Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1754/16.8T9STR.E2
Relator: ALBERTO BORGES
Descritores: USO ANORMAL DO PROCESSO
MULTA PROCESSUAL
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - O direito de queixa é um direito que assiste ao ofendido, que poderá exercer (ou não) quando e se o entender pertinente (art.º 49 do CPP), sem prejuízo dos prazos de caducidade da mesma.

- A apresentação de várias queixas sem separado – relacionadas com um mesmo episódio da vida real, mas respeitando a diversas condutas, de diversos denunciados e integradoras de crimes diversos – não é razão para afirmar, sem mais, que o denunciado está a fazer um uso reprovável do processo, com um objetivo ilegal ou reprovável, entendendo-se por utilização abusiva do processo o uso do processo ou dos meios processuais manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objetivo ilegal.

- A utilização abusiva não se basta com a inexistência ou não prova do crime denunciado ou inadmissibilidade do procedimento, por ilegitimidade do queixoso ou caducidade do direito de queixa.

- Para a condenação por utilização abusiva do processo necessário é que se reúnam os elementos que permitam concluir, com segurança, que a denúncia ou a queixa são infundadas, que o denunciante ou queixoso não ignorava ou não devia ignorar a sua falsidade ou que alterou conscientemente a verdade dos factos ou ainda que usou o processo para conseguir um objetivo ilegal ou simplesmente reprovável.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Instrução Criminal de Santarém, Juiz 2, correu termos o Proc. n.º 1754/16.8T9STR, no qual, por despacho de 30.11.2019, e mediante promoção do Ministério Público, se decidiu condenar “cada um dos assistentes” – … e …, nos autos melhor identificados – “por uso anormal do processo, em multa processual no valor de seis unidades de conta”, nos termos do art.º 277 n.º 5 do CPP.

2. Inconformados com tal despacho, recorreram os assistentes - … e … - concluindo a motivação do recurso com as seguintes conclusões:

A) Entendeu a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal que os ora recorrentes e assistentes fizeram um uso abusivo do presente inquérito ao usar o mesmo evento fáctico para despoletar mais do que um processo quando o poderiam ter feito logo no primeiro se a queixa tivesse sido transparente, exaustiva e responsável, abrangendo toda situação que consideravam ilícita e violadora de direitos.

B) Mas a que factos se refere a douta decisão? Em que processos se encontram esses factos?

C) Entendemos ser nula a decisão proferida, por insuficiente fundamentação de facto, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 379 n.º 1 alínea a) e 374 n.º 2 do CPP.

D) Os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão - diz o n.º 5 do artigo 97 do CPP.

E) O artigo 205 n.º 1 da CRP estabelece a obrigatoriedade da fundamentação dos atos decisórios, princípio geral que é extensível a todos os ramos do direito e com acuidade no Processo Penal.

F) Refere a decisão que os assistentes fizeram um uso abusivo do presente inquérito ao usar o mesmo evento fáctico para despoletar mais do que um processo. Refere-se a que evento fáctico? E despoletaram quais processos?

G) Entendem os assistentes que a douta decisão proferida é nula, por falta de fundamentação de facto, violando o disposto nos artigos 97 n.º 5 e 374 n.º 2, ambos do CPP, e 205 n.º 1 da CRP.

H) Não se alcança como se coloca o assistente …, que apenas teve intervenção como assistente no Processo n.º …. e nos presentes autos, na mesma situação processual do assistente ….

I) Os processos intentados pelo assistente … e o presente processo nada têm nada a ver uns com os outros, tanto mais que os factos são diferentes, embora relacionados com a mesma situação, ocorreram em tempo diferente, tendo durante o lapso de tempo decorrido entre eles havido conhecimento de ocorrências que tornaram a situação do presente inquérito completamente diferente do anterior.

