Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
79/14.8PFSTB.E1
Relator: CLEMENTE LIMA
Descritores: CONVERSAS INFORMAIS
SUSPEITO
DECLARAÇÕES DO SUSPEITO
Data do Acordão: 04/07/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A conversa mantida entre o arguido e os agentes policiais, no momento da fiscalização, não está abrangida pela proibição contida no artigo 356º, nº 7, do C. P. Penal, como não está sob a compressão dos limites ínsitos no artigo 129º do mesmo diploma legal, pois que se trata de interlocução espontânea, voluntária e consciente, por parte do arguido (fonte identificada), que os agentes se limitaram a ouvir no momento e a reproduzir, adrede, em audiência, aqui, ademais, na presença do mesmo arguido, que sempre a poderia contraditar.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I


1 – Nos autos de processo sumário em referência, o Ministério Público formulou despacho acusatório contra o arguido, AJC, imputando-lhe a prática de factos consubstanciadores de um crime de desobediência, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto no artigo 348.º n.º 1 alínea b), do Código Penal (CP), e de um crime de detenção de arma proibida, este p. e p. nos termos do disposto no artigo 86.º n.º 1alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações decorrentes da vigência da Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio.

2 – Precedendo audiência de julgamento, o Mm.º Juiz do Tribunal a quo, por sentença de 11 de Abril de 2014, decidiu absolver o arguido do crime de detenção de arma proibida de que vinha acusado e, de par, condená-lo, pela prática do crime de desobediência que lhe vinha imputado, na pena de 40 dias de multa à taxa diária de cinco euros.

3 – A Dg.ª Magistrada do Ministério Público no Tribunal a quo interpôs recurso da sentença, propugnando pela condenação do arguido pelo crime de detenção de arma proibida de que foi absolvido.

Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões:

«I. Por sentença, proferida em 11 de Abril de 2014, o Meritíssimo Juiz a quo absolveu o arguido da prática de um crime de detenção de arma proibida p. e p. artigo 86.º n.º 1 alínea d) do RJAM.

II. A factualidade dada como provada e a sua motivação enferma de erro notório na apreciação da prova, porquanto o Mm.º Juiz não valorou as declarações das testemunhas de acusação, os agentes da PSP RR e FF.

III. Entende-se que mal andou o Mm.º Juiz a quo ao dar como provado que o arguido detinha o bastão de beisebol porque o retirou ao sobrinho depois deste numa brincadeira ter batido com o bastão num carro que estava estacionado. e como não provado que o bastão de beisebol se destinava a ser utilizado pelo arguido como arma de agressão. Com a sua conduta o arguido quis transportá-lo bem sabendo que era destinado a ser utilizado como arma de agressão.

IV. As declarações dos agentes da PSP impunham motivação da matéria de facto diversa e, em consequência, diversa factualidade provada. Com efeito, os agentes prestaram declarações com total isenção, referindo que o arguido era detentor de um taco de basebol. No âmbito das medidas cautelares de polícia e de investigação, desde logo apuraram que o arguido utilizava o taco com o fim de se defender, porque tinha sido assaltado 10 vezes.

V. O Mm.º Juiz ao não valorar as declarações dos agentes da PSP no que tange ao que ouviram no local ao arguido, violou o disposto no artigo 356.º n.º 7, do CPP, o qual in casu é inaplicável.

VI. Assim tal regime não tem aplicação possível, pelo que deve o Tribunal valorar livremente a prova testemunhal produzida, nos termos do artigo 127.º, do CPP.

VII. Com efeito, o Tribunal a quo não se encontrava impedido de valorar as declarações das testemunhas RR e FF, relativamente aos factos por eles detectados aquando da realização da acção de fiscalização rodoviária, designadamente quanto às declarações do ainda suspeito na fase prévia à instauração do inquérito, na fase de aquisição da notícia do crime, ao abrigo do disposto no artigo 249.º do CPP.

VIII. Os factos constantes da acusação, que devem ser dados como provados, preenchem os elementos objectivos e subjectivos do crime de detenção de arma proibida, pelo que deve o arguido ser condenado pela prática do mesmo.»

4 – O recurso foi admitido, por despacho de 13 de Junho de 2014.

5 – O arguido respondeu ao recurso, propugnando pela confirmação do julgado.

Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:

«[…] B) Na douta sentença recorrida foi dado como provado que o arguido detinha o bastão de beisebol porque o retirou ao sobrinho depois de este numa brincadeira ter batido com o bastão num carro que estava estacionado, e dado como não provado que o bastão se destinava a ser utilizado pelo arguido como arma de agressão e que com a sua conduta o arguido quis transportá-lo bem sabendo que era destinado a ser utilizado como arma de agressão.

