Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1415/21.6T8STR-A.E1
Relator: RUI MACHADO E MOURA
Descritores: OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
Data do Acordão: 03/02/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: - Nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do C.P.C., a sentença deve apreciar todas as questões que lhe forem colocadas pelas partes nos respectivos articulados mas, se tal não ocorrer, deve tal sentença ser declarada nula por omissão de pronúncia.
- O direito de defesa e a exigência de um processo equitativo consagrados no artigo 20.º, n.º 1 e 4, da C.R.P. e o princípio do contraditório plasmado nos artigos 29.º e 30.º do CIRE e 3.º do CPC, impedem que se interpretem os artigos 17.º-G, n.º 4 e 28.º do CIRE, no sentido de equiparar o parecer do Administrador Judicial Provisório de que o devedor está em situação de insolvência ao reconhecimento da insolvência pelo devedor, quando este declarou no processo de revitalização que não se encontrava insolvente.
- Por isso, tem de ser concedido ao devedor o direito de se defender e provar a sua solvência, ou ainda que o seu activo é superior ao seu passivo, atento o disposto no artigo 30.º, n.º 4, do CIRE, segundo os critérios do artigo 3.º, n.º 3, do CIRE e realizando-se a audiência de julgamento em conformidade, nos termos do disposto no artigo 35.º do CIRE.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: P. 1415/21.6T8STR-A.E1

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:

Caixa Económica Montepio Geral instaurou a acção a que estes autos estão apensos, na qual requereu que fosse declarada a insolvência de (…) – Indústria de Madeiras, S.A. e, para esse efeito, alegou, em resumo, que em 11/05/2011 emprestou à requerida a quantia de € 300.000,00, tendo esta deixado de proceder ao pagamento das prestações em 11/05/2013, encontrando-se em dívida o valor global de € 514.786,18. A requerente é ainda portadora de cinco livranças subscritas pela requerida, vencidas e não pagas, encontrando-se em dívida o valor global de € 426.853,46, sendo ainda portadora de três letras em que figura como sacadora a requerida que, apresentadas a pagamento, não foram pagas, encontrando-se em dívida o valor de € 128.980,19. Por outro lado, em 26/12/2013 requerente e requerida celebraram um contrato de factoring, relativamente ao qual a segunda deve à primeira a quantia global de € 15.981,78, a que acresce ainda uma outra dívida, no valor de € 840,48, relativa a um saldo devedor de uma conta à ordem titulada pela requerida. No âmbito do processo especial de revitalização da requerida que correu termos sob o n.º 3178/18.3T8VFX, do Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira – Juiz 2, por sentença proferida em 28/09/2019, transitada em 15/05/2019, foi homologado plano de revitalização que a requerida incumpriu e, interpelada para o efeito, não procedeu ao pagamento das quantas em dívida. A requerida não possui activo patrimonial próprio que lhe permita garantir o seu passivo, as instituições financeiras não lhe concedem crédito e mostra-se impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.
Devidamente citada para o efeito veio a requerida deduzir oposição, impugnando a factualidade alegada pelo requerente, no que tange ao seu activo e à impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, tendo concluído pela improcedência da acção.
Por despacho de 08/07/2021, foi declarada a suspensão da presente instância em virtude da pendência do processo especial de revitalização da requerida a correr termos neste tribunal sob o n.º 1766/21.0T8STR.
Resulta das informações e certidões juntas aos autos que no âmbito do processo especial de revitalização que corre termos neste juízo sob o n.º 1766/21.0T8STR foi recusada a homologação do plano de revitalização da devedora, aqui requerida.
Com a comunicação de encerramento do processo negocial, o Administrador Judicial Provisório, ouvida a devedora e os credores, emitiu parecer no sentido de que a devedora se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, em situação de insolvência.
De seguida, pela M.ma juiz a quo foi proferida a sentença, a qual, sem mais, julgou a acção procedente, por provada e, em consequência, declarou a insolvência da requerida.

Inconformada com tal decisão dela apelou a requerida, tendo apresentado para o efeito as suas alegações de recurso e terminando as mesmas com as seguintes conclusões:
1) A necessidade de fundamentação das decisões judiciais constitui uma condição da sua própria legitimação e da verificação de um processo equitativo.