J) No Processo n.º … estava em causa a publicação do despacho n.º …, de …., do …, e relendo toda a queixa apresentada neste processo não vislumbramos onde constam factos iguais aos denunciados nos presentes autos.

K) No processo …a queixa respeitou a factos que, na versão dos assistentes, configurava um crime de difamação agravado, pelo facto dos denunciados, em especial o denunciado …, ter publicitado um despacho, na tese dos assistentes, difamatório da sua honra e bom nome. O que estava em causa era a publicitação que se fez do despacho e não qualquer facto relacionado com atas.

L) Da leitura atenta da denúncia não conseguimos concluir que se relate a falsidade das atas, situação que é denunciada noutro processo.

M) Como se pode constatar da análise ao Processo n.º …, o que foi apreciado no mesmo foi o conteúdo do despacho n.º …, de …., da autoria do arguido …, e não a questão em análise nos presentes autos.

N) Em conclusão, no processo … não se fez qualquer participação sobre as atas do júri de seriação das candidaturas ao Mestrado em …. (…), sobre o incumprimento das determinações da Direção da … sobre a distribuição do serviço docente para o ano de 2014/2015 ou sobre a Alteração ao Mestrado em ….

O) No que respeita ao Processo n.º …, que apenas tem como denunciante …, a denúncia parte das participações disciplinares feitas por … contra aquele, nomeadamente, sobre a participação disciplinar que este fez sobre o júri do mestrado.

P) Contudo, o que se visou denunciar neste processo foi a difamação feita pelos arguidos ao participar disciplinarmente, instaurar o processo disciplinar e instruir/decidir o processo disciplinar contra aquele assistente.

Q) Nos presentes autos a situação é muito diferente, pois o que está em causa é o facto do arguido …, apesar de já ter conhecimento da ata de …, em que esse impedimento é comunicado, usou o referido despacho … para participar disciplinarmente do assistente, assim como ter participado disciplinarmente por utilização do e-mail institucional numa atuação de litigância excessiva, pela publicidade contratada pelo Diretor da … à ….

R) Como dissemos, estamos a falar de situações diferentes, em que algumas têm em comum – apenas e só - o despacho ….

S) Por outro lado, estão em causa nestes autos as declarações proferidas pelos arguidos em sede de processo disciplinar, matéria que não foi objeto de apreciação em qualquer outro processo criminal.

T) O que o assistente denunciou nestes autos foi a participação disciplinar efetuada pelo arguido …, relativamente àqueles factos e declarações aí prestadas (em sede de processo disciplinar) e não o despacho ….

U) Repare-se que o arguido … fez várias participações disciplinares do assistente …, que deram origem a várias queixas crime, versando matérias diferentes.

V) Assim, os factos denunciados nos presentes autos são claramente diferentes dos denunciados nos Processos n.º … e …..

W) Na verdade, o assistente sentiu-se ofendido e prejulgado pelo denunciado no relato que o mesmo apresentou, daí ter feito queixa nos termos que a lei lhe permite e ao queixar-se de expressões concretas, proferidas pelo denunciado, que são ofensivas e não correspondem a verdade - e que nada têm a ver com o Inquérito … ou … – o denunciante exerceu o direito de queixa de forma legal, sem qualquer uso abusivo do processo e sem qualquer intuito doloso ou negligente, pelo que não pode nem deve ser penalizado com uma condenação.

X) Da leitura do artigo 277 n.º 5 do CPP podem retirar-se, de imediato, seguramente, duas conclusões: a primeira é a de que a utilização abusiva do processo é referida à denúncia e ao exercício do direito de queixa; é de um desses atos processuais que resultará a utilização abusiva.

Y) Não será já no decurso do inquérito que a utilização abusiva se manifestará, o que bem se compreende, sabendo-se da condicionadíssima atividade que o denunciante ou queixoso pode desenvolver por sua iniciativa.

