo do instituto da responsabilidade civil (contratual) imputável ao médico ou à entidade prestadora de serviços médicos, lhe incumbe fazer.
lxxviii. Foi este, aliás, o posicionamento do Tribunal recorrido, como já se referiu, no seguimento daquela que é a posição pacífica do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito das intervenções médicas com fim curativo ou terapêutico.
lxxix. Todavia, não pode este Tribunal perfilhar o entendimento sufragado pelo Tribunal recorrido, pois que, segundo cremos, ele parte do equívoco de que a situação dos autos se integrará na denominada intervenção médica para fins terapêuticos ou curativos, quando, a nosso ver, tal não sucede no caso vertente.
lxxx. De facto, como se alcança da factualidade provada, o ora A. efectuou o exame de colonoscopia para um qualquer fim terapêutico ou curativo, isto é para debelar ou minorar com tal exame algum problema de saúde de que padecesse, mas antes em regime de consulta de acompanhamento.
lxxxi. De facto, nesta sede, segundo cremos, será mister distinguir a intervenção curativa ou assistencial (em que a mesma, de per si, constitui o meio necessário do ponto de vista da cura de uma doença ou de um problema de saúde do paciente, antes determinado por meio de diagnóstico) de um exame, que se esgota em si mesmo enquanto meio de diagnóstico, para através da sua análise e interpretação, ser possível determinar a doença ou enfermidade de que padece o doente, tendo em vista o seu posterior tratamento.
lxxxii. Com efeito, como se refere no AC STJ de 12.03.2015, antes citado, o diagnóstico consiste na determinação da enfermidade do paciente, na análise das suas características e causas, com vista a alcançar um conhecimento sobre o estado do doente, o mais amplo possível à utilidade que visa, quer se trate de medicina curativa ou de medicina preventiva, ou seja, destina-se a conhecer ou determinar “uma doença pelos sintomas e ou mediante exames diversos (radiológicos, laboratoriais) “, constituindo, pois, tais exames um resultado em si mesmo, ainda que o seu fim seja permitir, com plena informação, uma posterior actuação curativa ou assistencial sobre o paciente.
lxxxiii. Em suma, e abreviando, como se refere no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.10.205, citado pelos apelantes, e cuja lição ora se segue – não obstante as críticas que lhe são endereçadas no douto parecer junto aos autos pelo apelado - em que estava em causa – como ora sucede - a realização de um exame de colonoscopia, «… Pese embora se venha apontando a necessidade de, no domínio da responsabilidade civil por acto médico, se ultrapassar a distinção entre a responsabilidade civil contratual e a responsabilidade civil extracontratual e as inerentes diferenças de regime, a circunstância de vir provado que, entre as partes, foi firmado um contrato destinado à realização de um exame médico – i.é um contrato de prestação de serviços médicos -, sem finalidade curativa, simplifica a discussão sobre a qualificação jurídica da responsabilidade do réu e, no mesmo passo, inutiliza a caraterização da obrigação assumida por este perante a autora como obrigação de meios ou de resultado, pois que aquele aceitou e executou a obrigação de realizar a colonoscopia e dar a conhecer o respectivo resultado.»
lxxxiv. É óbvio que, a circunstância de o exame ter uma finalidade curativa ou terapêutica não exclui ou afasta que o médico tenha que, na sua realização, dar estrito cumprimento às «leges artis» - como, infundadamente se colhe no douto parecer, do teor do aludido aresto do Supremo -, sob pena de incorrer em responsabilidade civil!
lxxxv. O cumprimento das «leges artis» é aplicável quer esteja em causa uma intervenção curativa ou não e quer esteja em causa uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado.
lxxxvi. Com efeito, o que se colhe do dito acórdão do Supremo é que, no caso específico (como aqui também sucede), por estar em causa um contrato de prestação de serviços médicos, com fins terapêuticos ou curativos, a obrigação do médico não era de meios – como sucede nos casos mais comuns de prestação de serviços médicos - mas antes de resultado (realização do exame contratado e a entrega dos respectivos resultados para posterior definição de [eventual] ulterior intervenção curativa ou terapêutica), não sendo exigido ou sequer suposto, em condições normais, que para o cumprimento de tal resultado se viesse a verificar a lesão física que sobreveio – perfuração cólica.
lxxxvii. E, como se antevê do por nós já antes exposto, esta posição do Supremo no caso vertente é, de facto, pelas razões aduzidas, de subscrever, tanto mais que a situação de que versam os presentes autos é muitíssimo similar a que versou o aludido aresto.
lxxxviii. Com efeito, como ali se escreve, e com a devida vénia aqui se reproduz, atenta a similitude do caso vertente, «… Na verdade, a perfuração do intestino ocorreu durante e por causa da execução do contrato destinado à realização de um exame médico; (…), a verdade é que objectivamente ocorreu uma lesão da integridade física da autora, não exigida pelo cumprimento do contrato; a ilicitude está verificada.»
lxxxix. E, ainda, prossegue o douto aresto, «… com esta afirmação quer-se dizer que, em si mesmo, o exame foi uma intromissão na integridade física, natural e necessariamente consentida e pretendida pela autora; assim sucederá, em regra, com os exames médicos. Mas esse consentimento ou pretensão da autora não abrange a lesão em discussão neste processo.»
xc. De facto, estando em causa a realização de um exame que supõe um actuação invasiva do corpo da Autora, naturalmente que esta última, consentindo, como consentiu, na realização do exame em apreço, consentiu numa lesão da sua integridade física. Mas o seu consentimento não abrange a lesão física que, em termos de normalidade ou previsibilidade, não é exigida para a realização do aludido exame e cumprimento do contratado e que, assim, se apresenta como ilícita.
xci. Neste sentido, refere-se também no Acórdão desta Relação de 26.01.2016, que «considera-se verificado objectivamente o pressuposto da ilicitude quando ocorra uma lesão da integridade física do lesado que seja completamente estranha ao cumprimento do contrato e cuja gravidade resulte desproporcionada quando comparada com os riscos normais para a saúde do lesado inerentes àquela concreta intervenção.»
