Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
23/16.8PEBJA.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
PERDA DE VEÍCULO
Data do Acordão: 02/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIAL PROVIMENTO
Sumário:
I – Não se pode integrar a conduta do recorrente no crime de tráfico de menor gravidade se a avaliação de tal conduta, olhada no contexto global em que atuou, não revela uma projecção menor de ilicitude em grau suficiente para que se possa concluir que tal ilicitude está consideravelmente diminuída.

II – Não se deve ordenar a perda do veículo automóvel a favor do Estado se entre a utilização desse veículo e a prática do ilícito não se verifica uma relação de causalidade adequada, pois que, mesmo sem a utilização do veículo automóvel em apreço o crime teria sido praticado, e, além disso, teria sido cometido de modo idêntico pelo recorrente, com utilização de qualquer outro meio de transporte.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO

Nos autos de processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, com o nº 23/16.8PEBJA, do Juízo Central Cível e Criminal de Beja (Juiz 2), em que é arguido LR, e mediante pertinente acórdão, o tribunal decidiu nos seguintes termos (no que ora releva):

“A) Condena o arguido LR pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22.01 na pena de 5 (cinco) anos de prisão.

B) Condena o arguido LR pela prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 3.º n.º4 alíneas a) e 86.º n.º1 alínea c) da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão.

C) Em cúmulo jurídico, condena o arguido LR na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

D) Determina que o arguido LR continue a aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva, consignando-se que o mesmo se encontra ininterruptamente nessa situação desde 12 de janeiro de 2017.

E) Declara perdido a favor do Estado o estupefaciente apreendido e material destinado ao corte, pesagem e acondicionamento, determinando a sua destruição.

F) Declara perdido a favor do Estado o veículo automóvel de matrícula ---QL e os telemóveis apreendidos.

G) Declara perdido a favor do Estado as armas, munições e cartucheira apreendidas.

H) Condena o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça devida em 2 (duas) UC’s”.
*
Inconformado com o acórdão condenatório, interpôs recurso o arguido, apresentando as seguintes (transcritas) conclusões:

“1º - A douta sentença recorrida condenou o Arguido na pena única de CINCO ANOS E SEIS MESES pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes pº pº pelo Artº 21, nº 1, do D.L. 15/93 e um crime de detenção de arma proibida pº pº pelo Artº 3º, nº 4, al. a), e 86º, nº 1, al. c), da Lei nº 5/2006, de 23.02, e declarou perdido a favor do Estado o veículo de matrícula ---QL.

2º - O recurso reporta-se quanto à matéria de facto, quanto à qualificação jurídica do crime praticado pelo Arguido e à medida da pena;

3º - A matéria de facto dada como provada não nos oferece qualquer juízo de censura de relevo, porque reproduz os factos provados em audiência e a prova recolhida nos autos.

4º - No entanto, os factos impunham, inevitavelmente, uma decisão diversa da ora recorrida, termos em que o douto acórdão violou, por erro de interpretação, os Artsº 75º e 71º do CP e os Artsº 21º e 25º, ambos do D.L. 15/93.

5º - Tendo em conta as circunstâncias em que os factos ocorreram, entendemos que diminuem consideravelmente a ilicitude do Arguido.

6º - O Artº 25º pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre “consideravelmente diminuída” em razão de circunstâncias específicas, mas objetivas e factuais, verificadas na ação concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da ação, e a qualidade ou a quantidade dos produtos.

7º - Os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de “considerável diminuição de ilicitude”.

8º - As referências objetivas contidas no tipo, para aferir da menor gravidade, situam-se nos meios, na modalidade ou circunstância da ação e na qualidade e quantidade das plantas.

9º - A quantidade de droga é um dos fatores determinantes de aferição da diminuição da ilicitude prevista no artº 25 do citado diploma. Não podemos esquecer o facto do artº 25º ter como fonte o artº 24º do DL. 430/83, sendo certo que o artigo atual é mais amplo e abrangente.

10º - A apreciação da quantidade detida deve apoiar-se em módulos de carácter quantitativo.

11º - Como consta da matéria de facto dada como provada, o Recorrente negociou com OITO a DEZ CONSUMIDORES, a quem entregou doses individuais de heroína, a €: 10,00.

12º - A atividade de venda decorreu durante cerca de TRÊS MESES, de outubro de 2016 a janeiro de 2017.

13º - Em conclusão, as quantidades vendidas, regra geral uma dose de cada vez, e a quantidade total de droga vendida são diminutas.

14º - Para se poder concluir que a ilicitude do facto se encontra consideravelmente diminuída, é certo que não releva unicamente a quantidade, mas ainda a sua qualidade, os meios utilizados, a modalidade e as circunstâncias da ação - Ac. STJ-CJ-III-96, pág. 163.

15º - O que verdadeiramente conta é a situação concreta individualizada, com todas as suas particularidades, que varia de caso para caso.

16º - O Arguido é toxicodependente e não resta qualquer sinal exterior de riqueza, que possa deduzir que o Arguido retirava grande proveito ilícito da venda de droga.

17º - Não foi apreendida uma única nota do BCE.

18º - No que respeita aos meios utilizados pelo Arguido, estes eram escassos, porque as entregas eram feitas em casa ou locais previamente acertados.

19º - Sem qualquer margem para dúvida que, a inexistência de uma estrutura organizativa, e/ou a redução do ato ilícito a um único negócio de rua sem recurso a qualquer técnica ou meio especial, dão uma matriz de simplicidade que, por alguma forma, conflui com a gravidade do ilícito.