Z) A segunda é a de que o facto de não ter havido crime ou de o arguido não o ter praticado a qualquer título ou de ser legalmente inadmissível o procedimento, não determinam automaticamente a verificação de ter havido utilização abusiva do processo. É necessária mais qualquer coisa.

AA) O que o legislador quis prevenir e reprimir foi um uso contra os bons usos, com dolo destinado a desvirtuar o processo da sua função própria, que é a regulamentação jurídica do direito penal substantivo, logo, a realização da justiça criminal, pervertendo-o em instrumento de desígnios que são alheios.

BB) Um uso doloso e determinadamente abusivo, o que não ocorreu nos presentes autos.

CC) A figura não visa sancionar erros técnicos. Esses, na nossa tradição, sempre foram punidos através do pagamento de custas, além, naturalmente, das consequências que tivessem no desfecho das questões.

DD) Ora, os assistentes, quanto muito, limitaram-se a fazer uma errada avaliação das implicações, na ordem criminal, da situação jurídica que tinham em mãos e que os afligia. E, em consequência, a fazer uma participação votada ao insucesso.

EE) Não se mostra que os assistentes tenham querido obter, pelo processo, algo diverso daquilo a que se julgavam com direito.

FF) Não há, assim, razão para os condenar no pagamento de qualquer quantia nos termos da previsão do art.º 277 n.º 5 do CPP.

GG) Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a decisão da primeira instância que condena os ora recorrentes em multa de 6 UC’s, cada, e seja substituída por uma nova decisão que não tenha essa condenação nos termos acima expostos.

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3. Respondeu o Ministério Público ao recurso interposto, concluindo a sua resposta nos seguintes termos:

1 - O conceito de uso abusivo do processo radica em vários fatores, dos quais muitos nascem da decomposição naturalística do conceito de ação criminal consagrado no nosso sistema penal e processual penal a partir de tese de Figueiredo Dias.

2 - Neste aspeto, a definição de ação de natureza criminal, em lugar de poder ser decomposta em vários momentos de natureza naturalística, posição defendida por Cavaleiro de Ferreira, deve ser entendida como o “retalho da vida” que comporta todos os momentos naturalísticos (para efeitos criminais, em termos de definição da referida natureza).

3 - No caso dos presentes autos o que se verificou foi exatamente a decomposição do “retalho de vida” que envolveu assistentes e arguidos, em vários momentos naturalísticos, tendo cada um deles dado início a cada uma das queixas de que, pelo menos, em termos de identidade de sujeitos processuais, queixosos e assistentes este processo e o Processo n.º … correspondem às mesmas pessoas que formularam cada uma das queixas que originaram com sobreposição de factos.

4 - Esta identidade de queixosos, ambos ora assistentes, em lugar de, no primeiro processo darem conta da totalidade dos factos a apreciar como o conjunto dos factos que constitui o “retalho de vida” a apreciara e decidir pelo tribunal, dado que o poderiam ter feito, apenas uma vez, preferiram, em lugar disso, decompor o “retalho da vida” em várias fases , despoletando cada uma das queixas relativas a parte daqueles factos, de nodo a fazerem uma certa “pressão”, quer sobre os denunciados, quer sobre o tribunal, dado que este órgão foi chamado por várias vezes a apreciar e decidir aquilo que poderia ter feito de uma só vez.

5 - A violação do princípio da economia processual a partir da queixa é um forte indício, se não mesmo, prova, na verdadeira aceção da palavra, de que o uso abusivo do processo é uma realidade neste caso concreto.

6 - Tal situação configura também violação dos direitos, liberdades e garantias constitucionais, designadamente, quanto á garantias do exercício da defesa em processo penal, podendo, no limite, afetar o princípio “ne bis in idem” em casos mais complexos de investigar e decidir.

7 - De resto, não é apenas na dedução da queixa que radica o uso abusivo do processo, pois em casos como o destes autos e, bem assim, da sua concatenação com a queixa existente no Processo n.º …, derivou, para além do mais, a constituição como assistentes por parte dos queixosos.

