Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
173/11.7TBALR-A.E1
Relator: MÁRIO COELHO
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Data do Acordão: 12/21/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: É da competência dos tribunais comuns o conhecimento de uma causa na qual se aprecia o incumprimento de contratos de compra e venda, celebrados por um Município na mesma situação de qualquer particular, não exercendo qualquer posição de superioridade em relação aos restantes contratantes.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Central Cível de Santarém, correm autos nos quais o Município de Almeirim demanda (…) – Construção e Obras Públicas, S.A., e Fundo de Investimento Imobiliário (…), alegando o incumprimento das condições estabelecidas no contrato de compra e venda celebrado com a 1.ª Ré, no âmbito do qual alienou a esta, pelo preço de € 1.049.375,81, onze lotes de terreno situados na Zona de Actividades Económicas de Almeirim, estando o referido contrato sujeito às condições estabelecidas no Regulamento aprovado pela Assembleia Municipal em 29.09.2003 e publicado no DR, 2.ª Série, de 12 Novembro. Alega-se, nomeadamente, que não foi cumprida a obrigação contratual de dar início às construções no prazo de um ano e as concluir em dois anos, nem foi ali iniciada qualquer actividade económica.
Em consequência, pede-se a condenação solidária dos RR. no pagamento de sanções pecuniárias no montante de € 432.551,91 e a condenação da 2.ª Ré no pagamento duma compensação no montante de € 175.271,98.
Nas suas contestações, os RR. invocam a excepção de incompetência absoluta em razão da matéria, alegando que, tendo em conta a causa de pedir, para decidir dos pedidos formulados na presente acção é competente a jurisdição administrativa, nos termos do art. 4.º, n.º 1, al. f), do ETAF.
No despacho saneador, a referida excepção foi julgada improcedente.

Inconformada, a Ré (…) recorre e conclui:
1.ª As normas emergentes do “Regulamento de construção, venda e transmissão de lotes da zona económica de Almeirim” (ou simplesmente “Regulamento ZAE”), invocadas pelo A. nos art 17º, 18º, 22º, e 24º da p.i., nomeadamente as cláusulas 40ª/5, 46ª/1 e 5, e 54ª/5, desse Regulamento, apesar de inseridas no contrato de compra e venda dos autos integram a causa de pedir da acção, visto que o Autor fundamenta os pedidos nela formulados no alegado incumprimento ou desrespeito dessas normas.
2.ª Essas cláusulas revestem a natureza de normas de direito administrativo, quer porque emitidas ao abrigo do direito público, no exercício do poder público (“jus imperii”) ao abrigo do qual foi emitido o dito “Regulamento ZAE”, quer porque delas resultam posições jurídicas subjectivas de natureza administrativa por elas materialmente reguladas.
3.ª A circunstância de as normas indicadas nas conclusões anteriores terem sido incluídas no contrato de compra e venda dos autos não lhes retira a referida natureza de normas de direito administrativo geradoras de relações e posições jurídicas subjectivas estranhas a esse contrato visto que não preenchem os respectivos “Facti species “ tendo essa inclusão, imposta pelo R no exercício dos poderes de direito público, por finalidade precisamente a sujeição dessas relações ao regime substantivo do direito público ao abrigo do qual foi emitido o dito Regulamento ZAE, o que afinal constitui os objectivos prosseguidos pelo autor.
4.ª Assim, por força das citadas normas incluídas no contrato dos autos, este integra-se na previsão da aliena f) do nº 2 artº 4º do ETAF – “contratos especificamente respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo” – pelo que a competência para a apreciação da arguida ilegalidade de tais normas pertence à jurisdição administrativa nos termos do disposto no artº 4º, nº 2, alínea f), do ETAF.
5.ª O douto despacho recorrido, decidindo pela improcedência da excepção de incompetência absoluta em razão da matéria – com fundamento em que a competência se afere pela forma como o autor configura a acção, e que o que está em causa não é a legalidade de tal regulamento mas sim as consequências do incumprimento do contrato – implicitamente recusando a apreciação em sede própria – na jurisdição administrativa – da arguida ilegalidade das normas de natureza administrativa incluídas nesse contrato, implica desconsideração da defesa do R em violação dos princípios constitucionais do direito de audição e defesa do Réu e da tutela jurisdicional efectiva (CRP, artº 20º) e é ilegal por desrespeito do disposto na alínea f) do nº 2 do artº 4º do ETAF.
6.ª Deve assim, com fundamento dos preceitos invocados, ser o douto despacho recorrido revogado e substituído por outro que, julgando procedentes as conclusões anteriores, julgue procedente a deduzida excepção de incompetência absoluta do tribunal e absolva a apelante da instância (99º, nº 1, do CPC).