20º - Deste modo, tais factos enquadram-se no vulgarmente designado “tráfico de rua”.

21º - A jurisprudência do STJ dos últimos anos, tem vindo a alargar o campo de aplicação do aludido Artº 25º a tudo quanto seja pequeno tráfico, aos “dealers” ou “retalhistas” de rua, sem ligações a quaisquer redes e quase sempre desprovidos de quaisquer organizações ou de meios logísticos, e sem acesso a grandes ou avultadas quantidades de droga.

22º - Apesar do Arguido já ter sido alvo de UMA condenação pela prática de crime de tráfico de estupefacientes não impede a aplicação da qualificação mais favorável ao Arguido.

23º - Em face do que acima fica exposto e à matéria de facto o Arguido deve ser condenado pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. p. pelo Artº 25º do Dec. Lei Nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de TRÊS ANOS de prisão.

24º - E, em cúmulo jurídico, deve o Arguido ser condenado na pena única de TRÊS ANOS e SEIS MESES DE PRISÃO.

25º - Finalmente, entendemos que o veículo automóvel matricula ----QL não deverá ser declarado perdido a favor do Estado.

26º - A perda de objetos que tiverem servido para a prática de infração relacionada com estupefacientes tem como fundamento a existência ou a preexistência de uma ligação funcional e instrumental entre o objeto e a infração, de sorte que a prática desta tenha sido especificadamente conformada pela utilização do objeto.

27º - Na especificação de execução dos diversos e amplos casos de factualidade típica dos crimes ditos de “tráfico de estupefacientes”, a possibilidade, concreta e determinada, da utilização de certos objetos depende muito do tipo de atuação que estiver em causa.

28º - No entanto, o Supremo Tribunal tem vindo a remeter para o princípio da proporcionalidade. A perda do “instrumentum sceleris”, não estando submetida ao princípio da culpa, terá de ser equacionada com o princípio da proporcionalidade relativamente à importância do facto - cfr. Ac. STJ de 27.01.1998.

29º - O veículo apenas foi utilizado no dia 11 de janeiro, sendo omisso em relação às outras deslocações.

30º - Deste modo, e fazendo apelo aos princípios da proporcionalidade, adequação e exigibilidade, entendemos que o veículo não deve ser declarado perdido a favor do Estado”.
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O Exmº Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância apresentou resposta ao recurso, concluindo nos seguintes termos (em transcrição):

“1ª - A comprovada atuação do arguido foi corretamente subsumida ao tipo de tráfico de estupefacientes da previsão do artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro.

2ª - O douto acórdão deve ser revogado na parte em que decreta a perda a favor do Estado do veículo de matrícula ---QL em virtude de não se verificarem os pressupostos estabelecidos no artigo 35º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro”.
*
Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, entendendo, também, que o recurso merece parcial provimento, devendo ser revogada a decisão revidenda na parte em que declarou perdida a favor do Estado a viatura de matrícula ----QL.

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo o arguido respondido.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.
Três questões, em breve síntese, são suscitadas no recurso interposto pelo arguido, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objecto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal:

1ª - A qualificação jurídica dos factos (no tocante ao crime de tráfico de estupefacientes).
2ª - A medida concreta da pena aplicada pelo cometimento do crime de tráfico de estupefacientes.
3ª - A declaração de perda a favor do Estado do veículo de matrícula ---QL.

2 - A decisão recorrida.
É do seguinte teor o acórdão revidendo (quanto aos factos provados, factos não provados e motivação da decisão fáctica):

“A) Factos Provados
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:

Pelo menos desde o mês de outubro de 2016, o arguido dedicou-se ao tráfico de produtos estupefacientes, designadamente de “Heroína”, na modalidade de venda direta ao consumidor, tendo vendido produto estupefaciente a um número indeterminado de consumidores (entre 8 a 10) que se dispuseram a comprar-lhe.

Para tanto, o arguido deslocava-se quase diariamente à cidade de Sines, a um local denominado “Barbuda”, onde adquiria estupefaciente, na quantidade variável entre 3 a 3,5 gramas, que transportava para Beja, onde a preparava e “cortava” para poder vender aos eventuais consumidores.

O arguido vendia cada pacote de heroína pelo preço de 10 euros.

Para proceder à venda, contactava previamente os consumidores e posteriormente estes dirigiam-se à sua residência, sita na Rua Diogo de Gouveia…, em Beja, procedendo então à venda nesse local.

Outras vezes, contactava previamente os consumidores, ou estes com o arguido, e procedia à venda, junto à Praça de Touros de Beja, local ermo.

No dia 11 de janeiro de 2017, o arguido, na prossecução da atividade criminosa a que se dedicava, deslocou-se a Sines, ao local denominado de “Barbuda”, fazendo-se transportar na viatura de matrícula ---QL, adquiriu produto estupefaciente, designadamente heroína, e transportou-o para a cidade de Beja, onde pretendia proceder à sua venda, na sua residência, conforme já descrito.

Assim, pelas 17h25, do dia 11 de Janeiro de 2017, na Rua Diogo Gouveia, em Beja, em frente à sua residência, e após estacionar a viatura com a qual se deslocou à Barbuda, o arguido foi abordado pelos agentes da PSP que lhe faziam vigilância.

Ato contínuo, o arguido esmagou algumas das embalagens de heroína que trazia consigo, de peso não concretamente apurado, e derramou-as no chão, com o intuito de se furtar à ação policial.