C) O Meritíssimo Juiz a quo, considerou credíveis as declarações do arguido, assentou a sua convicção no facto de o arguido ter admitido ter o taco na sua bagageira, na sua posse, considerando como “muito plausível” que tivesse retirado o taco ao sobrinho, quando este jogava na rua e atingiu um carro, que o mesmo ficou esquecido na bagageira, e nas declarações do arguido de que não pretendia utilizar o taco como meio de agressão pois o mesmo estava na bagageira e não junto a si.

D) O Meritíssimo Juiz não considerou as declarações das testemunhas de acusação, agentes RR e FF, por a sua valoração violar o disposto no artigo 356.º n.º 7 do CPP, posição que nos parece de acolher, porquanto quaisquer declarações ou conversas tidas pelo arguido com agentes em momento anterior à sua constituição como arguido, não poderão ser valoradas, sendo que uma eventual ou hipotética confissão por parte do arguido, não confirmada aliás em julgamento, decorrente de uma conversa, não poderá ser convertida em meio de condenação.

E) Caso se venha a considerar que o depoimento dos agentes deveria ter sido valorado pelo Meritíssimo Juiz a quo, estaremos então perante a situação de que todas as declarações prestadas em julgamento são credíveis, quer as declarações do arguido quer as declarações das testemunhas de acusação, sendo no entanto em si mesmas completamente contraditórias.

F) O Mm.º Juiz a quo considerou credíveis as declarações do arguido, não lhe suscitando quaisquer dúvidas e assentando a sua convicção pessoal no facto de o arguido ter admitido ter o taco na sua bagageira, na sua posse, considerando como “muito plausível” que o arguido tenha retirado o taco ao sobrinho, quando este jogava na rua e atingido um carro, que o mesmo ficou esquecido na bagageira, e nas suas declarações de que não pretendia utilizar o taco como meio de agressão, pois o mesmo estava na bagageira e não junto de si.

G) De acordo com a fundamentação da sentença o Mm.º Juiz formou livremente a sua convicção, socorrendo-se das regras da experiência comum, em consonância com a lógica do homem médio, dando cumprimento à lei, nomeadamente ao disposto no artigo 127 do CPP, o que torna inatacável a decisão do Tribunal.

H) O Recorrente ao pretender que a matéria de facto dada como não provada seja dada como provada pelo tribunal de recurso, visa que sejam atendidas as declarações dos agentes em detrimento das do arguido, o que implicaria, para além da revogação do princípio da livre apreciação da prova (artigo 127 CPP), um reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso, isto é, a uma nova audiência, o que exorbita as funções do tribunal de recurso, o qual exerce uma actividade fiscalizadora e de controlo quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto, o que não é legalmente admissível, devendo o presente recurso ser julgado improcedente.»

6 – Nesta instância, o Dg.mo Procurador-Geral Adjunto é de parecer que o recurso deve ser julgado procedente.

Pondera, em abono e em síntese, que não se verificando o pretextado vício de erro notório na apreciação da prova, também se não pode considerar violadora do disposto no artigo 356.º n.º 7, do Código de Processo Penal (CPP), a valoração, no âmbito do disposto no artigo 127.º, do CPP, da conversa informal entre o arguido e os agentes da PSP.

7 – O arguido replicou reiterando, doutamente, quanto alegara.

8 – Atento o teor das conclusões da motivação do recurso, que (afora matérias cujo conhecimento se imponha de ofício), definem e demarcam o respectivo objecto, importa examinar as questões relativas (i) aos vícios da sentença, designadamente ao invocado erro notório na apreciação da prova, (ii) à consideração da conversa informal entre o arguido e os agentes da PSP, e (iii) à verificação dos elementos, objectivos e subjectivos, do crime de detenção de arma proibida.


II

9 – A decisão recorrida, na parcela que importa à decisão do recurso, é do seguinte teor:

Julgou-se provado que:

1. No dia 26 de Março de 2014, pelas 00:40h, na Rua (…..), em Setúbal, o arguido conduzia o veículo Daihatsu, (…..).

2. No interior da bagageira do automóvel, o arguido tinha guardado um bastão de madeira, Franklin – Barryl Bonds-Teeball, com 68 cm de comprimento, utilizado na prática de beisebol.

3. O arguido detinha o bastão porque o retirou ao sobrinho depois de este, numa brincadeira, ter batido com o bastão num carro que estava estacionado.

Julgou-se não provado que:

a) o bastão se destinava a ser utilizado pelo arguido como arma de agressão.

10 – A Dg.ª recorrente pretende que a sentença revidenda padece de erro notório na apreciação da prova, tal como prevenido na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º, do CPP.