2) A sentença proferida pelo Tribunal a quo não se encontra fundamentada, remetendo apenas para considerações genéricas e o Tribunal não conheceu de questões que deveria ter conhecido.
3) Decorre do artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), do C.P.Civil, relativamente à sentença, que:
“1 - É nula a sentença quando:
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
d) “O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”
4) O julgador deve apreciar todas as questões que devam ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente, o que deverá fazer em função do objeto processual delineado pelo autor, conformado este pelo pedido e causa de pedir, bem como pelas questões / exceções ao mesmo opostas pelo réu.
5) A sentença em crise limita-se e enunciar a matéria de facto dada como provada, sem motivar a mesma e não se pronunciou acerca das questões levantadas pelo Recorrente em sede de contestação, remetendo genericamente para “os elementos carreados para os autos”,
6) A sentença proferida pelo Tribunal a quo não motiva a factualidade que dá como assente, não se pronuncia em relação aos factos controvertidos, não apreciando os argumentos contraditórios invocados pelas partes, abstendo-se totalmente de analisar os factos constantes da contestação apresentada pela Recorrente, proferindo uma sentença genérica, motivo pelo qual, deve a mesma ser declarada nula, com as devidas consequências legais.
7) Apesar do vertido no artigo 224.º, n.º 2, alínea d), do CIRE o juiz deverá ouvir o requerente do pedido de insolvência e a partir desta manifestação, avaliar o melhor caminho a ser percorrido pelo processo e não inviabilizar praticamente a apresentação do plano pela insolvente ao não aceitar a administração pela devedora.
8) Apesar da requerente da insolvência se ter mostrado desfavorável à administração da massa pelo devedor, não se pode descurar que a Recorrente pretende apresentar Plano de Insolvência, sendo que no caso concreto a própria situação de insolvência foi contestada, não correspondendo ao escopo do actual CIRE, a “deixar o destino de um processo de insolvência nas mãos de um credor".
9) O Tribunal pode relegar a apreciação desta questão para uma segunda fase, tendo em conta a posição assumida pela Recorrida, dado que a administração da massa pelo devedor pode ser determinada pela Assembleia de Credores para apreciação de relatório (artigo 156.º) ou em assembleia anterior, conforme artigo 224.º, n.º 3, do CIRE.
10) O juiz pode e deve determinar a administração da massa pelo devedor, ainda que o requerente da insolvência a isso se oponha, desde que se verifiquem os demais requisitos e o plano que a Recorrente venha a apresentar no prazo de 30 dias revele viabilidade da recuperação da empresa.
11) A sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser revogada e substituída por outra que cumpra o dever de fundamentação e pronúncia, mostrando-se violado o disposto no artigo 615.º, alíneas b) e d), do CPC. Pede Justiça.
Pela requerente não foram apresentadas contra alegações de recurso.
Foram colhidos os vistos junto das Ex.mas Juízes Adjuntas (cfr. artigo 657.º, n.º 2, do C.P.C.).
Cumpre apreciar e decidir:

Como se sabe, é pelas conclusões com que a recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: artigo 639.º, n.º 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem [1] [2].
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável à recorrente (artigo 635.º, n.º 3, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo artigo 635.º) [3] [4].
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de apreciação na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação da recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso em apreço emerge das conclusões da alegação de recurso apresentadas pela requerida, ora apelante, que o objecto do mesmo está circunscrito à apreciação das seguintes questões:
1º) Saber se a sentença é nula por falta de fundamentação e omissão de pronúncia – cfr. artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) d), do C.P.C. – o que acarreta a sua revogação;
2º) Saber se assim não se entender – com a manutenção do decretamento da insolvência da requerida – sempre a administração da massa insolvente deverá ser confiada à devedora, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 224.º do CIRE.

Antes de nos pronunciarmos sobre as questões supra referidas importa ter presente qual a factualidade que foi dada como provada no tribunal a quo que, de imediato, passamos a transcrever:
A) A devedora (…) – Indústria de Madeiras, S.A. tem como objecto social a indústria, transformação e comercialização de madeiras, exploração florestal, importação e exportação, comércio de materiais de construção civil, construção civil.
B) Tem um capital social de € 200.000,00.
C) É administrador único da devedora (…).
D) A devedora obriga-se com a assinatura do administrador único, ou de dois administradores, ou de um mandatário ou procurador.
E) Possui bens no valor global de € 1.318.892,59.