Não obstante, foi ainda recuperada pela PSP a quantidade de 2,01 gramas de heroína, pertença do arguido, e a qual pretendia vender a consumidores que se lhe dispusessem a comprar.

Nesse mesmo circunstancialismo de tempo e lugar, no interior da sua residência e fruto da atividade delituosa que pratica, o arguido detinha:

- 5 embalagens de metadona, com o peso total de 74,64 g, que se encontravam no quarto do arguido
- 12 munições de calibre 12mm;
- 8 munições de calibre 6,35mm;
- Uma cartucheira;
- Uma pistola de calibre 6,35, marca Venus;
- Uma arma de ar comprimido, sem marca, de calibre 4,5mm.

Já no interior da viatura ---QL, o arguido detinha vários recortes de sacos de plástico destinados a acondicionar doses individuais de heroína.

Consigo trazia ainda dois telemóveis, um da marca Samsung Duos, com o EMEI 3537---- e outro da marca Huawei com o EMEI 8611-----, os quais utilizava para proceder a contactos com os eventuais compradores.

O arguido tinha perfeito conhecimento que o produto que detinha é considerado, pela sua composição, natureza, característica e efeitos, substância estupefaciente e, como tal, que toda a atividade relacionada com ele, designadamente transporte, posse, consumo, oferta ou cedência a qualquer título a terceiros, por ele levada a cabo, lhe estava vedada.

O arguido não é titular de qualquer licença de uso e porte de arma que o habilitasse a deter guardar as armas e as munições supra descritas.

O arguido não é possuidor de declaração aquisitiva que o habilitasse a deter a arma de ar comprimido.

E ainda assim decidiu guardar e deter as armas e as munições consigo.

O arguido agiu deliberada, voluntária e conscientemente.

Sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal e contraordenacional.

Mais se provou relativamente ao arguido:
Realizado relatório social pelos serviços da DGRSP, do mesmo consta:

I - Condições sociais e pessoais

LR encontra-se colocado na situação de prisão preventiva, à ordem dos presentes autos, desde janeiro do corrente ano.

À data da prisão residia só, em Beja, situação que mantinha há cerca de dois anos, após permanência de cerca de 3 meses em casa do irmão em Cuba, e, aproximadamente um ano em casa dos progenitores na Trindade, mercê da necessidade de amparo familiar após período de reclusão que vivenciou em prisão preventiva determinada no âmbito dos autos ----/12.9TABJA, Tribunal Judicial da Comarca de Beja, 2.º Juízo.

Encontra-se condenado a uma pena de 4 anos e 6 meses de prisão, cujo trânsito em julgado ocorreu em 19/02/2014, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade e um crime de detenção de arma proibida, pena que lhe foi suspensa por igual período, com sujeição a regime de prova. A falta de adesão ao acompanhamento desta DGRSP e face à recusa de tratamento à problemática aditiva decorrente da sentença e plano de reinserção determinaram a elaboração de relatório de anomalias, enviado aos autos em setembro do ano transato.

Oriundo de uma família estruturada e coesa, de mediana condição sócio económica, em que os rendimentos da família, provenientes do vencimento do progenitor, funcionário da EDP, se revelavam adequados face às necessidades do agregado, LR vivenciou a infância e juventude sem problemas significativos ou disfunções ao nível familiar.

Integrou-se no ensino até aos 19 anos, não tendo concluído o ensino secundário, situação que reverteu, durante o período de prisão acima assinalado, tendo então completado o 12º ano de escolaridade.

Integrou o Serviço Militar, no qual cumpriu uma missão na Bósnia, tendo permanecido no Exército como contratado, durante 6 anos, findos os quais concorreu a lugar de eletricista, na EDP tendo obtido aprovação e colocação nos quadros da empresa no ano de 2000.

Do seu percurso vivencial e desde o início da adolescência destaca-se o envolvimento do arguido no consumo de substâncias estupefacientes, inicialmente de haxixe e posteriormente, em 2001, aos 27 anos, de heroína, substância de que se tornou dependente, originando acentuada instabilidade e repercussões aos diversos níveis dos seus desempenhos - familiares, sociais e laborais.

Pese embora críticos face à sua prática aditiva, os progenitores e o irmão, têm-se mantido presentes e apoiantes, numa tentativa reiterada de motivação / adesão a processo de reabilitação e afastamento de grupos de pares de problemática similar.

Atualmente é acompanhado, tal como em anterior período de contenção prisional, pelo Centro de Respostas Integradas do Baixo Alentejo, encontrando-se integrado em programa de substituição opiácea de metadona.

Manteve uma união marital entre 2009 e 2011, de que resultou o nascimento do filho, LM, a perfazer 7 anos de idade que reside com a progenitora.

Profissionalmente iniciou períodos de baixas médicas, desde 2009, com indicação para reabilitação em comunidades terapêuticas, tendo integrado duas, sem resultados positivos. LR deixou de comparecer a juntas médicas marcadas, foi-lhe suprimido o subsídio de doença há alguns anos e recentemente ocorreu a desvinculação com a entidade empregadora, através de rescisão contratualizada.

Desde há cerca de oito anos que o arguido não desenvolve atividade laboral com caráter regular.

Há cerca de três anos, no início do período de suspensão da execução da pena, trabalhou, cerca de 2-3 meses, na agricultura, na zona de residência dos pais.

Não obstante autonomia habitacional face à família, já que dispõe de habitação que adquiriu com recurso a empréstimo bancário, cujas prestações têm vindo a ser pagas, tal como o fornecimento de água e eletricidade, pelos progenitores, em montante superior a € 2500,00 mensais, LR dependia, até à data da sua reclusão, destes familiares para a sua subsistência.

