Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
83/21.0T8OLH.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Ainda que a comunicação pela devedora requerente do PER aos credores não tenha observado a forma prescrita no n.º 1 do artigo 17.º-D do CIRE, tendo substituído o envio de carta registada por email, considerando que a todos foi dado conhecimento do início das negociações e disponibilizados os elementos juntos aos autos, designadamente a proposta apresentada e mapa da dívida, assim tendo sido atingida a finalidade tida em vista pelo legislador, estamos perante violação negligenciável da norma em causa.
II. Devendo o plano de recuperação conducente à revitalização do devedor observar o princípio da igualdade dos credores, por força do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 194.º do CIRE, ex vi do artigo 17-F, seu n.º 7, constituindo a sua inobservância violação grave das regras de conteúdo aplicáveis, fundamentando a recusa de homologação, tal princípio terá que ser respeitado na sua dimensão material, não obstando ao tratamento diferenciado de credores, ainda quando titulares de créditos da mesma natureza, quando o desigual tratamento encontre o seu fundamento em justificadas razões objectivas.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo 83/21.0T8OLH.E1
Tribunal da comarca de Faro
Juízo do Comércio de Olhão – Juiz 2


I. Relatório
(…), SA., com sede na Urbanização (…), lote 72, Sítio da (…) ou (…), freguesia de (…), concelho de Olhão, instaurou no Juízo de Comércio de Olhão processo especial de revitalização, tendo procedido à junção de declaração conjunta, subscrita também por credores representativos de 30% dos créditos, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 17.º-C do CIRE.
Após alterações, foi junta aos autos a versão final do plano em 15/7 (cfr. anúncio do depósito de 26/7).
Tendo-se pronunciado desfavoravelmente sobre o plano os credores (…) e mulher, (…); (…) e mulher, (…); (…) e mulher, (…); (…) e mulher, (…); (…); (…) e (…); (…) e mulher, (…); (…) e mulher, (…), a AT; (…) e (…), Lda., e (…) – Consultoria Fiscal, Unipessoal, Lda., a requerente devedora prestou os esclarecimentos constantes do requerimento e mapa anexo apresentados em 3/8, após o que foi publicitado em 23/8 o anúncio a que alude o n.º 3 do artigo 17.º-F.
Pronunciaram-se então contra a aprovação do plano os seguintes credores:
(…) e mulher, (…), titulares de um crédito reconhecido no valor de € 50.887,57, por, segundo alegaram, nunca terem sido contactados pela devedora apesar de terem comunicado a sua intenção de participar nas negociações, o que constitui violação não negligenciável de normas procedimentais; o plano evidencia um tratamento diferenciado entre os vários credores comuns, aqui avultando a medida de dação em pagamento, não se encontrando reflectido o valor actual dos imóveis, nem tão pouco o valor das obras “alegadamente por acabar”, ao que acresce a circunstância de alguns dos credores contemplados com tal medida não deterem qualquer garantia real sobre o bem objecto da dação;
(…) e mulher, titulares de um crédito no valor de € 7.188,92, os quais alegaram igualmente a ausência de negociações, não obstante terem declarado querer participar naquelas que se viessem a estabelecer, tendo ocorrido violação dos princípios da boa-fé, cooperação e transparência. Mais alegaram que o plano não reflecte a actual situação da empresa, uma vez que assenta em elementos de 2019, nem se mostra comprovado nos autos que os créditos bancários gozem de qualquer garantia, não se encontrando justificada a diferenciação com os restantes créditos comuns que resulta do plano de pagamentos previsto, assim resultando violado o princípio da igualdade estabelecido no artigo 194.º, n.º 1, do CIRE;
(…) – Consultoria Fiscal, Unipessoal, Lda., titular de um crédito no valor de € 2.841,51, que invocou a violação de regras procedimentais uma vez que, tendo declarado a intenção de participar nas negociações, nunca foi auscultada pela devedora. Mais alegou que não se encontram especificados os pressupostos que suportam as demonstrações económicas previsionais em ordem a credibilizar o plano financeiro apresentado, não sendo suficientes os fundamentos aduzidos em favor das boas perspectivas económicas, tal como não se encontram escalpelizados os activos da sociedade. Ademais, confessando a sociedade ter aproximadamente 1,5 milhões de euros em caixa e um saldo de tesouraria acumulado de € 2.072.343,00, terá capacidade para solver as suas dívidas de uma vez só, sendo o plano apresentado desfavorável aos credores comuns, que ficarão previsivelmente numa situação muito menos favorável do que aquela que se verificaria na ausência de plano, a não ser que neste se previsse a regularização da dívida numa única prestação.
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Tendo o plano sido sujeito a votação, resulta da acta elaborada a sua aprovação com os votos favoráveis dos credores representativos de 59,80% dos votos emitidos.
Foi de seguida proferida decisão que, com fundamento em violação não negligenciável de normas de procedimento, desigual tratamento dos credores comuns e na consideração de que a situação destes ao abrigo do plano aprovado é previsivelmente menos favorável do que aquela que existirá na ausência do plano de revitalização, “tanto mais que a requerente possuirá meios financeiros para assegurar o pagamento das dívidas a clientes, nomeadamente através de dações em pagamento e compensação de créditos”, recusou a sua homologação.