xcii. De facto, se a intervenção não apresenta complexidades significativas – como sucede com uma colonoscopia, pois que é uma intervenção extremamente recorrente (diária), que é efectuada em muito reduzido espaço de tempo, que não exige sequer internamento, com alta do paciente no próprio dia e algum tempo após a sua realização (ainda que acompanhado de terceira pessoa) -, se a mesma tem um risco baixíssimo de complicações, nomeadamente de perfuração cólica - inferior a 1%, situando-se em cerca de 0,1% a 0, 8% (vide facto provado em 53.) -, caso ela desemboque num dano que supostamente não devia ter ocorrido e, sobretudo, num dano com a gravidade que a factualidade provada nos autos bem espelha, tudo leva a crer – em termos de lógica dos acontecimentos – que tal sucedeu, não por força da particular complexidade do acto médico (que não foi sequer invocada) ou dos riscos que estão associados (que são muitíssimo reduzidos, praticamente nulos, como se vê da percentagem antes exposta), mas devido a uma alguma falha no procedimento de quem a praticou.
xciii. Como assim, em tais hipóteses, como é, em nosso julgamento, o caso dos autos, e na esteira da jurisprudência antes invocada, justifica-se que, demonstrada a ilicitude, sejam já o médico ou o Hospital, pela sua proximidade com os factos e com os meios de prova, a demonstrarem o que, de facto, ocorreu na execução da intervenção e, em particular, a demonstrarem os factos que permitam afastar a sua culpa presumida, como decorre do previsto no art. 799º, n.º 1 do Cód. Civil.
xciv. Por outro lado, ainda, também não evidencia a mesma factualidade quais os procedimentos concretamente levados a cabo pelo R. durante a colonoscopia em causa, e, por conseguinte, que os procedimentos ou «leges artis» tenham ou não sido observados ou que o mesmo tenha actuado ou não com toda a diligência e cuidado que lhe eram exigidos na realização do sobredito exame.
xcv. Em suma, não existe a prova de uma qualquer causa de exclusão da culpa, força maior, facto do lesado ou um qualquer outro facto explicativo do evento, o qual, repete-se, se apresenta como radicalmente desproporcionado no contexto do cumprimento do exame de colonoscopia de que versam os autos.
xcvi. Destarte, perante a dúvida sobre o ocorrido, e face à aplicação da presunção que decorre do n.º 1 do art. 799º do Cód. Civil, a culpa do R., que efectuou a colonoscopia em apreço, é de presumir. A este caberia, assim, como se referiu, ilidir essa presunção (art. 344º, n.º 1 do Cód. Civil), demonstrando que concretos procedimentos adoptou, a adequação de tais procedimentos às «leges artis» aplicáveis no caso e os actos que concretamente praticou para evitar a perfuração ocorrida.
xcvii. Não o tendo cumprido, como não cumpriu, todos os pressupostos da obrigação de indemnizar se devem ter por verificados.
xcviii. Já no que tange aos danos efetivamente verificados na esfera jurídica do A. e os mesmos ficaram também demonstrados, como resulta do teor do documento clinico de fls.94, denominado Oficio de Acesso a Dados Pessoais de Saúde, de onde consta que o A. sofreu fruto da intervenção realizada pelo R. e reportado à data de 3 de junho de 2016, “reforço do Episódio de Pneumoperitoneu, em possível relação com perfuração em Colonoscopia.”
xcix. E foi esse episodio de Pneumoperitoneu que lhe retirou a mobilidade tendo o A. passado estar acamado como resulta do depoimento de parte do A. (…). (vide depoimento de parte do A.)
c. Os danos sofridos pela conduta do R. legitimam o A. a peticionar ver ser-lhe paga a quantia peticionada de €.71.600,00 Euros, acrescida de juros de mora vencidos – contados da data da citação – até integral pagamento – e bem assim juros vincendos – ainda que tal responsabilidade possa estar transferida para a R. seguradora.
ci. Em síntese, e finalizando, como se refere no AC STJ de 1.10.2015, que uma vez mais se cita pela sua notória proximidade com a situação dos autos, «Na dúvida, presume-se a culpa; e, estando provados os demais pressupostos da responsabilidade civil, como estão, o pedido de indemnização tem de proceder.» Recordem-se os danos que constam da lista de facto provados e a prova do nexo naturalístico de causalidade entre a colonoscopia e a perfuração (vide facto provado em 19.) e entre esta última e os ulteriores danos, em particular as subsequentes cirurgias a que o A. foi submetido.
cii. Com efeito, como escreve VAZ SERRA, o devedor que se aproveita de auxiliares no cumprimento, fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos factos dos auxiliares, que são apenas um instrumento seu para o cumprimento.
ciii. Neste sentido, como refere L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 261: «Os pressupostos de aplicação do art. 800º são bastante diferentes dos pressupostos do art. 500º. Assim, em primeiro lugar, não se exige uma relação de comissão entre o devedor e o representante legal ou auxiliar, bastando o próprio vínculo da representação legal (…) ou a mera utilização do terceiro para a realização da prestação debitória.»
civ. Pela ausência de prova pelo R. de que cumpriu todos os procedimentos a que estava adstrito, recai sobre o R., sempre, a presunção de culpa já supra descrita, pelo que terá de indemnizar o A. pelos danos por este sofridos.
cv. Nesse sentido vide Acórdão Tribunal da Relação do Porto de 27/3/2017, processo Nº. 7053/12.7TBVNG.P1, JORGE SEABRA, www.dgsi.pt
cvi. A decisão sob registo violou o disposto nos artigos 309º, 344º, nº.1, 487º, nº.1, 498º, nº.1, 500º, 562º, 762º, 798º, 799º e 800º, todos do Código Civil.
cvii. Deveria a decisão sob recurso ter julgado a presente ação procedente e em consequência, face à ausência de outra prova, condenar os RR. no pagamento da quantia de €.71.600,00 Euros acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos até integral pagamento.
Termos em que, deve a sentença sob recurso ser revogada e, em consequência, ser lavrado acórdão que condene os RR. no pagamento da quantia peticionada de €.71.600,00 Euros acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos até integral pagamento.
Assim se fazendo, Justiça.

