Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
961/13.0TBVRS-F.E1
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: NULIDADE
PODERES DO TRIBUNAL
Data do Acordão: 11/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A decisão proferida depois de esgotado o poder jurisdicional e fora dos casos em que é permitido ao juiz retificar ou alterar a decisão, é juridicamente inexistente, não vale como decisão jurisdicional.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 961/13.0TBVRS-F.E1

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1. Relatório.
Nos autos de ação executiva, para pagamento de quantia certa, em que é exequente (…) Banco, S.A., com sede na Avª da (…), nº 195, em Lisboa, e são executados (…) e (…), ambos residentes na Quinta das (…), Cancela Velha, Vila Nova de Cancela, em 13/9/2018 foi proferido despacho no qual designadamente se estabeleceu:
“(…) Refª CITIUS 29838300:
Veio a executada (…) impugnar a venda efetuada nos autos, alegando que não foi formal e legalmente citada para a execução nem tão pouco foi notificada da venda, que não foram interpelados os titulares do direito de preferência nem o cônjuge e descendentes da executada para exercer o direito de remição, pelo que a venda é nula por terem sido omitidas as formalidades legais.
O Tribunal já se pronunciou acerca da regularidade da citação da executada e das notificações que lhe foram endereçadas por despacho de 23 de Junho de 2018, pelo que nesta parte nada mais há a acrescentar, sendo certo que dos documentos constantes nos autos não resulta a existência de quaisquer preferentes na venda e, por essa razão havia como proceder à respetiva notificação, sendo certo que mesmo agora a executada não identifica quaisquer preferentes e no que tange ao direito de remição não está prevista na lei qualquer notificação, até porque antes de realizada a venda não resulta dos autos que os executados tivessem quaisquer filhos e relativamente ao cônjuge da executada, convém lembrar-lhe (à executada) que o mesmo é também executado.
Para além da executada ter sido regularmente citada para a execução (citação edital) e de ter sido regulamente notificada da decisão da venda, da data designada para realização da abertura de propostas e do auto de abertura de propostas do qual resulta que o prédio foi adjudicado ao proponente … (notificada na pessoa da Digna Magistrada do Ministério Público como resulta da lei), foram observadas todas as formalidades legais na venda, razão pela qual a mesma é valida e eficaz, não padecendo de qualquer vício.
Notifique.
(…)
Da requisição do auxílio da força pública:
Compulsados os autos constato que por decisão de 22 de Fevereiro de 2018 foi aceite a proposta de (…) para aquisição do imóvel penhorado nos autos (prédio misto sito em …, freguesia de Vila Nova de Cacela, concelho de Vila Real de Santo António, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Real de Santo António sob o número …/19870707 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … e na matriz predial rústica sob o artigo … da Secção …).
Foi emitido o título de transmissão e (…) já registou a aquisição a seu favor na Conservatória do Registo Predial.
A executada foi notificada pela senhora Agente de Execução no pretérito dia 01 de Julho de 2018 para em dez dias fazer a entrega das chaves do imóvel mas até ao momento não o fez o que impossibilita que o adquirente tome posse efetiva do imóvel adquirido.
Pelo exposto, autoriza-se a senhora Agente de Execução a solicitar o auxílio da força pública para realização da entrega do imóvel ao adquirente, devendo observar-se, se for caso disso, o disposto nos nºs 3 a 5 do artigo 863º do Código de Processo Civil (cfr. artigos 757º, nº 4, 828º, 861º e 863º, todos do Código de Processo Civil).

