Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1214/20.2T8FAR.E1
Relator: ANA MARGARIDA CARVALHO PINHEIRO LEITE
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
TERRENOS CONFINANTES
UNIDADE DE CULTURA
RESERVA AGRÍCOLA NACIONAL
PRÉDIO RÚSTICO
ALIENAÇÃO
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O artigo 1381.º do CC, que prevê exceções ao direito de preferência consagrado no artigo 1380.º do mesmo código – atribuído reciprocamente aos proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante –, não é aplicável ao direito de preferência estabelecido no artigo 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, que aprovou o regime jurídico da RAN – atribuído aos proprietários de prédios rústicos ou mistos incluídos numa área da RAN, nos casos de alienação ou dação em cumprimento de prédios rústicos ou mistos confinante inseridos na RAN, a quem não for preferente. (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral: Juízo Central Cível de Faro

Tribunal Judicial da Comarca de Faro

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório

E…, S.A. intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra A…, melhor identificadas nos autos, pedindo:

a) se declare e reconheça o direito de preferência da autora sobre o prédio alienado por escritura pública outorgada em 10 de fevereiro de 2020, no Cartório Notarial de Olhão, no Livro 169-A, a fls. 144, melhor identificado no artigo 6.º da petição inicial;

b) se condene a 2.ª ré a entregar o prédio identificado no artigo 6.º da petição inicial, desocupado, livre de ónus ou quaisquer encargos, por esta adquirido pela escritura pública referida na alínea anterior;

c) se substitua a 2.ª ré na escritura pública de compra e venda, sendo transmitida à autora a propriedade do referido prédio;

d) se ordene o cancelamento das inscrições prediais a favor da 2.ª ré adquirente, ou que se venham a efetuar, relativamente ao prédio vendido e objeto de preferência, designadamente a ap. 1931 de 2020-02-18, com todas as demais consequências que ao caso couberem.

A justificar o pedido, alega, em síntese, que goza de direito de preferência na alienação do prédio misto que identifica, por ser proprietária de prédio misto confinante e ambos os prédios se incluírem numa área de Reserva Agrícola Nacional, o qual foi vendido pela 1.ª ré à 2.ª ré sem lhe ser concedida preferência, apesar de ter exercido o seu direito na sequência de comunicação efetuada pela 1.ª ré.

A autora procedeu ao depósito dos montantes de € 102 000, relativo ao preço da alienação, e de € 2000, a título de despesas, bem como ao registo da ação.

A autora reduziu o pedido, na parte relativa ao peticionado sob a alínea d), o que foi admitido.

Citadas, as rés contestaram, defendendo-se por exceção – alegando que a 2.ª ré adquiriu o prédio com o objetivo de nele instalar a sua habitação própria e permanente, residência que efetivamente instalou no prédio urbano, destinado a habitação, existente no terreno em causa, e sustentando que tal factualidade impede o reconhecimento do direito de preferência invocado pela autora – e por impugnação, como tudo melhor consta do articulado apresentado.

Foi realizada audiência prévia, na qual, na sequência de convite para o efeito, a autora perfeiçoou a petição inicial e, após comunicação de que o estado do processo permite conhecer do mérito da causa, se facultou às partes a discussão de facto e de direito, conforme consta da respetiva ata.

Por decisão constante da ata da audiência prévia, proferiu-se despacho saneador tabelar, discriminou-se os factos considerados provados e conheceu-se do mérito da causa, tendo a ação sido julgada parcialmente procedente, nos termos seguintes:

Pelo exposto, ao abrigo das citadas disposições legais, decido julgar parcialmente procedente, por provada, a ação intentada e, em consequência:

- reconheço o direito legal de preferência na venda invocado pela autora, declarando transmitida para esta a propriedade do prédio misto identificado em 2. dos factos provados, pelo preço de €102.000,00;

- determino a entrega do referido prédio misto à autora, livre e desocupado;

- absolvo as rés do demais peticionado.

*

Custas da ação pela autora e pelas rés, na proporção de ¼ e ¾ (art.º 527.º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).

