Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
59/20.4PACTX.E1
Relator: EDGAR VALENTE
Descritores: PERDA DE VANTAGEM
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Não existe qualquer incompatibilidade entre a dedução, pela ofendida, de pedido de indemnização civil e a declaração de perdimento, na sequência do requerimento, pelo Ministério Público, feito na acusação, da perda da vantagem patrimonial obtida pelo agente do facto ilícito típico com a conduta criminosa.

II - Não existe uma dupla condenação, porque, como é pacífico (e nem se questiona) ou o agente satisfaz o pedido formulado no pedido de indemnização civil ou liquida ao Estado o valor declarado perdido, ao abrigo do artigo 110.º do Código Penal, o qual, diga-se, mediante requerimento nos termos do artigo 130.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, até poderá ser atribuído ao lesado.

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.

No Juízo de Competência Genérica do … do Tribunal Judicial da Comarca de … corre termos o processo comum singular n.º 59/20.4PACTX, aí tendo sido, após a realização da audiência de julgamento, proferida sentença com o dispositivo que parcialmente se transcreve:

“(…)

C. Da declaração de perda de vantagens

Julga-se improcedente a declaração de perda de vantagens requerida pelo Ministério Público.”

Inconformado, o MP interpôs recurso de tal decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1. O Ministério Público recorre da sentença do Tribunal a quo por entender que o Tribunal violou a norma contida no artigo 110.º, n.ºs 1, 3, 4 e 6, do Código Penal.

2. E, por essa via, julgou erradamente improcedente a declaração de perda de vantagem requerida pelo Ministério Público do valor de €300,00 (trezentos euros).

3. Para o efeito, o Tribunal a quo considerou que “a partir do momento em que o arguido, na qualidade de demandado, deva ser condenado a ressarcir a demandante daquilo que se locupletou passa a falhar aquele pressuposto, pois, ao ressarcir a demandante, o demandado deixará de ter qualquer vantagem na sequência da prática do crime”, que “não se vê como se poderia compatibilizar em sede de execução da sentença e a declaração de perda com a indemnização a que o demandado e agente do crime seja condenado.” E que “O demandante pode, no exercício do seu direito de propriedade, exercer o direito de crédito da forma que bem entenda, desde logo quanto ao momento de o exigir”.

4. Porém, não podemos concordar com tal entendimento, porquanto não existe qualquer incompatibilidade entre a dedução, pela ofendida, de pedido de indemnização civil e a declaração de perdimento, na sequência do requerimento, pelo Ministério Público, feito na acusação, da perda da vantagem patrimonial obtida pelo agente do facto ilícito típico com a conduta criminosa.

5. Sempre com o devido respeito por melhor opinião, afigura-se-nos que o Tribunal a quo deveria ter declarado perdida a favor do Estado a quantia de €300,00, condenando-se o arguido a pagar tal quantia ao Estado, ao abrigo do disposto no artigo 110.º, n.ºs 1, alínea b), e n.º 4, do Código Penal, o que, apenas por errada interpretação deste preceito, não sucedeu.

6. Analisando o elemento literal do artigo 110.º do Código Penal, a interpretação vertida na sentença recorrida, afasta-se, por completo, daquela que foi a intenção do legislador ao consagrar o instituto do confisco, afigurando-se, o mesmo, imperativo.

7. Por outro lado, não existe na lei qualquer condicionalismo ao decretamento da perda da vantagem obtida pelo agente do facto ilícito, preenchidos que estejam os pressupostos constantes no artigo 110.º do diploma legal em análise. E, se a solução para eventuais dúvidas sobre a compatibilidade entre o decretamento da perda de vantagem e a dedução, pelo lesado, de pedido de indemnização civil já decorresse do previsto no artigo 110.º, n.º 6, do Código Penal, o artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, sob a epígrafe “Indemnização do lesado” completa, reforça e consolida tal conclusão esclarecendo: “Nos casos não cobertos pela legislação a que se refere o número anterior, o tribunal pode atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os instrumentos, produtos ou vantagens declarados perdidos a favor do Estado ao abrigo dos artigos 109.º a 111.º, incluindo o valor a estes correspondente ou a receita gerada pela venda dos mesmos”.

8. A defender-se, como aqui se pugna, não existe uma dupla condenação, porque, como é pacífico (e nem se questiona) ou o agente satisfaz o pedido formulado no pedido de indemnização civil ou liquida ao Estado o valor declarado perdido, ao abrigo do artigo 110.º do Código Penal, o qual, diga-se, mediante requerimento nos termos do artigo 130.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, até poderá ser atribuído ao lesado.

9. Com a solução vertida na sentença recorrida saem totalmente subvertidos os fundamentos que estiveram na génese do instituto do confisco, mormente, as finalidades preventivas, através do qual o Estado anuncia ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que, mesmo onde a cominação de uma pena não alcança, nenhum benefício resultará da prática do ilícito (i.é, o brocado “o crime não compensa”), deixando-se, por completo, nas mãos da ofendida a verificação, ou não, das finalidades legislativas que estiveram subjacentes à consagração do instituto da perda clássica.