Inconformada com a sentença de não homologação do plano, dela apelou a requerente e, tendo desenvolvido na alegação apresentada as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“1.ª Os fundamentos apresentados pelo Mm.º juiz a quo para a não homologação do Plano não existem. Não houve, assim violação não negligenciável de regras procedimentais.
2.ª Desde logo, a empresa procedeu ao envio da comunicação prevista no n.º 1 do artigo 17.º-D do CIRE através do seu administrador único, cumprindo assim essa norma procedimental fundamental, informando os credores – todos e cada um – de que a ora recorrente e devedora iria apresentar-se a PER, enviando o respectivo pleno e convidando-os para negociações.
3.ª Ainda que tal comunicação não tenha revestido a forma de carta registada, revestiu a forma de email, tendo sido a comunicação tempestiva enviada a 22 de Fevereiro, foi recebida por todos os credores, que assim tiveram conhecimento, quer do PER, quer do Plano.
4.ª Alguns credores contactaram o AJP, que manteve negociações e conversações (muitas delas permitindo concluir acordos) com quem o contactou.
5.ª A diligência não foi omitida, pelo que não se verifica de todo a violação não negligenciável de normas procedimentais, devendo ser revogada a decisão nessa parte.
6.ª Outra matéria vertida na decisão sob recurso é a alegada diferença entre credores financeiros e credores fornecedores e prestadores de serviços, tendo a redacção do Plano sido mal interpretada.
7.ª Relativamente aos credores financeiros, o Plano prevê apenas o perdão de penalizações, como os juros moratórios, e não os remuneratórios dos créditos bancários. Existe assim uma igualdade de tratamento quanto aos outros credores, relativamente aos quais se prevê igualmente o perdão de juros, não se colocando assim o credor financeiro em nenhuma situação de favor e os outros credores em situação de desfavor.
8.ª Não se vislumbra, pois, violação do princípio da igualdade dos credores.
9.ª Os credores relativamente aos quais se prevê dação em pagamento são aqueles que são titulares de direito de retenção, reconhecido e declarado por sentença judicial proferida em acção que correu termos entre os respectivos credores e a ora devedora e recorrente, gozando, por conseguinte, dessa garantia.
10.ª Compensação de créditos só existe relativamente aos credores dos quais a ora devedora e recorrente é igualmente detentora de créditos, como aqueles que lhe foram reconhecidos e declarados judicialmente por sentença judicial condenatória, casos esses em que a devedora reclamou o pagamento do IVA devido pela celebração e execução do contrato de empreitada, relativamente a alguns clientes.
11.ª Não se vislumbram assim razões para recusar a homologação do Plano aprovado pelos credores. Aliás, a empresa recorrente, que não está em situação de insolvência, está em condições de levar a efeito a sua recuperação e proceder ao pagamento das suas dívidas se lhe forem dadas as condições para tanto necessárias, através do cumprimento do PER.
12.ª A sentença recorrida violou assim as normas dos artigos 17.º-D, n.º 1 e 215.º e 216.º, n.º 1, alínea a), todos do CIRE.
Ao que resulta dos autos não foram oferecidas contra-alegações.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, cabe indagar se, ao invés do que foi considerado na decisão recorrida, não se verifica violação de normas procedimentais com relevância para recusar a homologação do plano aprovado pela maioria dos credores e, bem assim, não ocorre violação do princípio da igualdade nem o fundamento previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 216.º do CIRE.
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II. Fundamentação
De facto
Pese embora na sentença recorrida não tenham sido fixados os factos relevantes e que suportariam a decisão, resulta adquirida para os autos a seguinte factualidade:
1. A autora tem por objecto a exploração hoteleira, construção, promoção e gestão imobiliária, manutenções, compra e venda de imóveis, mediação imobiliária e compra para revenda de imóveis, com o capital social de € 6.800.000,00 (certidão de fls. 14 a 16).
2. O CA da requerente é composto por dois elementos: (…), que exerce o cargo de Presidente e (…), secretário do CA, nomeados em Janeiro de 2019 (idem).
3. A sociedade requerente resulta da fusão de cinco sociedades comerciais e desenvolve uma actividade integrada de rentabilização de villas detidas pela própria empresa, bem como de outras vendidas a clientes, mediante arrendamentos de curto período, férias e fins de semana.
4. A sociedade dedica-se ainda à venda de moradias, gestão e manutenção de villas, piscinas e jardins, fornecendo também serviços de vigilância, transporte e lavandaria (facto constante do relatório, não impugnado).
5. A devedora vem-se debatendo desde há pelo menos cerca de 1 ano, tendo por referência a data da instauração da acção, com estrangulamentos financeiros que comprometeram a sua saúde financeira, apresentando uma situação económica e financeira extremamente difícil, caracterizada pelo cumular de responsabilidades a que foi sendo cada vez mais difícil fazer face e honrar, com origem em:
a) instabilidade nos recebimentos de valores faturados aos clientes, que alavanca uma crise de tesouraria;
b) dificuldade em obter mais financiamento, pelo peso já existente do mesmo na estrutura da sociedade e os resultados líquidos negativos relativos aos exercícios dos anos de 2016, 2017 e 2018;
c) dificuldade na recuperação do IVA faturado aos clientes da construção, com repercussões negativas na liquidez, obrigando à instauração de acções judiciais, com os inerentes encargos, contribuindo para a diminuição dos fundos de tesouraria;
d) aumento da oferta provocado pela concorrência do setor a que se assistiu nos últimos anos, levando a acentuada diminuição das margens praticadas;
e) contexto pandémico, com queda na actividade relacionada com a construção civil, comprometendo algumas potenciais negociações que se encontravam em curso, tendo por referência a data da propositura da acção (acta de fls. 31 e v.º e relatório que precede o plano).