Inconformadas, as rés interpuseram recurso desta decisão, pugnando para que seja revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, com vista à produção de prova em audiência final sobre a factualidade integradora da exceção que invocaram, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:

«I. O DL n.º 73/2009 de 31/03, ao acrescentar no art.º 26º a expressão “ou mistos”, tal não equivale à revogada 2ª parte da alínea a) do art.º 1381º do CC, como, implicitamente, concluiu a Meritíssima Juiz “a quo”, tendo em consideração o sentido vertido na Doutra Sentença, proferida em sede de Audiência Prévia.

II. O conceito de “prédios mistos” está definido na alínea k) do art.º 3º do DL 73/2009, podendo concluir-se, a contrario, que se a parte urbana existente no prédio rústico tiver autonomia e puder ser separadamente classificada como urbana, já não estaremos na presença de “prédio misto”, mas sim perante dois prédios distintos: um rústico e outro urbano.

III. Na sua Contestação as Recorrentes, entre os art.ºs 26º e 47º alegam um conjunto de factos que, a serem provados, extinguirão os efeitos jurídicos dos factos alegados pela Recorrida, designadamente, o alegado direito de preferência.

IV. Alegam, nomeadamente, as Recorrentes que a 2ª Ré, ao ter adquirido aquele terreno, tinha o propósito de ali instalar a sua habitação própria permanente.

V. Tendo logo na escritura pública de aquisição a 2ª Ré manifestado essa intenção, tal como o alegam no artº 47º da Contestação e o demonstram no documento 12, junto à p.i..

VI. A 2ª Ré, ora Recorrente, expressamente, nos artigos 26º, 45º, 47º e 51º da Contestação, alegou a sua intenção de proceder à modificação do fim a que se destinava aquele terreno agrícola, afetando-o a um fim distinto, isto é, ao da sua habitação própria e permanente.

VII. Tendo mesmo alegado no art.º 51º da Contestação, que já tinha concretizado tal intenção, e que tal facto opunha-se ao direito de preferência alegado pela Autora, conforme previsto na 2ª parte da alínea a) do art.º 1381º do CC., pelo que, com o devido respeito, não andou bem a Meritíssima Juiz “a quo” ao concluir que as Rés, como razões de direito, apenas alegam que foram juridicamente aconselhadas acerca da inexistência daquele direito de preferência.

VIII. Ao não atender, nem sequer se pronunciar sobre a 2ª parte da supra referida alínea a), do artigo 1381º do CC., com fundamento em que o art.º 26º do DL 73/2009 não estabelece qualquer remissão para o artigo 1381º do CC., a Meritíssima Juiz "a quo” conduz à conclusão de que considera revogada, tal previsão contida na 2ª parte da alínea a) daquele artigo do CC.

IX. Pelo que mostra-se violada a norma contida no artº 26º do DL 73/2009 de 31/03, ex vi, 2ª parte da alínea a) do art.º 1381º do CC..

X. Assim como, em consequência de não se ter pronunciado sobre os factos alegados pelas Rés, os quais, a serem provados, impedem ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pela Autora, ora Recorrida, salvo melhor opinião, violou também a parte final da alínea b) do n.º 1 do artº 595º do C.P.C..

XI. Tendo, a nosso ver, mal andado, quando conheceu do mérito da causa, sem apurar a prova sobre as efetivas motivações da 2ª Ré, ao adquirir o prédio em causa, tudo, como se tais motivações fossem irrelevantes, face ao estabelecido no artigo 26º do DL n.º 73/2009 de 31/03.

XII. Razões pelas quais, a nosso ver, os autos devem baixar à 1ª instância, para aí ser feita a prova sobre se a intenção da 2ª Ré, ao adquirir tal prédio, tinha ou não o propósito de o afetar a um fim diferente, daquele que tinha até então.»

A autora contra-alegou, pronunciando-se no sentido da manutenção do decidido.

Face às conclusões das alegações das recorrentes e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar a questão da oportunidade do conhecimento do mérito da causa no despacho saneador.