3. Contra-alegou o R., concluindo a sua peça nos seguintes termos:
1. O Tribunal a quo andou bem, porquanto sempre teria de se concluir que não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil como aliás concluiu.
2. Não estão preenchidos os pressupostos da ilicitude e culpa.
3. Não há nexo causal,
4. Não há dano.
5. O exame realizado – colonoscopia – não encerra em si mesmo uma qualquer obrigação de resultado no sentido que o Recorrente lhe pretende dar;
6. A simples asserção de que o ato médico de cariz diagnóstico – sendo que no caso em apreço para além de diagnóstico o ato tem também um intuito terapêutico ao realizar a retirada de pólipos - em causa é, independentemente das circunstâncias concretas, uma obrigação de resultado e, como tal, a ocorrência de uma perfuração configura per si um ato ilícito (desconsiderando o consentimento informado prestado e o risco específico do mesmo), traduz uma perversão dos princípios básicos do direito tradicional da responsabilidade civil aquiliana e contratual, transformando-a em responsabilidade pelo risco ou por factos lícitos danosos que neste circunspecto não está previsto no ordenamento jurídico português.
7. Subverter as regras legais estipuladas, como o Recorrente faz, coloca em causa a segurança jurídica quando as normas devem ser dotadas de fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência para que “o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios atos”;
8. O exame realizado ao Autor não pode ser considerado um vulgar exame de rotina já que, na realidade, foi prescrito pelo seu médico de família atendendo às queixas apresentadas pelo Autor;
9. Toda a atividade médica comporta quase sempre uma certa álea que resulta da existência de um conjunto de fatores externos imprevisíveis ou incontroláveis que impossibilita o médico de assegurar ao doente um resultado certo da intervenção proposta;
10. É incontestável que a prestação em causa, nas concretas circunstâncias que resultaram provadas, não pode senão haver-se como uma mera obrigação de meios, no sentido da jurisprudência maioritária.
11. A obrigação dos médicos possui uma natureza especial, enfatizando o facto de ter sido precisamente a distinção meios/resultado a abrir as portas à responsabilidade civil contratual médica - pois não era tolerável fazer impender, permanentemente, sobre o médico uma presunção de culpa.
12. Mas, mesmo que se admita a obrigação de resultado, o que se faz por mero exercício de raciocínio, tem de ser explicitado que resultado é este e se este foi alcançado já que a obrigação subjacente foi cumprida, uma vez que o exame foi realizado e o resultado entregue ao Autor.
13. Pelo que se impõe concluir, por coerência, ter sido cumprida a prestação contratada.
14. Quanto à ilicitude concluímos de acordo com o acórdão do STJ de 22 de março de 2018, ou seja, estando em causa a realização de um exame de colonoscopia, sem função curativa, do qual nasce uma obrigação de resultado (obtenção dos dados clínicos do exame), ocorrendo uma perfuração do colon do paciente, sem que esteja em discussão o cumprimento do dever primário de prestação do médico mas o cumprimento do dever acessório de, na realização do exame clinico, ser respeitada a integridade física daquele, duas construções ogmáticas podem ser perfilhadas:
15. (i) a ocorrência da perfuração do colon basta para configurar a ilicitude, umavez que uma lesão da integridade física do paciente, não exigida pelo cumprimento do contrato, implica a sua verificação (ilicitude do resultado), caso em que haverá que ponderar da exclusão da ilicitude pelo consentimento informado daquele quanto aos riscos próprios daquela colonoscopia (cfr. art. 340º, nº 1, do CC); (negrito nosso)
16. (ii) incumbe ao paciente lesado provar a ilicitude da conduta do médico, isto é a falta de cumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado, imposto pelas leges artis, dever que integra a necessidade de, no decurso da intervenção médica, tudo fazer para não afectar a integridade física daquele (ilicitude da conduta), caso em que, mesmo não se provando a violação desse dever, ainda assim, sempre se terá de averiguar se foi devidamente cumprido o dever de informar o paciente dos riscos inerentes à intervenção médica e se este os aceitou.
17. Ora no caso em apreço, aplicando a regra geral do art. 340º, nº 1, do Código Civil, “O acto lesivo dos direitos de outrem é lícito, desde que este tenha consentido na lesão”. (negrito e sublinhado nosso), verificamos que está integralmente cumprido o dispositivo legal.
18. O A. consentiu na realização do exame de colonoscopia com polipectomia, foi informado dos riscos, entre os quais se encontrava o risco de perfuração e consentiu no mesmo.
19. Como aliás atesta na sua petição inicial!
20. Assim, mesmo que tenha ocorrido a lesão esta estava a priori consentida afastando dessa forma qualquer ilicitude.
21. Perante os dados de facto carreados aos autos, verifica-se que o ora Recorrido médico podia fundadamente confiar que tendo o A. prestado o seu consentimento, e caso ocorresse uma perfuração, risco inerente ao exame, a sua conduta estaria justificada.
22. De facto, é inadmissível e contrária à boa fé a conduta assumida pelo Autor, na exata medida em que trai a confiança gerada no médico pelo seu comportamento anterior.
23. Quanto à segunda conceção da ilicitude de conduta também estará afastada no caso em apreço.
24. Mais uma vez o consentimento é aqui um elemento essencial! Socorremo-nos das palavras de André Dias Pereira que refere que “se o paciente consentiu (tendo sido previamente devidamente informado) só há lugar a indemnização em caso de má prática médica, por violação negligente das regras da arte. O consentimento válido transfere para a esfera jurídica do paciente os riscos da intervenção, desde que esta seja realizada diligentemente.”
25. No nosso caso houve um processo de consentimento adequado.
26. O A. consentiu, tendo transferido para a sua esfera jurídica os riscos da intervenção.
27. Não se tendo provado uma qualquer má prática por parte do médico ora recorrente então também aqui a ilicitude estará afastada.
28. Acresce que não há qualquer contrato celebrado entre médico e paciente pelo que não poderia o Tribunal, como aliás não fez e bem, ter mobilizado as regras da responsabilidade contratual.
29. O doente estabeleceu uma relação, mas com uma clínica – o Instituto Médico Scalabatino, não com o médico.
30. Havendo um contrato total é a clínica que responde pelos atos médicos e pelos atos ligados ao internamento hospitalar;
31. Ao clínico, nestas circunstâncias, apenas pode vir a ser imputada responsabilidade extracontratual.
32. Neste circunspecto, andou bem o Tribunal a quo ao ter concluído pela aplicação das regras da responsabilidade extracontratual porque, na realidade, não há qualquer contrato entre o médico e a paciente.
33. Logo, por maioria de razão não poderia o Tribunal ter onerado o Réu médico com a presunção estabelecida no artigo 799.º n.º 1 do CC como pretende o ora Recorrente;
34. E consequentemente não caberia ao Réu médico ilidir qualquer presunção nos termos do artigo 344.º n.º 1 do CC.
35. Pelo contrário, caberia ao Autor provar a culpa do clínico, dado que estamos no domínio da responsabilidade extracontratual, o que não aconteceu!
36. Não estando preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil não poderá o ora Recorrido – Dr. B… – vir a ser condenado.
NESTES TERMOS, Não deve ser dado provimento ao presente recurso interposto pelo A., confirmando-se a mui douta decisão recorrida, com as legais consequências.
SÓ ASSIM SE DECIDINDO SERÁ CUMPRIDO O DIREITO E FEITA JUSTIÇA.

