Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
323/13.8TBVNO-A.E1
Relator: ISABEL PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 05/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 - As disposições processuais relativas ao procedimento para fixação da prestação alimentar em dívida, a cargo do FGADM, encontram-se estabelecidas no art. 3.º da Lei n.º 75/98;
2 - A decisão judicial de atribuição das prestações alimentícias ao Estado, nos termos previstos na citada Lei, deverá enunciar os factos apurados em consequência da atividade instrutória desenvolvida, sob pena de nulidade.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 323/13.8TBVNO-A.E1


ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I – As Partes e o Litígio

Recorrente: Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social

Recorrido: (…) e (…)

O presente processo consiste em incidente de incumprimento de decisão judicial instaurado pelo Ministério Público, em representação dos menores (…) e (…), contra (…), dado que este deixou de proceder ao pagamento das prestações mensais devidas aos menores a título de pensão de alimentos.

II – O Objeto do Recurso

No âmbito deste processo, foi proferida decisão que determinou que o Estado, através do Fundo de Garantia dos Alimentos, pague a quantia mensal de € 250 por cada menor, no total mensal de € 500 até que o pai aufira rendimentos capazes de suportar este encargo.

Inconformado, o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social apresentou-se a recorrer com vista a ver declarado o seguinte:
- que não se encontra preenchido o requisito da impossibilidade de recurso à cobrança coerciva da prestação previsto nos termos do art. 48.º do RGPTC e do qual depende a intervenção do FGADM, face a encontrar-se o progenitor incumpridor a auferir rendimentos no valor mensal de €1.037,70, devendo, consequentemente, ser revogada a decisão recorrida;
Caso assim não se entenda:
- que a prestação substitutiva de alimentos fixada ao FGADM, no valor global de € 500,00, viola o limite legal de € 419,22 previsto no nº 1 do art. 2º da Lei 75/98, de 19 de Novembro, com a redação que lhe foi dada pelo art. 183º da Lei 66-B/2012, de 31 de Dezembro, e no nº 5 do art. 3º do D.L. 164/99, de 13 de Maio, com a redação que lhes foi dada pelo pela Lei 64/2012, de 20 de Dezembro, devendo, consequentemente, ser revogada a douta decisão recorrida na parte que estabelece uma prestação substitutiva de alimentos a pagar pelo FGADM em valor superior ao limite legal supra referido.

Conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«I. Na douta decisão recorrida, determinou-se “… que o Estado, através do Fundo de
Garantia dos Alimentos, pague a quantia mensal de 250 €/cada menor, no total mensal de 500 € (quinhentos euros), à mãe dos meninos, nos termos da Lei nº 75/98 de 19.11, até que o pai aufira rendimentos capazes de suportar este encargo.”
Impossibilidade de atribuição da prestação substitutiva de alimentos aos menores por falta de requisitos legais.
II. São os seguintes os requisitos cumulativamente exigidos para a atribuição de prestações de alimentos nos termos da Lei nº 75/98, de 19/11, face às alterações introduzidas no DL 164/99, de 13/05 pelo DL 70/2010, de 16/06 e pela Lei nº 64/2012, de 20/12:
1. a existência de uma decisão judicial que tenha fixado os alimentos devidos a menores (nos termos do disposto na 1ª parte da alínea a) do nº 1 do art. 3° do DL 164/99, de 13 de Maio);
2. que o menor beneficiário resida em território nacional;
3. que não seja possível a satisfação pelo devedor das quantias em dívida, pelas formas previstas no art. 189° da OTM (2ª parte da alínea a) do nº 1 do art. 3º do DL 164/99, de 13 de Maio);
4. que o menor não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, entendendo-se que o alimentado não beneficia de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, superiores ao valor do IAS, quando a capitação do rendimento do respetivo agregado familiar não seja superior àquele valor (art. 3º, nº 1, alínea b) e nº 2, do DL 164/99, de 13/05).
III. O FGADM aceita – tomando em consideração o constante dos parágrafos 5º a 7º da 3ª pág. da decisão recorrida que o pai dos menores se encontra obrigado a prestar-lhes alimentos em valor fixado em decisão judicial transitada em julgado, sendo o montante dos mesmos de € 250,00 para cada menor, apesar de nada de concreto se referir quanto a estes aspectos essenciais da decisão ora em crise na fundamentação da mesma – que o primeiro requisito de que depende a sua intervenção se encontra preenchido.
IV. Do relatório social de fls. 32 e ss. produzido pelos serviços competentes do Instituto da Segurança Social, I.P./Centro Distrital de Santarém, pode constatar-se a verificação do preenchimento dos segundo e quarto requisitos acima referidos.
V. No entanto, o mesmo não se passa relativamente ao terceiro requisito.
Quanto à falta de verificação do terceiro requisito - impossibilidade de recurso à cobrança coerciva da prestação, nos termos do art. 48º do RGPTC – anterior 189º da OTM.
VI. Um dos requisitos de que depende a intervenção do FGADM é a impossibilidade de recurso à cobrança coerciva da prestação de alimentos, nos termos previstos no art. 48º do RGPTC, anterior art. 189º da OTM.
VII. A fls. … dos autos consta um ofício emitido pelo Instituto da Segurança Social, I.P./Centro Distrital de Santarém, no qual a pedido do Tribunal, se informa aos autos que o obrigado a alimentos se encontra a receber uma remuneração por equivalência a doença – ou seja, subsídio de doença – em 2016-01, no valor diário de € 34,59 o que corresponde a um valor mensal de € 1.037,70 (€ 34,59x30).
VIII. Nos termos da al. c) do nº 1 do art. 48º do RGPTC, relativamente aos Meios de tornar efetiva a prestação de alimentos, encontra-se estipulado o seguinte:
“1 - Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte:
c) Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados na situação de fiéis depositários. “
IX. O Mmo. Juiz a quo não teve em consideração na sua decisão quer o valor dos rendimentos auferidos pelo obrigado a alimentos, quer o dispositivo legal que permite a cobrança coerciva das quantias em dívida em causa nos autos.
X. Consequentemente, não se verifica um dos pressupostos necessários à intervenção do FGADM, a saber, a impossibilidade de efectuar a cobrança coerciva da prestação de alimentos nos termos do art. 48º do RGPTC, pelo que não poderia o Mmo. Juiz a quo ter determinado nos presentes autos o pagamento pelo FGADM da prestação substitutiva de alimentos a favor dos menores.
XI. Ao decidir como decidiu, violou o Mmo. Juiz a quo, o disposto no nº 2 do art. 2º, e no nº 1, al. a), do art. 3º, do DL 164/99, de 13 de Maio, todos com a redacção dada pela Lei 64/2012, de 20 de Dezembro de 2012.
Sem prescindir,
Quanto à condenação do FGADM em valor superior ao legalmente permitido
XII. O Mmo. Juiz a quo decidiu “… que o Estado, através do Fundo de Garantia dos Alimentos, pague a quantia mensal de 250 €/cada menor, no total mensal de 500€ (quinhentos euros), à mãe dos meninos, nos termos da Lei nº 75/98, de 19.11, até que o pai aufira rendimentos capazes de suportar este encargo.”
XIII. Nos termos do nº 1 do art. 2º da Lei 75/98, de 19 de Novembro, com a redação que lhe foi dada pelo art. 183º, da Lei 66-B/2012, de 31 de Dezembro, e do nº 5 do art. 3º do DL 164/99, de 13 de Maio, com a redação que lhes foi dada pelo pela Lei 64/2012, de 20 de Dezembro, as prestações atribuídas nos termos daqueles diplomas não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 1 IAS, independente do número de filhos menores.
XIV. Verifica-se, assim, que o Mmo. Juiz a quo ao fixar uma prestação substitutiva de alimentos a cargo do FGADM, no valor global de € 500,00, violou o limite legal de € 419,22 previsto no nº 1 do art. 2º da Lei 75/98, de 19 de Novembro, com a redação que lhe foi dada pelo art. 183º da Lei 66-B/2012, de 31 de Dezembro, e no nº 5 do art. 3º do D.L. 164/99, de 13 de Maio, com a redação que lhes foi dada pelo pela Lei 64/2012, de 20 de Dezembro.»

O M.º P.º apresentou-se a responder ao recurso, sustentando que deve manter-se a decisão recorrida, com a salvaguarda do limite máximo de € 419,22 fixado no art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 75/98, de 19/11 e no art. 3.º, n.º 5, do DL n.º 164/99, de 13/05, tudo no superior interesse dos menores.

Ao abrigo do disposto no art. 655.º do CPC, as partes foram auscultadas relativamente à anulação da decisão recorrida com vista a que sejam discriminados os factos que a 1.ª instância considera provados e que alicerçam a decisão em causa, bem como com vista a ampliar a matéria de facto de modo a apurar se o devedor pai dos menores, que é referido como continuando sem trabalhar, aufere subsídio ou pensão, na afirmativa de que montante e durante que período previsível de tempo.

Não foi emitida qualquer pronúncia.

Assim, em face das conclusões da alegação das Recorrentes, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso[1], sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, são as seguintes as questões a decidir, salvo prejudicialidade decorrente do anteriormente apreciado:
- na nulidade da decisão recorrida[2];
- da impossibilidade de atribuição da prestação substitutiva de alimentos aos menores por falta de requisitos legais;
- da condenação em valor superior ao legalmente permitido.

III – Fundamentos

A – Dados a considerar

Aqueles que são versados supra, sendo certo que a decisão recorrida não contempla a enunciação de factos provados em que alicerça o determinado.

B – O Direito

Temos em mãos o procedimento especial previsto no art. 3.º da Lei n.º 75/98, de 19/11, a processar nos autos do incidente de incumprimento contra o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P., na qualidade de gestor do FGADM, nas situações previstas no art. 1.º, n.º 1, da referida Lei n.º 75/98, de 19/11, na redação dada pelo art. 183.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12.