6. À data da propositura da presente acção encontravam-se pendentes contra a requerente execuções instauradas pelos credores (…), (…), Lda., Fazenda Nacional, ISS, (…), Materiais para Construção, Lda., (…), (…), SA e (…), as quais correm termos nos tribunais identificados na relação apresentada pela devedora.
7. O plano de revitalização apresentado pela requerente assenta nas medidas propostas para regularização dos créditos e ainda nos seguintes pressupostos:
a) em função dos movimentos do mercado, para lá do desenvolvimento da actual carteira de obras, perspectiva um aumento da sua actividade comercial, tendo em vista u aumento do volume de negócios, com angariação de novas obras;
b) após o período de reestruturação, uma estabilização do prazo médio de recebimentos, prazo médio de pagamentos e dos investimentos em equipamentos, em ordem a assegurara a manutenção da capacidade produtiva da empresa.
8. A requerente propõe-se ainda negociar com os clientes a entrega das casas/obras no ponto em que se encontram em troca da resolução da dívida, decorrente da posição a favor dos clientes, dado o equilíbrio entre ambos os valores.
9. No plano apresentado e aprovado a requerente propõe-se pagar aos seus credores nos seguintes termos:
i. Créditos do Estado
Valor global de € 588.688,40
ISS - € 192.322,02
Regularização no prazo máximo de 120 meses, com início em Junho de 2021, deduzida do cumprimento das obrigações existentes de outros possíveis acordos em curso até à data da aprovação do plano.

Autoridade Tributária e Aduaneira
Valor total de € 396.366,38
Regularização no prazo máximo de 120 meses, com início em Junho de 2021, deduzida do cumprimento das obrigações existentes de outros possíveis acordos em curso até à data da aprovação do plano.

ii. Créditos de natureza financeira
Créditos garantidos - € 168.154,59
Empréstimo Bancário
Os juros associados à dívida não podem exceder os 5%, ocorrendo o pagamento em 120 prestações.

iii. Créditos de natureza Comercial
Créditos privilegiados (trabalhadores/colaboradores) no valor de € 21.042,37
Os montantes em dívida referentes a vencimentos/remunerações devem ser liquidados no prazo máximo de 5 anos, dando-se a possibilidade de recuperação dos valores em dívida aos colaboradores com um prazo menos alastrado.
A data do início do cumprimento da 1.ª prestação foi definida em Junho de 2021.
Sem garantia 2 anos (24 prestações), com 6 meses de carência e sem juros.

Créditos Comuns, no valor de € 903.716,60
Os fornecedores e outros credores de natureza comercial receberão pagamento em termos idênticos aos restantes credores, em 120 prestações mensais com início 6 meses após a aprovação do PER, ocorrendo a 1.ª prestação em Junho de 2022.
- o plano de pagamentos será faseado e em prestações constantes:
- perdão de juros vencidos, incluindo os que tenham sido capitalizados, e vincendos;
- pagamento de 100% do capital em dívida;
- carência de 6 meses contado do trânsito em julgado da homologação do plano;
- pagamento do capital em 120 prestações mensais.

Os saldos de dívida aos clientes será regularizado mediante dação em pagamento dos activos detidos para venda em contrato promessa e contrato de obra (chave na mão), estando em causa os créditos reconhecidos aos seguintes credores:
(…) e (…), no valor de € 904.206,03, garantido por direito de retenção (lote 17);
(…) e (…), no valor de € 800.000,00 (lote 19);
(…) e (…), no valor de € 395.000,00, garantido por direito de retenção (lote 28);
(…), no valor de € 495.296,56 (lote 38);
(…), no valor de € 309.000,00 (lote 49);
(…) e (…), no valor de € 646.600,00 (lote 58);
(…) e (…), no valor de € 310.000,00, garantido por direito de retenção (lote 22).
10. A requerente é a titular inscrita no Serviço de Finanças de Olhão dos rendimentos relativos aos imóveis ali inscritos sob os artigos urbanos …, … (lote para construção com o n.º 17), … (lote 19), … (lote 28), … (lote 38), … (lote 39), … (lote 49, com edificação), … (lote 57), … (lote 58), … (lote 72, com edificação), … (lote 126, com edificação), … (lote 144), … (lote 147, com edificação), … (lote 152), … (lote 154) e artigos rústicos … e … (documentos de fls. 22v.º a 30v.º).
11. A devedora é ainda a titular inscrita das cinco viaturas automóveis com as matrículas (…); …; (…); (…) e (…) – (doc. de fls. 18).
12. Decorre da acta de abertura de contagem dos votos que votaram 14 credores, correspondendo a créditos no valor de € 4.320.302,37, para um total de créditos que somam € 4.961.541,06, correspondendo a um quórum de votação de 87,02%.