4. Contra-alegou, também, a seguradora interveniente principal, sintetizando e concluindo a sua posição como segue:
1. Não se conformando com a douta decisão proferida nos autos, a qual, veio julgar a presente ação improcedente, por não provada e, em consequência, absolver o Réu do pedido, vem o Autor, ora Recorrente, agora insurgir-se, requerendo a reapreciação da matéria de direito, no que respeita à ausência de imputação de responsabilidade ao Réu, designadamente, a título de responsabilidade contratual, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 799.º e seguintes do Código Civil, apresentando argumentação que, salvo o devido respeito por melhor e douta opinião, não poderá, absolutamente, proceder.
2. Alega o Recorrente que “Destarte, e para concluir, quanto à natureza da responsabilidade médica deverá ter-se por assente que a mesma assume, pois, via de regra, a natureza de responsabilidade contratual, consumindo a responsabilidade extracontratual que poderá também concorrer no caso, posição que, no caso vertente, se perfilha, sendo certo que, «in casu», além da questão do incumprimento contratual (na perspectiva de cumprimento defeituoso) se coloca, ainda, a questão da ofensa da integridade física do A., atenta a comprovada perfuração verificada neste último e das subsequentes complicações ao nível da sua saúde.”. (negrito nosso)
3. Posto isto, cumpre, em primeiro lugar, analisar o vínculo efetivamente estabelecido entre o Autor e o Réu médico.
4. O Autor agendou junto dos serviços do Instituto Médico Scalabitano uma colonoscopia.
5. O Instituto Médico Scalabitano, disponibilizou ao Autor, no âmbito da sua atividade, os meios técnicos e humanos de que dispunha para o efeito, designadamente, os serviços do Dr. B…, o qual desempenhava, funções de médico naquela entidade hospitalar.
6. Resultou claro da sentença proferida, que o Autor se deslocou àquela entidade hospitalar para receber cuidados médicos, independentemente do médico que os iria prestar.
7. O Réu limitou-se a escolher o estabelecimento de saúde onde pretendia ser observado e intervencionado, não tendo a sua decisão sido influenciada pelo sujeito que iria prestar os cuidados médicos de saúde.
8. Tanto que, conforme decorre do facto provado n.º 6 da sentença recorrida “O R. apenas viu o A. no dia 21 de abril de 2016, data de realização do exame.”.
9. Contrariamente ao que o Recorrente tenta fazer crer, não se estabeleceu qualquer relação contratual entre o Autor e o Réu médico.
10. Motivo pelo qual, concluiu a sentença recorrida e bem que “Resulta dos autos que o exame foi prescrito pelo médico de família do A. e que este, ou alguém no seu interesse, se dirigiu ao Instituto Médico Scalabitano, onde o R. presta serviços da sua especialidade, não existindo nenhum vínculo contratual entre A. e R.”.
11. Ora, in casu, dúvidas não subsistem de que estamos perante uma situação em que é aplicável o instituto da responsabilidade civil extracontratual do Réu médico, a qual apenas poderá ser acionada, caso se verifiquem preenchidos todos os seus pressupostos, a saber: facto, ilícito, culposo, danoso, nexo de causalidade entre o facto e o dano.
12. No caso em apreço, verificamos que inexistiu qualquer conduta ilícita por parte do réu médico na realização da colonoscopia.
13. Do documento junto a fls. 42, pelo Réu médico, resulta claro que um dos riscos principais da realização da colonoscopia se trata da perfuração intestinal, sendo mais frequente nos casos de polipectomia, como era o caso do Autor.
14. Para além de se encontrar provado de que o A. foi devidamente informado pelo R. médico dos riscos associados à colonoscopia, resulta dado como não provado os seguintes factos:
