Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
281/11.4GDFA.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 12/20/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:
1. Os mecanismos previstos nos arts 358º e 359º do Código de Processo Penal (alteração dos factos) viabilizam a prossecução das finalidades do processo penal, garantindo os direitos de defesa do arguido e o processo justo.

2. A possibilidade de o juiz de julgamento aditar factos só conhecidos na audiência de discussão e julgamento é uma exigência do princípio da verdade material, não contende com a independência e imparcialidade do julgador e não viola a presunção de inocência.

3. Mas o objectivo de punir pelos factos e crime do acontecido e, não por factos artificialmente construídos no processo, não é absoluto nem ilimitado, situando-se o critério delimitador desta movimentação dos poderes de cognição do juiz na garantia de uma defesa eficaz.

4. As modificações da base factual do processo que não concretizem situação prevista na al. f) do art. 1º do Código de Processo Penal devem ser levadas em conta pelo tribunal, cumprindo-se o art. 358º sempre que essas modificações contendam com o exercício da defesa.

5. Tendo o Ministério Público articulado na acusação factualidade bastante para a realização do tipo de violência doméstica, sendo os factos aditados em julgamento meras concretizações dos factos acusados, traduzidas em especificações de datas contidas num período temporal já definido na acusação e de pontuais precisões factuais, não vale a alegação de que o tribunal procedeu a uma alteração substancial dos factos.

6. As agressões físicas (agarrar com força no braço direito e no pescoço, bofetada na face, puxão dos cabelos, apertões nos braços), a prolação de expressões injuriosas (puta, ordinária, nojenta, estúpida, dormes com vários homens, andas fornicando com uns e com outros, és uma vaca, puta, ordinária, andas a foder com toda a gente), a profanação da intimidade e privacidade de diário pessoal (li o teu diário de uma ponta a outra e vou publicá-lo), as ameaças (atiro-te pela janela, faço tudo o que puder para te prejudicar e vais perder o teu emprego, atiro-te das escadas abaixo, vou-te dar cabo da vida, vou-te infernizar a vida, é melhor mudares de balcão, é muito fácil lançar boatos; é melhor aceitares o divórcio nas condições que eu quero ou prepara-te para mudares de agência, atiro-te das escadas abaixo), ocorridas repetidamente entre os meses de Maio e Outubro, integram o conceito de maus-tratos e realizam materialmente o tipo do art. 152º do Código Penal.
Decisão Texto Integral: .
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Processo n.º 281/11.4GDFA do 2º juízo criminal do Tribunal Judicial de Faro foi proferida sentença em que se decidiu:

a) Condenar o arguido EJ pela prática de um crime de violência doméstica, do art, 152º, nºs 1, al- a) e 2 do CP, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão;

b) Suspender a pena aplicada pelo período de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses;

c) Condenar o demandado EJ a pagar à demandante SR a quantia de 800 € (oitocentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, absolvendo-o do restante peticionado.

Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido, concluindo que:

“A).- O facto dado como provado no nº 3 dos “Factos Provados” da sentença (pág. 2/22) não podia ser assim considerado porquanto resulta, desde logo, de uma denominada alteração substancial de factos, nunca antes referidos nem na acusação do Ministério Público nem na acusação da Assistente, e por esta declarada ex novo unicamente em sede de audiência de julgamento, não sendo referida por nenhuma outra testemunha nem alicerçada em qualquer outro meio de prova, como se mostra concretamente resultante dos depoimentos das testemunhas cujas transcrições completas se juntam como DOCS. 3 a 11 e onde se encontram assinalados os registos das respectivas gravações áudio, com as passagens que supra se assinalaram (nsº 42, 43, 58, 59 e 80 desta Motivação);

B).- De igual forma o facto provado no nº 4 dos “Factos Provados” da sentença não tem qualquer suporte probatório a não ser a inovadora declaração da Assistente em audiência de julgamento, resultando igualmente da referida alteração substancial de factos, sendo que os meios de prova referidos na alínea anterior, para onde se remetem, demonstram a falta de suporte de tal facto;

C).- Ao facto dado como provado no nº 5 dos “Factos Provados” da sentença – para além de nem sequer corresponder, na sua exacta redacção, ao teor da alteração determinada no despacho constante da acta de audiência de discussão e julgamento de 17 de Julho de 2012 – falece também de alicerce probatório, suportando-se unicamente na mera afirmação da Assistente, creditada e sobreavaliada pela Meritíssima Julgadora “a quo”, sem qualquer complementar corroboração;

D).- Também os factos contidos os nºs 6, 7, 8 (com excepção do puxão de cabelos, confessado pelo Arguido), 10, 12, 13, 14, 15, 16 e 17 dos “Factos Provados” da sentença não têm qualquer mínimo suporte probatório na prova produzida, sustentando-se outra vez apenas nas declarações da Assistente e na alteração não substancial de factos determinada pela Meritíssima Julgadora para corrigir e suprir as deficiências das acusações do Ministério Público e da Assistente;

E).- Nos termos do nº 3 do art. 412 do Código do Processo Penal são os supra enumerados concretos pontos de facto que o Recorrente entende terem sido incorrectamente apreciados e julgados, de forma contrária às elementares regras da experiência, da lógica e do bom senso, fundando-se esta impugnação daquela indicada matéria de facto nos registos de gravação que se mostram assinalados no proémio de cada um dos documentos (transcrições completas) que vão juntos.

F).- A Constituição da República Portuguesa (nº 5 do art. 32º) e a lei processual penal (art. 283º, nº 3 conjugado com o art. 311º do Código de Processo Penal) não consentem que o juiz introduza no libelo acusatório factos novos que, aportados pela participante e assistente apenas em audiência de julgamento, eram já dela conhecidos à data da participação e da acusação particular, não tendo sido aí sequer mencionados; a utilização da figura da alteração não substancial de factos, à luz daqueles normativos, só pode acontecer relativamente a factos constantes na acusação, não sendo lícito ao juiz de julgamento concretizar, completar e densificar a descrição feita de forma genérica e de modo conclusivo nas acusações (Acórdão do TRE de 12/09/2011 tirado no Proc. nº 331/08.1GCSTB.E1, relatado pelo Sr. Desembargador José Maria Martins Simão). É inconstitucional, por violação do princípio do acusatório (nº 5 do art. 32º da CRP) e do princípio da independência e imparcialidade dos juízes, na sua função jurisdicional (art. 202º, nº 2, in fine, e art. 203º, ambos da CRP), o disposto no art. 358º, nº 1, do Código de Processo Penal, no segmento de “…no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa,…”, se entendido e interpretado como conferindo ao Juiz de julgamento a possibilidade de acrescentar factos novos não descritos nas acusações pública e particular, ou então aqui referidos de forma vaga, indeterminada, genérica e conclusiva, como já decorre do supra citado Acórdão desse Venerando Tribunal da Relação de Évora. Inconstitucionalidade que deve ser conhecida e declarada.