13. O plano foi votado favoravelmente por credores cujos créditos somam € 2.583.709,87, tendo votado contra a aprovação credores cujos créditos somam € 1.736.592,50, entre os quais a Fazenda Nacional e o ISS.
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De Direito
Da violação não negligenciável das normas de procedimento e de conteúdo do plano
O processo especial introduzido pela Lei 16/2012, de 20 de Abril, tal como consagrado no n.º 1 do artigo 17.º-A do CIRE[1], “destina-se a permitir à empresa que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização”.
A solução de evitamento da insolvência é assim suportada pelo acordo dos credores, impondo por isso a lei a respectiva aprovação por uma maioria qualificada dos créditos, em ordem a garantir a eficácia do plano aprovado que, deste modo, se torna vinculativo para os restantes.
Da análise do regime legal resulta estarmos perante um processo de negociação entre credores e devedor, mediado e participado pelo administrador judicial provisório nomeado (cfr. n.º 9 do artigo 17.º-D), cabendo ao juiz, conhecido o resultado das negociações, nas quais não interfere, proferir decisão nos termos previstos no artigo 17.º-F. Ocupa-se este último preceito das diligências subsequentes à aprovação de um plano tendente à recuperação do devedor, distinguindo entre a aprovação unânime e aprovação sem unanimidade, sendo certo que em ambos os casos carece o mesmo de homologação judicial, sendo aplicáveis, por expressa remissão do preceito, as regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º.
Resulta ainda da disciplina legal que, aprovado embora pela maioria dos credores exigida pela lei, nem assim está garantida a homologação do plano, deferindo o artigo 215.º ao Tribunal “o cargo de guardião da legalidade, cabendo-lhe, em consequência, sindicar o cumprimento das normas aplicáveis como requisito da homologação do plano”[2], a qual deve ser recusada sempre que ocorra “violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza”.
Normas procedimentais serão assim todas aquelas que regem a actuação a desenvolver no processo, ao passo que normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as relativas à parte dispositiva do plano e, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar”[3]. Mas, atente-se, não é qualquer desvio que implica a recusa de homologação, exigindo a lei que se trate de “violação não negligenciável”, deixando ao intérprete a complexa tarefa de concretização do conceito[4].
Face à literalidade da disposição legal, impõe-se concluir que infracções menores deverão ser desconsideradas. Em contraponto, não negligenciável será, de forma clara, a violação de norma imperativa que acarrete a produção de um resultado vedado por lei, podendo todavia ser menosprezada a infracção que atinja apenas regras de tutela particular, as quais podem ser afastadas com o consentimento do titular do interesse protegido, critério avançado por Carvalho Fernandes e J. Labareda[5] (cf., em sentido idêntico, o acórdão do TRC de 22/1/2019, Processo 54/18.3 T8SEI-A.C1, acessível em www.dgsiu.pt).
Avançando um pouco mais na densificação do conceito, será “(…) razoável entender que violação não negligenciável é aquela e apenas aquela que importe uma lesão grave de valores ou interesses juridicamente tutelados, isto é, uma lesão de tal modo grave que nem em atenção ao princípio da recuperação e aos interesses associados a este, o juiz pode deixar de recusar a homologar o plano, inviabilizando com isso a recuperação. Está implícito na norma o dever de o juiz proceder a uma ponderação – uma ponderação entre o interesse da recuperação e os interesses que sejam, em concreto, visados pela norma violada com vista a decidir se, em homenagem ao primeiro, a violação pode ser negligenciada.”[6].
Feitos tais prévios considerandos e revertendo ao caso concreto, importa antes de mais esclarecer que o plano apresentado pela devedora e ora recorrente resultou aprovado com uma maioria, não de 59,80%, conforme apurou o Sr. AJ, mas antes de 53,66% dos créditos relacionados, cujo montante global, subtraído o crédito reclamado por (…) e (…) – cuja exclusão foi determinada no acórdão deste TRE que apreciou o recurso interposto pela devedora do despacho que decidiu as impugnações deduzidas contra a lista dos créditos reconhecidos – ascende a € 4.812.911,12. E assim é porque não há lugar à dedução dos votos correspondentes aos abstinentes, de acordo com a interpretação dominante da alínea b) do n.º 5 do artigo 17.º-F do CIRE[7] (cfr. acórdão do STJ de 5 de Junho de 2018, processo 2316/16.5T8CHV.G1.S2 e, mais recentemente, o acórdão do TRP de 21/6/2021, processo 211/20.2T8STB.P2[8]).
Feita tal precisão, cumpre agora indagar se, ao invés do que foi considerado na decisão apelada e conforme defende a devedora recorrente, o plano não apresenta violação idónea a fundamentar a recusa de homologação.
Consignou-se na sentença que, tendo vários credores, “incluindo credores relativos a créditos muito relevantes em termos de valor”, afirmado não ter sido cumprido relativamente a si quanto determina o n.º 1 do artigo 17.º-D do CIRE, tanto bastaria para se afirmar a violação não negligenciável de regras procedimentais. Passando depois à análise do conteúdo do plano, acrescentou-se: “Conforme alegado pela credora (…) – Consultoria Fiscal, Unipessoal Lda., verifica-se um possível tratamento diferente de créditos comuns, atenta a classificação de “dívida a instituição de crédito” e “dívida a fornecedores/prestadores de serviços”. Tal tratamento distinto não tem justificação, não sendo de admitir o completo perdão de juros vencidos e vincendos quanto aos últimos e apenas uma moratória de seis meses quanto às dívidas a bancos e sociedades financeiras.