“11 – Tratando-se de uma má prática médica nas manobras de remoção de pólipos a que o A. procedeu através da colonoscopia.
12 – Com efeito, o R. não usou os cuidados protocolares e comummente aceites para se evitar a perfuração intestinal.
13 – Ademais, limitou-se no final do exame a relembrar ao A. que seguisse para o Hospital de Santarém, acaso sentisse dores e tivesse hemorragias.
14 – Foram, aliás, estes sintomas que levaram o A. a recorrer ao Hospital público.
15 - O R. é um clínico experimentado e só por debilidade de atenção e cuidado do R. é que provocou a perfuração intestinal acima indicada.
16 - O R. infringiu a legis artis.”.
15. Ora, conforme é bom de ver não se provou o incumprimento da legis artis por parte do Réu médico.
16. Não resultou dado como provado, o deficiente manuseamento dos instrumentos utilizados pelo Réu médico na realização da colonoscopia, a debilidade ou falta de cuidado do mesmo durante o procedimento, nem a inobservância das técnicas e/regras de arte médicas.
17. O Réu médico agiu prudentemente, em absoluto respeito pelas regras impostas para a realização daquele procedimento, tendo tido uma atuação diligente durante o mesmo, não tendo o Autor conseguido provar a existência de qualquer cumprimento defeituoso do procedimento levado a cabo pelo mesmo.
18. Tendo inexistido, por isso, qualquer comportamento ilícito por parte do Réu médico, passível de fazer acionar o instituto de responsabilidade civil, seja em que modalidade for.
19. Acresce que, não foi dado como provada a existência de uma atuação culposa por parte do Réu médico, quer na sua vertente dolosa, quer na sua vertente negligente.
20. O Réu médico agiu não só em absoluto cumprimento com as regras da arte,
como também prestou devidamente ao A. todas informações respeitantes aos riscos e aos procedimentos a observar por este último em caso de complicações, as quais, poderiam existir, e para as quais o A. foi devidamente informado.
21. Para além dos requisitos supra mencionados não se verificarem preenchidos, o dano alegadamente gerador do dever de indemnizar e o alegado dano, também não se verificou preenchido.
22. O pré, durante e pós-procedimento, correu com normalidade sem qualquer intercorrência. Sendo que, o procedimento ocorreu no dia 21.06.2016, e o A. dirigiu-se ao Hospital de Santarém em 26.04.2016.
23. O Autor não fez prova de que, efetivamente, tenham resultado quaisquer danos na sua esfera jurídica resultantes do procedimento realizado pelo Réu médico.
24. Ao invés, foi feita prova pelo Réu médico, do cumprimento das regras da arte e o cumprimento dos deveres de informação por parte do mesmo.
25. Face à inexistência dos pressupostos previstos para fazer acionar o instituto da responsabilidade civil, seja ele de que natureza for, inexiste qualquer dever de indemnizar o A. seja a que título for.
26. Neste sentido, concluiu e bem o tribunal a quo que “Da matéria apurada nos autos, se é certo que ocorreu um facto danoso que vitimou o A., não foi apurada qualquer ilicitude na conduta do R. para que lhe possa ser imputada a responsabilidade pela ocorrência da perfuração do intestino que ocorreu com o A.
Não se verificando a responsabilidade do R. pelo acto que vitimou o A., fica prejudicada a apreciação dos restantes requisitos, que, por serem cumulativos, inviabiliza a sua apreciação.
Improcede, assim, a acção.”.
27. Nessa medida, e atendendo a tudo quanto ficou exposto, a decisão recorrida deverá manter-se nos exatos termos em que foi formulada, deverão improceder, in totum, as alegações de recurso apresentadas pelo Recorrente, sob pena de violação do disposto nos artigos 362.º a 387º, 392.º, 396.º, 483.º, 499.º a 510.º do Código Civil, absolvendo-se a Recorrida dos pedidos contra si formulados, só assim se fazendo Justiça.”.