Corridos os vistos, cumpre decidir.


2. Fundamentos


2.1. Decisão de facto


2.1.1. A 1.ª instância considerou provados os factos seguintes:

1 - A autora é proprietária e possuidora do prédio misto, sito em …, freguesia de Moncarapacho, concelho de Olhão, composto por pomar de citrinos, pastagem e leito e curso de água e casas térreas com 11 divisões, com a área de 23.880m2, o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º … e inscrito na matriz sob os art.ºs urbano … e rústico … (cf. doc. de fls.28/29, 24/25 e 26/27, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

2 - O qual confina pelo lado sul e a nascente com o prédio misto, sito em …, freguesia de Moncarapacho, concelho de Olhão, composto por pomar de citrinos, cultura arvense e oliveiras e casas térrea e logradouro, com a área de 13.560m2, o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º … e inscrito na matriz sob os art.ºs urbano … e rústicos … e … (cf. doc. de fls.34/35, 30, 31, 32/33 e 48, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

3 - No dia 17.01.2020 a autora recebeu uma comunicação, enviada pelo mandatário da 1ª ré, com o assunto “Exercício do direito de preferência”, em que é referido “(...) Sendo V. Exas. titulares de um direito legal de preferência na sua alienação, comunicamos todos os elementos essenciais da compra e venda, para efeitos de exercício do referido direito: (...)”

“(...) Deverão V. Exas., se assim o entenderem, exercer o seu direito de preferência no prazo de 8 (oito) dias a contar da receção da presente carta, em conformidade com as disposições legais aplicáveis. (...)” (cf. doc. de fls.36/37, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

4 - Naquela comunicação a 1ª ré transmitiu à autora as condições do negócio que havia estabelecido com 2.ª ré, relativas ao objeto (prédio identificado no ponto 3.); o comprador (2.ª ré); o preço (100.000,00 euros), o pagamento (na íntegra na data da outorga da escritura pública de compra e venda); as condições de venda (no estado em que se encontra e livre de ónus ou encargos); as despesas (a cargo do comprador); a data da projetada venda (até ao dia 15 de fevereiro de 2020, no escritório do mandatário da 1.ª ré) (cf. doc. de fls.36/37, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

5 - Por carta registada com aviso de receção datada de 17.01.2020, a autora respondeu-lhe comunicando “(...) informamos que a E…, S.A., pretende exercer esse direito, preferindo na aquisição do prédio sito em … (...)” (cf. doc. de fls.40/42, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

6 - A comunicação foi recebida pela 1ª ré na pessoa do seu mandatário, no dia 20.02.2020 (cf. doc. de fls.40/42, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

7 - Mediante escritura pública datada de 10.02.2020, outorgada no Cartório Notarial de Olhão, sito na Rua Patrão Joaquim Casaca, a 1ª ré declarou vender à 2ª ré, que declarou comprar, pelo preço de €102.000,00, o prédio misto identificado em 2. (cf. doc. de fls.43/47, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

8 - A aquisição do direito de propriedade, por compra, encontra-se registada através da AP. 1931 de 18.02.2020 a favor da 2ª ré (cf. doc. de fls.34/35, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

9 - Os prédios mistos identificados em 1. e 2. estão incluídos no âmbito da Reserva Agrícola Nacional (cf. doc. de fls.52/54, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

10 - Na data referida em 7. a 2ª ré não era proprietária de qualquer prédio confinante com o prédio misto identificado em 2..

2.1.2. Quanto a factos não provados, a 1.ª instância consignou o seguinte:

Factos Não Provados

Não se deixaram de provaram quaisquer factos, com relevo para a decisão, sendo certo que a prova dos demais alegados, nomeadamente parecer jurídico, situação pessoal da 2ª ré e motivação da aquisição não relevam para a decisão, pois que, mesmo que se provassem, não levariam a que fosse proferida decisão diversa.