G).- O Recorrente não podia ter sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica quando, mesmo admitindo a ocorrência dos factos constantes na acusação (admissão que se faz sem conceder para exposição do raciocínio), os mesmos não afectam de forma marcante a saúde física, moral e psíquica da “agredida” no contexto concreto do ambiente familiar, in casu já de separação de facto e de eminência de divórcio.

H).- A Meritíssima Julgadora a quo, no que concerne à apreciação da prova, cometeu erro flagrante e notório, traduzido não só na alteração substancial de factos que produziu mas também na valoração exclusiva do depoimento da Assistente, contrariando todas as outras provas e inovando factos relativamente às próprias acusações, e rasgando, por alheamento ou desconhecimento (quiçá fruto da sua juventude e atinente inexperiência), todas as elementares regras da experiência comum, que impunham outra apreciação e exame crítico das provas e um diverso julgamento e decisão da matéria de facto.

I).- Acontece que todos os factos acima impugnados e unicamente considerados provados pelas inovadoras declarações da Assistente, foram refutados peremptoriamente pelo aqui Recorrente, constando esta refutação nas declarações gravadas do mesmo com o registo áudio em 02-07-2012 de 16:54:20 a 17:46:40 (transcrição completa no DOC. 2 junto), constituindo, com o desconhecimento directo das demais testemunhas, a concreta prova em que se funda a impugnação, demonstrando que, no caso em recurso se esgrimem apenas as versões contraditórias da Assistente e do Recorrente, impondo o princípio do in dubio pro reo (conjugado com o interesse da Assistente em obter condenação para sustentar o fundamento que invocou para o divórcio posteriormente intentado) a absolvição do Arguido ora Recorrente.

J).- De igual modo deve o Recorrente ser também absolvido do pedido de indemnização civil em que o Tribunal recorrido o condenou.

L).- O Recorrente, nos termos dos nsº 3 e 4 do art. 412º do Código de Processo Penal pretende ver reapreciadas as provas que se consubstanciam nos depoimentos:

- Declarações da Assistente gravadas sob o registo nº 18-6-2012 de 10:11:56 a 11:35:22;
- Declarações do Arguido gravadas sob o registo nº 02-07-2012 de 16:54:20 a 17:46:40;
- Declarações da testemunha AM gravadas sob o registo nº 02-07-2012 de 16:13:19 a 16:27:13;
- Declarações da testemunha NA gravadas sob o registo nº 18-6-2012 de 11:38:39 a 12:03:20;
- Declarações da testemunha CP gravadas sob o registo nº 18-6-2012 de 12:05:06 a 12:14:59;
- Declarações da testemunha NM gravadas sob o registo nº 18-6-2012 de 12:16:06 a 12:29:11;
- Declarações da testemunha HD gravadas sob o registo nº 18-6-2012 de 12:30:56 a 12:35:52;
- Declarações da testemunha ML gravadas sob o registo nº 02-07-2012 de 14:29:21 a 15:14:36;
- Declarações da testemunha RF gravadas sob o registo nº 02-07-2012 de 15:36:46 a 15:50:55;
- Declarações da testemunha MM gravadas sob o registo nº 02-07-2012 de 15:51:59 a 16:10:13;
- Declarações da testemunha PR gravadas sob o registo nº 02-07-2012 de 15:17:22 a 15:35:25.

M).- Em consequência deverá revogar-se a sentença recorrida, proferindo em sua substituição outra que, alterando a matéria de facto impugnada nos termos em que o foi, conduza à absolvição do Recorrente ou, quanto muito, à sua condenação apenas pelo crime de ofensas à integridade física por ter desferido na discussão travada em 16 de Outubro de 2011, pelas 20:30 horas, na residência de ambos, um puxão de cabelos.”.

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência e concluindo por seu turno:

“1ª- Impugna o Recorrente a matéria de facto considerada provada, requerendo a reapreciação da prova gravada pelo tribunal ad quem, sem que concretize, especifique ou relacione os factos incorrectamente julgados e em que parte dos depoimentos, se impunha ter sido proferida decisão diversa da recorrida, violando, por isso, o disposto no art. 412º, n.ºs 1, 3, al.s a) e b) e 4 do CPP.

2ª- Não é admissível a junção de documentos com a motivação do recurso, devendo estes ser considerados impertinentes e desnecessários, e consequentemente, serem extraídos dos autos e devolvidos ao Recorrente.

3º- De todo e qualquer modo, o tribunal ad quem na reapreciação da prova gravada não poderá deixar de ouvir os depoimentos na íntegra, de forma a que o sentido dos depoimentos não seja truncado.

4ª- Sem prescindir, sempre se dirá que a decisão recorrida não consubstancia uma alteração substancial dos factos.

5ª- Acresce que, o recorrente não concretiza em que factos ocorreu o invocado “erro notório na apreciação da prova”.

5ª- O Tribunal a quo valorou correctamente toda a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como os demais elementos juntos aos autos, bem como fez uma correcta interpretação e aplicação das previsões legais contidas nos art.s 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal.

6ª- Improcedem, pois, todas as conclusões apresentadas pelo Recorrente.

Em via do exposto, deve:

a) O Recorrente ser convidado a aperfeiçoar as conclusões formuladas, sob pena de rejeição do recurso, nos termos do previsto no art. 417º, n.º 3, por referência ao art. 412º, n.ºs 1, 3 e 4 ambos do CPP;

b) ser negado provimento ao recurso, devendo a douta sentença recorrida ser mantida.”

A Sra. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência. O recorrente, reiterando a sua posição, retorquiu ter cumprido os ónus de especificação no recurso de facto.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. Na sentença consideraram-se os seguintes factos provados:

“1. O arguido é casado com SR desde 29 de novembro de 2004, tendo o casal residido no Sítio..., São Brás de Alportel, Faro.

2. Desde abril/maio de 2011 que o casal dormia em quartos separados.

3. No dia 15 de outubro de 2011, no interior da referida residência, o arguido apelidou a SR de «nojenta» e disse-lhe que «andava a dormir com homens em casa».

4. No dia 16 de outubro de 2011, pelas 20h30, no interior da referida residência, logo após ter chegado a casa, o arguido envolveu-se em discussão com a SR, apelidando-a de «ordinária e nojenta».