10.Não podemos, portanto, concordar com o primeiro argumento avançado pelo Tribunal a quo, isto porque, ainda que o pedido de indemnização civil tenha sido decretado, enquanto o valor permanecer na esfera do arguido, não podemos dizer que aquele deixou de ter qualquer vantagem, esta continuará a existir enquanto estiver na sua disponibilidade.

11.Quanto ao segundo argumento, é verdade que o artigo 110.º, n.º 6, do Código Penal determina, e bem, que “o disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido”, mas acontece que tal não quer dizer que a perda de vantagem não pode ser decretada quando tiver sido procedente o pedido de indemnização civil, mas sim – e antes! – que, em sede de execução, o segundo prefere ao primeiro, sendo inclusive conferido ao lesado a prerrogativa de ser pago através do disposto no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal. Sendo que, em rigor, esta questão apenas se colocará após o trânsito da sentença, nos casos em que existe concurso entre a execução do pedido de indemnização civil e a do valor da perda de vantagens, numa fase em que aqueles valores já estão definidos e atribuídos, valores que poderão até nem coincidir nos seus montantes, dando-se aqui preferência ao pedido de indemnização civil.

12.Por fim, relativamente ao terceiro argumento, também não podemos concordar quando o Tribunal a quo refere que “o demandante pode, no exercício do seu direito de propriedade, exercer o direito de crédito da forma que bem entenda”, pois, para além dos direitos do lesado, estão as necessidades de prevenção geral e especial que aqui devem ser alvo de ponderação, não podendo, conforme referido supra, ficar dependente da vontade do lesado a perpetuação da vantagem na esfera patrimonial do condenado, vendo este assim compensado o seu crime, o que se pretende evitar.

13.Conforme referido em várias convenções internacionais que Portugal subscreveu e se comprometeu a observar, nas palavras de JOÃO CONDE FERREIRA e HÉLIO RIGOR RODRIGUES, estas “instigam implacavelmente, ao confisco dos instrumentos, produtos evantagens do crime como forma eficaz de o combater, mas também como forma de indemnizar as próprias vítimas, sendo em ambos os casos seja no âmbito das Nações Unidas, seja no âmbito do Conselho da Europa, o confisco é independente do pedido de indemnização civil. Intervém sempre por forma a restituir o condenado ao status patrimonial anterior à prática do crime e, desta forma, mesmo que a vítima nada faça, demonstrar que ele não compensa. Porém, se houver lesados a indemnizar, os bens assim obtidos devem ser usados para esse efeito, deste modo protegendo também os seus interesses.” (obra antes citada).

14.De outra forma, e a ficar a perda de vantagens dependente da vontade da lesada que, não obstante ter visto julgado procedente o pedido de indemnização civil, nada faz para retirar aquele valor da posse do condenado, podendo, através de inércia, renúncia ou mesmo negociação, perpetuar-se-ia aquela vantagem na esfera patrimonial do condenado que veria o seu crime compensado.

15.É sobre os Tribunais, e não sobre os particulares, que recai o dever constitucionalmente consagrado de administrar a Justiça, não sendo admissível exigir aos particulares o dever de exercer o seu direito, pese embora tal desiderato se atinja naturalmente quando os mesmos conseguem cobrar de forma integral a indemnização que lhes foi atribuída, nos termos das disposições conjugadas do artigo 469.º do CPP e dos artigos 9.º, alínea b), 202.º e 219.º, todos da Lei Fundamental.

16.Por tudo o exposto, ao não ter decretado o perdimento a favor do Estado da vantagem patrimonial que o arguido AA obteve com a actividade criminosa pela qual foi condenado, tal como requerido pelo Ministério Público na acusação, com fundamento na dedução e procedência do pedido de indemnização civil deduzido pela ofendida, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 110.º n.ºs 1, alínea b), 3, 4 e 6, do Código Penal.”

Defendendo, em síntese, que:

“Termos em que, e nos mais de direito aplicáveis, deve ser julgado procedente o recurso interposto e, consequentemente, ser a sentença proferida substituída, nesta parte, condenando-se o arguido AA a pagar ao Estado o montante de €300,00 (trezentos euros), nos termos do disposto no artigo 110.º, n.º 1, alínea b), 3, 4 e 5, do CPP.”

O recurso foi admitido.

Foram apresentadas as seguintes respostas ao recurso (conclusões):

1 – Arguida BB:

“1) O Objecto do Recurso em apreço é a decisão do Tribunal “a quo” que julgou totalmente improcedente a declaração de perda de vantagem, conforme requerido pelo Ministério Publico, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 110.º, n.ºs 1, alínea b), 3, 4 e 6 do Código Penal”.

2) Na sentença proferida no Tribunal “a quo” a arguida foi ABSOLVIDA da prática de qualquer crime de que vinha acusada nos autos;

3) A decisão de absolvição proferida a favor da arguida não faz parte do objecto do recurso, pelo que, quanto a esta o Recurso não tem qualquer aplicabilidade.”

Defendendo, em síntese, que:

“NESTES TERMOS DEVERÃO V. EX.AS MANTER A DOUTA DECISÃO “A QUO”, ABSOLVENDO A ARGUIDA E DECLARANDO A NÃO APLICABILIDADE DO RECURSO À ARGUIDA.”