Atento o exposto, com relativa segurança poderá afirmar-se que a sua situação dos credores comuns ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que aquela que existirá na ausência do plano de revitalização, tanto mais porquanto a Requerente possuirá meios financeiros para assegurar o pagamento das dívidas a clientes, nomeadamente através de dações em pagamento e compensações de créditos”. E com tais fundamentos, quer atinentes a regras de procedimento, quer a regras de conteúdo, foi recusada a homologação.
Começando pelo primeiro fundamento invocado, dispõe o artigo 17.º-D, no seu n.º 1, que “Logo que seja notificada do despacho a que se refere o n.º 4 do artigo anterior, a empresa comunica, de imediato e por meio de carta registada, a todos os seus credores que não hajam subscrito a declaração mencionada no n.º 1 do mesmo preceito, que deu início a negociações com vista à sua revitalização, convidando-os a participar, caso assim o entendam, nas negociações em curso e informando que a documentação a que se refere o n.º 1 do artigo 24.º e a proposta de plano se encontram patentes na secretaria do tribunal, para consulta.”
A recorrente insurge-se contra o decidido porquanto, reconhecendo embora não ter procedido ao envio de tal comunicação e elementos mediante carta registrada, não deixou, contudo, de o fazer através de correio electrónico, assim assegurando que chegassem ao conhecimento de todos os credores.
A este propósito afigura-se que a razão está do lado da recorrente, até porque, para o que ora releva, o credor que aludiu à violação do dispositivo acima transcrito – (…), Consultoria Fiscal Unipessoal, Lda. – tomou inequívoco conhecimento do início das negociações e demais elementos, tanto assim que comunicou à devedora a sua intenção e interesse em nelas participar, tendo-se pronunciado sobre a proposta de plano e, depois, sobre o plano apresentado. Aliás, em bom rigor, o que vem invocado pelos diversos credores a que se faz menção na decisão recorrida – e ainda que, dentre eles, os credores (…) e mulher, (…), tenham vindo posteriormente a emitir voto favorável à aprovação do plano –, não foi a ausência de comunicação do início das negociações, mas o facto da devedora, alegadamente, não os ter depois incluído nas mesmas.
Atento o exposto, e ainda que a comunicação não tenha observado a forma prescrita no n.º 1 do artigo 17.º-D, considerando que a todos os credores foi dado conhecimento do início das negociações e disponibilizados os elementos juntos aos autos, designadamente a proposta apresentada e mapa da dívida, assim tendo sido atingida a finalidade tida em vista pelo legislador, estamos perante violação negligenciável da norma em causa.
E quanto à invocação de que não tiveram participação efectiva nas negociações, tendo ficado à margem das que eventualmente se tenham estabelecido e desenvolvido com outros credores, alegação comum a (…) e mulher; (…) e mulher; (…) – Consultoria Fiscal, Unipessoal Lda., que votaram contra a aprovação do plano, a (…) e mulher que, tendo alegado no mesmo sentido e comunicado ao Tribunal serem desfavoráveis à aprovação do plano, acabaram por não votar, e ainda (…) e mulher que, tendo feito chegar ao Tribunal declaração de aprovação do plano, não enviaram ao Sr. AJP, como deveriam, a sua declaração de voto, o que levou à sua inclusão nas abstenções, regista-se, em todos os casos, a ausência de concretização da alegação.
Com efeito, reconhecendo sem reservas a primordial relevância da fase das negociações e o inderrogável direito de participação dos credores que tenham comunicado tal intenção à devedora nos termos do n.º 7 do artigo 17.º-D – participação que, para ser plena, inclui o direito a votar, donde ser reconhecido apenas aos credores cujos créditos foram reconhecidos e, eventualmente àqueles a quem o juiz venha a atribuir tal direito nos termos prevenidos no n.º 5 do artigo 17.º-F –, a verdade é que não se encontra fixado na lei qualquer formalismo a que tais negociações devam obedecer.
Resulta das disposições contidas nos n.ºs 6 a 11 do artigo 17.º-D que no período de negociação devedor e credores encontram-se vinculados a um conjunto de deveres específicos –de informação e esclarecimento, cooperação e lealdade, cujo sentido preciso é o que resulta dos Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores (cfr. o n.º 10), que aqui se revestem de força vinculativa[9], maneira que a sua violação constitui o incumpridor em responsabilidade civil (cfr. o disposto no n.º 11 do preceito quanto aos administradores da empresa).
Neste mesmo domínio avultam ainda os deveres ou poderes-deveres funcionais atribuídos ao administrador judicial provisório, a quem compete orientar e fiscalizar o decurso dos trabalhos e a sua regularidade e ainda assegurar-se de que o plano apresentado é o adequado à realização dos objectivos da recuperação, ou seja, é viável e credível, conforme exige o Décimo Primeiro princípio orientador[10].
