Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
488/05-3
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: USUCAPIÃO
ANIMUS POSSIDENDI
Data do Acordão: 04/21/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário:
A falta de animus possidendi acarreta que os AA sejam simples detentores ou possuidores precários, nos termos das alíneas a) e b) do artº 1253º do C.Civil e, como estabelece o artº 1290º do mesmo compêndio substantivo legal, os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito “possuído”, salvo se ocorrer a inversio possessionis.
Decisão Texto Integral:
Apelação nº 488/05 – 3
(Acção Sumária 1974/04.8.TBSTB)
3º Juízo Cível de Setúbal



Acordam na Secção Cível da Relação de Évora:


RELATÓRIO

FJ. e FL. demandaram I. e M., todos com os sinais dos autos, pela presente acção declarativa com processo sumário, pedindo que seja reconhecido que os AA adquiririam por usucapião, uma parcela de terreno onde, há 30 anos implantaram uma garagem, com registo a seu favor e a condenação das Rés abster-se de perturbar a sua posse.
Para tanto invocam, em síntese, serem possuidores de tal terreno há mais de 30 anos, pública e pacificamente e, também, de boa-fé, como se donos do mesmo fossem, pois receberam o mesmo de P. e E., donos do referido pedaço de terra, mas que, por força dos trabalhos que os ora AA lhes prestaram, cuidando da saúde daqueles e tratando-lhe da terra, sem qualquer remuneração, fizeram tal oferta aos AA, como forma de compensação.
As Rés contestaram negando a verificação dos pressupostos da invocada usucapião do aludido terreno, por banda dos AA.
Após a legal tramitação foi efectuado o julgamento desta acção e proferida sentença que a julgou improcedente, absolvendo as Rés do pedido formulado pelas Autoras.
Inconformadas com tal decisão, as Autoras trouxeram recurso de Apelação da sentença proferida para este Tribunal da Relação, rematando a sua alegação com as seguintes:

Conclusões:

1a A primeira questão que se coloca no presente recurso é a impugnação relativamente à apreciação das provas produzidas e gravadas e a consequente modifïcabilidade da decisão de facto, designadamente:

a)Todos os depoimentos quer das testemunhas dos autores quer das Rés referiram que os Autores estão na parcela de terreno durante 25 / 30 anos, ininterruptamente,

b) Todas as testemunhas confirmaram que nunca ouviram o Sr. O., P. e E. e I. mandá-los embora, oporem-se de qualquer forma à posse deles,

c) Aliás, a testemunha da Ré, F. disse claramente que..."deu o terreno às pessoas mas não deu nada por escrito..."

d) Todas as testemunhas referiram que existe lá o barracão que foi edificado pelos Autores, que foram estes que lá puseram o cadeado.

e) O facto de várias testemunhas dizerem que o Sr. O. era bom vizinho e que permitia que alguns vizinhos pusessem o carro ao lado do seu e consequentemente no seu terreno;

f) Mas também explicaram o local onde os autores edificaram a construção e guardavam o carro era diferente e daquele outro local;

g) Este facto releva perfeitamente a diferença entre um gesto de cordialidade de vizinhança, um mero acto de tolerância e a situação dos Autores que configura uma posse efectiva com domínio de facto, que até o proprietário do restante imóvel respeitavam; porque sabiam não lhes pertencer.

2° Com o devido respeito houve uma apreciação das provas errónea;

3° Segunda questão que se levanta no presente recurso foi a referência de uma testemunha (o Sr. L.) a um senhor que tinha em seu poder documento (projecto) da separação da parcela, que este senhor era quem tratava das "papeladas" do Sr. O. e da D* I.;

a) Esta pessoa é importante para a descoberta da verdade, deveria sempre ser ouvida;

b) Provavelmente terá em seu poder documentos úteis ao esclarecimento da causa;

c) Depois do julgamento o Sr. L. indicou onde residia a pessoa, afinal é próximo da localidade e o nome dele: LC., residente na Rua ……..

d) Poderia o Meritíssimo Juiz ter ordenado a suspensão da audiência para se averiguar quem seria esta pessoa e ouvi-la, porque se de facto a testemunha Luís não sabia dizer na altura, decerto a Ré Graça presente no julgamento sabe quem é; (artigo 645° do CPC)

e) Não obstante, poderão ainda Vossa Excelências caso entendam ser necessário, ordenar a realização das diligências que considere necessárias (artº 700' CPC)

f) Bem como determinar a renovação dos meios de prova produzidos em l" instância (artº 712° do CPC)

4° Questão presente neste recurso é a verificação da existência do corpus e animus.

a) Alude-se aos ensinamentos do Ilustre Professor Doutor Orlando de Carvalho (Introdução a posse, in RLJ, 122, pg. 68) que....Não existe corpus sem animus nem animus sem corpus. Corpus é o exercido de poderes de facto que intende uma vontade de domínio, de poder jurídico-real. Animus é essa intenção juridico-reaLÈ inferivel, exprime-se pelo poder de facto. A intenção de domínio (pg. 105) não tem de explicitar-se e muito menos por palavras. O que importa é que se infira do próprio modo de actuação ou de utilização.