2.2. Apreciação do objeto do recurso

A 1.ª instância conheceu do mérito da causa no despacho saneador, tendo apreciado os pedidos deduzidos pela autora, o que vem questionado na apelação, defendendo as recorrentes que o estado do processo não permitia a prolação dessa decisão sem a produção de prova.

A justificar tal alegação, sustentam as apelantes que a questão da não existência do direito de preferência invocado pela autora, com fundamento na qual peticionaram a improcedência da ação, exige a produção de prova sobre os factos, que alegaram na contestação, relativos à intenção da 2.ª ré ao comprar o prédio misto em causa e aos atos que praticou após tal aquisição, por entenderem que a mencionada factualidade preenche a previsão da 2.ª parte da alínea a) do artigo 1381.º do Código Civil e que tal impede a existência do aludido direito.

Vejamos se lhes assiste razão.

Definindo as finalidades do despacho saneador, dispõe o n.º 1 do artigo 595.º do Código de Processo Civil que se destina a: a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente; b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.

Prevê a alínea b) do citado preceito o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, se o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas.

Esta desnecessidade de mais provas verificar-se-á, entre outras situações, quando não existam factos controvertidos, estando em causa unicamente matéria de direito, mas também nos casos em que da factualidade controvertida não resulte o efeito jurídico pretendido pela parte que a alegou, não assumindo tal matéria de facto relevo à luz das várias soluções plausíveis da questão de direito. Nestes casos, perante a inconcludência do pedido, não se podendo retirar da matéria de facto alegada o efeito jurídico pretendido, esclarece José Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum: À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 183) que “é inútil produzir prova sobre os factos alegados, visto que eles nunca serão suficientes para a procedência do pedido”.

No que respeita a factualidade não considerada provada, consta da fundamentação de facto da decisão recorrida o seguinte:

Factos Não Provados

Não se deixaram de provaram quaisquer factos, com relevo para a decisão, sendo certo que a prova dos demais alegados, nomeadamente parecer jurídico, situação pessoal da 2ª ré e motivação da aquisição não relevam para a decisão, pois que, mesmo que se provassem, não levariam a que fosse proferida decisão diversa.

Extrai-se da fundamentação de direito de tal decisão, por outro lado, que se considerou inaplicável ao caso presente o regime estatuído no artigo 1381.º do Código Civil, invocado pelas rés.

Verificando que não foram considerados provados os factos alegados pelas recorrentes como fundamento da previsão da 2.ª parte da alínea a) do artigo 1381.º do Código Civil, cumpre averiguar da necessidade de produzir prova sobre tal factualidade, aferindo da aplicabilidade do preceito invocado.

Está em causa, no caso presente, o exercício pela autora do direito de preferência na venda do prédio misto identificado no ponto 2 de 2.1.1., efetuada pela 1.ª ré à 2.ª ré através de escritura pública datada de 10-02-2020, com fundamento na previsão do artigo 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, que aprovou o regime jurídico da Reserva Agrícola Nacional (entretanto alterado pelo DL n.º 199/2015, de 16-09).

Sob a epígrafe Direito de preferência, dispõe o mencionado artigo 26.º o seguinte:

1 - Sem prejuízo dos direitos de preferência estabelecidos no Código Civil e em legislação complementar, os proprietários de prédios rústicos ou mistos incluídos numa área da RAN gozam do direito de preferência na alienação ou dação em cumprimento de prédios rústicos ou mistos confinantes.

2 - Os proprietários dos prédios rústicos ou mistos inseridos na RAN que os pretendam vender, comunicam por escrito a sua intenção aos confinantes que podem exercer o seu direito nos termos dos artigos 416.º a 418.º do Código Civil.

3 - No caso de violação do prescrito nos números anteriores é aplicável o disposto no artigo 1410.º do Código Civil, exceto se a alienação ou dação em cumprimento tiver sido efetuada a favor de um dos preferentes.

Este preceito consagra um direito de preferência com os seguintes pressupostos: i) alienação ou dação em cumprimento; ii) de prédio rústico ou misto inserido numa área da RAN; iii) que seja confinante com prédio rústico ou misto também inserido numa área da RAN; iv) o qual pertença ao preferente; v) o adquirente não ser preferente.