Tal procedimento é distinto do incidente de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais consagrado no art. 41.º da Lei n.º 141/2015, de 08/09[3], visando estabelecer, a cargo do FGADM uma prestação pecuniária que, embora subsidiária, é independente e autónoma da obrigação do devedor originário, tratando-se de uma obrigação ex novo que emerge com a decisão judicial que a determina[4]. «É no quadro de uma pretensão de cumprimento coercivo da prestação de alimentos em dívida, previamente fixada e a pagar pelo progenitor faltoso, que o FGADM é chamado a assegurar, a “garantir” como a própria designação do Fundo inculca, ao menor credor de alimentos uma prestação que substituirá a do progenitor faltoso, assegurando o Estado, dessa forma, que nenhuma criança fique privada da prestação de alimentos a quem tem direito.»[5]

As disposições processuais relativas ao procedimento para fixação da prestação alimentar em dívida cargo do FGADM encontram-se estabelecidas no art. 3.º da Lei n.º 75/98. Aí se determina, designadamente, que se for considerada justificada e urgente a pretensão do requerente, o juiz, após diligências de prova, proferirá decisão provisória (n.º 2). Seguidamente, o juiz mandará proceder às restantes diligências que entenda indispensáveis e a inquérito sobre as necessidades do menor, posto o que decidirá (n.º 3). A realização de tais diligências instrutórias tem em vista a «reponderação e verificação dos pressupostos de concessão de benefícios que envolvem utilização de recursos públicos, que se quer rigorosa e não descontrolada.»[6]

Ora, atento o disposto no art. 1.º, n.º 1, da Lei n.º 75/98, de 19/11, o pagamento da prestação alimentar pelo Estado depende dos seguintes critérios objetivos:
- existência de sentença que fixe os alimentos;
- residência do menor em território nacional;
- inexistência de rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS);
- não pagamento pelo devedor da obrigação de alimentos em dívida pelas formas previstas no art. 189.º do DL n.º 314/78, de 27 de Outubro (OTM) / art. 48.º da Lei n.º 141/2015, de 08/09 (RGPTC).

O montante da prestação a suportar pelo FGADM não tem que ser, necessariamente, equivalente à que estava a cargo do progenitor, podendo ter um conteúdo diferente da obrigação de alimentos do originário devedor o progenitor não convivente com o filho menor no âmbito dos autos de regulação das responsabilidades parentais[7]. Não pode, porém, ser fixada em montante superior ao da prestação de alimentos a que está vinculado o devedor originário[8].

De modo a fixar o valor da prestação mensal a suportar pelo FGADM, deve o tribunal atender à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos judicialmente fixada e às necessidades específicas do menor (art. 2.º, n.º 2, da Lei n.º 75/98 e art. 3.º, n.º 5, do DL n.º 164/99), realizadas que sejam as diligências instrutórias versadas no art. 3.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 75/98. Tais elementos devem nortear a decisão tomada, sendo imperioso que a mesma comporte a enunciação dos factos apurados que a sustentam – art.ºs 154.º, 292.º, 295.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC.

No caso que temos em mãos, a decisão não contempla a declaração dos factos provados, como se impunha. Por outro lado, não resultou apurado, por via da atividade instrutória desenvolvida, se o devedor pai dos menores, que é referido como continuando sem trabalhar, aufere subsídio ou pensão, na afirmativa de que montante e durante que período previsível de tempo. O que se afigura determinante para aferir da impossibilidade de obter pagamento das prestações de alimentos por via do procedimento previsto no art.º 48.º do RGPTC.

Impõe-se, por isso, a anulação da decisão recorrida, determinando-se a fixação da matéria de facto provada e a ampliação da matéria de facto a submeter a instrução na instância recorrida a fim de apurar a factualidade supra versada – art.º 662.º, n.º 2, al. c), do CPC.

IV – DECISÃO

Nestes termos, decide-se pela anulação da decisão recorrida, determinando-se a fixação da matéria de facto provada e a ampliação da matéria de facto a submeter a instrução, conforme se indica supra, seguindo-se a prolação de decisão que contemple o conhecimento da promoção do Ministério Público no sentido da intervenção do FGADM no pagamento da prestação de alimentos devidas aos menores, em substituição do progenitor.

Custas pela parte vencida a final.

Registe e notifique.

Évora, 11 de Maio de 2017
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria da Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura
__________________________________________________
[1] Cfr. arts. 637.º, n.º 2 e 639.º, n.º 1, do CPC.
[2] A apreciar oficiosamente, já que está em causa a matéria versada no art. 662.º, n.º 2, al. c), do CPC.
[3] Ac. STJ de 14/12/2016 (Tomé Gomes).
[4] AUJ do STJ n.º 12/2009, de 07/07/2009.
[5] AUJ do STJ n.º 5/2015, de 19/03/2015.
[6] AUJ do STJ n.º 5/2015.
[7] AUJ do STJ n.º 12/2009.
[8] AUJ do STJ n.º 5/2015.