E ainda ao,

b)O Pleno do ST J, em acórdão de uniformização da jurisprudência de 14/05/96 publicado no DR II de 24/06/96 aplicou esta doutrina, ao extrair a seguinte conclusão:
" Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre a coisa."

Escorando-se no artigo l 252º-2, considerou o pleno que o poder de facto faz nascer uma presunção de posse, não sendo lícito ao tribunal exigir ainda a quem invoca a posse, a prova, sempre difícil, do animus.

5, Ao ter julgado a acção improducente, a sentença recorrida violou os artigos 1.252°-2, 1287º e 1296º, todos do Código Civil.

Contra-alegaram as Apeladas I. e M., sustentando a manutenção da decisão recorrida, começando por dizer que o artº 690º-A do CPC, impõe ao recorrente que impugne a matéria de facto, o dever de indicar quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados que imponham decisão diversa da recorrida, e que, no caso da gravação, incumbe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artº 522º-C.
Basta que os recorrentes não tenham cumprido um só destes ónus para que o recurso seja rejeitado, o que acontece no caso em apreço, pois não há a mínima referência à cassete ou à metragem, onde se encontram gravados os depoimentos que sustentam os seus pontos de vista, não são especificados os pontos de facto incorrectamente julgados, nem os meios de prova que imponham decisão diversa.
No mais, rebatem a posição dos recorrentes.

Corridos os vistos legais, e nada obstando ao conhecimento do objecto do presente recurso, que é delimitado, como é sabido pelas conclusões da alegação do recorrente, cumpre apreciar e decidir!

FUNDAMENTOS

A sentença, ora sob recurso, julgou provados os seguintes factos:


1º - Encontra-se descrito na CRP de Palmela, sob o n.º 4716-A, a fls. 63 v.º do B-16, um prédio misto, cuja aquisição se encontra inscrita, em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor de E., viúva, e O., casado em comunhão geral de bens com a Ré I., por meação e sucessão por morte de P., falecido no estado de casado em comunhão geral de bens com a referida E.;


2º- Na parte rústica do referido prédio, os AA. levantaram uma construção com 12m2, composta de chapas e onde guardam o seu automóvel.

3.° - O A. marido solicitou ao P. autorização para guardar o automóvel no logradouro do imóvel referido no facto 1º.

4º - Ao mesmo anuiu o dito, por razões de boa vizinhança, tolerando, mais tarde, que o A. marido levantasse umas chapas, para executar o barracão onde guarda o seu automóvel.

5º - O O. consentiu que o A. marido colocasse um cadeado na porta do barracão;

6º - O barracão edificado pelo A. marido é o retratado nas fotografias de fs. 34, 35 e 36.

Como bem dizem as Apeladas, os Apelantes, que impugnam, no presente recurso, a matéria de facto, não deram cumprimento ao disposto no artº 690-A do CPC, pois não indicaram quais os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, nem procederam à indicação dos depoimentos em que se fundam, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no artº 522º-C, nº2 do mesmo diploma legal.
Em todo o caso, embora de forma menos perfeita, os Apelantes indicaram os pontos da sua discordância com o decidido e os depoimentos em que se estribaram para manifestarem tal discordância, transcrevendo, inclusivamente, passagens de tais depoimentos, pelo que não se nos afigura legítimo, com base num diploma que privilegia as decisões de fundo sobre as de forma, com é o actual CPC, após a reforma de 95, rejeitar o recurso com base nas insuficiências apontadas.
Já quanto à pretensão de ser ouvida por este Tribunal da Relação a testemunha LC. que os apelantes não arrolaram no processo, e que, quando em plena audiência de julgamento foi referido, por outra testemunha, o seu carácter relevante, mesmo assim não requereram, antes do encerramento da discussão da causa em 1ª Instância, que a mesma fosse convocada a depor, pedindo, se necessário fosse, a concessão de prazo para melhor identificação da mesma, tanto mais que, segundo a testemunha L., a mesma mora perto do local é evidente que tal pretensão tem, fatalmente, de sucumbir.
Com efeito, os recursos têm por fim permitir aos tribunais superiores aquilatar da correcção das decisões proferidas pelo tribunais inferiores, com a mesma base factual e com o mesmo suporte probatório em que as mesmas o foram, e não proferir decisões novas assentes em provas de que estes não chegaram, sequer, a tomar conhecimento e a valorar, sob pena de subversão completa do princípio do duplo grau de jurisdição em que assenta o sistema dos recursos na nossa ordem jurídica.
Mesmo nos casos em que tal princípio é mitigado, tal não vai ao ponto de o tribunal de recurso se socorrer de provas que não foram apresentadas nem requeridas pelos interessados ao tribunal recorrido, tendo podido sê-lo.
O que acabamos de expor é particularmente relevante nos casos em que a instância não é oficiosa e, antes, está sujeita ao princípio do dispositivo, como acontece no caso sub judicio!