Não houve resposta.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Os elementos factuais relevantes para a decisão são os seguintes:
1. Por deliberação de 29.09.2003, a Assembleia Municipal de Almeirim aprovou o Regulamento de Construção, Venda e Transmissão de Lotes da Zona de Actividades Económicas de Almeirim, o qual foi publicado no DR, 2.ª Série, de 12 Novembro;
2. Por escritura pública de 08.09.2004, o Município de Almeirim vendeu à 1.ª Ré, pelo preço de € 1.049.375,81, onze lotes de terreno, situados na Zona de Actividades Económicas de Almeirim;
3. Foi estipulado nessa escritura que os lotes se destinavam à construção de um centro de distribuição, armazéns e estabelecimentos comerciais, devendo a proprietária dar início às construções no prazo máximo de um ano, ter as mesmas concluídas no prazo máximo de dois anos a contar da data de conclusão das infra-estruturas municipais e dar início à actividade económica no prazo máximo de um ano a contar da conclusão das obras de edificação;
4. Estipulou-se também na escritura a proibição de alienação dos lotes sem prévia autorização do A., exceptuando-se as transmissões a efectuar ao 2.º R.;
5. Foram, ainda, fixadas na escritura sanções pecuniárias para o caso das construções não serem iniciadas ou concluídas nos prazos acordados (25% do valor total do lote no 1.º ano e 50% no 2.º, ou 20% no 1.º ano e 40% no 2.º, consoante as construções não tiverem sido iniciadas ou concluídas, respectivamente);
6. Por nova escritura pública, também de 08.09.2004, a 1.ª Ré revendeu ao 2.º R. os onze lotes de terreno supra referidos, e pelo mesmo preço;
7. A acção foi proposta em 07.02.2011.

Aplicando o Direito.
Da competência em razão da matéria
A Recorrente funda a sua pretensão de atribuir o conhecimento da causa aos tribunais da jurisdição administrativa, na circunstância das normas do Regulamento publicado no DR, 2.ª Série, de 12.11.2003, apesar de inseridas no contrato de compra e venda dos autos, revestirem a natureza de normas de direito público administrativo, porque emitidas no exercício do ius imperii do Município, o que torna aplicável o art. 4.º, n.º 1, al. f), do ETAF – na versão em vigor ao tempo de propositura da causa, i.e., a decorrente da Lei 107-D/2003, de 31 de Dezembro, pois a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da relação jurídica controvertida tal como é configurada pelo autor, em termos do pedido e da causa de pedir, fixando-se no momento da propositura da causa, sendo, a não ser que expressamente se disponha em contrário, irrelevantes as modificações de facto e de direito ocorridas posteriormente[1].
Comentando esta norma, Esteves de Oliveira[2] nota que “subsumem-se na justiça administrativa, em primeiro lugar, os contratos expressamente qualificados pela lei como administrativos, (depois) os contratos de objecto passível de acto administrativo, (ou seja, aqueles que versam sobre a produção de efeitos jurídicos que a lei previra serem atingidos mediante a prática de um acto administrativo); em seguida, os contratos cujo regime substantivo esteja especificamente sujeito a normas de direito público; finalmente, aqueles contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito administrativo, mesmo que não houvesse lei a prevê-lo.”
No caso dos autos, estamos perante um contrato de compra e venda celebrado entre um Município e uma entidade privada, no qual se estipularam prazos para a conclusão das construções e início da actividade económica. Ora, a circunstância de ser aplicável o Regulamento supra citado não afasta a natureza estritamente privada deste contrato.
O que está em causa é o incumprimento de um contrato de direito privado, não se vislumbrando que a A. tenha actuado ao abrigo de normas de direito administrativo ou no exercício do “jus imperii”, ao celebrar o referido contrato.
Como vem afirmando o Tribunal de Conflitos[3], estando em causa o mero incumprimento de simples contratos de compra e venda, onde a intervenção do Município o coloca na mesma situação de qualquer particular, não exercendo qualquer posição de superioridade em relação aos restantes contratantes, a competência para o conhecimento da causa de pedir assiste aos tribunais da jurisdição comum.
Como se afirma no Acórdão daquele Tribunal de 22.09.2011, “a circunstância de tais contratos terem decorrido da existência de um regulamento de direito público é absolutamente irrelevante pois a legalidade de tal regulamento não está a ser apreciada no contexto desta acção e a regulação de toda a actividade humana em sociedade decorre sempre da prolação das leis que têm origem pública. Na acção apenas se pediu, e procurou conseguir, um juízo definitivo sobre a legalidade de contratos de direito privado, se as partes os haviam cumprido e, na hipótese negativa, que consequências deveriam extrair-se.”
Finalmente, a argumentação da Recorrente de ter ocorrido preterição da tutela jurisdicional efectiva, prevista no art. 20.º n.º 1 da Constituição, é inconsequente: o que está em causa é o estabelecimento de qual o tribunal competente para conhecer a respectiva causa de pedir – não ocorre, pois, qualquer recusa de conhecimento da causa.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Évora, 21 de Dezembro de 2017
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
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[1] Vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.11.2017 (Proc. 4055/16.8T8 VIS.C1), publicado em www.dgsi.pt.
[2] In Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Anotados, vol. I.
[3] Cfr. os Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 12.07.2007 (Proc. 012/07) e de 22.09.2011 (Proc. 030/10), ambos publicados no mesmo local.