2 – Arguido AA:

“1) O Objecto do Recurso em apreço é a decisão do Tribunal “a quo” que julgou totalmente improcedente a declaração de perda de vantagem, conforme requerido pelo Ministério Publico, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 110.º, n.ºs 1, alínea b), 3, 4 e 6 do Código Penal”.

2) Na sentença proferida no Tribunal “a quo” o arguido foi condenado pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 203º, nº 1, e 204º, nº 1, alínea e, ambos do Código penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), num total de € 990 (novecentos e noventa euros).

3) O arguido foi ainda condenado no pagamento à demandante cível do valor de € 469,67 (quatrocentos e sessenta e nove euros e sessenta e sete cêntimos).

4) O Tribunal “a quo” julgou improcedente a declaração de perda de vantagens requerida pelo Ministério Público.

5) O Tribunal “a quo” entendeu que tendo o arguido sido condenado no pedido de indemnização civil, deixaria o mesmo de ter qualquer vantagem com a prática do crime cometido.

6) O Tribunal “a quo” entendeu que o artigo 110º, nº 6 do Código Penal determina que no confronto entre a perda de ventagens e os direitos do ofendido, deverão prevalecer estes últimos.

7) O Tribunal “a quo” entendeu que não se vislumbra como é que se poderia compatibilizar estes dois direitos em sede de execução de sentença, sem colocar em causa os direitos do ofendido.

8) Ora, só haverá perda de vantagens quando tenha havido, de facto, uma vantagem, um acréscimo patrimonial verdadeiramente conseguido como produto do facto ilícito, devendo tal vantagem não estar já abrangida pela condenação no pedido de indemnização civil formulado pela ofendida/demandante.

9) Tendo o arguido sido condenado no pagamento de uma indemnização civil à ofendida/demandante, na medida do prejuízo por ela sentido, condená-lo também no pagamento de uma quantia a título de vantagem a favor do Estado seria condená-lo duplamente pelo mesmo facto ilícito.”

Defendendo, em síntese, que:

“NESTES TERMOS DEVERÃO V. EX.AS MANTER A DOUTA DECISÃO “A QUO”, DECLARANDO A IMPROCEDÊNCIA DA DECLARAÇÃO DE PERDA DE VANTAGENS A FAVOR DO ESTADO.”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de “(…) que o recurso interposto pelo Ministério Público deve ser julgado procedente, revogando-se a douta sentença recorrida e substituindo-se por outra que considere o montante de € 300,00 (trezentos euros) como vantagem do crime, sendo aquele valor declarado perdido a favor do Estado.”

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1), sem resposta.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduz-se a decisão recorrida, na parte que interessa:

“II. Dos Factos

A. Factos provados

Instruída e discutida a causa, com relevância para a presente decisão, resultaram provados os seguintes factos:

1.Os arguidos AA e BB viveram no local dos factos, Quinta…, sita em …, município do …, entre Agosto de 2017 e Março de 2020, incumbindo-lhes tratar e zelar pela referida quinta…

2.Em dia e hora não concretamente apurado, o arguido decidiu retirar gasóleo da máquina industrial giratória marca …, modelo …, propriedade da ofendida CC, Lda., que se encontrava no interior da Quinta ….

3. Assim, em execução do plano delineado por si, o arguido, no dia 25.02.2020, dirigiu-se, na companhia de indivíduo de identidade não concretamente apurada, à máquina industrial giratória marca …, modelo …, propriedade da ofendida CC, Lda., com o intuito de retirar o gasóleo que se encontrava no interior da máquina e que conseguisse.

4. O arguido introduziu uma chave de fendas na patilha de segurança do tampão do depósito do combustível, dispositivo equipado com fechadura e que só abre com a chave da referida máquina, conseguindo, dessa forma, abrir o tampão do depósito do combustível da referida máquina agrícola.

5. Após, o arguido retirou o tampão do depósito do combustível e, com o auxílio de uma mangueira, o gasóleo para o interior de um jerrican, que levou consigo.

6. Com a sua conduta o arguido retirou e apropriou-se de litros de gasóleo, em quantidade e valor pecuniário não concretamente apurado.

7. E partiu e danificou o tampão do depósito do combustível da referida máquina agrícola, que foi substituído por um novo.

8. Já anteriormente, aquele tampão de depósito havia sido substituído por outro novo, na sequência de assalto perpetrado por pessoa de identidade não apurada.

9. As duas substituições do tampão de depósito tiveram um custo global de €334,98.

10. Agiu o arguido com o propósito concretizado de retirar e apropriar-se do gasóleo da máquina industrial giratória marca …, modelo …, propriedade da CC, Lda., o que representou, quis e logrou conseguir.

11. Bem sabia o arguido que através da sua conduta retirava gasóleo que não lhe pertencia, o qual estava guardado no interior da máquina agrícola, em compartimento/receptáculo equipado com fechadura por questões de segurança e que só abria com a chave do veículo, que o arguido não detinha, e que actuava contra a vontade da sua legítima proprietária, o que sabia, queria e logrou conseguir.

12. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, tendo liberdade para agir de forma diferente e bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

Mais se provou que:

13. Os arguidos não apresentam quaisquer descontos junto do ISS,I.P.;

14. Por sentença proferida no âmbito do processo n.º …, transitada em julgado a 2011/05/02, o arguido foi condenado pela prática, a 2009/11/07, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5;

15. Por sentença proferida no âmbito do processo n.º …, transitada em julgado a 2015/01/09, o arguido foi condenado pela prática, a 2013/09/18, de um crime de desobediência, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de € 5, e na pena acessória de proibição de condução de veículos a motor pelo período de 4 meses, ambas já extintas;

16. Por sentença proferida no âmbito do processo n.º …, transitada em julgado a 2018/02/14, o arguido foi condenado pela prática, a 2015/01/09, de um crime de desobediência, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 5, já extinta;

17. Por sentença proferida no âmbito do processo n.º …, transitada em julgado a 2019/06/07, ambos os arguidos foram condenados pela prática, a 2016/01/27, de um crime de falsificação de notação técnica, na pena de 140 dias de multa, à taxa diária de € 5, para cada um.

18. O depósito da máquina referida em 3 leva 300 litros de gasóleo.

19. Com a conduta descrita em 5, o arguido retirou cerca de 300 litros de gasóleo.

20. A 25-02-2020, o litro do gasóleo era vendido por cerca de € 1.

21. A substituição do tampão na sequência da conduta do arguido custou € 169,67.

B. Factos não provados

Com relevo para a boa decisão da causa inexistem quaisquer outros factos provados, nomeadamente que:

a) O facto 2 ocorreu no início do ano de 2018 e antes do dia 13.04.2018;

b) No facto 2, a arguida actuou em comunhão de esforços e vontades com o arguido;

c) Antes do referido em 3, no período compreendido entre data não concretamente apurada mas situada no início do ano de 2018 e antes de 13.04.2018 e, depois dessa data, mas antes do dia 25.02.2022, os arguidos dirigiram-se um número de vezes não concretamente apurado, mas certamente superior a cinco vezes, à máquina industrial giratória marca …, modelo …, propriedade da ofendida CC, Lda., com o intuito de retirar o gasóleo que se encontrava no interior da máquina e que conseguissem.

d) No referido em 4, o arguido introduziu a chave de fendas mais do que uma vez.

e) Nas demais ocasiões [referidas em c)], em número não concretamente apurado, os arguidos aproveitaram-se do facto de previamente terem partido o tampão do depósito do combustível e, por essa via, o tampão não se encontrar correctamente encaixado e trancado para retirarem gasóleo do interior da referida máquina nos moldes descritos em 5.º.

f) Com a sua conduta os arguidos retiraram e apropriaram-se de um total 1000 litros de gasóleo, totalizando o valor de €1.283,00.

g) Os arguidos agiram sempre em comunhão de esforços e vontades.

h) A arguido actuou como referido nos factos 10 a 12.

1. Nos presentes autos foi formulado um pedido de indemnização civil.

Este pedido remete para a temática da responsabilidade civil extracontratual regulada no Código Civil – aliás, o artigo 129.º, do Código Penal, consagra expressamente que a indemnização de perdas e danos decorrentes da prática de crime é regulada pela lei civil.

Dispõe o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

Deste preceito retira-se que a responsabilidade civil subjectiva pressupõe uma acção ilícita, culposa e que cause danos.

O primeiro pressuposto básico da responsabilidade civil é, assim, a conduta do agente, entendida como actuação controlável ou dominável pela vontade daquele. Esta actuação não tem, assim, que ser intencional, mas apenas dominável pela vontade do seu agente.

Em segundo lugar, é necessário que aquela conduta seja ilícita, prevendo o Código Civil duas modalidades de ilicitude: a violação de direitos de outra pessoa; e a violação de normas legais destinadas a proteger interesses alheios.

Particular interesse tem, no caso, a segunda modalidade, na qual se integram os casos de violação de normas que apesar de tutelarem interesses individuais, não criam direitos subjectivos, caso de algumas normas de Direito Penal. Para designar este tipo de normas, alguma doutrina fala de «normas de protecção», entendendo que a sua verificação depende da violação da imposição prevista nessa norma, que ela se dirija à tutela de interesses particulares (e não do interesse geral) e que o dano ocorra no âmbito dos interesses particulares protegidos – segue-se, de perto, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume I – Introdução. Da Constituição das Obrigações, Almedina, página 267.

Retomando os pressupostos da responsabilidade civil, o terceiro requisito é que o comportamento ilícito seja culposo, entendendo-se a culpa como juízo de censura ao agente por ter adoptado aquele comportamento. O artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, estipula que «a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, segundo as circunstâncias do caso», pelo que, na apreciação da culpa se segue um critério abstracto.

Em quarto lugar, é necessário que se verifique um dano. Tradicionalmente, a doutrina divide os danos em patrimoniais e não patrimoniais (também designados danos morais) – estes últimos correspondendo aos danos que não têm expressão monetária, como é o caso paradigmático do sofrimento físico ou psíquico.

Por último, aquele dano tem que ser resultado daquela acção ilícita e culposa, falando-se a este propósito do nexo de causalidade. Na concretização do que é o nexo de causalidade, o nosso legislador consagrou a chamada teoria da causalidade adequada, de acordo com a qual é necessário que, em abstracto e de acordo com o curso normal das coisas, o facto seja adequado a produzir aquele dano (artigo 563.º, do Código Civil).