Mantém comportamento prisional ajustado, sendo visitado com regularidade pela progenitora.

Perceciona a gravidade dos factos constantes da acusação, bem como a implicação dos mesmos sobre o decurso da pena de prisão cuja execução se encontra suspensa.

II – Conclusão

Podemos concluir que LR apresenta fragilidades relacionadas com os consumos aditivos de que se tornou dependente, os quais comprometeram a sua vida quer na vertente familiar, agregado de origem e agregado que constituiu, quer na vertente laboral.

A falta de motivação quanto a tratamento especializado à problemática aditiva, quer em regime ambulatório quer em internamento em comunidade terapêutica, tem constituído um obstáculo à sua estabilidade pessoal.

Pese embora tenha a perceção do caráter pernicioso da prática aditiva e respetivas implicações nefastas no seu “estar” societário, LR não aparenta possuir competências para, caso venha a ser condenado, vir a cumprir medida de caráter probatório”.

Do seu registo criminal consta:

- Uma condenação em 26/04/2012 pela prática em 28/05/2010 de crime de consumo de estupefacientes, tendo-lhe sido aplicada pena de multa – Proc. Nº. ---/11.3TAELV, 2º Juízo da Comarca de Elvas;

- Uma condenação transitada em julgado 19.12.2014 pela prática, em 11.10.2012 de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade e de um crime de detenção de arma proibida numa pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo e sujeita a regime de prova contemplando, além do mais, plano de tratamento adequado à problemática de dependência do consumo de estupefacientes de que padece – Proc. nº ---/12.9TABJA do extinto 2º Juízo do Tribunal Judicial de Beja.

B) Não se provou que:

Nas suas deslocações a Sines o arguido adquiria entre 5 a 10 gramas de estupefaciente.

C) Motivação da Matéria de Facto:
O decidido funda-se em todos os meios de prova produzidos em audiência, valorado na sua globalidade.

Em concreto, a convicção do Tribunal relativamente à ocorrência dos factos na forma descrita assentou na conjugação do relatório pericial de fls. 198, com os relatórios de vigilância de fls. 5, 6, 23, 31 e 33, autos de apreensão de fls. 38 e 4, fotografias de fls. 48, autos de exame de fls. 95 a 105, com as declarações do arguido que, de uma forma voluntária e espontânea, admitiu a esmagadora maioria dos factos, esclarecendo apenas que quando se deslocava a Sines não adquiria 5 a 10 gramas de estupefaciente mas apenas uma quantidade que rondava as 3g/3,5g. Ora considerando que nenhuma outra prova foi produzida quanto a esta matéria e a forma como o arguido, de uma forma sincera e coerente admitiu todos os restantes factos, o Tribunal atribuiu-lhe credibilidade também nesta parte.

Quanto às condições pessoais e personalidade do arguido o Tribunal teve em consideração o relatório social de fls. 281 e seguintes.

Os antecedentes criminais do arguido resultaram provados em face do teor do CRC de fls. 286 e seguintes”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da qualificação jurídica dos factos.

Alega o recorrente, em breve resumo, que não passa de um vulgar “dealer” de rua, que proporcionou o produto estupefaciente em causa a não mais de 10 consumidores, num período de tempo relativamente curto (cerca de 3 meses), sem recorrer a intermediários ou a colaboradores, usando um modus operandi simples, e sem retirar de tal atividade grandes proventos.

Assim sendo, conclui o recorrente, a ilicitude do facto mostra-se consideravelmente diminuída, pelo que a sua conduta deve ser integrada no tipo privilegiado do artigo 25º do D.L. nº 15/93, de 22/01 (tráfico de menor gravidade).

Cabe apreciar e decidir.

Dispõe o artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro: “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver fora dos casos previstos no artigo 40°, plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas Tabelas 1 a IV, é punido com a pena de prisão de 4 a 12 anos”.

Por sua vez, estabelece o artigo 25º, al. a), do mesmo diploma legal: “se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI”.

O crime de tráfico de menor gravidade contempla, como a própria denominação indica, situações em que o tráfico de estupefacientes, tal como se encontra definido no tipo base, se processa de forma a ter-se por consideravelmente diminuída a ilicitude, ou seja, em que se mostra diminuída a quantidade do ilícito.

A título exemplificativo, indicam-se no preceito como índices, critérios, exemplos padrão, ou factores relevantes, de graduação da ilicitude, circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na ação concreta, nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações objecto do tráfico, os quais devem ser analisados numa relação de interdependência, já que há que ter uma visão ou perspectiva global, uma ampla perceção das acções desenvolvidas (actividade disseminadora de produtos estupefacientes) pelo agente, de modo a concluir-se se a conduta provada fica ou não aquém da gravidade do ilícito justificativa da integração no tipo essencial, na descrição fundamental do artigo 21º, nº 1, do D.L. nº 13/93, de 22/01.

O D.L. nº 15/93, de 22/01, abriu o leque sancionatório relativamente ao antecessor D.L. nº 430/83, de 13/12, adicionando ao elenco dos tipos já previstos um novo específico tipo legal de crime, o denominado tráfico de menor gravidade.

Na anterior lei, o artigo 23º (antecessor do actual artigo 21º) abrangia as grandes, médias e pequenas quantidades de substâncias estupefacientes.