5. A determinada altura, quando se encontravam no quarto do arguido, este agarrou-a com força no braço direito e no pescoço e empurrou-a contra o armário.

6. Nessas circunstâncias, o arguido dirigiu-lhe palavras como «vaca, puta, ordinária, andas a foder com toda a gente, atiro-te das escadas abaixo».

7. Quando a SR tentou afastar-se, o arguido desferiu-lhe uma bofetada na face do lado esquerdo.

8. Já no quarto da SR, o arguido puxou-lhe os cabelos e dirigiu-lhe palavras como «atiro-te pela janela, vou-te infernizar a vida (ao mesmo tempo que lhe dava três chapadinhas na cara; prepara-te para mudar de agência que é muito fácil lançar boatos».

9. O filho do casal, DM, nascido a 08/05/2005, assistiu aos factos supra mencionados.

10. Em consequência do descrito, a SR sofreu dores e um hematoma da metade esquerda da face de 8 cm, bem como hematomas malar e do couro cabeludo, lesões essas que lhe vieram a provocar um período de doença de 7 dias, os dois primeiros com afetação da sua capacidade para o trabalho geral e profissional.

Nessa data, a SR saiu de casa.

12. Em datas concretamente não apuradas, mas situadas entre maio e 16 de outubro de 2011, na sequência de discussões ocorridas na referida residência, relacionadas com o divórcio, por diversas vezes, o arguido agarrava com força pelos braços da SR, sacudindo-a, e dirigia-lhe expressões tais como «puta, ordinária, nojenta; dormes com vários homens; vou-te dar cabo da vida; é melhor aceitares o divórcio nas condições que eu quero ou prepara-te para mudares de agência; li o teu diário e vou publicá-lo».

13. Numa dessas ocasiões, em data concretamente não apurada mas por volta de maio de 2011, na sequência de um desses «apertões», a SR ficou com hematomas no braço direito.

14. Em virtude de todo o comportamento do arguido, a SR ficou atemorizada e humilhada.

15. Agiu o arguido de forma voluntária, livre e consciente, querendo infligir maus tratos físicos e psíquicos ao seu cônjuge, o que logrou.
16. Sabia ele que a sua conduta era proibida por lei.

17. O arguido tem na sua posse o diário da assistente, que lhe tentou devolver no seu local de trabalho.

18. Encontra-se em curso um processo de divórcio.

19. O arguido é casado.

20. Tem um filho menor.

21. É bancário, auferindo, mensalmente, cerca de €1.100 (mil e cem euros).

22. A demandante também é bancária.

23. O arguido reside sozinho, em casa própria.

24. Despende, mensalmente, a quantia de €490 (quatrocentos e noventa euros) para amortização do empréstimo contraído para aquisição de habitação.

25. Despende, mensalmente, a quantia de €70 (setenta euros) para amortização do empréstimo contraído para aquisição de um painel solar.

26. Despende, mensalmente, a quantia de €150 (cento e cinquenta euros), a título de prestação de alimentos devida ao seu filho menor.

27. Possui dois automóveis: um Ford Mondeo, de 1986, e um Audi 80.

28. É benquisto entre os amigos.

29. Não tem antecedentes criminais.”

E foram consignados os seguintes factos não provados:

“Com relevância para a decisão da causa, não resultaram provados outros factos, em contradição com aqueles ou para além deles, designadamente, os seguintes:

a) Que o arguido tenha na sua posse fotos anteriores ao casamento;
b) Que a assistente tenha pago €200 (duzentos euros) ao advogado;
c) Que a assistente tenha sentido que a sua vida estava em risco;
d) Que a assistente tenha desferido estalo(s) no arguido.”

3. Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, independentemente do conhecimento oficioso dos vícios do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal (AFJ de 19.10.95), as questões a apreciar são as seguintes:

- Alteração de factos e tipo de crime,
- Impugnação da matéria de facto,
- Indemnização civil.

Da alteração de factos e do tipo de crime de violência doméstica:

Considera o recorrente que a alteração de factos operada em audiência de julgamento integra uma alteração substancial de factos, contrariamente à comunicação que fora feita ao arguido, pelo tribunal, que tratara a alteração como não substancial.

Ainda segundo a sua alegação, os factos da acusação seriam insuficientes para preencher o crime de violência doméstica, pelo que o tribunal teria aditado factos novos, assim suprindo as deficiências da acusação. Procedimento que considera ilegal, por contrariar a disciplina do art. 359º do Código de Processo Penal, e inconstitucional, por violar as garantias de defesa do art. 32º da Constituição da República Portuguesa.

Em audiência de discussão e julgamento, antes de proceder à leitura da sentença, a senhora juíza ditara para a acta o seguinte despacho:

“Da discussão e julgamento da causa poderão resultar, entre outros, os seguintes factos:

No dia 15 de outubro de 2011, no interior da referida residência, o arguido apelidou a SR de «nojenta» e disse-lhe que «andava a dormir com homens em casa»;

No dia 16 de outubro de 2011, logo após ter chegado a casa, o arguido apelidou a SR de «ordinária e nojenta»;

A determinada altura, o arguido empurrou a SR contra o armário;

No quarto da SR, o arguido, além do mais, disse-lhe «vou-te infernizar a vida (ao mesmo tempo que lhe dava três chapadinhas na cara)»;

Em datas concretamente não apuradas, mas situadas entre maio e 16 de outubro de 2011, na sequência de discussões ocorridas na referida residência, relacionadas com o divórcio, por diversas vezes, o arguido agarrava com força pelos braços da SR, sacudindo-a, e dirigia-lhe expressões tais como «puta, ordinária, nojenta; dormes com vários homens; vou-te dar cabo da vida; é melhor aceitares o divórcio nas condições que eu quero ou prepara-te para mudares de agência; li o teu diário e vou publicá-lo»;

Numa dessas ocasiões, em data concretamente não apurada mas por volta de maio de 2011, na sequência de um desses «apertões», a SR ficou com hematomas no braço direito.

Comunico ao arguido a presente alteração não substancial dos factos, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358.°, n.º 1 do CPP".

Consta ainda da acta que este despacho foi notificado a todos os presentes e que pelo defensor do arguido foi então dito nada ter a requerer.

Consigna-se a correcção dos procedimentos no tratamento de uma alteração não substancial de factos – comunicação em audiência dos previsíveis factos alterados ou novos, em momento prévio à sentença; concessão da oportunidade de tomada de posição pela defesa, que nada requereu; leitura da sentença da qual consta a inclusão dos factos comunicados.

A tudo isto se procedeu, de acordo com a disciplina prevista no art. 358º do Código de Processo Penal.