Para efeitos do regime jurídico da Reserva Agrícola Nacional, entende-se por «prédio misto», nos termos da definição constante da alínea k) do artigo 3.º do citado diploma legal (na redação dada pelo DL n.º 199/2015, de 16-09), o terreno constituído por parte rústica e parte urbana, sem que qualquer das partes possa separadamente ser classificada como prédio rústico ou prédio urbano.

O aludido artigo 26.º remete, no n.º 2, para os artigos 416.º a 418.º do Código Civil, relativos ao pacto de preferência e, no n.º 3, para o artigo 1410.º do mesmo código, relativo à ação de preferência.

Por força da remissão constante do n.º 2, para os artigos 416.º a 418.º do Código Civil, é aplicável o regime previsto para o pacto de preferência no que se refere ao conhecimento do preferente, à venda do prédio juntamente com outro ou outros e à promessa de uma prestação acessória; da remissão constante do n.º 3, para o artigo 1420.º daquele código, decorre, por seu turno, a aplicabilidade do regime de tutela do direito de preferência, através da respetiva ação, previsto para a compropriedade.

Considerou a decisão recorrida, e não vem posto em causa na apelação, verificados todos os pressupostos previstos no aludido artigo 26.º, por se ter entendido que ocorreu uma alienação de um prédio misto inserido numa área RAN, o qual foi vendido pela 1.ª ré à 2.ª ré, que esse prédio confina com um prédio misto igualmente inserido em área RAN pertencente à autora e que a ré adquirente, à data da venda, não era proprietária de qualquer prédio confinante com o prédio misto alienado.

Efetivamente, dúvidas não há de que, à data da venda, a autora e a 1.ª ré eram proprietárias de prédios mistos inseridos numa área da RAN, confinantes entre si, e a 2.ª ré não era proprietária de qualquer prédio confinante com o prédio pertencente à 1.ª ré, pelo que se mostram preenchidos todos os elementos constitutivos do direito de preferência invocado pela autora, consagrado no artigo 26.º do regime jurídico da Reserva Agrícola Nacional.

Face às regras de distribuição do ónus da prova estatuídas no artigo 342.º do Código Civil, pretendendo a autora exercer o seu direito de preferência relativamente à venda operada entre a 1.ª e a 2.ª rés, incumbe-lhe o ónus da prova dos pressupostos supra indicados, que configuram os elementos constitutivos do direito de preferência decorrente do preceito invocado; incumbe às rés, por seu turno, perante a exceção que arguiram, demonstrar a existência de factos impeditivos daquele direito de preferência.

O artigo 1381.º do Código Civil, invocado pelas apelantes, prevê determinados casos em que os proprietários de terrenos confinantes não gozam do direito de preferência – designadamente a situação consignada na alínea a), com a redação seguinte: Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura –, estando em causa na apelação aferir da aplicabilidade desta norma ao caso presente.

A determinação do âmbito de aplicação deste preceito importa se tenha em conta a respetiva inserção sistemática, cumprindo atender a que o mesmo se integra no regime que estabelece restrições ao fracionamento de prédios aptos para cultura previsto na Secção VII (Fraccionamento e emparcelamento de prédios rústicos) do Capítulo III (Propriedade de imóveis) do Título II (Do direito de propriedade) do Livro III (Direito das Coisas) do Código Civil.

O n.º 1 do artigo 1376.º do Código Civil proíbe o fracionamento de terrenos aptos para cultura em parcelas de área inferior à superfície mínima correspondente à unidade de cultura fixada para a zona geográfica onde se localiza o prédio. Por outro lado, o artigo 1377.º do mesmo código prevê, nas suas três alíneas, determinadas situações em que é possível o fracionamento, dispondo que a proibição não é aplicável, designadamente, a terrenos que constituam partes componentes de prédios urbanos ou se destinem a algum fim que não seja a cultura, conforme decorre da alínea a). Por seu turno, o artigo 1379.º daquele código, prevê, além do mais, as sanções aplicáveis aos atos de fracionamento contrários ao disposto no artigo 1376.º.