De fora ficavam apenas as quantidades diminutas, situação prevista no artigo 24º do D.L. nº 430/83, quantidades diminutas estas definidas por lei (nº 3 do preceito) como as que não excediam o necessário para o consumo individual durante um dia, estabelecendo-se então, para as substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III, a pena compósita de prisão de 1 a 4 anos e multa de 20.000$00 a 1.500.000$00.

O artigo 25º do D.L. nº 15/93, de 22/01, veio colmatar uma lacuna existente no sistema e prevenir os casos de diminuição considerável da ilicitude baseada, entre outros critérios, não apenas na quantidade das plantas, substâncias ou preparações, mas também na qualidade das mesmas, nos meios utilizados e na modalidade e circunstâncias da ação.

Não estando em causa no novo crime apenas um critério quantitativo relativo ao produto estupefaciente, até porque considerado isoladamente de pouco valerá, é evidente que nunca o artigo 25º poderia ser encarado como um sucessor directo do artigo 24º do D.L. nº 430/83, cuja marca distintiva era apenas a quantidade (a diminuta quantidade de estupefaciente), independentemente da sua conjugação com outros fatores de avaliação.

Por outro lado, e na esteira do ensinamento de Hans Jescheck (in “Tratado de Derecho Penal - Parte General”, Editorial Bosch, tradução de S. Mir Puig e F. Muñoz Conde, Barcelona, 1981, Vol. I, págs. 362 e 363), podemos afirmar que a modificação dos tipos tem lugar através de “variantes dependentes” do tipo básico, completamente reguladas, variantes estas que, por seu lado, constituem tipos “qualificados ou privilegiados”, por recurso a causas inominadas de agravação ou de atenuação da pena, que abrangem os “casos especialmente graves” e os “casos menos graves”. Ora, o artigo 25º do D.L. nº 15/93, de 22/01, encerra um específico tipo legal de crime, o que pressupõe a sua caracterização como uma variante dependente privilegiada do tipo de crime do artigo 21º do mesmo diploma legal (usando a terminologia de Hans Jescheck, ob. citada, pág. 363).

A aplicação deste artigo 25º do D.L. nº 15/93 tem como pressuposto específico a existência de uma considerável diminuição do ilícito. Ou seja, pressupõe um juízo positivo sobre a ilicitude do facto, que constate uma substancial diminuição desta, um menor desvalor da acção, uma atenuação do conteúdo do injusto, em suma, uma menor dimensão e expressão do ilícito.

Os pressupostos da disposição respeitam, todos eles, ao juízo sobre a ilicitude do facto no sentido positivo, constatando, face à específica forma e grau de realização do facto, que o caso se situará forçosamente aquém da necessidade de pena expressa pelo limite mínimo do tipo base, uma substancial diminuição desta.

Os índices, exemplos padrão, ou Regelbeispiel, enumerados no preceito, a par de outros, são atinentes, uns à própria ação típica (meios utilizados, modalidade e circunstâncias da acção), outros ao objecto da ação típica (qualidade ou quantidade do estupefaciente), ou seja, pertinem todos eles ao desvalor da conduta, à execução do facto, fazendo parte do tipo de ilícito, não entrando em ação qualquer consideração relativa ao desvalor da atitude interna do agente, à personalidade deste, a juízos sobre a culpa.

Haverá, pois, que proceder à valorização global dos factos, não se mostrando suficiente que um dos factores interdependentes indicados na lei seja idóneo em abstracto para qualificar os factos como menos graves ou leves, devendo valorar-se complexivamente todas as circunstâncias.

O critério a seguir tem de consistir na avaliação do conjunto da ação, tendo em conta o grau de lesividade ou de perigo de lesão (o crime de tráfico é um crime de perigo abstracto) do bem jurídico protegido (no essencial, a saúde pública).

Valerá o tipo privilegiado ou atenuado para os casos menos graves e equivale aos casos de “pouca importância do facto” da lei italiana, sendo de assinalar a similitude e paralelismo com os pressupostos gerais da atenuação especial da pena, mas quedando-se aqui a “atenuação” em função do juízo de ilicitude, sem intervenção da culpa do agente e da necessidade de pena, presentes no artigo 72º do Código Penal, pois o princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências de prevenção.

Qualquer que seja a posição adoptada sobre o posicionamento dogmático deste crime de tráfico de menor gravidade, a verdade é que entre o artigo 25º do D.L. nº 15/93, de 22/01, e o artigo 72º do Código Penal ressalta uma evidente conexão. Aquele dispositivo comina uma redução substancial da pena de prisão, relativamente ao tipo matricial (mínimo de 1 ano de prisão, em vez dos 4 anos estabelecido para o tipo base, e máximo de 5 anos de prisão, em vez de 12 anos, encurtando-se de forma considerável os limites da moldura abstracta cabível ao tipo fundamental), para os casos de tráfico em que a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída, estabelecendo, inclusive, uma mais benévola moldura penal (1 a 5 anos de prisão) do que a que resultaria da atenuação especial do crime base, pois, por força do disposto no artigo 73º, nº 1, als. a) e b), do Código Penal, a moldura penal seria então de 9 meses e 18 dias a 8 anos de prisão.

Por outras palavras, o artigo 25º do D.L. nº 15/93 possibilita a aplicação de uma pena cujo limite máximo fica aquém da aplicação, à moldura penal do crime de tráfico base, das regras de atenuação modificativa da pena do artigo 73º do Código Penal.

Trata-se, no fundo, de uma especial forma de atenuação, para a qual aqui só se tem em consideração o plano da ilicitude, quando nos termos gerais é necessário estar-se perante diminuição acentuada, não só da ilicitude do facto, mas também da culpa do agente ou da necessidade da pena.