5. 1. Sendo certo que o objecto do recurso se delimita pelas conclusões das alegações do apelante (cfr. artigos 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º, e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil), a única questão que as mesmas convocam prende-se com a (in) verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar em razão da (com) provada perfuração do intestino do apelante no decurso da colonoscopia executada pelo apelado.

II. FUNDAMENTAÇÃO

6. É o seguinte o teor da decisão de facto inserta na sentença recorrida que, aliás, não foi objecto de impugnação:

“A- Factos provados:
1 – O exame (colonoscopia) foi prescrito por outro clínico que não o R. (artº 4 da contestação)
2 – O A. agendou no Instituto Médico Scalabitano a realização da intervenção colonoscopia. (artºs 9 e 24 da contestação)
3 – O R. colabora com o Instituto Médico Scalabitano onde realiza colonoscopias. (artºs 10, 12 e 22 da contestação)
4 - No dia 21.04.2016, o A. foi submetido à colonoscopia levada a cabo pelo R. (artº 4 da petição inicial)
5 - Na data do agendamento da intervenção para além de ser fornecida a informação relativa ao exame e respetiva preparação foi também fornecido termo escrito de consentimento para que o doente pudesse analisar esta informação com tempo. (artº 25 da contestação)
6 - O R. apenas viu o A. no dia 21 de abril de 2016, data de realização do exame. (artº 26 da contestação)
7 - O R., antes de realizar o procedimento, explicou ao A. o procedimento, os riscos do mesmo. (artº 29 da contestação)
8 - O A. foi informado sobre os riscos de perfuração, hemorragia, infeção, entre outros, bem como sobre o modo de reconhecer essas eventuais complicações, e ainda da possibilidade de execução de biópsias ou polipectomias. (artºs 41 e 42 da contestação)
9 – Após estas informações, foi solicitado ao A. que assinasse o termo de consentimento informado (artºs 33 e 44 da contestação)
10 - Após a fase de informação e esclarecimentos seguiu-se o posicionamento, a sedação anestésica e a realização da colonoscopia. (artº 46 da contestação)
11 - A realização do exame decorreu sem quaisquer intercorrências o mesmo sucedendo imediatamente após o mesmo. (artº 47 e 48 da contestação)
12 - O procedimento foi acompanhado pelo Dr. B…, por um anestesista e por uma enfermeira. (artºs 34 e 35 da contestação)
13 - No procedimento foram encontrados dois pólipos, com pedículos grossos, que foram retirados - foi realizada a polipectomia para a qual havia consentimento, e encaminhados para biópsia. (artºs 37, 38 e 39 da contestação)
14 – O A. deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital Distrital de Santarém em 26.04.2016, onde lhe foi diagnosticado pneumoperitoneu, assumindo-se perfuração coberta de víscera oca, no contexto de colonoscopia recente. (artº 6 da petição inicial – parte)
15 – O A. ficou internado no Serviço de Cirurgia até 02.05.2016, para vigilância clínica e antibioterapia empírica de largo espectro, tendo realizado RX abdominal e TAC abdominal e pélvico, com evolução favorável e sem intercorrências. (facto provado ao abrigo do artº 607º, nº 4, CPC).
B – Factos não provados
Da petição inicial:
1 - O A. foi doente do R.
2 - O R. prescreveu-lhe terapêutica de colonoscopia
3 – Dispôs-se a levar o caso a exame na clínica Instituto Médico Scabalitano.
6 (parte) – No entanto, por não ter sabido utilizar os instrumentos de corte de pólipos (…)
7 - Por via da lesão cirúrgica que o R. determinou ao A., teve este de ser operado depois no Hospital de Santarém.
8 - A doença subsequente e inevitável, perante a nova cirurgia determinou ao A. 35 dias de doença, com incompatibilidade para as tarefas quotidianas que lhe cabiam no lar.
9 – E, no final, ficou o A. inválido, acamado, sem fala, nem poder cuidar de si.
10 – Situação que se iniciou em 24.04.2016 e em que ainda se encontra presentemente.