8 - Nos termos dos artigos 68 a 70 do CPP estão definidas as qualidades dos assistentes em processo penal, bem como as caracterizações jurídicas do instituto, o qual, no art.º 69 do citado diploma, baliza a posição processual e as atribuições de tais sujeitos processuais.

9 - Assim, nas várias alíneas do n.º 2 do preceito legal em causa estão definidas as suas competências, as quais poderemos considerar como proactivas, em termos de posição processual relativamente ao MP, o que demonstra, em contrário da tese dos recorrentes, que o uso abusivo do processo se projeta muito para além da simples queixa, desde que o ou os queixosos se constituam como assistentes no processo.

10 - Por isso, é de concluir que a complexidade de cada caso a apreciar e a decidir está em relação de proporção direta com o trabalho a efetuar em cada caso, aumentando a sua quantidade em termos, muitas das vezes exponenciais, o que prejudica diretamente outros casos de investigação e decisão que são, necessariamente, retardados pelo uso abusivo do processo levado a cabo em outros caos, como é o presente.

11 - Assim, é de concluir que o despacho ora em crise fez correta aplicação da Lei e do Direito, devendo ser mantido nos seus precisos termos.

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4. O Ministério Público junto deste tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso (parecer de 1.09.2020), manifestando a sua adesão à resposta apresentada pelo Ministério Público ao recurso e acrescentando que considera “muito bem fundamentada” a decisão recorrida, que teve como demonstrado que “os assistentes usaram o mesmo evento fáctico para despoletar mais do que um processo, quando o poderiam ter feito logo no primeiro se a queixa tivesse sido transparente, exaustiva e responsável, abrangendo toda a situação que consideravam ilícita e violadora de direitos.

Fizeram, pois um uso que, em vão e de forma evitável, despoletou mais do que um procedimento criminal, contribuindo, assim, para obstruir a eficácia e a celeridade da Justiça”.

5. Cumprido o disposto no art.º 417 n.º 2 do CPP e colhidos os vistos, cumpre decidir, em conferência, tendo em atenção as questões colocadas pelos recorrentes (assistentes) e que se resumem a saber:

1.ª – Se a decisão recorrida é nula, por falta de/insuficiente fundamentação de facto, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 379 n.º 1 alínea a) e 374 n.º 2 do CPP, com referência ao art.º 97 n.º 5 do CPP e 205 n.º 1 da CRP;

2.ª – Se em face das queixas que apresentaram – fazendo despoletar “mais do que um processo” sobre “o mesmo evento fáctico… quando o poderiam ter feito logo no primeiro se a queixa tivesse sido transparente, exaustiva e responsável, abrangendo toda situação que consideravam ilícita e violadora de direitos” – permite concluir que os recorrentes fizeram um uso abusivo do processo.

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Consta da decisão recorrida, em síntese:

“… o objeto da queixa que despoletou os presentes autos inscreve-se no mesmo conflito e nas mesmas circunstâncias de tempo que os factos denunciados nos dois processos-crime identificados no requerimento que antecede. Com efeito, quando as queixas que deram origem a estes últimos foram formuladas, já os factos que despoletaram o presente procedimento criminal tinham acontecido. Para além de já terem acontecido, respeitam, repise-se, ao mesmo conflito.

O que os assistentes fizeram foi, pois, decompor o mesmo episódio litigioso - o mesmo “evento naturalístico” – nos seus diversos incidentes e denunciar cada um destes incidentes em momentos diferentes, como forma de contornar os espartilhos processuais e constitucionais de litispendência, caso julgado e de proibição do “ne bis in idem”.

A sanção da utilização abusiva do processo é um instituto introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, que tem natureza disciplinar e ordenadora. Não deve, portanto, violar o princípio da proporcionalidade e é aplicada por despacho judicial independentemente do sentido do despacho de arquivamento em relação a este particular.