Passemos, assim, à apreciação da


Matéria de Facto

Ouvidas as cassetes que acompanharam os autos, é a seguinte a conclusão irrecusável:
Não houve uma apreciação errónea das provas, como defendem os Apelantes!
Com efeito, os Apelantes apenas transcreveram as passagens dos depoimentos que lhes pareceram favoráveis, mas ouvidas as respectivas cassetes dos registos magnetofónicos, constata-se que as testemunhas não se limitaram a dizer que os Autores estão na parcela do terreno durante 25/30 anos ininterruptamente, como sustentam os Apelantes, nem que nunca ouviram ao Sr. O., P. e E. e I. mandá-los embora.
Assim, a testemunha J. afirmou que o ora Apelante «teve ordem para fazer uma garagem...ou uma coisa em madeira para lá pôr o carro como eu próprio lá punha, dentro da fazenda do tio O.» e que «O Sr. O. disse que as mesmas condições que o outro senhor tinha eram as minhas»
Por sua vez, F. disse «... deu o terreno para pôr o carro» (referindo-se à questão de se saber se o pai do Sr. O. tinha oferecido o terreno aos Autores, ora Apelantes) e acrescentou que «outra pessoa que lá guardava o carro...».
A testemunha M. afirmou que «sabe que o Sr. Olímpio deixava lá pôr o carro...»
Por sua vez, a testemunha A. referiu que o Sr. F., ora Apelante, «pôs o cadeado à revelia do Sr. O. e que este, quando confrontado com tal situação pela própria testemunha, teria respondido" o que é que tu queres, o homem pôs aquilo, diz que é para não roubarem a gasolina!»
Portanto, como se vê, não houve qualquer erro na apreciação da prova pelo Exmº Juiz do Tribunal a quo, não resultando provada a `legada manifestação de dádiva do terreno aos Autores, ora Apelantes, por parte dos donos do mesmo, P. e Mulher ou de qualquer dos seus sucessores.
Pelo contrário, a prova testemunhal registada por gravação sonora, aponta justamente no sentido colhido pelo Exmº Julgador da 1ª Instancia, não merecendo, consequentemente, provimento a impugnação da matéria de facto e, em consequência, nenhuma censura merecendo a decisão quanto a tal matéria.

Importa, agora, apreciar o aspecto jurídico da sentença em pauta!





Matéria de Direito

Em face da factualidade provada, é de primeira evidência que não se pode falar em posse dos Autores/Apelantes sobre o terreno, objecto da presente acção, pois desde logo, como bem observam as Apeladas, se vem provado que os AA levantaram uma construção com 12 m2 de área, composta de chapas e onde guardam o seu automóvel, como é que pretendem a usucapião de 200 m2?!
Onde está demonstrada a existência de um único acto de posse sobre os restantes 188 m2?!
Por outro lado, como bem decidiu a sentença recorrida, estribando-se nos factos 9º a 11º do acervo factual apurado, o que se demonstrou foi um mero aproveitamento do consentimento dos antecessores das ora Rés, para ali estacionarem um carro e tal facto demonstra que nos encontramos perante uma simples detenção, insusceptível de aquisição por usucapião, já que lhe falta o animus possidendi essencial para caracterizar a posse, pois são actos praticados por indivíduos que não são os titulares da coisa ou direito sobre que incidem e não significam, portanto, a afirmação de um direito próprio.
A falta de tal animus possidendi acarreta que os AA sejam, como bem considerou a sentença em recurso, simples detentores ou possuidores precários, nos termos das alíneas a) e b) do artº 1253º do C.Civil e, como estabelece o artº 1290º do mesmo compêndio substantivo legal, os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si o direito possuído, salvo se ocorrer a inversio possessionis, o que não se mostra alegado, nem provado.
Acrescentaremos que, mesmo que de posse se tratasse, não é qualquer posse que é susceptível de usucapião!
Como ensina o Prof. Antunes Varela (Código Civil anotado, vol III, 3ª ed. pag. 64), apenas os direitos reais de gozo podem ser adquiridos por usucapião. E nem todos. O artº 1293ºdo C.Civil afasta as servidões prediais e os direitos de uso e habitação.
Ora no caso em apreço e face ao quanto provado ficou, o único direito real de que os Apelantes teriam eventual posse, se se provasse o animus possidendi, seria o de uso do terreno para o estacionamento da sua viatura, embora tivessem construído o barracão com permissão do dono do mesmo terreno, para a guarda e, certamente, protecção do automóvel, pois a guarda de um carro em local abrigado, implica a protecção deste.
Tal direito de uso consiste na faculdade de se servir de coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família, na definitio legis do artº 1484º do C.Civil e seria este direito real de gozo o único a que se adaptaria a factualidade que foi provada e que, como vimos, é insusceptível de aquisição por usucapião.

DECISÃO

Em face de todo o exposto e sem necessidade de mais considerandos, julga-se improcedente a presente Apelação e confirma-se, na íntegra, a sentença recorrida.

Custas pelos Apelantes.




Processado e revisto pelo Relator.


Évora,