Já uma alteração substancial de factos descritos na acusação não poderia ter sido tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, salvo se Ministério Público, assistente e arguido estivessem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, o que nem foi posto à consideração dos sujeitos processuais (art. 359º do Código de Processo Penal).

Cumpre, assim, perscrutar o enquadramento jurídico que foi dado à presente alteração de factualidade, partindo para isso da acusação.

Da estrutura acusatória do processo, com assento constitucional (art. 32º, nº5 da Constituição da República Portuguesa) decorre que impende sobre o acusador a exposição total do facto que imputa ao arguido. É ao acusador, e só a ele, que cabe a iniciativa da definição do objecto da acusação e do processo. Nesta tarefa solitária não pode o Ministério Público ser ajudado pelo juiz, sob pena de violação do modelo acusatório, estruturante do processo penal português, e do perigo de desvio do juiz do seu lugar de terceiro imparcial e supra-partes, na tríade acusador-arguido-julgador.

É a esta imparcialidade que se refere também o art. 6º da C.E.D.H..

O juiz não pode ajudar aquele que acusa, compondo a acusação deficiente, colocando-se desse modo como que ao lado do Ministério Público ou do assistente. Está-lhe vedado acrescentar factos aquando da prolação do despacho a que se refere o art. 311º do Código de Processo Penal. E, em regra, também posteriormente.

Mas sendo o sistema do Código de Processo Penal português de acusatório impuro ou de acusatório mitigado por um princípio da investigação (oficiosa, pelo juiz, art. 340º nº1 do Código de Processo Penal), de modo a viabilizar nos limites do possível (com a salvaguarda das garantias de defesa) a averiguação da verdade material e a boa decisão da causa, o juiz pode intervir excepcionalmente na narrativa dos factos das acusações (do Ministério Público e do assistente), reformatando-os ou mesmo acrescentando-os.

Essa reconformação da acusação opera-se por via dos mecanismos previstos nos arts 358º e 359º do Código de Processo Penal, que tratam da alteração dos factos. E que viabilizam a prossecução das finalidades do processo penal, garantindo simultaneamente os direitos de defesa do arguido e o processo justo. Visa-se punir, na medida do possível, pelos factos (e crime) do acontecido e, não, punir por factos artificialmente construídos no processo ou por título fictício de crime.

Tal objectivo não é porém absoluto ou ilimitado.

Assim, esquematicamente, pode dizer-se que o processo está sujeito a um princípio de vinculação temática do qual decorre que são os factos (normativos) que criam a acusação que fixam e delimitam o objecto do processo; que este princípio se desdobra nos sub-princípios da identidade – os factos devem permanecer os mesmos desde a acusação até ao trânsito da decisão –, da unidade – os factos devem ser conhecidos na totalidade – e da consunção – se o não foram, em princípio já não podem ser conhecidos noutro processo (assim, Cruz Bucho, Alteração Substancial dos Factos em Processo Penal, www.trg.mj.pt.).

A possibilidade de o juiz de julgamento aditar, mesmo oficiosamente, novos factos só conhecidos na audiência de discussão e julgamento mereceu juízo de constitucionalidade: é uma exigência do princípio da verdade material, não contende com o princípio da independência e imparcialidade do julgador e não viola o princípio da presunção de inocência (Ac. TC 442/99).

Cumpre, assim, delimitar, primeiro abstractamente, a fronteira dentro da qual os poderes de cognição do juiz se podem movimentar livremente, definindo até que ponto o julgador pode alterar a acusação, em cumprimento do princípio da investigação e em obediência a uma verdade material, sem contender com o princípio da vinculação temática (Ac. TC 674/99).

O critério orientador da distinção de regimes (dos arts 358º e 359 do Código de Processo Penal) situa-se na garantia de uma defesa eficaz por parte do arguido.

Na definição do art. 1º- al. f) do Código de Processo Penal, “alteração substancial dos factos” é aquela que tiver por efeito a imputação de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Será não substancial a alteração (de factos) que a não tenha.

As modificações da base factual do processo que não se repercutam em nenhuma das situações previstas na al. f) do art. 1º podem e devem ser levadas em conta pelo tribunal, devendo no entanto cumprir-se o art. 358º do Código de Processo Penal quando contendam com o exercício da defesa.

Complexa é a temática do “crime diverso”, que a simplicidade da questão objecto de recurso dispensa, no entanto, de aprofundar. No caso, não ocorreu imputação de crime diverso já que o crime da condenação é precisamente o mesmo que consta das acusações (pública e particular). E foi cumprido o disposto no art. 358º do Código de Processo Penal.

O assistente não poderia aqui acusar desacompanhado, por factos que importassem alteração substancial dos factos da acusação pública (art. 284º, nº1 e 287º, nº 1 – al. b) do Código de Processo Penal). Assim, cumpre verificar se os factos da acusação pública tipificavam já um crime de violência doméstica do art. 152º, nºs 1, al. - a) e 2 do Código Penal, ou tão só o crime de ofensa à integridade física simples como pretende o recorrente. Nesta situação, estaríamos perante alteração substancial de factos, pois cumpriria corrigir previamente a integração jurídica da acusação, e o crime do art. 152º, nºs 1, al- a) e 2 seria então crime diverso do previsto no art. 143º, nº1 do Código Penal.

Os factos aditados constam na sua essencialidade da acusação particular, que também foi recebida. Mas, atenta a natureza do crime (não particular), é na acusação pública que eles têm que se encontrar. Pois a acusação tem também opções em sentido negativo, cumprindo determinar se, e em que medida, aquilo que o Ministério Público não acusou pode ainda ser discutido em julgamento.

A acusação tem, no caso, a seguinte base factual:

“O arguido é casado (desde 2004) com SR, residindo o casal no Sítio..., em São Brás de Alportel, nesta comarca de Faro.

No dia 16 de Outubro de 2011, pelas 20 horas e 30 minutos, no interior da referida residência, o arguido envolveu-se em discussão com a sua mulher SR e, a determinada altura, agarrou-a com força no braço direito e no pescoço, ao mesmo tempo que lhe dirigia as seguintes palavras: «Sai já daqui, és uma vaca, puta, ordinária, andas a foder com toda a gente, atiro-te das escadas abaixo».

Além disso, quando a ofendida tentou afastar-se do arguido, este desferiu-lhe uma bofetada na face do lado esquerdo e puxou-lhe os cabelos, ao mesmo tempo que dizia as seguintes expressões: «atiro-te pela janela, faço tudo o que puder para te prejudicar e vais perder o teu emprego».