Visou o legislador sancionar - com o fito de dissuadir -, o recurso ao processo penal de modo anómalo, i.e., que cause mais prejuízos do que benefícios potenciais. Trata-se de uma válvula de segurança capaz de atuar em segmentos nos quais não sejam operativos os supra referidos mecanismos – caso julgado, litispendência e proibição do “ne bis in idem” - mas em que seja gritante uma postura processual irresponsável, de má-fé, que ofenda valores semelhantes àqueles em que se estribam tais mecanismos, por parte de quem podia e devia ter agido de outro modo.

O conceito de boa e de má-fé para estes efeitos é idêntico àquele que o legislador civil acolheu. Como refere Antunes Varela in Das Obrigações em Geral, 2.ª edição, 1973, vol. I, pág. 25, anot. 1, é de boa-fé um comportamento responsável, consciencioso e leal. Daqui decorre que não será de boa-fé o comportamento traduzido na narração de factos com omissões e reservas mentais.

Um dos prismas da ratio legis do instituto é o de impedir que um cidadão tenha de defender-se dos mesmos factos mais do que uma vez. Ora, qualquer pessoa que denuncie um episódio fáctico, deve relatar todo o sucedido - especialmente, nas vertentes que considera ilícitas e danosas - e não guardar na manga eventos parciais para poder mais tarde, se necessário, dar origem a novo procedimento criminal (para desenvolvimento desta matéria, nomeadamente na definição do objeto de queixa-crime, v., com interesse e resenha doutrinária, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.09.15, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/69d2a713225c7c3b80257ee300362c1f?OpenDocument. Justamente porque a apreciação de um evento parcial implicará a reapreciação de todo o contexto, redobrando o investimento da máquina da justiça e obrigará o denunciado a recomeçar, repetindo, a sua defesa geral (em sentido semelhante, v., com interesse, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 16.12.08, acessível, em comentário ao artigo 277 n.º 5 do CPP, em http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?artigo_id=199A0277&nid=199&tabela=leis&pagina=1&ficha=1&so_miolo=&nversao=#artigo.

No recurso ao sistema de Justiça, os cidadãos devem agir de boa-fé. O direito de acesso aos tribunais, direito constitucionalmente protegido e basilar num Estado de Direito Democrático com respeito pelos Direitos Humanos, como qualquer direito, tem, na contra-face, o dever de agir de forma responsável e não abusiva.

No caso vertente, os assistentes usaram o mesmo evento fáctico para despoletar mais do que um processo quando o poderiam ter feito logo no primeiro se a queixa tivesse sido transparente, exaustiva e responsável, abrangendo toda situação que consideravam ilícita e violadora de direitos. Fizeram, pois, um uso que, em vão e de forma evitável, despoletou mais do que um procedimento criminal, contribuindo, assim, para obstruir a eficiência e a celeridade da Justiça. Tal uso não cabe na tramitação normal dos processos e deve ser sancionada nos termos previstos no art.º 277 n.º 5 do CPP”.

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5.1. - 1.ª questão: se a decisão recorrida é nula, por falta de/insuficiente fundamentação de facto, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 379 n.º 1 alínea a) e 374 n.º 2 do CPP, com referência ao art.º 97 n.º 5 do CPP e 205 n.º 1 da CRP.

Alegam os assistentes que a decisão recorrida – onde se afirma que os assistentes fizeram um uso abusivo do presente inquérito ao usar o mesmo evento fáctico para despoletar mais do que um processo quando o poderiam ter feito logo no primeiro se a queixa tivesse sido transparente, exaustiva e responsável, abrangendo toda situação que consideravam ilícita e violadora de direitos – é nula, “por insuficiente fundamentação de facto”, ex vi art.ºs 379 n.º 1 al.ª a) e 374 n.º 2 do CPP, pois que não esclarece a que factos se refere e em que processos se encontram esses factos.