F) Tem dívidas vencidas no montante global de € 14.025.445,24.
G) Nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020, efectuou vendas nos valores de € 5.086.257,95, € 4.457.064,95, € 2.977.524,80 e € 2.719.191,98, respectivamente, e apresentou resultados líquidos do período de -901.653,17€, -620.144,93€, -714.354,58€ e -932.246,63€, respectivamente.
H) Encontra-se impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.

Apreciando, de imediato, a primeira questão suscitada pela requerida, ora apelante – saber se a sentença é nula por falta de fundamentação e omissão de pronúncia (cfr. artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e d), do C.P.C. – importa dizer a tal respeito que, como é sabido «a lei não traça um conceito de nulidade de sentença, bastando-se com a enumeração taxativa de várias hipóteses de desconformidade com a ordem jurídica que, uma vez constatadas na elaboração da sentença, arrastam à sua nulidade» – cfr. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 4ª ed., págs. 46/47.
Esse elenco taxativo das causas de nulidade da sentença consta das alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C..
Ora, a alínea b) deste normativo comina a sentença de nula “quando [ela] não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
As decisões judiciais (sejam elas sentenças ou simples despachos) carecem de ser fundamentadas: assim o impõem, desde logo, o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e, ao nível da lei adjectiva ordinária, o artigo 154.º, n.º 1, do C.P.C..
Especificamente no que à sentença diz respeito, o artigo 607.º, n.º 3, do C.P.C., ao ocupar-se daquela parte da sentença que designa por “fundamentos”, impõe ao juiz o dever de “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes”.
Porém, «para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito» – cfr. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2001, pág. 669; Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., 1985, pág. 687; cfr., igualmente no sentido de que «a falta de motivação susceptível de integrar a nulidade de sentença é apenas a que se reporta à falta absoluta de fundamentos, quer estes respeitem aos factos, quer ao direito», Amâncio Ferreira, obra citada, pág. 48.
Por isso, «a motivação incompleta, deficiente ou errada não produz nulidade, afectando somente o valor doutrinal da sentença e sujeitando-a consequentemente ao risco de ser revogada ou alterada quando apreciada em recurso» – cfr., Amâncio Ferreira, ibidem.
«Para que haja falta de fundamentos de facto, como causa de nulidade de sentença, torna-se necessário que o juiz omita totalmente a especificação dos factos que considere provados, de harmonia com o que se estabelece no n.º 3 do artigo 659.º (actual 607.º), e que suportam a decisão» – cfr., Amâncio Ferreira, ibidem e Antunes Varela, obra citada, pág. 688.
Assim sendo, nos termos da referida alínea b) do n.º 1 do citado artigo 615.º, resulta claro que a decisão só estará ferida de nulidade se estiver total e absolutamente desprovida de fundamentação, quer ao nível da descrição da factualidade dada como provada e não provada, quer ao nível do direito aplicado.
Ora, no caso em apreço, da análise feita à sentença recorrida constata-se que a factualidade que foi dada como provada pela M.ma Juiz a quo teve na sua base a prova documental junta aos autos.
E, muito embora não se tenha concretizado qual foi o documento, ou documentos, que fundamentaram cada um dos factos dados como provados na decisão sob censura, a verdade é que não podemos falar de uma total falta de fundamentação da matéria fáctica apurada, mas antes de uma fundamentação deficiente ou incompleta, a qual não preenche a nulidade constante da referida alínea b) do n.º 1 do citado artigo 615.º, afectando, apenas, o valor doutrinal da sentença e sujeitando-a, por isso, ao risco de ser revogada ou alterada nesta instância recursiva.
Por sua vez a alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C. estipula que a sentença é nula “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Daqui resulta que o juiz tem de apreciar todas as questões que lhe são submetidas e apenas essas, não estando porém obrigado a apreciar todos os argumentos invocados pelos recorrentes, desde que, sem necessidade de apreciar tais argumentos, tome posição sobre o núcleo essencial daquelas questões. Por outro lado, apenas pode ocupar-se das questões suscitadas pelas partes, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso.
«Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (artigo 660.º-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado. Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções na exclusiva disponibilidade das partes (artigo 660.º-2), é nula a sentença que o faça» – cfr. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2001, pág. 670.