2. A executada (…) recorre do despacho, na parte em referência, e conclui assim a motivação do recurso:
1. A Executada ora recorrente requereu a nulidade da venda assim como todos os respetivos atos subsequentes, nos termos do disposto no arrigo 195.º do Código de Processo Civil.
2. Por despacho datado de 13-09-2018 tribunal "a quo" julgou que foram observadas todas as formalidades legais na venda, razão pela qual considerou a mesma valida e eficaz não padecendo de qualquer vício e nessa sequência autorizou a Senhora Agente de Execução a solicitar o auxílio da força pública para realização da entrega do imóvel ao adquirente.
3. A executada ora recorrente não se conforma com os despachos recorridos porquanto não foi formal e legalmente citada na presente execução, nem tão pouco notificada dessa mesma venda.
4. Assim como não foram interpelados os titulares do direito de preferência, para que declarem se querem exercer o seu direito, conforme dispõe o artigo 823º do Código de Processo Civil.
5. Ou o cônjuge e descendentes da executada para exercer o direito de remição sobre o bem adjudicado ou vendido, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação da venda, nos termos do disposto no artigo 842º do Código de Processo Civil.
6. Pois contrariamente àquilo que a Sra. agente de Execução veio declarar aos autos no requerimento datado de 30-01-2014, documento 29175507835, refª interna PE/445/2013 e no requerimento datado de 31-01-2014, documento 58175586629, refª interna PE/445/2013, não se frustraram as tentativas de citação pessoal e postal da executada.
7. Atendendo a que esta é funcionária pública e que sempre exerceu funções na Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, conforme consta de todas as bases de dados.
8. Ao que acresce que o tribunal “a quo” considerou por despacho datado de 23-06-2018 que a executada foi regularmente notificada da data de abertura de propostas em carta fechada na pessoa da Ilustre Magistrada do Ministério Público, sendo certo que o Ministério Público nada fez, tendo violado daqueles que são os seus deveres de defesa do interesse público e da legalidade.
9. Motivos pelos quais a Executada ora recorrente não se conforma com a decisão recorrida, devendo a venda ser declarada nula porquanto foram omitidas as competentes formalidades legais.
10. Tendo sido a presente venda do imóvel nula porquanto foram omitidas as competentes formalidades legais.
11. Nomeadamente não foram interpelados os titulares o direito de preferência, para que declarem se querem exercer o seu direito, conforme dispõe o artigo 823.º do Código de Processo Civil.
12. Nem tão pouco foram interpelados os descendentes da insolvente para exercer o direito de remição sobre o bem adjudicado ou vendido, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação da venda, nos ternos do disposto no artigo 842.º do Código de Processo Civil.
13. A Executada ora recorrente não se conforma com tal indeferimento porquanto não foi formal e legalmente citada na presente execução, nem tão pouco foi notificada dessa mesma venda.
14. Pois contrariamente àquele que foi o entendimento do tribunal "a quo" a executada foi citada nos presentes autos, nem foi notificada da venda da sua casa de morada de família.
15. Por outro lado não se compreende como é que o tribunal "a quo' considerou que foram observadas todas as formalidades prescritas na lei.
16. Andou mal o tribunal "a quo" ao não equacionar que a Sra. Agente de Execução não faz qualquer referência a pesquisas efetuadas sobre o domicílio ou o local de trabalho da executada, pois esta quando requer a citação edital dos executados apenas faz referência ao executado, olvidando-se da executada, ora Recorrente.
17. No podendo de forma alguma os direitos da ora recorrente serem prejudicados por omissão de formalidades legais e por incompetência de uma Agente de Execução que não fez o seu trabalho, atendendo a que a executada reside em (…), uma pequena aldeia em que todos se conhecem e exerce a sua profissão na Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, também uma urbe pequena onde facilmente se todos se conhecem e bastariam duas ou três perguntas e logo o agente de execução conseguiria citar a executada.