No âmbito deste regime, que estabelece restrições ao fracionamento de prédios aptos para cultura, o artigo 1380.º do Código Civil atribui um direito de preferência recíproco, aos proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante. O artigo 1381.º, invocado pelas apelantes, prevê, nas suas duas alíneas, determinadas situações em que os proprietários de terrenos confinantes não gozam do direito de preferência, designadamente a prevista na supra citada alínea a), isto é, algum dos terrenos constituir parte componente de um prédio urbano ou se destinar a algum fim que não seja a cultura.

Este artigo 1381.º elenca situações que constituem exceções impeditivas do direito de preferência estabelecido no artigo anterior.

Neste sentido, em anotação ao citado artigo 1381.º, explicam Rui Pinto/Cláudia Trindade (CÓDIGO CIVIL: Anotado, Coord. Ana Prata, volume II, Coimbra, Almedina, 2017, p. 198) o seguinte: “Processualmente, enquanto os pressupostos de facto arrolados no n.º 1 do artigo anterior são factos constitutivos do direito invocado, os factos do presente preceito operam como exceções perentórias impeditivas, para efeitos do art. 576.º, n.º 3, do CPC”.

Não está em causa, no caso presente, o direito de preferência consagrado no artigo 1380.º, atribuído reciprocamente aos proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura, nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios; o que está em causa nestes autos é o direito de preferência estabelecido no artigo 26.º do regime jurídico da Reserva Agrícola Nacional, atribuído aos proprietários de prédios rústicos ou mistos incluídos numa área da RAN, nos casos de alienação ou dação em cumprimento de prédios rústicos ou mistos confinante inseridos na RAN.

As situações previstas no artigo 1381.º, invocado pelas apelantes, constituem exceções impeditivas do direito de preferência estabelecido no artigo 1380.º e não do direito de preferência consagrado no artigo 26.º do regime jurídico da Reserva Agrícola Nacional, sendo certo que o DL n.º 73/2009, de 31-03, não estabelece qualquer remissão que permita considerar aplicável o aludido preceito.

As apelantes sustentam que a decisão recorrida teve por revogada a alínea a) do citado artigo 1381.º, insurgindo-se contra esse entendimento. No entanto, não se vislumbra que tal decorra da sentença proferida, na qual apenas se considerou que o preceito em causa não é aplicável ao direito de preferência estabelecido no artigo 26.º do regime jurídico da Reserva Agrícola Nacional e não que aquele preceito tenha sido revogado, designadamente pelo DL n.º 73/2009, de 31-03, conforme se afirma nas alegações da apelação.

Nesta conformidade, tendo-se concluído que a alínea a) do artigo 1381.º do Código Civil não é aplicável ao caso presente, verifica-se que não assumem relevância os factos alegados pelas recorrentes como fundamento da previsão da 2.ª parte daquela alínea, assim se mostrando desnecessário produzir prova sobre tal factualidade.

Assim sendo, mostra-se acertada a decisão recorrida, ao considerar que o estado dos autos permitia o conhecimento do mérito da causa, sem necessidade de mais provas, pelo que improcede a apelação.

Em conclusão:

O artigo 1381.º do CC, que prevê exceções ao direito de preferência consagrado no artigo 1380.º do mesmo código – atribuído reciprocamente aos proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante –, não é aplicável ao direito de preferência estabelecido no artigo 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, que aprovou o regime jurídico da RAN – atribuído aos proprietários de prédios rústicos ou mistos incluídos numa área da RAN, nos casos de alienação ou dação em cumprimento de prédios rústicos ou mistos confinante inseridos na RAN, a quem não for preferente.

3. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelas recorrentes.

Notifique.

Évora, 11-02-2021

(Acórdão assinado digitalmente)

Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite

(Relatora)

Cristina Dá Mesquita

(1.ª Adjunta)

José António Moita

(2.º Adjunto)