O filho menor do casal, DM, nascido a 08.05.2005, assistiu aos factos supra mencionados.

Em consequência do descrito, aquela SR sofreu dores e um hematoma da metade esquerda da face, bem como hematomas malar e do couro cabeludo, lesões essas que lhe vieram a provocar, de forma directa e necessária, um período de doença de 7 dias, os dois primeiros com afectação da sua capacidade para o trabalho geral e profissional.

Além disso, ficou a ofendida atemorizada e humilhada com as expressões utilizadas na ocasião pelo arguido, pois que as mesmas se revestiram de seriedade.

Já em ocasiões anteriores – em datas não concretamente apuradas, mas compreendidas entre o mês de Maio de 2011 (altura em que a ofendida pediu o divórcio ao arguido) e a data supra mencionada – o arguido havia adoptado comportamentos semelhantes para com a sua mulher.

Com efeito, por diversas vezes, o arguido desferiu diversos apertões nos braços da ofendida, além de, em diversas ocasiões, lhe ter dirigido expressões tais como «puta, ordinária, nojenta, estúpida, dormes com vários homens, andas fornicando com uns e com outros; atiro-te das escadas abaixo; vou-te dar cabo da vida; vou-te infernizar a vida, é melhor mudares de balcão (a ofendida trabalha numa agência bancária) porque São Brás de Alportel é uma terra muito pequena e é muito fácil lançar boatos; é melhor aceitares o divórcio nas condições que eu quero ou prepara-te para mudares de agência; li o teu diário de uma ponta a outra e vou publicá-lo».

Em consequência do descrito, aquela SR ficou atemorizada e humilhada com a conduta adoptada pelo arguido nas referidas ocasiões.

Agiu o arguido de uma forma voluntária, livre e consciente, querendo infligir maus tratos físicos e psíquicos ao seu cônjuge, o que logrou.

Sabia ele que a sua conduta era proibida por lei.”

O Ministério Público articulou todos os factos necessários à realização do tipo de violência doméstica, sendo os factos acrescentados ou aditados em julgamento meras concretizações dos factos acusados. E essas concretizações traduzem-se essencialmente em especificações de datas, contidas aliás no período temporal já definido na acusação, e de precisões factuais. Não valendo no entanto a alegação de que a acusação, na ausência das concretizações comunicadas em julgamento, seja genérica e imprecisa.

Concorda-se com Plácido Conde Fernandes quando diz que “ muitas vezes a situação temporal exacta de todas as agressões é difícil e desnecessária, bastando a fixação de balizas temporais que permitam assegurar ao arguido o seu direito ao contraditório e ao processo equitativo” (Revista do CEJ, 8, p. 307).

O dizer-se que “o arguido desferiu diversos apertões nos braços da ofendida, além de, em diversas ocasiões, lhe ter dirigido expressões tais como «puta, ordinária, nojenta, estúpida, dormes com vários homens, andas fornicando com uns e com outros; atiro-te das escadas abaixo; vou-te dar cabo da vida; vou-te infernizar a vida, é melhor mudares de balcão (a ofendida trabalha numa agência bancária) porque São Brás de Alportel é uma terra muito pequena e é muito fácil lançar boatos; é melhor aceitares o divórcio nas condições que eu quero ou prepara-te para mudares de agência; li o teu diário de uma ponta a outra e vou publicá-lo», comportamentos que se situam em “datas não concretamente apuradas, mas compreendidas entre o mês de Maio de 2011 e o dia 16 de Outubro de 2011”, consubstancia imputação suficientemente concretizada de molde a permitir o exercício de uma defesa eficaz. Ainda para mais ao lado de outros comportamentos mais concretizados, como sucede no caso.

O mesmo é dizer que a base factual em causa permite o contraditório.

Resta justificar a correcção da integração jurídica que deles foi efectuada.

O art, 152º, nºs 1, al- a) e 2 do Código Penal pune quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.

Foi a reforma ao Código Penal de 2007 que autonomizou a violência doméstica “dos (outros) maus tratos” (Teresa Beleza, Revista do CEJ, 8, p.288) e da violação de regras de segurança. Aditou ainda os actos designados como castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, bem como dispensou expressamente a reiteração, na sequência aliás do entendimento de jurisprudência anterior.

No relato de Plácido Conde Fernandes (loc. cit.), o presidente da Unidade de Missão que presidiu à reforma de 2007 (Rui Pereira) esclareceu em diversas conferências sobre a revisão que “não se pretendia transformar qualquer ofensa e ameaça – crime de natureza semipública – em crime de maus tratos com moldura penal reforçada e natureza pública, apenas pelo facto de ocorrerem no âmbito de uma relação afectiva. Mantinha-se a situação em vigor apenas com a clarificação de que a reiteração não é exigida, desde que a conduta maltratante seja especialmente intensa”.

O tipo abrange as situações de violência familiar reveladoras de um abuso de poder nas relações afectivas, degradante da integridade pessoal da vítima. Tutela-se a integridade da pessoa em determinada relação afectiva, no caso, a dignidade da pessoa no casal conjugal. Esta necessidade de protecção perdura e intensifica-se até nas situações de ruptura como a descrita.

Mas a ratio do tipo não reside na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas na da pessoa individual que a integra, na tutela da sua dignidade humana. (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2012, p. 512).

Protege-se o bem jurídico “saúde”, e não apenas a integridade física, abrangendo a saúde física, psíquica e mental (Taipa de Carvalho, loc. cit.).

De acordo com os enunciados fácticos da acusação (independentemente das concretizações comunicadas em audiência) arguido e a queixosa encontravam-se na situação relacional prevista no tipo – que inclui as relações conjugal e para-conjugal, actual e passada – sendo imputado, ao primeiro, a prática de actos na pessoa da segunda, actos claramente ofensivos da saúde (integridade física e psíquica) desta. Comportamento que, considerando o binómio intensidade/reiteração é susceptível de atingir o bem protegido pela norma.

As agressões físicas (agarrar com força no braço direito e no pescoço, bofetada na face, puxão dos cabelos, apertões nos braços), a prolação de expressões fortemente injuriosas (puta, ordinária, nojenta, estúpida, dormes com vários homens, andas fornicando com uns e com outros, és uma vaca, puta, ordinária, andas a foder com toda a gente), a profanação da intimidade e privacidade de um diário pessoal (li o teu diário de uma ponta a outra e vou publicá-lo), as ameaças várias incluindo a de enxovalho público (atiro-te pela janela, faço tudo o que puder para te prejudicar e vais perder o teu emprego, atiro-te das escadas abaixo, vou-te dar cabo da vida, vou-te infernizar a vida, é melhor mudares de balcão, é muito fácil lançar boatos; é melhor aceitares o divórcio nas condições que eu quero ou prepara-te para mudares de agência, atiro-te das escadas abaixo), factos ocorridos repetidamente entre o mês de Maio e o dia 16 de Outubro, integram o conceito de maus-tratos e realizam materialmente o tipo do art. 152º do Código Penal.