11 – Tratando-se de uma má prática médica nas manobras de remoção de pólipos a que o A. procedeu através da colonoscopia.
12 – Com efeito, o R. não usou os cuidados protocolares e comummente aceites para se evitar a perfuração intestinal.
13 – Ademais, limitou-se no final do exame a relembrar ao A. que seguisse para o Hospital de Santarém, acaso sentisse dores e tivesse hemorragias.
14 – Foram, aliás, estes sintomas que levaram o A. a recorrer ao Hospital público.
15 - O R. é um clínico experimentado e só por debilidade de atenção e cuidado do R. é que provocou a perfuração intestinal acima indicada.
16 - O R. infringiu a legis artis.
19 - O A. sofreu de angústia, medo da morte e dor por que passou, acrescida da angústia actual de se ver inválido.
22 - O A. passou a ser acompanhado por terceiro, que de si toma conta, por razão dele A. não o poder fazer.
23 – Despende o A. com esse acompanhamento a quantia mensal de € 600,00.
Da contestação:
27 - Antes de chegar ao R., o A. foi visto em primeiro lugar por um enfermeiro e posteriormente pelo médico anestesista que acompanhou o procedimento anestésico.”.

7. Do mérito do recurso

Para justificar a absolvição do Réu, afirmou-se na sentença recorrida o seguinte: “Da matéria apurada nos autos, se é certo que ocorreu um facto danoso que vitimou o A., não foi apurada qualquer ilicitude na conduta do R. para que lhe possa ser imputada a responsabilidade pela ocorrência da perfuração do intestino que ocorreu com o A.
Não se verificando a responsabilidade do R. pelo acto que vitimou o A., fica prejudicada a apreciação dos restantes requisitos, que, por serem cumulativos, inviabiliza a sua apreciação.”.
Ancorado em jurisprudência do STJ (dentre outros, o Ac. de 1.10.2015) o apelante refere que a perfuração do intestino no decurso da realização de um exame de colonoscopia, exame médico objecto de um contrato de prestação de serviços médicos sem finalidade curativa, constitui, só por si, um acto ilícito, violador da integridade física do apelante.

Efectivamente, no entendimento expresso em tal aresto, não estando essa intromissão na integridade física abarcada pelo consentimento prestado para a realização do exame e não sendo essa lesão exigida pelo cumprimento daquele ajuste, é de considerar que estamos em face de um facto ilícito.

Acresce que tal como aí também se salienta “a perfuração do intestino ocorreu durante e por causa da execução do contrato destinado à realização de um exame médico” e, ainda que ajustado com o hospital no qual o apelado exerce a sua actividade, “esta ligação intrínseca significa que o regime aplicável às consequências dessa execução deve ser o regime da responsabilidade contratual. Aliás, dificilmente se poderá sustentar que a protecção da integridade física do paciente não integra o âmbito de protecção de um contrato de prestação de serviços médicos”.

Não há, pois, dúvidas que o apelado, na execução da obrigação de prestação do serviço ajustada entre o apelante e o Hospital com o qual colabora, estava adstrito ao dever de protecção da integridade física do paciente, coberta pela tutela da personalidade nos termos previstos no artigo 70.º, n.º 1, do Cód. Civil, dever esse indissociável do cumprimento daquela obrigação que ele empreendeu por conta daquela unidade hospitalar.

Aliás, a orientação reiterada do STJ, nos casos de cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços médicos, é no sentido da opção pelo regime da responsabilidade contratual por ser o mais conforme ao princípio geral da autonomia privada, como por ser, em regra, mais favorável à tutela efectiva do lesado.[1]

Aplicando à responsabilidade civil por acto médico o regime geral da responsabilidade contratual impende sobre o prestador de serviços médicos uma presunção de culpa, por via do disposto no art.º 799º, nº1 do Cód. Civil, que lhe cumpre ilidir caso se pretenda eximir da sua obrigação de indemnizar o lesado.