Verificados estes requisitos, surge a obrigação de indemnizar, isto é, de tornar indemne, o que significa criar a situação que existiria se o comportamento na base da responsabilidade civil não se tivesse verificado (artigo 562.º, do Código Civil).

2. Aplicando ao caso em apreço.

A conduta do demandado foi voluntária (e até intencional). Consubstanciou a prática de um crime ou, dizendo de outra forma, com a sua conduta o demandado violou uma norma de protecção dirigida à tutela de terceiros. Em terceiro lugar, o demandado fê-lo dolosamente, sendo esse comportamento e intenção censuráveis. Finalmente, aquele comportamento causou prejuízos, ou seja, danos. Desta forma, estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil.

Significa isto que sobre o demandado impende a obrigação de indemnizar a demandante, pagando os prejuízos que este teve.

Assim sendo, terão os demandados que pagar uma indemnização no valor de € 169,67 (relativa à substituição do tampão) e os danos decorrentes do furto do gasóleo.

Quanto a este último, dado que não se apurou o concreto valor do prejuízo, é de recorrer à equidade (artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil). Tendo em conta que, na altura dos factos, o litro de gasóleo rondava € 1 e que o arguido subtraiu 300 litros de gasóleo, crê-se justo o valor de € 300.

D. Das vantagens do crime

1. O Ministério Público promoveu que o montante de € 1.283,00 seja considerado vantagem do crime e, consequentemente, declarado perdido a favor do Estado, nos termos do disposto no artigo 110.º, n.os 1, 3, 4 e 6 do Código Penal.

O artigo 110.º, do Código Penal, determina que:

«1 - São declarados perdidos a favor do Estado:

a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e

b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.

(…)

6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido».

Como explicam Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, a perda das vantagens «se apresenta, não como uma pena acessória, mas sim como uma medida destinada a restabelecer a ordem económica conforme o direito conduzindo a uma justa privação dos benefícios ilicitamente obtidos e só indirectamente e imprecisamente se poderia conseguir com a multa, elevando a taxa diária ou impondo multa cumulativamente com a prisão» – Noções de Direito Penal, 5.ª edição, 2016, Rei dos Livros, página 366.

A articulação deste instituto com a indemnização civil peticionada pelo demandante é objecto de diferentes entendimentos na jurisprudência portuguesa.

Em algumas decisões dos tribunais portugueses tem-se entendido que não deve haver uma duplicação de penalizações para o agente do crime, sendo que, a procedência do pedido de indemnização civil, quando seja pelo valor que o agente do crime obteve, deverá afastar a declaração de perda de vantagens.

Em outras decisões tem-se entendido que a declaração de perda e o pedido de indemnização civil podem ambos ser procedentes, sendo apenas na fase de execução da sentença que o último tem primazia sobre o primeiro.

A primeira posição ancora-se, essencialmente, nos seguintes argumentos: o pedido de indemnização civil, correspondendo ao valor que o agente do crime conseguiu com o mesmo, já alcança as finalidades preventivas que a declaração de perda pretende conseguir; tratando-se a vantagem do crime de um bem que é propriedade do demandante, o seu interesse e forma como queira exercer o seu direito de propriedade prevalecem sobre qualquer instrumentalização que o Estado queira fazer dos mesmos.

Na explicação do Tribunal da Relação do Porto, de 07-07-2021, processo n.º 5183/16.5T9PRT.P1, a «restituição ao lesado dos bens com que o criminoso se avantajou faz perder interesse prático ao artº 110º do C. Penal, na medida em que o provimento na ação indemnizatória já logra ou tende a lograr integralmente o objetivo, a ratio legis do artº 110º do Cód. Penal: a mensagem preventiva geral que a comunidade não irá admitir que o agente do crime mantenha na sua posse as vantagens patrimoniais obtidas.

(…)

O artº 130º nº 2 do C. Penal aparenta estabelecer a primazia do direito do Estado sobre o direito do lesado (…) a que se seguiria a satisfação de um direito secundário do lesado a ser ressarcido com o produto dos seus bens. Não nos parece, contudo, que este artigo da lei deva ser lido desta forma. (…) A norma em causa deverá ser interpretada como restringindo-se aos casos em que o lesado não deduziu no processo pedido de indemnização.

A Constituição da República Portuguesa protege, no seu artº 62º, nº 1, o direito à propriedade privada. Da conjugação deste artigo da lei fundamental com o artº 1305º do C. Civil decorre que o direito de propriedade da vítima de um crime prevalece necessariamente sobre o interesse de política criminal do Estado em ver declarada a perda, a seu favor, das vantagens do crime. Nesta medida, consideramos que, na concorrência entre o pedido de indemnização por danos patrimoniais fundado na prática de um crime e a pretensão do Estado na declaração de perda a seu favor das vantagens do mesmo, este último não deverá merecer deferimento, ao menos até à parte em que coincidem a perda do lesado e a vantagem do agente do crime.