11 – Afigura-se, ressalvado o devido respeito, que, ao alegar-se que o Mm.º Juiz do Tribunal a quo valorou deficientemente as declarações do arguido, fazendo-as prevalecer sobre os depoimentos das testemunhas RR e FF, do passo em que resulta da sentença a devida (transparente) fundamentação do julgado, não se invoca um vício da sentença (pois o mesmo não resulta do respectivo texto, a se ou conjugado com as regras da experiência comum), mas sim um erro de julgamento em matéria de facto (na ponderação e valoração dos meios probatórios produzidos em audiência de julgamento).

12 – Trata-se de deficiências distintas, no ponto em que o invocado vício de erro notório reporta a um defeito in procedendo, resultante, à evidência, da própria sentença, que subscreve, designadamente, uma falha grosseira na análise da prova (não configurando um tal erro a invocada leitura da prova produzida em audiência), tendo por consequência o reenvio do processo para novo julgamento (artigo 426.º n.º 1, do CPP), enquanto o erro de julgamento em matéria de facto traduz um defeito in judicando, cuja sequela implica a comutação da matéria de facto (artigo 431.º, do CPP).

13 – No caso, mesmo ex officio e muito em síntese (ressalvando-se a generalização), não pode deixar de reconhecer-se que, do texto e na economia da decisão revidenda, não se verifica qualquer dos vícios prevenidos no citado artigo 410.º n.º 2, do CPP.

14 – Com efeito, investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundar a solução de direito atingida, não se vê que se tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos julgados provados ou entre estes e os factos julgados não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e, de igual modo, não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras da experiência comum, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.

15 – Por outro lado, no âmbito do referido erro de julgamento em matéria de facto, mesmo concedendo (por esforço argumentativo) que a Dg.ª recorrente deu o devido cumprimento ao disposto no artigo 412.º n.os 3 e 4, do CPP, há-de também conceder-se que, revista a prova produzida na audiência de julgamento levada na instância (particularmente no cotejo das declarações ali produzidas pelo arguido, no sentido de que o bastão esquecido na bagageira do seu automóvel, tinha sido tirado a um sobrinho que, no decurso de um jogo de rua, batera com o mesmo num carro estacionado, e dos depoimentos das testemunhas RR e FF, agentes da Polícia de Segurança Pública, aos quais, no momento de diligência inspectiva fortuita, o arguido terá dito que tinha o taco para sua defesa), à míngua da imediação e da oralidade de que o Mm.º Juiz do Tribunal recorrido beneficiou, a tese sustentada, fundamentadamente, na sentença, nos termos e âmbito do disposto, maxime, nos artigos 374.º n.º 2 e 127.º, do CPP, mesmo que se não possa ter como imposta, tem de ter-se por consentida pela prova na audiência levada em primeira instância.

16 – Com efeito, sob análise e valoração, neste Tribunal ad quem, das provas produzidas no Tribunal recorrido, a convicção ora formada sobre os factos sob julgamento (seja quanto aos que devem considerar-se como provados, seja no que respeita aos que devem ter-se como não provados) não diverge daquela que o Mm.º Juiz do Tribunal a quo alcançou e exprimiu na decisão recorrida.

17 – E assim, precedendo ponderação e convicção autónomas e autonomamente formuladas, nesta instância recursória, e tudo sem embargo dos inultrapassáveis limites de apreciação nesta instância, ditados pela natureza (de remédio), pelo momento de apreciação (de segunda linha e em suporte estático, não sendo caso de renovação de provas), e mesmo pelos termos, modelo e modo de impugnação, inerentes ao recurso sub indice.

18 – Tudo sem embargo de se considerar, como consideram os Dgm.os Magistrados do Ministério Público, em primeira e nesta instância, que a conversa mantida entre o arguido e os agentes policiais, no momento da fiscalização, não está abrangida pela proibição contida no artigo 356.º n.º 7, do CPP, como não está sob a compressão dos limites ínsitos no artigo 129.º, do CPP, pois que se trata de interlocução espontânea, voluntária e consciente, por parte do arguido (fonte identificada), que os agentes se limitaram a ouvir no momento e a reproduzir, adrede, em audiência, aqui, ademais na presença do mesmo arguido, que sempre a poderia contraditar – em sentido divergente, veja-se, por mais recente, o acórdão, do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4 de Fevereiro de 2015 (Processo n.º 53/13, disponível em www.dgsi.pt).

19 – Em sede subsuntiva, tomando por referência os factos sedimentados, como provados, no Tribunal a quo, do passo em que, à luz do disposto no artigo 86.º n.º 1alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações decorrentes da vigência da Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio, se teve por justificada a detenção do bastão em causa, o arguido não podia deixar de ser absolvido, como consta do deciso sob recurso.

20 – Termos em que, sem desdouro para o esforço argumentativo da Dg.ª recorrente, o recurso não pode lograr provimento.

21 – Não cabe tributação – artigo 522.º n.º 1, do CPP


III

22 – Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.

Évora, 7 de Abril de 2015

António Manuel Clemente Lima (relator)

Alberto João Borges (adjunto)