18. Ao que parece não houve foi nenhuma tentativa nesse sentido, nem pesquisas nas bases de dados disponíveis, o que deveria causar alguma estranheza ao Juiz, assim como deveria causar alguma estranheza o facto de a executada não apresentar defesa, não constituir mandatário nem tão pouco ter aparecido mais do que uma proposta para compra do imóvel.
19. O que causa suspeitas e deveria causar suspeitas ao Juiz quando não aparece mais do que um comprador.
20. Face ao supra exposto tribunal "a quo" violou o disposto nos artigos 823.º e 842º do Código de Processo Civil.
21. Pois contrariamente àquilo que a Sra. agente de Execução veio declarar aos autos no requerimento datado de 30-01-2014, documento 29175507835, refª interna PE/445/2013 e no requerimento datado de 31-01-2014, documento 58175586629, refª interna PE/445/2013, não se frustraram as tentativas de citação pessoal e postal da executada.
22. Atendendo a que esta é funcionária pública e que sempre exerceu funções na Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, conforme consta de todas as bases de dados.
23. E conforme é do conhecimento da Sra. Agente de Execução, pois encontra-se a ser penhorado parte do seu vencimento noutros processos executivos, nomeadamente no processo 620/12.0TBVRS e no processo nº 3426/14.9T8LLE que correm ambos termos no Tribunal da Comarca de Faro – Juízo de Execução de Loulé.
24. O que nos leva a crer que não foram realizadas as competentes buscas para que se efetivasse a citação à executada e bem assim a posterior notificação da venda para que esta pudesse oferecer a sua defesa nos presentes autos.
25. Motivos pelos quais em 02-08-2018 a executada denunciou tal situação à Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução para competente instauração de processo disciplinar.
26. Ao que acresce que contrariamente ao que o tribunal “a quo” considerou não se pode dizer que a executada foi regularmente notificada da data da abertura de propostas em carta fechada na pessoa da Ilustre Magistrada do Ministério Público.
27. Sendo certo que o Ministério Público nada fez, foi notificado de mais uma venda judicial e pronto, mais uma entre milhares que se verificam a diário sem que se preocupasse em averiguar se se encontra a ser cumprido todo o formalismo legalmente exigido.
28. Em violação daqueles que são os seus deveres de defesa do interesse público e da legalidade.
29. Motivos pelos quais a presente venda deverá assim ser declarada sem efeito e bem assim ser declarada nula porquanto foram omitidas as competentes formalidades legais.
30. Ao que acresce que não poderia ter sido autorizada a entrega do imóvel, bem como o auxílio da força pública uma vez que as decisões ainda não transitaram em julgado, tendo o presente recurso efeito suspensivo.
31. Mais se invoca desde já a questão da inconstitucionalidade, por violação dos princípios da proibição da indefesa e do processo equitativo, consagrados no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa para efeitos de eventual e futuro recurso para o Tribunal Constitucional.
32. Termos em que deverá o despache recorrido ser revogado e em consequência deverá ser proferido outro que declare a nulidade da venda e bem assim todos os respetivos atos subsequentes.
Nestes termos e nos melhores de direito deverão V. Exas. julgar o presente recurso procedente por provado e em consequência deverá ser proferido outro que declare a nulidade da venda e bem assim todos os respetivos atos subsequentes.”
Respondeu o adquirente do bem por forma a defender a improcedência do recurso.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
Considerando as conclusões da motivação do recurso e sendo estas que delimitam o seu objeto, são as seguintes as questões suscitadas: (i) se a venda é nula, (ii) se o auxílio da força pública não deveria ter sido autorizada.