Como muito bem se escreve no Ac. do S.T.J. de 11-06-2003 (in www.dgsi.pt), “a essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado reverte, assim, ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), mediada por um conjunto de circunstâncias objetivas que se revelem em concreto, e que devam ser conjuntamente valoradas por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão (rectius, para a revelação externa) quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental, cuja gravidade bem evidente está traduzida na moldura das penas que lhe corresponde”.

Conforme salienta Maria João Antunes (in “Decisões de Tribunais de Primeira Instância, Comentários”, 1993, pág. 296), o artigo 25º do D.L. nº 15/93, de 22/01, “exige do intérprete, fundamentalmente, que equacione se a imagem global do facto se enquadra ou não dentro dos limites das molduras fixadas nos artigos 21º e 22º, sob pena de a reacção criminal ser, à partida, desproporcionada”. Mais adianta que o legislador “consagrou para o efeito o critério da diminuição considerável da ilicitude do facto, adoptando a denominada técnica dos exemplos padrão, uma vez que só exemplificativamente fornece o substrato a partir do qual se poderá concluir por aquela diminuição”. Finaliza esta mesma autora, dizendo que isto significa duas coisas fundamentais: por um lado, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações são meramente indiciadores da consideravelmente diminuída ilicitude do facto; por outro, não sendo a enumeração esgotante, mas só exemplificativa, o tribunal pode concluir que a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída, apesar do substrato que funda esta conclusão ser alheio à enumeração prevista no artigo 25º”.

Aplicando os anteriores considerandos ao caso destes autos, há que atender aos seguintes elementos (com relevo para a decisão da questão que nos vem colocada neste ponto do recurso):

- A natureza da substância estupefaciente em causa (heroína), que integra o elenco das denominadas drogas duras, potenciadoras de graves lesões para a saúde dos potenciais consumidores.

- O relativamente alargado período de tempo em que o arguido procedeu à venda a terceiros desse mesmo produto (tal ocorreu, pelo menos, desde outubro de 2016 até à detenção do arguido, em janeiro de 2017).

- A utilização de dois telemóveis por parte do arguido, visando a concretização do “negócio” da venda de produtos estupefacientes.

- O facto de o arguido não trabalhar regularmente, desde há vários anos, nem ter modo de sustento lícito e visível, sendo assim de presumir, legitimamente, que era da actividade do tráfico de estupefacientes que o arguido, no essencial, subsistia.

Sopesados todos estes elementos, vista a sua globalidade complexiva, não podemos configurar a conduta do arguido como a de um normal “traficante de rua” (com o devido respeito pela opinião contrária, expressa na motivação do recurso), ou seja, e por palavras de claro conteúdo jurídico-penal, não podemos considerar que exista, in casu, uma diminuição considerável da ilicitude do facto.

Bem ao contrário: os elementos de facto acima elencados evidenciam uma ilicitude de acentuado relevo, de todo incompatível com o considerável menor grau de ilicitude subjacente ao crime de tráfico previsto no artigo 25º do D.L. nº 15/93, de 22/01.

O que privilegia este crime é a diminuição sensível, ponderosa, considerável, da ilicitude, o que se não verifica no caso sub judice.

Por último, não podemos deixar de considerar ainda, para a avaliação da conduta do recorrente, a anterior condenação do mesmo pela prática (além do mais) de um crime de tráfico de estupefacientes, condenação que teve lugar em 2014, na pena (única) de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.

Na verdade, e conforme muito bem se escreve no acórdão revidendo, “as circunstâncias atinentes ao agente (nomeadamente os antecedentes criminais ou a prática dos factos em períodos de liberdade condicional, ou com pena de prisão suspensa) podem impedir a diminuição da ilicitude da sua conduta, já que estas circunstâncias não são apenas atinente à culpa do arguido, sendo agravadora da ilicitude do facto. Trata-se, em nosso entendimento, de uma das “circunstâncias da ação” referidas no artigo 25º e que, no caso, não permite o juízo de uma ilicitude consideravelmente diminuída. Neste sentido refere o Prof. Figueiredo Dias, “a necessidade de reconhecer que, em muitos tipos-incriminadores - segundo as investigações de MEZGER e seus adeptos isso aconteceria até em grande percentagem de tipos-incriminadores -, existem elementos subjetivos, referentes a intenções, tendências, atitudes pessoais, etc., que interessam apenas ou primariamente à valoração da ilicitude parece-nos indiscutível. De outra forma, a valoração da ilicitude não poderia adequar-se às diferenças axiológicas existentes entre os comportamentos e arriscar-se-ia a abarcar muitos comportamentos penalmente irrelevantes, lícitos, quando não mesmo com um sentido positivo de valor jurídico-penal” - in “Direito Penal - Sumários das Lições”, Universidade de Coimbra, 1975, págs. 147 e segs. Ora, o arguido não só já havia sido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, como os factos foram praticados durante o período de suspensão da execução da pena de prisão que lhe havia sido aplicada no âmbito daqueles autos. Donde, a conclusão a retirar é que estamos perante uma situação em que a ilicitude do facto não se mostra de forma alguma reduzida, não integrando pois a sua conduta a previsão do art. 25º do DL 15/93”.