Não se questiona que as decisões judiciais devem ser – sempre – fundamentadas, como expressamente se dispõe no art.º 97 n.º 5 do CPP (quanto aos atos decisórios) e 374 n.º 2 do CPP (quanto às sentenças), dever de fundamentação que tem assento constitucional (art.º 205 n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).

Porém, em primeiro lugar deve dizer-se que não tem aqui aplicação o disposto nos art.ºs 374 e 379 n.º 1 al.ª a) do CPP, normas especiais que se aplicam às sentenças, enquanto atos decisórios mais solenes para o qual o legislador estabeleceu a cominação da nulidade.

Depois, não prevendo a lei a consequência para a deficiente fundamentação/falta de fundamentação de quaisquer outros atos decisórios (que não as sentenças ou acórdãos), tem-se entendido que tal falta constitui uma mera irregularidade, ex vi art.ºs 118 n.ºs 1 e 2 e 123 n.º 1, ambos do CPP, irregularidade que deve ser arguida nos termos estabelecidos no art.º 123 n.º 1 do CPP, sob pena de, não o sendo, se considerar sanda (veja-se neste sentido, e a este propósito, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição atualizada, 269) .

Concorde-se ou não com o decidido, a decisão recorrida deixa claras as razões pelas quais entendeu que os assistentes fizeram um uso abusivo do processo, em síntese:

- Porque “… o objeto da queixa que despoletou os presentes autos inscreve-se no mesmo conflito e nas mesmas circunstâncias de tempo que os factos denunciados nos dois processos-crime identificados no requerimento que antecede…. quando as queixas que deram origem a estes últimos foram formuladas, já os factos que despoletaram o presente procedimento criminal tinham acontecido. Para além de já terem acontecido, respeitam, repise-se, ao mesmo conflito”.

- Porque “o que os assistentes fizeram foi, pois, decompor o mesmo episódio litigioso - o mesmo “evento naturalístico” – nos seus diversos incidentes e denunciar cada um destes incidentes em momentos diferentes, como forma de contornar os espartilhos processuais e constitucionais de litispendência, caso julgado e de proibição do “ne bis in idem”.

- Porque “os assistentes usaram o mesmo evento fáctico para despoletar mais do que um processo quando o poderiam ter feito logo no primeiro se a queixa tivesse sido transparente, exaustiva e responsável, abrangendo toda situação que consideravam ilícita e violadora de direitos. Fizeram, pois, um uso que, em vão e de forma evitável, despoletou mais do que um procedimento criminal, contribuindo, assim, para obstruir a eficiência e a celeridade da Justiça. Tal uso não cabe na tramitação normal dos processos e deve ser sancionada nos termos previstos no art.º 277 n.º 5 do CPP”.

Por outro lado, e como supra se deixou dito, se tal fundamentação não era suficiente para dar a conhecer as razões do decidido, podiam os interessados suscitar a irregularidade da mesma, nos termos do art.º 123 n.º 1 do CPP, pelo que, não o tendo feito – e ainda que se pudesse entender que estamos perante uma fundamentação deficiente/falta de fundamentação bastante – tal irregularidade, a existir, sempre se teria como sanada.

Improcede, por isso, a 1.ª questão supra enunciada.

6.2. - 2.ª questão: se em face das queixas que apresentaram – fazendo despoletar “mais do que um processo” sobre “o mesmo evento fáctico… quando o poderiam ter feito logo no primeiro se a queixa tivesse sido transparente, exaustiva e responsável, abrangendo toda situação que consideravam ilícita e violadora de direitos” – permite concluir que os recorrentes fizeram um uso abusivo do processo.