Por ultimo, quanto à agravação do nº2, a ampliação do mal do crime, ocorre por via da inclusão do filho menor no espectáculo do crime (DM, nascido a 08.05.2005, assistiu aos factos supra mencionados).

E consubstanciando tais factos da acusação o crime de violência doméstica, (independentemente dos factos aditados na acusação particular que integravam alteração não substancial dos factos da acusação pública e que também foi recebida e notificada ao arguido), e não resultando da imputação dos factos comunicados nem a imputação de crime diverso nem elevação da pena abstracta, carece o recurso de fundamento atendível.

Confirma-se a improcedência da alegação, nesta parte.

Da impugnação da matéria de facto:

Impõe o art. 412º, nº3 do Código de Processo Penal que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e/ou as que deviam ser renovadas.

Essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta indicando o recorrente concretamente as passagens em que se funda a impugnação (nº4).

Mas na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012). E assim também será de considerar cumprido o ónus de especificação das concretas provas, na ausência de uma referência às especificações (ausentes) da acta.

O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º nº 3, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabilizará o conhecimento do recurso da matéria de facto. Mais do que de uma eventual penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se aqui de uma verdadeira impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso da matéria de facto.

O recorrente não procedeu à indicação das concretas passagens por referência ao consignado na acta, mas o incumprimento decorreu da omissão em acta da consignação dessas especificações, devendo considerar-se justificado. Procedeu à transcrição das provas em que funda a impugnação, de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (AFJ nº 3/2012), sendo de considerar cumpridas as exigências formais de refutação da matéria de facto.

O recorrente pretende sindicar a convicção do juiz de julgamento, insurgindo-se contra a leitura global que as provas lhe mereceram, pretendendo que a segunda instância reveja todo o discurso sobre as provas efectuado na sentença. Tudo para se concluir que o depoimento da queixosa não deveria ter merecido a credibilidade que lhe foi dada e que, sem ele, inexistiria prova dos factos (à excepção do facto confessado “puxão de cabelos”).

Assim, considera que “o único acto constante nas acusações que tem algum suporte fáctico e comprovado pela admissão do arguido” é o puxão de cabelos ocorrido no dia 16 de Outubro. Todos os restantes devem ser considerados como não provados pois, das duas versões contrárias, é a do arguido que deve ser atendida. A prova ter-se-ia baseado exclusivamente nas declarações da vítima, que não merecem a credibilidade que o tribunal lhes deu.

Ensaia a incursão pelas provas orais – declarações de arguido e todos os depoimentos – pretendendo que a Relação as reaprecie na totalidade, mas agora de acordo com a sua leitura (do recorrente).

Em julgamento foram, efectivamente, apresentadas duas versões sobre os factos – a da queixosa, no sentido das acusações e dos factos comunicados, e a do arguido, de negação dos factos imputados à excepção de um facto confessado.

Considera o recorrente que a sua convicção se deve sobrepor a do tribunal de julgamento e que se deve considerar como provada a versão dos factos que apresentou. Sendo certo que, por força do in dúbio, lhe bastaria fragilizar a determinado nível a versão contrária à sua.

O recurso, da forma como se apresenta, prende-se também com a questão dos limites dos poderes de cognição das Relações em matéria de facto.

Como insistentemente (e cremos que sem discordância) tem vindo a ser afirmado (na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, secundada pelas Relações e artigos doutrinários), o recurso da matéria de facto não é um segundo julgamento e visa unicamente a detecção do erro de facto.

Este erro tem de ser correctamente situado – no(s) concreto(s) facto(s) ou no ponto de facto – e acompanhado das concretas provas que impõem decisão oposta à tomada na sentença.

Esta exigência de demarcação/confinamento do objecto do recurso não significa no entanto, no nosso entendimento, que a Relação esteja impedida de vir a apreciar todas as provas, ou mesmo que todas as provas possam ser, no caso, as concretas provas, sempre de acordo com o objecto do recurso definido pelo recorrente.

Só que, mesmo nestas situações em que o recorrente indica como concretas provas todas as provas – e sempre com a exigência (ónus) de especificação – a segunda instância não as reaprecia na exacta medida em que o fez o juiz de julgamento, ou seja, não procede a um segundo julgamento.

E o recurso da matéria de facto não é um segundo julgamento, desde logo porque o objecto do recurso não coincide com o objecto da decisão do tribunal de julgamento – este decide sobre uma acusação, aquele decide sobre a (correcção da) sentença (de facto).

Mas também não o é – não o pode ser – porque a segunda instância não se encontra na mesma posição do juiz de julgamento perante as provas. Não dispõe de imediação total (embora tenha uma imediação parcial, relativamente a provas reais e à componente voz da prova pessoal) e está impedida de interagir com a prova (ou seja, de questionar).

Assim, à Relação só pode pedir-se que efectue um controlo do julgamento, e não que repita ou reproduza o julgamento. Os seus poderes de decisão de facto estão direccionados para a (sindicância da) sentença de facto e sempre de acordo com o objecto do recurso definido pelo recorrente.

É-lhe para tanto permitido proceder ao confronto e análise das concretas provas, na parte especificada por referência ao consignado na acta ou transcritas no recurso (sem prejuízo de oficiosamente se poder vir a socorrer de outras provas). Nada impedindo, na nossa visão, que as concretas provas possam ser todas as provas.

Esta exigência de especificação completa o essência das “concretas provas”. Concretas, não apenas ou essencialmente no sentido de uma individualizada no conjunto das restantes – já que nada proíbe que o possam ser todas elas – mas concretas porque especificadas, e não apenas nomeadas ou indicadas. Esta exigência é indispensável ao conhecimento amplo da matéria de facto em segunda instância, pois visa propiciar a detecção do erro de facto.

E indicia também que o recurso da matéria de facto não possa ser um segundo julgamento.

Cumpre rever a motivação da sentença, a fim de compreender e sindicar as razões do tribunal de julgamento:

“A convicção do Tribunal assentou no confronto, apreciação e análise crítica das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas inquiridas, tudo conjugado com as regras da experiência e da normalidade do acontecer.