Mais, consideramos que o Estado não pode, sequer, instrumentalizar, em seu favor, o direito de propriedade privada do lesado, adquirindo os bens mesmo contra a vontade do lesado. Mesmo desapossado dos bens pelo agente do crime, o lesado não deixa de ser o legítimo proprietário dos mesmos, pelo que, na hipótese, v. g., de declarar expressamente prescindir deles em favor do agente do crime (numa palavra: oferecendo-lhos), não pode o Estado, no âmbito da sua pretensão punitiva e na prossecução da sua política criminal, sobrepor-se a esta vontade do lesado, na medida em que tal solução seria claramente inconstitucional, em face do referido artº 62º, nº 1 da CRP (que protege o direito de transmissão em vida do direito à propriedade).

(…)

Entendemos por isso que a interpretação mais adequada ao pensamento legislativo quanto ao instituto da perda de bens ou vantagens a favor do Estado é que este perdimento deve comprimir-se quando em presença do instituto concorrente do pedido de indemnização pelo lesado e deve expandir-se quando este se desinteressa do seu património, perdido para o agente do crime»

Por contraposição a este entendimento, há quem entenda que não há incompatibilidade entre a declaração de perda de vantagens e a procedência do pedido de indemnização civil, prevalecendo esta último apenas na fase de execução da pena e na medida em que a indemnização coincida com a vantagem do crime.

Neste sentido, a título de exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28-10-2021, processo n.º 321/19.9IDPRT.P1, onde se afirmou que «atenta a natureza autónoma e de natureza penal do instituto de perda de vantagens do crime, tais institutos não se confundem nem com a pena, nem com a indemnização civil, não podendo deixar de ser aplicado, como pedido na acusação, sem que daí resulte uma dupla ou tripla execução, pois dependerá da relação subjacente estar ou não cumprida ou satisfeita, sendo certo que, em qualquer caso, e seja qual for o beneficiário, há apenas direito a receber essa quantia uma vez.

(…) Isto sem prejuízo de se considerar que decretar o confisco poderá não ter utilidade, pois nestes casos poucas serão as hipóteses em que a perda das vantagens poderá ser decretada utilmente, como sucederá quando aquilo que vier a ser declarado perdido a favor do Estado reverterá para a vítima do crime através do pedido de indemnização reclamado por esta».

2. Considerando os ponderosos argumentos de ambas as posições, aderimos à primeira.

Em primeiro lugar, o pressuposto base da perda de vantagens é que o arguido tenho conseguido uma vantagem com a prática do crime (artigo 110.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal). Ora, a partir do momento em que o arguido, na qualidade de demandado, deva ser condenado a ressarcir o demandante daquilo de que se locupletou passa a falhar aquele pressuposto, pois, ao ressarcir o demandante, o demandado deixará de ter qualquer vantagem na sequência da prática do crime. Esta análise tem de ser feita no momento em que a sentença é proferida, e não em sede de execução da mesma.

Em segundo lugar, o artigo 110.º, n.º 6, do Código Penal, determina que o disposto sobre a perda de vantagens não prejudica os direitos do ofendido, de onde decorre que, no confronto, prevalece o último.

Em terceiro lugar, na sequência do ponto anterior, não se vê como se poderia compatibilizar em sede de execução da sentença a declaração de perda com a indemnização a que o demandado e agente do crime seja condenado. O demandante pode, no exercício do seu direito de propriedade, exercer o direito de crédito da forma que bem entenda, desde logo quanto ao momento de o exigir. Dos artigos 309.º e 311.º, n.º 1, do Código Civil, decorre que sendo determinado crédito reconhecido por sentença transitada em julgado o prazo de prescrição é o prazo ordinário de 20 anos, sendo certo que, depois disso, ainda assim o demandado pode proceder ao pagamento da mesma (artigo 403.º, do Código Civil). Neste quadro, não se vê em que condições é que se poderia avançar para a execução da declaração de perda, sem desrespeitar os direitos do lesado.

3. Em conformidade com a posição sufragada, terá de improceder a declaração de perda de vantagens, já que o pedido de indemnização civil foi procedente na parte das vantagens que, naquele domínio, se determinaram com recurso à equidade (fixando-se uma indemnização de € 300) relativamente aos 300 litros de gasóleo que se provou terem sido furtados.

(…).”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objeto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

A questão a decidir no presente recurso é a seguinte:

Deve (ou não) ser decretada a perda de vantagem do crime no caso dos autos.

B. Decidindo.

Como resulta expressamente da decisão recorrida, existem duas correntes jurisprudenciais sobre a questão da cumulação da condenação no pedido cível com a condenação na perda de vantagens decorrentes da prática do crime.

Relativamente a tal questão, subscrevemos a posição defendida no acórdão proferido por este TRE em 07.09.2021 (tendo sido o aqui relator ali adjunto) no processo n.º 95/18.0T9LLE.E1, que aqui reproduzimos:

A propósito da perda de vantagens, agora prevista no artº 110º do C.P. (redacção introduzida pela L. 30/2017 de 30/5, já em vigor à data da prática do último acto levado a cabo pela recorrente), e anteriormente previsto no artº 111º do C.P., refere o Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, 2ª reimpressão, 2009, pág. 632: “Nas vantagens, diversamente, o que está em causa primariamente é um propósito de prevenção da criminalidade em globo, ligado à ideia – antiga, mas nem por isso menos prezável – de que «o ‘crime’ não compensa”.