Esta questão é em tudo idêntica à questão suscitada no Proc. … onde se decidiu (decisão de 22.01.2019) – por confronto entre as queixas apresentadas por … e … (que deram origem ao Proc. …) e … (que deu origem ao Proc. …) – que, ao apresentar “novas queixas versando parcialmente acerca da mesma temática – a falsidade da acusação de que o assistente não comunicou que estava impedido de integrar o júri e a publicitação de tal ausência de comunicação… o assistente fez um uso censurável do processo e dos meios processuais legalmente ao seu dispor, de modo a conseguir um fim indevido, a reapreciação dos factos anteriormente denunciados”.

Tal decisão foi revogada pelo acórdão deste tribunal de 24.09.2019, onde se concluiu:

“Considerando o teor das queixas apresentadas é inevitável a constatação de que o pomo da discórdia entre o ora recorrente e as pessoas nele denunciadas surge com a suspensão do processo de candidaturas ao mestrado de …. na …, a que se apresentaram … e ….

Do teor das queixas apresentadas, e apesar da incapacidade de síntese evidenciada naquele que deu origem aos presentes autos, não decorre que o recorrente … pretendesse a reapreciação do crime de difamação que entendeu ter sido cometido com a publicitação do despacho n.º ….

São diversos os crimes denunciados nessas queixas, embora a sua apreciação exija se pondere a atuação profissional do recorrente e dos denunciados na …, nomeadamente no âmbito do sobredito mestrado… não vislumbramos que seja infundada a denúncia ou queixa que deu origem aos presentes autos, que o denunciante ou queixoso não ignorava ou não devia ignorara a sua falsidade ou que alterou conscientemente a verdade dos factos ou, ainda, que usou o processo para conseguir um objetivo ilegal ou simplesmente reprovável…” (sic).

Vejamos.

De acordo com o disposto no art.º 277 n.º 5 do CPP, o tribunal – em caso de arquivamento do processo, nos casos previstos n.º 1 - condena o queixoso no pagamento de uma soma entre 6 e 20 UC`s, sem prejuízo de responsabilidade penal, “sempre que se verificar que existiu… uma utilização abusiva do processo”, entendendo-se por utilização abusiva do processo o uso do processo ou dos meios processuais manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objetivo ilegal.

A utilização abusiva não se basta com a inexistência ou não prova do crime denunciado ou inadmissibilidade do procedimento, por ilegitimidade do queixoso ou caducidade do direito de queixa.

No dizer do acórdão da RP de 27.11.2013, in www.dgsi.pt, “… faz utilização abusiva do processo todo aquele que o usa para fins que não sejam o assinalado (a finalidade primordial de aplicação da lei penal aos casos concretos), pervertendo-o em instrumento de desígnios que lhe são alheios. Necessário… para a condenação por utilização abusiva do processo é que se reúnam os elementos que permitam concluir, com segurança, que a denúncia ou a queixa são infundadas, que o denunciante ou queixoso não ignorava ou não devia ignorar a sua falsidade ou que alterou conscientemente a verdade dos factos ou ainda que usou o processo para conseguir um objetivo ilegal ou simplesmente reprovável”.

No caso em apreço a queixa que deu origem aos presentes autos foi apresentada em … por … e … contra:

1)…;

2) …;

3) …;

4) ….

Quando a que deu origem ao Processo n.º ….(apresentada em …) foi apresentada por … e … contra:

1)…;

2) …;

3) …;

4) ….

E a que deu origem ao Proc. n.º … (apresentada em …) foi apresentada apenas por … contra:

1) …;

2) …;

3) …;

4) ….

Ou seja, desde logo, não há uma coincidência rigorosa entre os denunciantes e os denunciados em todas as queixas, sendo certo que a que deu origem aos presentes autos foi apresentada posteriormente àquelas.