Não se olvidou que, em casos como o dos autos, o depoimento da vítima não pode deixar de merecer ponderada valorização, pois que, reconhecidamente, os maus tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorrem, por via de regra, dentro do domicílio conjugal, no recato da impunidade não presenciada, preservado da observação alheia, garantido até pelo generalizado pudor que os mais próximos têm de se imiscuir na vida privada do casal (cfr. Ac. da RE de 09-03-2004).

A prova produzida foi unânime quanto à relação conjugal existente e suas vicissitudes, ao filho do casal, às discussões existentes e respetiva motivação, bem como quanto ao decurso de um processo de divórcio. Com efeito, tal resultou quer das declarações do arguido, quer das declarações da assistente SR.

As circunstâncias de tempo, lugar e modo como os factos ocorreram, designadamente, as agressões e as palavras proferidas pelo arguido, resultaram, desde logo, do depoimento de SR, a qual, de forma que se nos afigurou sincera, isenta e coerente, relatou as discussões existentes e descreveu, de forma concreta, circunstanciada e convincente todo o comportamento do arguido e respetivas consequências.

As declarações da assistente obtiveram corroboração nos depoimentos das testemunhas NA, NM, HD e CP.

Com efeito, NA e CP, respetivamente, amiga e vizinha da assistente, relataram os factos dos quais tiveram conhecimento através daquela. Referiram-se ao sucedido em outubro de 2011 e às circunstâncias em tomaram conhecimento. NA referiu-se, ainda, ao comportamento verbal do arguido e, bem assim, à ocasião em que percecionou hematomas num braço da assistente e que a mesma imputou ao comportamento daquele.

Os seus depoimentos afiguraram-se-nos sinceros e isentos.

Assim, por exemplo, NA, com a mesma sinceridade que afirmou ter percecionado hematomas num braço da SR em abril/maio de 2011, não deixou de referir que, na sequência do sucedido em outubro de 2011, não viu marcas, o que também foi referido por CP. Tal denota preocupação em relatar apenas os factos conhecidos e na exata medida desse conhecimento.

Note-se que o facto de tais testemunhas não terem visionado hematomas não significa que os mesmos não tenham existido, conhecido que é o respetivo tempo de formação e evolução. Aliás, a testemunha NA não deixou de referir que a assistente se queixava de dores na cabeça e no pescoço.

Ambas as testemunhas referiram que o arguido sempre lhes pareceu uma pessoa calma, o que, mais uma vez, indicia imparcialidade nos seus depoimentos.

As testemunhas NM e HD foram os militares da GNR que acorreram à residência do casal em 16 de outubro de 2011, na sequência da chamada efetuada pela assistente e, a quem, na frescura dos acontecimentos, aquela relatou o sucedido.

Além disso, verifica-se existir compatibilidade entre o modo como a assistente descreveu as agressões, as queixas que a mesma apresentou no Gabinete Médico-Legal e as lesões verificadas no exame aí efetuado (fls. 37 ss), cujo teor foi esclarecido por JG, perito subscritor.

O arguido, apesar de, inicialmente, ter exercido o seu direito ao silêncio, prestou declarações depois de produzida a prova. Negou a totalidade das palavras que lhe são imputadas e fez questão de repudiar qualquer comportamento agressor. Admitiu a existência de uma discussão no dia 16 de outubro de 2011, motivada pelo facto de a assistente não permitir que o mesmo desse um beijo ao filho, no decurso da qual a agarrou pelos cabelos, depois de a mesma lhe ter desferido um estalo, o que fez apenas para a «afastar», para a «obrigar a refletir para não lhe dar outro»; «ela ficou estática, no sítio dela», querendo, com isto, dizer que nem sequer a empurrou.

Porém, tal versão não nos convenceu.

As suas declarações foram perpassadas por um nervosismo constante e pela preocupação de transmitir não possuir um perfil agressor, assumindo um papel que nos transpareceu teatral.

Elucidativas são as respostas que ia dando às questões que lhe eram colocadas. A título de exemplo, questionado se agarrou a assistente pelo braço, respondeu «concerteza que não; não se pode fazer isso»; questionado se agarrou a assistente pelo pescoço, respondeu «ninguém toca no pescoço a ninguém».

Quando questionado acerca das circunstâncias do estalo que disse ter levado, explicou que se encontrava junto da porta do quarto e que a assistente se encontrava no interior desse mesmo quarto, de frente para si, a uma distância que, inicialmente, ilustrou como correspondendo, aproximadamente, a meio metro. Ora, se o seu objetivo era afastar a assistente, como pretendeu fazer crer, não se percebe a razão pela qual a agarrou pelos cabelos; normal seria que a empurrasse, por exemplo. Mais: se o seu objetivo era evitar levar outro estalo, como pretendeu fazer crer, não se percebe a razão pela qual, simplesmente, não virou costas e saiu, já que se encontrava junto à porta.

Referiu que a assistente já lhe tinha desferido estalos em duas ou três situações anteriores, mas não soube concretizar, minimamente, nenhuma delas.

A versão transmitida pelo arguido não justifica as lesões que a assistente apresentava, sendo certo que o exame médico, que o arguido também efetuou - até em data anterior ao efetuado pela assistente - não corrobora a sua tese, dada a inexistência de lesões (fls. 41 ss). Neste particular, não podemos deixar de dizer que nos convencemos de que a queixa apresentada pelo arguido na GNR surgiu como conveniente, na sequência de o mesmo ter visto a autoridade policial a chegar à sua residência, como se percebe do depoimento da testemunha NM.

Assim, porque desconforme com as regras da experiência e com a valoração que se efetuou da restante prova produzida, as declarações do arguido não mereceram qualquer credibilidade.

E o depoimento das testemunhas que arrolou não alterou a convicção alcançada e, de alguma forma, até a consolidou.

Com efeito, as testemunhas PR, psicóloga do arguido, e AM, sua amiga, relataram o que lhes foi transmitido pelo próprio e cuja versão não nos convenceu, como explanamos supra. Idêntica razão vale para as testemunhas RS e MM, vizinhos e padrinhos de casamento do arguido. No que concerne a estas duas últimas testemunhas, sublinha-se, ainda, o facto de os seus depoimentos terem transparecido algum ensaio, visível na semelhança das expressões que utilizaram (por exemplo, quando disseram que o arguido, por duas ou três vezes, apareceu à sua porta «branco», a dizer «acabei de levar um estalo», não conseguindo concretizar os motivos), e particularmente percetível no relato efetuado por MM, cuja confusão que transparece é reveladora da credibilidade que deve merecer.

As testemunhas NS e ND nada sabiam sobre os factos, esclarecendo apenas aspetos relacionados com a sua personalidade.