E mais adiante, pág. 633, § 1005, a propósito precisamente da questão concreta em causa neste recurso: “À primeira vista, a consagração da perda de vantagens como providência de carácter criminal pode parecer absurda: em princípio, com efeito, ela resulta automaticamente das regras da responsabilidade civil (nomeadamente, sob a forma da restituição em espécie). A providência justifica-se, no entanto, de um duplo ponto de vista. Por uma parte, o lesado pode prescindir da reparação, não apresentando o respectivo pedido; caso em que as finalidades de prevenção, geral e especial, acima apontadas dão fundamento autónomo ao decretamento da perda. Por outra parte, casos haverá em que as vantagens vão além daquilo em que a vítima foi prejudicada. Suscita-se, nestas hipóteses, o problema de saber até onde deverá a perda das vantagens ser decretada (infra § 1009). Mas seja como for quanto a este ponto, também aqui há lugar e justificação autónomos para a perda. Sem deixar de reconhecer-se, em todo o caso, que, sempre que tenha havido pedido civil conexo com o processo penal, poucas serão as hipóteses em que a perda de vantagens poderá vir a ser decretada utilmente”.

Temos, portanto, que a perda das vantagens tem como primeiro objectivo fazer com que o agente do crime não retire qualquer vantagem com a sua prática, fazendo ver a todos (prevenção geral) que para além da punição criminal propriamente dita, não é possível obter qualquer tipo de benefício com a mesma.

E tal objectivo faz sentido mesmo que ocorra condenação no pedido de indemnização formulado pelo ofendido/lesado.

É que mesmo havendo condenação no pedido de indemnização pode sempre o beneficiário desta vir a prescindir da mesma ou permanecer inactivo com vista à sua cobrança. Se tal viesse a ocorrer, e inexistindo declaração de perda da vantagem a favor do Estado e condenação do arguido nesse pagamento, sempre ficaria frustrado o acima referido objectivo e nesse caso ficaria nas mãos do ofendido o crime “compensar”, ou não.

Assim se entendeu, entre outros, no ac. da rel. de Lisboa de 18/6/2019, assim sumariado:

“- O instituto intitulado de “perda de vantagens” constitui uma medida sancionatória análoga à medida de segurança com intuitos exclusivamente preventivos.

- A perda de vantagens do crime constitui instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que, mesmo onde a cominação de uma pena não alcança, nenhum benefício resultará da prática de um ilícito [v.g. “o crime não compensa”, nem os seus agentes dele retirarão compensação de qualquer natureza].

- Reconhece-se, assim, que o agente deverá voltar ao estado inicial antes de beneficiar da vantagem patrimonial demonstrada na acusação, e causada em consequência de um facto antijurídico. Este retorno, sublinhe-se, deverá ocorrer mesmo que o pedido de indemnização civil não tenha sido formulado, por algum motivo tenha sido julgado improcedente ou seja relativo a valor inferior à vantagem patrimonial que ocorra.

- A reserva constante do n.º 2, do citado art. 111ºC.P., em benefício dos direitos do ofendido ou terceiros de boa-fé, não lhes concede poderes derrogatórios das medidas dessa natureza aí previstas, significando apenas que, concorrendo a execução do pedido de indemnização civil com a do valor da perda de vantagens prevalecerá a primeira delas, remetendo-nos para uma fase de tramitação posterior, em que já estão atribuídos e devidamente delimitados quer os valores da indemnização do ofendido ou de terceiro e o da perda de vantagens que, como é bom de ver, poderão nem sequer ser inteiramente coincidentes e no mesmo sentido vai a estatuição do art. 130º, n.º 2, do Cód. Penal, ao prever que o tribunal possa “atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os objectos declarados perdidos ou o produto da sua venda, ou o preço ou o valor correspondentes a vantagens provenientes do crime, pagos ao Estado ou transferidos a seu favor por força dos artigos 109.º e 110.º”.

- O direito ao pedido de indemnização civil não pode contender ou substituir o direito de o Estado ser de imediato reintegrado na sua esfera patrimonial com os bens/direitos/vantagens que lhe foram subtraídos com a prática do crime.

- Não há qualquer incompatibilidade entre o requerimento ou promoção de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público e o pedido de indemnização civil cuja apresentação caberia à Segurança Social.”

E no texto do referido acórdão:

“Ao contrário do que parece defender o Tribunal recorrido, não há nenhuma incompatibilidade entre o requerimento ou promoção de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público e o pedido de indemnização civil cuja apresentação caberia à Segurança Social, tal como a jurisprudência tem vindo consistentemente a decidir no seguimento de informada doutrina (cfr., entre outros, “O confisco das vantagens e a pretensão patrimonial da Autoridade Tributária e Aduaneira nos crimes tributários” - Dr. João Conde Correia e Dr. Hélio Rigor Rodrigues, in Revista Julgar Online, Janeiro de 2017).