Com efeito, é entendimento na jurisprudência dos nossos tribunais superiores que a nulidade por omissão de pronúncia há-de incidir apenas sobre “questões” que tenham sido submetidas à apreciação do tribunal, com elas não se confundindo as considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes (cfr., entre outros, o Ac. do STJ de 19/3/2002, Rev. n.º 537/02, 2ª Sec., Sumários, 3/2002).
Na verdade, a omissão de pronúncia a que alude a alínea d) do n.º 1 do citado artigo 615.º respeita apenas a questões e não a factos, sendo que a omissão de factos só integra a nulidade prevista na alínea b) do referido preceito legal se se traduzir na falta absoluta da respectiva fundamentação o que, como é evidente, não se verifica no caso dos presentes autos.
A este propósito pode ver-se, entre outros, o Ac. do STJ de 10/1/2002, Rev. n.º 3196/01, 2ª sec., Sumários 1/2002.
No caso em apreço, a recorrente sustenta a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, uma vez que a Julgadora a quo não se terá pronunciado, de todo, sobre as questões que, oportunamente, suscitou na oposição por si apresentada nos autos, nomeadamente, em relação ao valor do passivo, do activo – superior aquele – e, por isso, não se encontrar numa situação de insolvência.
Com efeito, a recorrente contestou o referido processo de insolvência tendo alegado que a mesma se encontra a laborar e que teve melhores resultados em termos do exercício da sua actividade, além de discordar do valor atribuído ao activo, uma vez que, conforme resulta expressamente da sua oposição, esta considera que só em bens imóveis é detentora de valores que ascendem a € 6.217.174,00 (cfr. v.g. artigos 44º e 45º da referida peça processual).
Na verdade, com a oposição que apresentou a requerida, ora apelante, veio, sumariamente, invocar não se encontrar em situação de insolvência, questionando os valores atribuídos ao activo e ao passivo, sendo certo que a sentença recorrida é totalmente omissa quanto à análise e apreciação de tais fundamentos.
É que, analisando a decisão sob censura constata-se que a respectiva fundamentação assenta tão só na seguinte referência “pelos elementos carreados para os autos resulta manifesto que a devedora se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, sendo o seu passivo manifestamente superior ao seu activo.”
Ora, nem uma palavra foi dita pela Julgadora a quo relativamente às questões levantadas pela requerida no seu articulado de oposição, sendo que tal omissão gera, indubitavelmente, a nulidade da sentença recorrida com base no disposto na alínea d) do n.º 1 do citado artigo 615.º, o que aqui se declara para os devidos e legais efeitos.
Todavia, esta omissão da decisão sob censura teve na sua base uma interpretação do artigo 17.º-G, n.º 4, do CIRE que, quanto a nós, é manifestamente inconstitucional por parte da M.ma Juiz a quo – por violação do princípio do contraditório e do disposto no artigo 20.º, nºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa – uma vez que, após ter sido recusada a homologação do plano de revitalização da devedora, no âmbito do processo especial de revitalização que correu termos no Juízo de Comércio de Santarém, Juiz 3, sob o n.º 1766/21.0T8STR, e o Administrador Judicial Provisório, ouvida a devedora e os credores, ter emitido parecer no sentido de que a devedora se encontrava impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, veio a referida Julgadora a proferir, de imediato – sem a realização de quaisquer diligências e baseando-se, tão só, no parecer do referido Administrador Judicial Provisório – a douta sentença recorrida (nomeadamente, não tendo realizado a audiência de julgamento com audição das testemunhas arroladas e com a tomada de declarações ao representante legal da requerida, onde devia ser feita a prova das questões que foram suscitadas pelas partes nos respectivos articulados: requerimento inicial e oposição).
Com efeito, a propósito de situação idêntica ou similar à dos presentes autos, veja-se o Ac. do STJ de 17/11/2015, no qual foi afirmado o seguinte:
- O requerimento do administrador judicial provisório tendente à declaração de insolvência do devedor no contexto dos nºs 3 e 4 do artigo 17.º-G do CIRE não equivale ao pedido de insolvência por apresentação do devedor.
- Não é aplicável, neste caso e a despeito da remissão constante do n.º 4, o segmento inicial do artigo 28.º do CIRE, pelo que não existe reconhecimento pelo devedor da sua situação de insolvência.