III. Fundamentação
1. Factos
Relevam para a decisão os factos constantes no relatório supra e ainda o seguinte:
a) A venda do imóvel, a que os autos se reportam, teve lugar no dia 22/02/2018, mediante propostas em carta fechada.
b) Por requerimento de 16/3/2018, a executada (…) suscitou a nulidade da venda, com fundamento na falta de notificação da data da venda.
c) O requerimento foi apreciado por despacho de 23/6/2018 que a final consignou:
“Pelo exposto, porque na notificação foram observadas todas as formalidades prescritas na lei, sem necessidade de mais considerandos, indefere-se o requerido pela executada, não havendo qualquer fundamento legal para declarar nula a venda efetuada.
d) Por requerimento de 2/8/2018, a executada recorreu deste despacho argumentando, em essência, que não foi citada para a execução, não foi notificada da venda, não foram interpelados os titulares do direito de preferência e foram violados os princípios da indefesa e do processo equitativo.
e) Por despacho de 13/9/2018 o recurso foi admitido com efeito meramente devolutivo.

2. Direito
2.1. Se a venda é nula
A questão da nulidade da venda do imóvel constitui objeto do recurso interposto pela Executada do despacho de 23/6/2018 [als. c) e d), supra]; comparando as alegações do recurso em referência e do recurso que agora se aprecia evidencia-se a sua identidade substancial e similitude formal, ou seja, as razões pelas quais a ora Apelante pretende a revogação do despacho recorrido são precisamente as mesmas que fundamentam o pedido de revogação do despacho de 23/6/2018.
E é assim, porquanto o despacho recorrido terminou por concluir que “foram observadas todas as formalidades legais na venda, razão pela qual a mesma é valida e eficaz, não padecendo de qualquer vício” assim repetindo a decisão proferida em 23/6/2018 – “foram observadas todas as formalidades prescritas na lei, sem necessidade de mais considerandos, indefere-se o requerido pela executada, não havendo qualquer fundamento legal para declarar nula a venda efetuada” – que se encontra em recurso.
Dir-se-á que existe coerência em ambas as decisões, uma vez que ambas concluem pela validade da venda, o que é certo, mas a metodologia perfilhada abre espaço a decisões contraditórias, uma vez que nenhuma delas se mostra estabilizada por via dos recursos interpostos; note-se que o trânsito em julgado do despacho recorrido, a verificar-se antes do conhecimento do recurso interposto do despacho de 23/6/2018, inutilizaria este recurso caso viesse a concluir pela invalidade da venda, por aplicação da disciplina do artº 625º, nºs 1 e 2, do CPC.
Passado em julgado em primeiro lugar o despacho recorrido a venda ficaria a ser válida para o processo, independentemente da decisão do recurso do despacho de 23/6/2018 a vir a considerar inválida.
Por razões de segurança jurídica, do prestígio dos tribunais e até, por que não dizê-lo, por razões de economia de meios, a lei processual é adversa à repetição de atos processuais e dispõe de vários mecanismos para os combater e, no limite, eliminar.
Proíbe a prática de atos inúteis (artº 130º, do CPC); previne a prolação de decisões de mérito, determinando a absolvição do réu da instância, nos casos em que as causas se repetem (artºs 576º, nº 2, 577º, al. i) e 580º e 581º, do CPC); determina que em caso de decisões contraditórias sobre a mesma pretensão se cumpra, não a última, mas a que passou em julgado em primeiro lugar (artº 625º, nº 1, do CPC) e impede os juízes de proferirem mais do que uma decisão sobre a mesma questão (artº 613º, do CPC).
E é aqui, a nosso ver, que reside o desacerto do procedimento; proferida uma decisão sobre uma determinada questão colocada no processo – a matéria da causa – extingue-se o poder jurisdicional do juiz, o que significa que o juiz não pode reapreciar a mesma questão.
Regra que não vigora em absoluto, isto é, há casos que o próprio juiz pode rever, emendar ou alterar a sua decisão como acontece, com a retificação de erros materiais (artº 614º do CPC), com reforma da decisão nos casos em que dela não cabe recurso (artº 616º do CPC), com a possibilidade de modificação da decisão que fixe alimentos ou satisfaça outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida e duração (artº 619º, nº 2, do CPC).
A situação posta nos autos, porém, não se reconduz a nenhuma destas exceções.
Com o despacho proferido em 23/6/2018, mediante o qual se concluiu pela validade da venda por observância de “todas as formalidades prescritas na lei”, extinguiu-se o poder jurisdicional de juiz da causa quanto à questão da validade/invalidade da venda e, assim, o despacho recorrido, segundo o qual “foram observadas todas as formalidades legais na venda, razão pela qual a mesma é valida e eficaz, não padecendo de qualquer vício”, foi proferido depois de extinto o poder jurisdicional para apreciar tal questão.
A decisão proferida depois de esgotado o poder jurisdicional e fora dos casos em que é permitido ao juiz retificar ou alterar a decisão “é juridicamente inexistente, não vale como decisão jurisdicional” (Ac. do STJ de 6/5/2010 (proc. 4670/2000.S1), disponível em www.dgsi.pt).
É o caso.
Com este alcance, procede o recurso, quanto a esta questão.
Solução que prejudica o conhecimento da violação de princípios constitucionais, assente, como se mostra, na validade de um despacho que ora se conjetura juridicamente inexistente.

2.2. Se o auxílio da força pública não deveria ter sido autorizada
Considera a Apelante que não poderia ter sido autorizada a entrega do imóvel, bem como o auxílio da força pública uma vez que as decisões ainda não transitaram em julgado, tendo o presente recurso efeito suspensivo.
Tal como reconhece a Apelante, o trânsito em julgado da decisão não é condição da execução da decisão; a decisão, ainda que pendente de recurso, pode ser executada desde que ao recurso não haja sido fixado efeito suspensivo (artº 647º, nº 4, do CPC).
A entrega do imóvel, na economia dos autos, é um ato de execução da venda, o imóvel foi vendido e o auxílio da força pública destina-se a remover os obstáculos de entrega do imóvel ao adquirente.
Ao recurso interposto pela Apelante do despacho proferido em 23/6/2018 foi atribuído efeito devolutivo e o mesmo efeito foi fixado ao recurso de que agora se conhece.
Não ocorrem, pois, as razões pelas quais a Apelante defende a revogação do despacho recorrido na parte em que autoriza a Srª agente de execução a solicitar o auxílio da força pública para executar a entrega do imóvel ao adquirente.
Improcede o recurso quanto a esta questão.

3. Custas
Parcialmente vencida no recurso, incumbe à Apelante o pagamento das custas (artº 527º, nºs 1 e 2, do CPC), que se fixa em ½, ficando as restantes a cargo do vencido a final, sem prejuízo do decidido quanto ao apoio judiciário.

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, na procedência parcial do recurso, em declarar juridicamente inexistente a decisão recorrida, na parte em que se pronuncia sobre a validade da venda, mantendo-a em tudo o mais.
Custas pela Apelante e pelo vencido a final, na proporção de ½.
Évora, 21/11/2019
Francisco Matos
José Tomé Carvalho
Mário Branco Coelho