O elemento subjetivo resultou dos factos objetivos apurados, em conjugação com as regras da experiência e da normalidade do acontecer, pois quem pratica os atos referidos, fá-lo conhecendo o caráter ofensivo para a integridade física e psíquica dessas condutas e querendo isso mesmo.

Regras de normalidade, apoiadas nas declarações prestadas pela assistente e pelas testemunhas inquiridas serviram para estabelecer, de forma consistente e credível, o padecimento experimentado pela primeira em resultado do comportamento do arguido.

O arguido esclareceu a sua situação pessoal, familiar e económica.

O certificado de registo criminal junto aos autos atesta a ausência de antecedentes criminais.”

Formalmente, regista-se a correcção desta fundamentação de facto, que é aliás um exemplo de como bem motivar, permitindo afirmar que inexiste vício de texto (art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal). Mas o recurso amplo interposto obriga ao exame material.

O recorrente vai especificando as provas procedendo em igual medida à sua interpretação (das provas).

E acabando por apresentar como concretas provas todas as provas, não aceita que o tribunal de julgamento tenha dado ao depoimento da queixosa o valor que este lhe mereceu, afirmando que todas as outras o contrariam. Mas esta alegação não corresponde à realidade.

Os crimes de violência doméstica ocorrem, por regra, na reserva da privacidade. Raramente são presenciados ou observados. São por isso crimes em cuja revelação do facto assume particular importância o depoimento ou declaração da testemunha-vítima, crimes relativamente aos quais, a prova se resume, muitas vezes, à pessoa da vítima. No exame crítico efectuado na sentença reconhece-se esta realidade, enquadra-se o problema, e admite-se que a prova consistiu sobretudo no depoimento da queixosa.

E esta versão apresentou-se como suficientemente credível por razões que o tribunal também explica, suportando-a ainda em elementos corroborantes – alguma documentação clínica concordante e depoimentos de testemunhas de acusação. É certo que estes depoimentos (corroborantes) são indirectos quanto aos factos essenciais, mas incidem directamente sobre alguns factos instrumentais – como o estado da queixosa observado directamente pelas testemunhas de acusação – o que na sentença também se analisa de forma lógica e racional.

Já a versão do arguido não mereceu credibilidade, por razões que a sentença objectiva suficientemente (já transcritas e que não cumpre repetir).

Consigna-se ainda que o registo da prova oral (a cuja transcrição integral o recorrente procedeu) não revela qualquer incorrecção do consignado em sentença quanto ao sentido das declarações e dos depoimentos.

Ou seja, cautelosamente e de acordo com todos os princípios que norteiam a prova na vertente da apreciação – livre apreciação / in dúbio pró reo / presunção de inocência – o tribunal aproveitou de todos os depoimentos, e que ora se elegem como “concretas provas” o ainda permitido/exigido pela segurança da (na) prova.

Por tudo, a convicção do tribunal apresenta-se, não apenas como ainda possível, mas até como a mais possível, no confronto da leitura das provas que o recorrente aqui defende.

Podemos assentar em que existe total conformidade entre o que foi dito e aquilo que o tribunal ouviu e refere ter ouvido; que nenhuma das provas é proibida ou foi produzida fora das normas procedimentais que regem os meios de prova em apreciação; que o tribunal justificou adequadamente a opção que fez relativamente à escolha e graduação dos contributos probatórios; que, perante provas de sinal contrário, atribuiu-lhes conteúdo positivo ou negativo de uma forma racionalmente justificada, apelando às regras da lógica e da experiência comum, e sem violação do princípios de prova.

E a mais longe não pode chegar o tribunal de segunda instância, no modelo de recurso da matéria de facto do Código de Processo Penal português. O segundo (e novo) julgamento em segunda instância foi opção que o legislador claramente não quis, dando nessa medida sentido às preocupações de Damião da Cunha (“Estrutura dos recursos na proposta de revisão do Código de Processo Penal”), expressas aquando da revisão de 1998 (ao Código de Processo Penal).

Esta revisão, segundo a respectiva exposição de motivos, pretendeu “assegurar um recurso efectivo em matéria de facto”. Mas alertou, então, aquele Professor: “Acreditar que é num juízo posterior, baseado numa análise parcelar e documental ou mediata de prova produzida noutro local, que se pode precatar as deficiências do juízo de primeira instância, é aspecto que suscita fundadas dúvidas – pois a uma decisão injusta apenas se segue outra que não garante melhor justiça. Se quer atalhar as más decisões de primeira instância, é nesta fase, e não posteriormente, que se deve operar correctivamente. (…) É questionável se uma eventual injustiça de decisão de primeira instância pode ser prevenida por um juízo (ou dois) efectuados por um tribunal que não tem acesso pleno à matéria de facto”.

Assim, no caso, não se tendo detectado qualquer desconformidade ou incorrecção no processo de leitura e interpretação das provas a que o tribunal de julgamento procedeu, soçobra o recurso da matéria de facto. Mais se regista a preocupação revelada na sentença com a apreciação da prova oral, consabidamente a mais frágil, justificando-se modelarmente todas as opções probatórias. É certo que não de acordo com a única possibilidade – aceita-se que a leitura do recorrente possa também ser, em abstracto, possível –, mas de acordo com uma apreciação (livre mas objectivamente justificada e motivada) que subsiste em recurso como hipótese prevalecente.

Ou seja, a sentença explica-se e convence, tanto por si (sem erro notório de facto) como de acordo com as provas (sem erro de facto), resistindo à impugnação do recorrente.

Da indemnização civil:

O recorrente pediu a absolvição civil (e também a condenação crime tão só por ofensa à integridade física), mas fazendo-o como mera decorrência do recurso da matéria de facto.

A improcedência deste redunda na confirmação da decisão de direito (crime e cível), com dispensa de ulterior fundamentação.

Ainda assim, na parte crime, remete-se para as considerações efectuadas aquando da apreciação do tipo de crime violência doméstica. Na parte cível, e apesar de não ter trazido tal pedido às conclusões (de redução do quantum indemnizatório), não deixa de se consignar a correcção da sentença também nesta parte, comprovados que estão os factos da ilicitude, da culpabilidade, bem como os relativos a danos não patrimoniais. A indemnização por danos não patrimoniais (art. 496° do Código Civil), foi fixada de acordo com critérios de equidade, o grau de culpabilidade do arguido, a situação económica deste e da lesada, revelando-se a verba arbitrada, de 800 €, perfeitamente ajustada, o que não queremos deixar de consignar.

4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

Julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença.

Custas pelo recorrente que se fixam em 5UC.

Évora, 20.12.2012

(Ana Maria Barata de Brito)

(António João Latas)