No caso em apreço, contudo, queixando-se os identificados credores de terem sido excluídos das negociações, fica-se sem saber a que se referem, uma vez que lhes foi dado conhecimento da intenção da devedora e apresentada a proposta de plano, desconhecendo-se, porque nenhum concretizou o alegado, se ficaram sem resposta eventuais pedidos de esclarecimento que tenham formulado aos administradores da empresa ou ao AJP, ou solicitaram documentação que lhes não foi entregue, em violação do que com clareza estipula o n.º 6 do preceito[11]. Com efeito, se é verdade que, conforme anotado por alguns credores, dos elementos contabilísticos e fiscais apresentados nenhum respeita ao ano de 2020, não é menos certo que à data da propositura da presente acção, em 27 de Janeiro de 2021, ainda se encontrava em curso o prazo de apresentação das contas e, mais uma vez, nada foi dito quanto a eventual omissão de fornecimento de elementos ou informações complementares que hajam sido pedidos ao longo do período de negociações, se é que o foram. Para mencionar apenas um exemplo, anotando os credores (…) e mulher que o plano não reflecte o valor dos imóveis objecto das projectadas dações em pagamento – o que, em todo o caso, não é rigoroso, uma vez que ali se menciona que se equivalem os valores da obra feita e dos créditos reconhecidos aos vários credores – não alegaram em parte alguma ter solicitado tal esclarecimento à requerente e/ou ao AJP como, a nosso ver, se impunha, pois participar nas negociações é também esclarecer dúvidas e quem as tem é que terá de as colocar.
Deste modo, e em suma, porque não consta evidenciada nos autos a violação pela devedora requerente dos alegados deveres de informação, transparência e lealdade – não basta a genérica imputação feita pelos credores neste sentido, antes se impondo a concretização e prova do alegado – não se verifica violação não negligenciável de norma procedimental com aptidão para recusar a homologação do plano apresentado.
No que respeita à violação das normas de conteúdo, considerou-se na sentença apelada que o plano distingue injustificadamente entre credores comuns, sendo que alguns destes ficam, em face do plano aprovado, em situação mais desfavorável do que aquela que se verificaria na ausência de qualquer plano.
É isento de dúvida que o plano de recuperação conducente à revitalização do devedor há-de observar o princípio da igualdade dos credores, por força do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 194.º do CIRE, ex vi do artigo 17-F, seu n.º 7, constituindo a sua inobservância violação grave das regras de conteúdo aplicáveis, fundamentando a recusa de homologação nos termos do já citado artigo 215.º.
O princípio em causa terá, no entanto, que ser respeitado na sua dimensão material, não obstando ao tratamento diferenciado de credores, ainda quando titulares de créditos da mesma natureza – afora as situações de consentimento, tácito ou expresso, do(s) credor(es) afectados – quando o desigual tratamento encontre o seu fundamento em justificadas razões objectivas[12]. Deste modo, e inversamente, vedada está a sujeição, sem assentimento dos afectados, a um tratamento diferente, quando se trate de credores que se encontrem em situação similar, sempre que tal diferenciação não seja objectivamente justificada.
A este propósito não pode deixar de observar-se que a fórmula utilizada na decisão apelada suscita dúvidas quanto à verificação de violação não negligenciável do referido princípio, pois aí se alude a um possível tratamento diferente de créditos comuns, estando em causa, ainda segundo a sentença, a dívida às instituições de crédito e a dívida aos fornecedores de bens e prestadores de serviços no que concerne aos juros.
Pois bem, a primeira observação que se impõe é a de que não estamos perante créditos da mesma natureza, uma vez que o único crédito reconhecido a uma instituição bancária é o crédito no montante de € 168.000,00 reconhecido ao BCP, SA, o qual se encontra garantido por hipoteca, assim tendo sido reconhecido. Diferentes são também os prazos de pagamento, sendo mais favorável o previsto para satisfação dos créditos comuns, que serão pagos no prazo máximo de 5 anos, prevendo-se ainda a liquidação dos que não se encontram garantidos em 24 prestações, com 6 meses de carência (cuja contagem terá agora que iniciar, se for o caso, da data da aprovação do plano, uma vez tendo sido previsto o início do pagamento em Junho de 2021, tal data foi ultrapassada sem que o plano tivesse sido aprovado), ao passo que o reembolso da instituição bancária será feito em 10 anos.
Faz-se por último notar que, prevendo embora o plano o pagamento de um juro máximo de 5% sobre o capital em dívida à instituição bancária, a verdade é que a remuneração do capital corresponde ao lucro da actividade bancária, ao passo que o preço dos bens e serviços inclui já a margem de lucro do fornecedor e do prestador, donde a circunstância de se ter previsto o pagamento de uma taxa de juro não constitui uma diferenciação em favor da instituição bancária. E se nesta taxa se encontra alguma compensação pela mora, ela justifica-se pela diferença do prazo previsto para o reembolso da credora hipotecária.
Em suma, não existe uma injustificada diferença de tratamento entre os aludidos credores, nem poderá dizer-se que a credora instituição bancária resultou favorecida (o que a própria também não terá considerado, uma vez que votou contra a aprovação do plano).
Ainda a respeito do princípio da igualdade, importa referir que os credores (…) e mulher, (…), que se pronunciaram contra a aprovação do plano sob invocação da violação deste princípio, questionaram antes, a nosso ver com pertinência, a solução de dar em pagamento aos credores cujos créditos emergem do incumprimento dos contratos promessa celebrados, os lotes prometidos vender, nos quais se encontram edifícios em construção, uma vez que, dentre eles, apenas aos créditos reclamados por (…) e mulher, (…) e mulher, e (…) e mulher, se encontra já reconhecida a garantia do direito de retenção.