- Os nºs 3 e 4 do artigo 17.º-G do CIRE, ao determinarem a insolvência a requerimento do administrador judicial provisório sem prévia audição judicial do devedor e sem que este tenha aceitado a situação de insolvência, padecem de inconstitucionalidade por violação dos princípios contidos nos nºs 1 e 4 do artigo 20.º da CRP.
- Declarada a insolvência nestas circunstâncias, o recurso contra a decisão não supre a omissão do contraditório, nem cabe legalmente ao devedor a possibilidade de exercer o contraditório subsequente mediante oposição por embargos.
- Por efeito da referida inconstitucionalidade, impõe-se o exercício do contraditório mediante a aplicação, por analogia, dos artigos 30.º e 35.º do CIRE.
Por outro lado – sobre esta mesma questão – pronunciou-se já o Tribunal Constitucional, no qual, pelo Ac. n.º 401/17, datado de 12/7/2017, se decidiu:
- Julgar inconstitucional, por violação do artigo 20.º, números 1 e 4, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 17.º-G, n.º 4, do CIRE, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º – ainda que com as necessárias adaptações – à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência.
Também, em caso semelhante, se pronunciou o Ac. da R.P. de 26/3/2015, disponível in www.dgsi.pt, onde a dado passo, é afirmado o seguinte:
- A unidade do sistema jurídico concretamente o direito de defesa e a exigência de um processo equitativo consagrados no artigo 20.º, n.º 1 e 4, da C.R.P. e o princípio do contraditório plasmado nos artigos 29.º e 30.º do CIRE e 3.º do CPC, impedem que se interpretem os artigos 17.º-G, n.º 4 e 28.º do CIRE, no sentido de equiparar o parecer do Administrador Judicial da Insolvência de que o devedor está em situação de insolvência ao reconhecimento da insolvência pelo devedor, quando este declarou no processo de revitalização que não se encontrava insolvente.
- Nesse caso, tem de lhe ser concedido o direito de se defender e provar a sua solvência, atento o disposto no artigo 30.º, n.º 4, do CIRE ou ainda que o activo é superior ao passivo, segundo os critérios do artigo 3.º, n.º 3, do CIRE.
E, ainda o Ac. da R.C. de 8/7/2015, também disponível in www.dgsi.pt, onde se afirmou que:
- O n.º 4 do artigo 17.º-G do CIRE, interpretado no sentido de que, caso o Administrador Judicial Provisório emita parecer de que o devedor se encontra em situação de insolvência e requeira essa insolvência, se deve aplicar o artigo 28.º do CIRE, com as necessárias adaptações, enferma de inconstitucionalidade material por violação do princípio do processo equitativo e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, nºs 1, 4 e 5, da CRP).
Também no mesmo sentido, veja-se o Ac. da R.L. de 3/11/2015, disponível in www.dgsi.pt, no qual se referiu o seguinte:
- Entender-se que o parecer do administrador judicial provisório se sobrepõe ao devedor é fazer perigar a garantia a um processo equitativo, no sentido de as partes não serem privadas de expor os seus motivos, antes de o tribunal se poder pronunciar.
- Quando no PER apresentado pelos devedores estes não invocam estar numa situação de insolvência, mas de dificuldades financeiras, terá de lhes ser concedido o direito de apresentarem a sua defesa, demonstrando a sua real situação, logo após a emissão do parecer do AJP, a que alude o n.º 4 do artigo 17.º-G do CIRE.
Finalmente, e também em sentido idêntico aos arestos supra transcritos, pode ver-se o Ac. da R.L. de 19/1/2017, também disponível in www.dgsi.pt, no qual foi afirmado que:
- Viola o artigo 20.º, n.º 1 e 4.º da CRP que consagra o direito a um processo equitativo e à tutela jurisdicional efectiva, a aplicação do disposto no artigo 17.º-G, n.º 4, do CIRE, interpretado no sentido de que, requerida a insolvência do devedor pelo administrador judicial provisório, se deve aplicar, de imediato, o disposto no artigo 28.º com as necessárias adaptações.
Deste modo, pelas razões e fundamentos acima explanados, forçoso é concluir que a sentença recorrida, não se poderá manter, de todo, declarando-se a sua nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do C.P.C., tendo violado o princípio do contraditório a que alude o artigo 3.º, n.º 3, do C.P.C. (aqui aplicável ex vi do artigo 17.º do CIRE) e fazendo uma interpretação manifestamente inconstitucional do n.º 4 do artigo 17.º-G do CIRE.