Isto é: as circunstâncias concretas da ação levada a cabo pelo arguido no âmbito do presente processo são indissociáveis (também) da concreta situação pessoal do arguido, designadamente não podendo deixar de atender-se à condenação criminal anterior pela prática de crime de tráfico de estupefacientes (sendo certo até que os factos delitivos destes autos ocorreram durante o período de suspensão da execução da pena de prisão que havia sido aplicada pelo cometimento do anterior crime de tráfico de estupefacientes).

Entendemos, pois, que a aludida condenação criminal do arguido, recente (de 2014) e pela prática de crime de tráfico de estupefacientes, não constitui uma circunstância apenas atinente à culpa do arguido.

É também circunstância agravadora da ilicitude do facto.

É, bem vistas as coisas, uma das “circunstâncias da ação” referidas no artigo 25º do D.L. nº 15/93, e que, em conjugação com os demais elementos configurados neste concreto caso, não permite o juízo de uma ilicitude consideravelmente diminuída.

Com efeito, e a esta luz, sobre o arguido impendia um especial dever (como que um “dever reforçado”) de evitar incorrer em práticas da mesma natureza daquela que tinha sido objecto dessa sua anterior condenação.

A modalidade e as circunstâncias da ação são indissociáveis, como nos parece evidente, da envolvência específica em que o agente opera. Ora, nesta perspetiva, uma coisa é um ato de tráfico de estupefacientes praticado por alguém que nunca foi punido (ou nunca foi sujeito a uma reação dos sistemas formais de controle social), e outra coisa, bem diferente, é um ato de tráfico de estupefacientes praticado por alguém que já foi objeto de reprovação pública anterior (manifestada, ou não, na aplicação de uma sanção de natureza criminal).

Em suma: a avaliação da conduta do arguido, olhada no contexto global em que o arguido atuou, não revela uma projecção menor de ilicitude em grau suficiente para que possamos concluir que tal ilicitude está consideravelmente diminuída.

Os factos dados como provados no acórdão revidendo preenchem, assim, a previsão do artigo 21º, nº 1, do D.L. nº 15/93, e não a previsão do tipo privilegiado do artigo 25º do mesmo diploma legal.

Posto tudo o que precede, é de improceder a pretensão do recorrente de integração da sua conduta no tipo privilegiado do artigo 25º, al. a), do D.L. nº 15/93, de 22/01, pelo que, neste ponto, o recurso não merece provimento.

b) Da medida concreta da pena.
Discute o recorrente a medida concreta da pena que lhe foi aplicada pelo cometimento do crime de tráfico de estupefacientes (cinco anos de prisão), considerando-a excessiva.

Há que decidir.
O crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do D.L. nº 15/93, de 22/01, é punível com pena de 4 a 12 anos de prisão.

Preceitua o artigo 40º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº 2).

O artigo 71º do mesmo diploma estipula, por outro lado, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (nº 1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra esse mesmo agente (nº 2 do mesmo dispositivo).

Dito de uma outra forma: a função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa proteção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Conforme muito bem se escreve no Ac. do S.T.J. de 29-05-2008 (in www.dgsi.pt), a pena assume “um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição qua tale da culpa; a avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de propósitos garantísticos e no interesse do arguido. A doutrina vem defendendo que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e como limite inferior, o quantum abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 229); será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social; quanto à culpa, para além de suporte axiológico-normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar”.

A moldura penal abstrata do crime praticado pelo arguido é, como já se deixou dito, pena de prisão de 4 a 12 anos.

No caso vertente há que ter em conta, em primeiro lugar, que os crimes de tráfico de estupefacientes têm grande repercussão social e trazem sempre consigo efeitos nefastos para a sociedade.

Depois, e no caso concreto:

- O arguido, durante três meses, procedeu à venda de um produto estupefaciente (heroína) tido como dos mais nefastos para a saúde dos eventuais consumidores.

- O arguido já tem antecedentes criminais (uma condenação anterior) pela comissão de crime de igual natureza.

- Os antecedentes criminais do arguido, os concretos termos em que os factos foram praticados, e as condições de vida do arguido (dadas como provadas no acórdão sub judice) levam-nos à conclusão de serem elevadas as necessidades de prevenção, quer geral, quer especial.

- O dolo subjacente à prática dos factos reveste a sua modalidade mais grave (dolo directo) e é muito intenso.

- Neste tipo legal de crime (tráfico de estupefacientes) as finalidades de prevenção geral impõem-se com particular acuidade, pela forte ressonância negativa, na consciência social, das atividades que o consubstanciam, conhecendo a comunidade as gravíssimas consequências que resultam do tráfico (e do consumo a ele associado) de produtos estupefacientes, particularmente das chamadas “drogas duras”.

- A favor do arguido, neste caso concreto, verifica-se que não estamos perante uma conduta (uma atividade de tráfico) especialmente danosa, atendendo às quantidades vendidas, às pessoas a quem essas vendas foram efetuadas (foram apenas identificadas entre 8 a 10 pessoas a quem o arguido vendeu o produto estupefaciente em causa), e ainda às quantias em dinheiro pagas pelos consumidores.

- Não é possível, pois, fundadamente, afirmar que o arguido visava obter ganhos significativos (especialmente relevantes) decorrentes da atividade ilícita em discussão nestes autos.

Ponderando todos estes fatores, de forma conjugada e global, considera-se inteiramente adequada a pena de 5 anos de prisão aplicada ao arguido no acórdão sub judice (pelo cometimento do crime de tráfico de estupefacientes em questão).