Não suscitando dúvidas tal solução no que respeita aos credores cujos créditos se acham garantidos, poderá questionar-se se os restantes, credores comuns, não estarão a beneficiar de um tratamento mais favorável quando em confronto com os demais titulares de créditos da mesma natureza os quais, agrupados no ponto 4.2.3.2. do plano aprovado, receberão o capital em singelo ao longo de 120 meses, após um período de carência de 6 meses contado da data da aprovação do plano, ao passo que aqueles, mercê da concretização da dação em pagamento, verão os seus créditos imediatamente satisfeitos. Assim postos em confronto credores comuns de ambos os lados, pareceria evidenciada uma injustificada diferenciação. Não cremos, no entanto, que não haja razão para a distinção e que dela deva resultar a recusa de aprovação do plano. Vejamos:
Os credores cujos créditos a recorrente se propõe solver através da dação em pagamento dos lotes prometidos comprar e construção inacabada que se obrigou a concluir, são promitentes compradores, tendo a devedora reconhecido o incumprimento dos contratos com eles celebrado, o que os torna credores da indemnização correspondente ao dobro do sinal, como foi igualmente reconhecido, tratando-se de créditos muito expressivos. A não ser esta a solução, na eventualidade da recorrente vir a ser declarada insolvente, dada a impossibilidade de concluir as edificações e urgência na venda, o seu valor sairia, em muito, prejudicado, o que resulta das regras da experiência ou presunções judiciárias de que este tribunal se pode socorrer. Tal resultado obrigaria a canalizar o produto da venda de outros bens para a satisfação destes credores pelo que, mesmo em caso de rateio, dado o peso dos seus créditos e sendo embora as perdas proporcionais, resultaria também prejudicada a satisfação dos créditos menores.
Por outro lado, e sem deixar de reconhecer que para pequenos negócios mesmo quantias não muito elevadas poderão ser relevantes, a verdade é que os credores comuns a quem não foi oferecida dação em pagamento e votaram contra o plano são titulares de créditos de valores marginais quando se considere o universo dos créditos reconhecidos neste processo: € 50.887,67 o titulado por (…) e mulher; € 7.723,95 o reconhecido a (…); € 14.090,35 o titulado por (…) e (…), Lda.; e € 2.841,51 o reconhecido à credora (…), Consultoria Fiscal, Unipessoal, Lda., para um total de € 4.961.541,00.
Destarte, admitindo que os credores a quem serão dados em pagamento os lotes com edifícios em construção e não beneficiam da garantia do direito de retenção gozam de um tratamento mais favorável – no pressuposto, que é o do plano, e não se mostra contrariado, que os valores do bem entregue e do crédito se equivalem – quando confrontados com os demais credores comuns, tal distinção mostra-se suficientemente justificada, não constituindo violação não negligenciável do princípio da igualdade.

Consignou-se por fim na sentença, fundamento também da recusa, ser possível afirmar “com relativa segurança” que a situação dos credores comuns ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que aquela que existirá na ausência do plano de revitalização.
Nos termos do artigo 216.º, a recusa de homologação do plano a solicitação dos interessados, exige a prova -demonstração em termos plausíveis- de que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que aquela que resultaria na ausência de qualquer plano. Tal implica, conforme se esclarece no acórdão deste mesmo TRE de 22/2/2018[13], que “se comparem os termos e prazos de pagamento dos créditos nas duas situações em apreciação, isto é, em que medida e quando serão ressarcidos dos seus créditos em execução do plano de recuperação e na ausência de plano.”
Considerou-se na decisão que o desfavor da situação dos credores comuns –excluindo os contemplados com a dação em pagamento- em relação àquela que resulta da aplicação do plano radicava na possibilidade de obterem de imediato a satisfação dos seus créditos, “porquanto, a Requerente possuirá meios financeiros para assegurar o pagamento das dívidas a clientes, nomeadamente através de dações em pagamento e compensações de créditos” (é nosso o destaque).
Ora, vistos os elementos constantes dos autos, não se vê que tal afirmação de base factual – ainda que a sua formulação indicie alguma incerteza – neles encontre qualquer suporte.
O facto em causa foi alegado pela credora (…), Consultoria Fiscal, Unipessoal, Lda., baseada na rubrica saldo de caixa e depósito bancário que, sendo mais ou menos constante nos balanços de 2016, 2017, 2018 e 2019, ascendia neste último ano a € 1.427.317,00. No entanto, e como se vê dos mesmos balanços, nesse mesmo ano a requerente apresentou um passivo corrente de € 9.601.420,00. E embora a rubrica “outras contas a receber” apresentasse o valor de € 7.030.839,00, considerando as dificuldades de recuperação dos seus créditos denunciadas, fácil se torna concluir que a requerente não dispunha então, nem existe qualquer elemento que permita concluir que passou a dispor depois, de meios financeiros para assegurar o pagamento das dívidas.