É certo que se provou que o apelado, antes de realizar o procedimento, explicou ao apelante os riscos do mesmo, designadamente os riscos de perfuração, hemorragia, infeção, entre outros, bem como sobre o modo de reconhecer essas eventuais complicações e que só após estas informações, lhe foi solicitado que assinasse o termo de “consentimento informado”.

É evidente que o consentimento dado pelo apelante não abrange autorização para a perfuração do intestino.

E ainda que estivesse ciente de que tal exame comporta risco de perfuração do intestino e o tivesse aceite, necessário era que se tivesse apurado, no caso concreto, ter tal evento ocorrido por determinadas circunstâncias alheias à perícia do próprio médico (v.g. configuração do intestino do examinando).

Efectivamente, “não constitui causa de exculpação a demonstração singela de que, na sequência de um determinado tipo de cirurgia, ocorre uma franja de casos em que se produzem determinadas sequelas no paciente (percentagem racional de risco típico). A estatística em causa nada esclarece sobre a proporção que, dentro dessa percentagem de risco, deve ser imputável a uma deficiente aplicação da técnica cirúrgica. Caberá sempre apurar a causa efectiva de tais sequelas”.[2]

O apelado na contestação não reconheceu ter ocorrido tal perfuração, negou-a, e por isso não cuidou de explicar as razões que poderiam ter estado na sua origem e que seriam susceptíveis de ilidir a sua culpa.

Também ficou por esclarecer como é que não se deu conta de tal perfuração (posto que, em princípio, a câmara do aparelho a permitiria visualizar) já que se a tivesse constatado e dela dado conhecimento ao apelante poder-se-ia ter iniciado de imediato a antibioterapia e, possivelmente, evitado o internamento hospitalar.

Em suma: presume-se a culpa do médico apelado na perfuração do intestino do apelante ocorrida durante a execução da colonoscopia e, por via do disposto no art.798º do Cód. Civil, conclui-se ser responsável pelos prejuízos emergentes de tal acto (ilícito).

O apelante na petição inicial havia, designadamente, alegado que, por via da lesão que o apelado lhe havia causado, teve de ser operado no hospital de Santarém o que lhe havia determinado “35 dias de doença”.
E, bem assim, que foram as dores e hemorragias que sentiu que o levaram a recorrer ao dito Hospital e que sofreu de angústia, medo da morte e dor.

Estes factos foram dados como “Não Provados” e, como se disse, dos mesmos não foi interposto recurso.

Sem embargo, para além da lesão sofrida, resultou provado ter o apelante ficado internado no hospital de Santarém entre 26 de Abril e 2 de Maio, ou seja, durante um período de 6 dias (cfr. pontos 14 e 15), o que justifica que o mesmo seja indemnizado à luz do que dispõe o art.º 496º, nº1 do Cód. Civil.

Na ponderação da indemnização a atribuir por danos não patrimoniais de acordo com um juízo de equidade assente numa avaliação das circunstâncias do caso (art.º 496º, nº1 e 3 do Cód. Civil) para além do período de internamento, praticamente uma semana, ter-se-á igualmente de considerar a gravidade da lesão e o risco de vida que a mesma comporta.

Tudo avaliado, entende-se ser de atribuir ao apelante, a este título, a quantia indemnizatória global de € 6500 (seis mil e quinhentos euros).

Sobre a mesma serão contabilizados juros a partir desta decisão (cfr.Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2002, de 27.6).

A apelada seguradora, interveniente principal, mercê do contrato de seguro que na sua contestação confirmou existir ( cfr. art.º1º ) responde solidariamente pelo pagamento da mesma indemnização, já que não há dúvidas que o evento verificado se mostra integrado, à luz das condições gerais e particulares do mesmo, no respectivo âmbito de cobertura sendo que o valor atribuído se contém no valor do capital seguro.
Sem embargo, tal responsabilidade indemnizatória não contempla o valor da franquia contratual.

III. DECISÃO
Por todo o exposto, este colectivo acorda em julgar a apelação parcialmente procedente e, revogando a sentença recorrida:
a) Condena o Réu, Dr. B… a pagar ao Autor a quantia de €6.500 ( seis mil e quinhentos euros) acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data do presente acórdão e até integral pagamento;
b) Solidariamente com o Réu, condena a interveniente principal Ageas Portugal –Companhia de Seguros S.A. a satisfazer a quantia indemnizatória referida em a) deduzida da competente franquia.
c) Absolve o Réu, Dr. B…, e a Ré/interveniente seguradora do demais peticionado.

Custas por apelante e apelados na proporção do decaimento.
Évora, 27 de Janeiro de 2022
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente
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[1] Assim, Ac, do STJ de 22.3.2018 e arestos aí citados.
[2] Cfr. FERNÁNDEZ HIERRO, Sistema de responsabilidad médica, pág. 158-159 apud Luís Filipe Pires de Sousa in “O ónus da prova na responsabilidade civil médica. Questões processuais atinentes à tramitação deste tipo de acções (…)”.