Dito de outro modo: atendendo aos descritos fatores, e sopesando, com base neles, a medida da culpa e as exigências de prevenção, entendemos que a pretensão recursiva de aplicação ao arguido de pena inferior a 5 anos de prisão (dentro de uma moldura penal abstrata que vai de 4 a 12 anos de prisão) é, manifestamente, de desatender, por tal pretensão não se mostrar, minimamente, equilibrada e ajustada.

Assim, e nesta segunda vertente (redução da medida concreta da pena), o recurso do arguido é de improceder.

c) Da declaração de perda a favor do Estado do veículo ---QL
Entende o recorrente que não deve ser declarado perdido a favor do Estado o veículo de matrícula ---QL, em virtude de não se verificarem os pressupostos estabelecidos no artigo 35º do D.L. nº 15/93, de 22/01.

Cumpre decidir.

Sob a epígrafe “perda de objetos”, estabelece o artigo 35º do D.L. nº 15/93, de 22/01:

1 - São declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infração prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos.

2 - As plantas, substâncias e preparações incluídas nas tabelas I a IV são sempre declaradas perdidas a favor do Estado.

3 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto”.

Assim, de harmonia com o disposto no nº 1 do transcrito normativo legal, são declarados perdidos a favor do Estado os “objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática” do crime em causa.

Desde logo, este preceito torna, pois, desnecessário (ao perdimento a favor do Estado) que os objetos representem qualquer perigo para a segurança das pessoas ou da ordem pública ou que representem riscos de utilização no cometimento de factos ilícitos típicos.

Isto é: basta, para decretar o perdimento dos objetos a favor do Estado, que os mesmos tenham sido utilizados (ou estivessem destinados a ser utilizados) na prática das infrações previstas no D.L. nº 15/93, de 22/01

Depois, para o perdimento em análise, é exigível a existência de um nexo de instrumentalidade entre a utilização do objeto e a prática do crime.

Por outras palavras: os objetos em causa (nomeadamente os veículos automóveis) devem ser essenciais ao surgimento do ilícito penal, ou, pelo menos, à sua manifestação de determinado modo.

É necessário, por conseguinte, que a relação do objeto com a prática do crime se revista de um carácter significativo, de um nexo evidente e próximo, de uma interdependência relevante, ou seja, é necessário que exista, entre o objeto e o crime, uma relação de causalidade adequada.

Por último, e a nosso ver, deve valer, também nesta sede, o princípio da proporcionalidade, significando aqui tal princípio que o perdimento a favor do Estado tem de ser equacionado com cotejo entre esse perdimento de objetos e a importância do facto delitivo, de modo a podermos afirmar que o perdimento não ultrapassa, de modo inaceitável, aquilo que é razoável (à luz da justa medida das coisas).

Revertendo ao caso destes autos, decorre da matéria de facto provada que o veículo automóvel de matrícula ----QL, pertença do recorrente, era por si próprio conduzido, entre Beja e Sines, sendo que, nessa viagem, o recorrente transportava heroína.

Mais: em bom rigor, e de acordo com a factualidade tida como assente no acórdão revidendo, não é certo, por um lado, que o veículo automóvel em questão fosse (sempre) utilizado no vaivém entre Beja e Sines (onde o recorrente se abastecia de heroína), e, por outro lado, não é também certo que o recorrente efetuasse as entregas do produto estupefaciente aos consumidores com utilização do dito veículo.

Acresce que o produto estupefaciente em discussão, atendendo ao seu pequeno peso e ao seu reduzido volume, poderia ser facilmente transportável por qualquer outra forma, não sendo a utilização do veículo automóvel do recorrente essencial para o cometimento do ilícito.

O veículo automóvel em apreço não era, pois, indispensável ao transporte e/ou à ocultação do produto estupefaciente, constituindo apenas um mero meio de transporte do seu proprietário.

Em face do que vem de dizer-se relativamente à concreta situação posta nestes autos, e à luz dos considerandos de ordem geral acima expostos, o veículo automóvel de matrícula ---QL tem de ser excluído da declaração de perda a favor do Estado operada no acórdão sub judice.

Com efeito, entre a utilização desse veículo e a prática do ilícito não se verifica uma relação de causalidade adequada, pois que, a nosso ver, mesmo sem a utilização do veículo automóvel em apreço o crime teria sido praticado, e, além disso, teria sido cometido de modo idêntico (atente-se que, olhando à quantidade da heroína em questão, tal produto podia ser transportado, pelo recorrente, com utilização de qualquer outro meio de transporte).

É certo que a utilização de viatura própria pode ter facilitado as deslocações do recorrente entre Beja e Sines, tornando-as mais rápidas e mais cómodas.

Contudo, isso não chega, em nosso entender, para considerarmos a viatura utilizada nessas deslocações como “instrumento do crime”, no acima apontado sentido da existência de uma relação de causalidade adequada entre a utilização da viatura e a prática do crime em causa.

Em conclusão: há que conceder provimento ao recurso nesta última vertente, não se determinando o perdimento a favor do Estado do veículo automóvel de matrícula ---QL.

Nos termos expostos, o recurso do arguido é parcialmente de proceder.

III - DECISÃO

Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido, e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido na parte em que declarou perdido a favor do Estado o veículo automóvel apreendido à ordem dos autos, com a matrícula ---QL, o qual deverá ser entregue ao recorrente.

Em tudo o mais, mantém-se o decidido no acórdão revidendo.

Sem tributação, atendendo a que foi dado parcial provimento ao recurso.
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 20 de fevereiro de 2018

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(João Manuel Monteiro Amaro)

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(Maria Filomena de Paula Soares)