Por outro lado, e no que respeita às referidas compensações de créditos, não se concretiza na sentença – nem em parte alguma do processo, acrescenta-se – quais os créditos a compensar; quanto às dações em pagamento como meio de liquidar dívidas fora do contexto dos credores promitentes compradores que se analisou, considerando a natureza dos bens de que a devedora é proprietária, designadamente imóveis e equipamentos necessários à prossecução do seu objecto social, trata-se de solução que, com probabilidade, tornaria inviável a recuperação da requerente. Em todo o caso, sempre se dirá que na hipótese da insolvência vir a ser declarada não está de modo algum demonstrado nos autos que o produto da venda dos bens da devedora, sabendo-se que nas vendas insolvenciais os mesmos não atingem os seus valores de mercado, até pela urgência de que se reveste, conforme se apontou já, seria suficiente para satisfazer na totalidade ou em maior medida os credores comuns, atendendo à existência de credores titulares de créditos preferenciais. E porque a lei exige que tal fique demonstrado em termos de plausibilidade, prova que no caso vertente não foi feita, não se subscreve este derradeiro fundamento invocado na sentença recorrida.
Não sendo de acolher os fundamentos de recusa da homologação do plano cabe, todavia, analisar quanto nele se dispõe relativamente aos créditos reconhecidos à AT e ISS, credores que votaram contra a sua aprovação por, alegadamente, não observar os princípios da intangibilidade e legalidade dos créditos desta natureza.
Analisado o plano, na sua versão definitiva, verifica-se ter sido eliminada a cláusula atinente à eliminação das garantias, sendo mantidos sem cortes os créditos reconhecidos. Todavia, e não obstante o número e valor das prestações fixadas observar os limites dos n.ºs 5 e 6 do artigo 196.º do CPPT, ainda assim a imposição de um pagamento faseado para o qual o credor não deu o seu acordo é, em nosso entender, violadora dos invocados princípios, por ser susceptível, dada a erosão do valor associada ao decurso do tempo, de afectar o crédito na sua consistência, o que justifica a exigência legal do acordo destes credores para o pagamento em prestações. Mostrando-se, nessa medida, violadas as disposições dos artigos 30.º, n.ºs 1 e 2, 36.º, n.ºs 2 e 3 da LGT, 85.º, n.º 3, 196.º e 199.º do CPPT, estes últimos também aplicáveis aos créditos da Segurança Social, daqui não se segue, porém, que a consequência automática seja a recusa da homologação do plano nos termos dos artigos 215.º e 17.º-F, n.º 7, do CIRE.
Conforme vem sendo maioritariamente defendido, a solução passa antes por evitar a recusa de homologação, que tornaria o plano “totalmente inaproveitável, com frustração dos interesses particulares envolvidos e acentuado prejuízo para a organização económica e empresarial que o sistema jurídico tende a salvaguardar até onde lhe for juridicamente possível”, devendo ser decretada a sua ineficácia em relação a estes credores, por ser “a solução mais equilibrada e curial, que permitirá harmonizar os interesses sociais e económicos que o legislador se propôs salvaguardar através da instituição do processo de revitalização, respeitando ainda os compromissos internacionalmente assumidos pelo Estado Português, com a intransigente defesa dos créditos tributários em geral” (do acórdão do STJ de 9/6/2021, proc. 1412/20.9T8VNF.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt). Tal é a solução que também aqui se acolhe.
Em face a todo o exposto, procedendo na essência os argumentos recursivos, não pode subsistir a decisão recorrida.
*
III. Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em revogar a decisão proferida, homologando o plano de recuperação da requerente e aqui recorrente (…), SA., o qual, todavia, não é oponível à AT nem ao ISS, cujos créditos se mantêm integralmente quanto aos seus montantes, garantias e prazos de pagamento.
Não há lugar a custas.
*
Sumário:
(…)

Évora, 13 de Janeiro de 2022
Maria Domingas Alves Simões
Ana Margarida Carvalho Leite
Vítor Sérgio Sequinho dos Santos

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[1] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[2] Carvalho Fernandes/João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2.ª edição, pág. 825.
[3] Idem, pág. 826.
[4] Trata-se de questão, conforme observa Catarina Serra, nas suas “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, pág. 474, que “(…) originou discussões acaloradas desde a entrada em vigor do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e que ainda hoje suscita dúvidas, não obstante as tentativas de densificação desenvolvidas, entretanto, pela doutrina e pela jurisprudência portuguesas”.
[5] Ob. e loc. citados.
[6] Catarina Serra, ob. e loc. cit.
[7] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[8] Assim sumariado:
“Para efeitos de aprovação do plano de recuperação conducente à revitalização da empresa, o quórum constitutivo e deliberativo da alínea b) do n.º 3 do artigo 17.º-F do CIRE, referindo-se à totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, não é compatível com o desconto das abstenções”.
[9] Neste sentido, C.ª Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, pág. 417.
[10] Catarina Serra, ob. cit., pág. 416.
[11] “6. Durante as negociações a empresa presta toda a informação pertinente aos seus credores e ao administrador judicial provisório que haja sido nomeado para que as mesmas se possam realizar de forma transparente e equitativa, devendo manter sempre atualizada e completa a informação facultada ao administrador judicial provisório e aos credores”.
[12] Neste sentido, o acórdão do TRG de 04/03/2013, proferido no processo 3695/12.9TBBRG.G1, acessível em www.dgsi.pt.
[13] Processo 841/16.7T8ELV.E1, acessível em www.dgsi.pt, sendo relatora a Ex.ª Sr.ª Des. aqui 1.ª adjunta.