Depois, também não se pode dizer que na queixa que deu origem aos presentes autos – em que alguns dos elementos de prova que a suportam foram recolhidos no Proc. …– haja uma relação direta com as queixas que deram origem àqueles autos, pois que, não obstante o modo repetitivo e confuso como se apresenta a queixa que deu origem a estes autos, com frequentes referências ao que antes se passou, esta respeita a comportamentos dos arguidos que não se confundem nem identificam com os investigados naqueles autos: a instauração dos processos disciplinares aos denunciantes, pelo denunciado … – falseando, para tal a verdade dos factos – e a falsidade das declarações e depoimentos prestados pelos denunciados “em sede de processo disciplinar, com o firme objetivo de prejudicarem gravemente os denunciantes” e os difamarem.

Esta matéria, ou seja, a queixa relativamente aos fundamentos da instauração dos processos disciplinares contra os denunciantes e à falsidade dos depoimentos neles prestados, visando, no dizer dos denunciantes, difamar e prejudicar os mesmos, não se confunde com as queixas anteriormente apresentadas e, tendo embora origem no mesmo episódio/pomo da discórdia, não se vê porque razão teriam os denunciantes de condensar esta queixa naquelas, quando é certo que – conforme alegam pretender demonstrar – a demonstração da falsidade resulta da documentação junta ao Processo n.º ….

E, pior, não faz qualquer sentido pretender – como se pretendeu no despacho de arquivamento – que é inadmissível o procedimento, em obediência ao princípio do ne bis in idem, pois que se trata de matéria que naqueles autos não foi denunciada nem investigada.

Em suma, são diversos os crimes denunciados nesta queixa – que assentam em factualidade diversa daquela a que respeitavam os anteriores processos - e, atentos os fundamentos em que se baseia, não se pode afirmar que a mesma era manifestamente infundada, que os denunciantes alteraram conscientemente a verdade dos factos, sabiam que os mesmos eram falsos ou usaram o processo para conseguir um objetivo ilegal ou reprovável.

O direito de queixa é um direito que assiste ao ofendido, que poderá exercer (ou não) quando e se o entender pertinente (art.º 49 do CPP), sem prejuízo dos prazos de caducidade da mesma.

Por outro lado, a apresentação de várias queixas sem separado – relacionadas com um mesmo episódio da vida real, mas respeitando a diversas condutas, de diversos denunciados e integradoras de crimes diversos – não é razão para afirmar, sem mais, que o denunciado está a fazer um uso reprovável do processo, com um objetivo ilegal ou reprovável.

O direito de queixa relativamente a tal factualidade – como alega ao Ministério - já havia caducado, é verdade, mas tal circunstância, por si, não é razão para dizer que os denunciantes fizeram um uso do processo manifestamente reprovável, que – dolosamente ou com culpa grave – fizeram uma queixa que sabiam infundada (não havia, manifestamente, razões para suspeitar da falsidade dos depoimentos prestados com o fito de pôr em causa o bom nome e imagem dos assistentes?); e uma errada avaliação das implicações, na ordem criminal, dos factos denunciados – como alegam os recorrentes - seja pela caducidade do direito de queixa, seja por os factos, eventualmente, não integrarem o crime denunciado ou não haver prova da prática dos mesmos não é razão bastante para se dizer que o denunciante fez um uso reprovável do processo ou visou um objetivo ilegal ou reprovável.

Por outras palavras, e em jeito de conclusão, como se decidiu no acórdão da RC de 16.03.2016, in www.dgsi.pt, em excerto retirado do acórdão deste tribunal junto aos autos, “o uso abusivo do processo terá de ser uma atividade conduzida no sentido do desvio dos seus fins em prejuízo de outrem, não visando sancionar meros erros técnicos, os quais, na nossa tradição jurídica, sempre foram punidos através do pagamento de custas…”.

Procede, por isso, o recurso.

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7. Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1.ª Subsecção Criminal deste tribunal em conceder provimento ao recurso interposto pelos assistentes e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida.

Sem tributação.

(Este texto foi por mim, relator, elaborado e integralmente revisto antes de assinado)

Évora, 10/11/2020

(Alberto João Borges)

(Maria Fernanda Pereira Palma)