Assim sendo, deverão os presentes autos baixar à 1ª instância – o que se determina – a fim de aí prosseguirem os seus ulteriores termos, nomeadamente com a realização da audiência de julgamento (cfr. artigo 35.º do CIRE) e, posteriormente, com a prolação de uma nova sentença em conformidade com a prova que aí vier a ser produzida.
Atenta a procedência desta primeira questão fica prejudicado o conhecimento da segunda questão levantada pela requerida no presente recurso.
***
Por fim, atento o estipulado no n.º 7 do artigo 663.º do C.P.C., passamos a elaborar o seguinte sumário:
(…)

Decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o presente recurso de apelação e, em consequência, declara-se a nulidade da sentença recorrida, nos exactos e precisos termos acima explanados, devendo os presentes autos baixar à 1ª instância a fim de aí ser realizada a audiência de julgamento (cfr. artigo 35.º do CIRE), com a prolação de uma nova sentença em conformidade com a prova que aí vier a ser produzida.
Custas pela parte vencida a final.
Évora, 02 de Março de 2023
Rui Machado e Moura
Eduarda Branquinho
Anabela Luna de Carvalho (vencida, conforme seguinte declaração)
Declaração de voto de vencimento:
Confirmaria a decisão recorrida, porquanto:
A pretensão da Recorrente no sentido da administração da Insolvente ficar a seu cargo obteve procedência na assembleia de credores realizada em 27/01/2023, a qual ficou igualmente encarregue de elaborar um plano de insolvência ano prazo de 45 dias, conforme ata com a referência 92334414, desse modo tornando inútil a discussão recursiva quanto a tal objeto.
Por outro lado, fazendo fé na sentença e na consulta do tribunal a quo relativamente ao PER n.º 1766/21.0T8STR:
“Notificada nos termos e para os efeitos do artigo 17.º-G, n.º 6, do CIRE, a devedora não se opôs à sua situação de insolvência mas requereu que fosse nomeado como administrador de insolvência o anterior administrador judicial provisório.”
Sendo assim claro que a divergência de base da recorrente não incide, nesta fase, sobre o reconhecimento da sua situação de insolvência mas sim sobre a sua administração, que inicialmente não lhe fora concedida, mas que, como referimos, o foi entretanto.
Mas ainda que se entendesse que a devedora continua a contestar a sua situação de insolvência (o que se nos afigura prejudicado) bem como os valores atribuídos ao ativo e ao passivo, e que a devedora deve ter o direito a apresentar prova desses valores, estamos perante um histórico processual de um PER com plano homologado em 2019, que foi mal sucedido (Proc. 3178/18.3T8VFX) e de um segundo PER (Proc. 1766/21.0T8STR), instaurado já depois deste processo de insolvência, cujo plano não chegou a ser aprovado, o que não pode ser desconsiderado na ponderação de capacidade de cumprimento das obrigações vencidas.
Mas ainda que se viesse a demonstrar que o ativo da Recorrente é superior ao seu passivo (o que se nos afigura irrealista não apenas em razão do referido histórico processual mas também face ao parecer do administrador e face à relação de credores), entre nós, vigora o denominado critério do fluxo de caixa (cash flow).
Ou seja, para a nossa lei é considerado em situação de insolvência quem se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, como acontece no caso sub judice.
A Insolvência é definida, em termos genéricos, como a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas – n.º 1 do artigo 3.º do C.I.R.E..
Está insolvente quem revele de forma constante ausência de liquidez suficiente para satisfazer as suas dívidas no momento em que estas se vencem, independentemente de ter um ativo superior ao passivo.
Impossibilidade que ocorre no presente caso.
Temos, pois, com todo o respeito pela decisão que fez vencimento, demonstrada essa situação, não havendo, por isso, justificação atual para invalidar o processado em curso.
Confirmaria por isso a decisão recorrida.
Anabela Luna de Carvalho


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[1] Cfr., neste sentido, Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
[2] Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, pág. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, n.º 17, pág. 3), de 12/12/1995 (in BMJ n.º 452, pág. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ n.º 486, pág. 279).
[3] O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
[4] A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, Alberto dos Reis (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), Castro Mendes (in “Direito Processual Civil”, 3º, pág. 65) e Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, págs. 286 e 299).