Vejam-se, neste sentido e a título de exemplo, os seguintes Acórdãos: - Acórdão de 22 de Fevereiro de 2017, processo n° 2373/14.9IDPRT, no qual foi Relatora a Exma. Sra. Desembargadora Maria Deolinda Dionísio; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Março de 2017, processo n° 86/14.0IDPRT, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Desembargador Francisco Mota Ribeiro; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Junho de 2017, processo n° 25/15.1IDPRT, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Desembargador José Carlos Borges Martins; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Julho de 2017, processo n° 149/16.8IDPRT, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Desembargador Jorge Langweg; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31 de Maio de 2017, processo n° 259/15.9IDPRT, no qual foi Relatora a Exma. Sra. Desembargadora Lígia Figueiredo; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31 de Janeiro de 2018, processo n° 176/16.5PAVFR, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Desembargador Ernesto Nascimento; e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de Janeiro de 2018, processo n° 126/14.3GBAMT, no qual foi Relatora a Exma. Sra. Desembargadora Maria Deolinda Dionísio.”

O mesmo no ac. da rel. do Porto de 26/10/2017, assim sumariado: .

“Tenha ou não deduzido pedido civil, tenha ou não a Autoridade Tributária entendido que dispõe de meios suficientes para a cobrança coerciva do imposto devido, há lugar, nos termos do artº 111º CP, num crime de burla tributária, ao decretamento de perda de vantagens obtidas com a prática do crime.”

Acontece que se, por um lado, o lesado não pode ser prejudicado pela declaração de perda das vantagens (cfr. nº 6 do artº 110º do C.P.), podendo o mesmo nos termos do artº 130º, nº 2, do C.P. “fazer-se pagar” quanto aos danos causados pelo valor das vantagens recebidas pelo Estado, por outro lado, não pode ocorrer execução simultânea pelo Estado e pelo ofendido/lesado ou só por aquele quando, como acontece muitas vezes, designadamente nos crimes fiscais, é o Estado o próprio ofendido.

Mas isso é questão que só posteriormente se colocará, se for caso disso, pois que, como bem se refere no voto de vencido proferido no ac. da rel. do Porto de 30/4/2019:

“Não compete ao tribunal, de primeira instância ou de recurso fixar ressalvas sobre que direitos não podem ser prejudicados com esta perda nem como devem ser reduzidos pagamentos; essas questões terão que ser atendidas no momento próprio (na decisão em primeira instância ou em sede de recurso se já tiverem ocorrido pagamentos ou em execução se ocorrerem depois daquelas decisões) e sempre sem prejuízo de direitos legalmente conferidos não havendo que o declarar.”

Uma coisa é certa, repete-se: a recorrente não será “obrigada” a pagar duas vezes a mesma quantia, ou seja, por duas vezes a quantia de que ilicitamente se apropriou, pois tal constituiria um empobrecimento sem justificação, para além do que se pretende que ocorra: inexistência de benefício com a prática do crime. A recorrente deve voltar a estar na situação patrimonial em que se encontrava antes da prática do crime, não mais “pobre” (em duplicado) do que estava.

É como se refere no texto do acima referido rel. do Porto de 26/10/2017:

“É por isso mesmo, porque não pode ser executada duas vezes (sob pena de se modificar a natureza jurídica do confisco: em vez de colocar o arguido no status patrimonial anterior à prática do facto ilícito típico seria um mecanismo de redução do seu património lícito) que Jorge de Figueiredo Dias refere quer nesses casos, decretar o confisco poderá não ter utilidade. Da sua asserção não se pode, todavia, retirar que o confisco cessa quando existe um pedido de indemnização civil, mas apenas que «poucas serão as hipóteses em que a perda das vantagens poderá ser decretada utilmente» (Direito Penal Português…, p. 633). O que não significa, por exemplo, que não tenha já relevância (teórica) ou que não possa vir a ganhá-la no futuro (v.g. porque o título executivo já existente prescreveu entretanto).”

Como é sobejamente referido, designadamente pelo Prof. Figueiredo Dias, a declaração judicial de perdimento da vantagem pode vir a revelar-se inútil, inconsequente, mas isso não significa que, pelas razões já referidas, não deva ser decretada. Só assim não será se no decurso do processo se comprovar que o agente do crime ressarciu o ofendido em montante exactamente igual ao das vantagens que obteve com a prática do crime. Aí sim: aquando da condenação já se sabe que a declaração de perda é completamente inútil.

(…)

Assim, em conclusão: A existência de condenação no pagamento da quantia solicitada no pedido cível pelo ofendido/lesado a título de ressarcimento dos danos causados pela prática do crime, não impede que seja decretado o perdimento de igual quantia a favor do Estado e a condenação do arguido no seu pagamento, nos termos do artº 110º, nºs 1, al. b) e 4 do C.P., por ter sido essa quantia a vantagem obtida pelo agente do crime com essa prática.”

Deste modo, considerando que a condenação no pedido cível não obsta ao decretamento da perda da vantagem correspondente a favor do Estado nos termos do disposto no art.º 110.º, números 1, alínea b), 3, 4 e 5, deve ser o arguido AA condenado a pagar ao Estado, a esse título, o montante de €300,00 (trezentos euros).

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a sentença recorrida nessa parte e, consequentemente, condenar o arguido AA a pagar ao Estado o montante de € 300,00 (trezentos euros), a título de perda de vantagem.

Sem custas.

(Processado em computador e revisto pelo relator)

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1 Diploma a que pertencerão todas as indicações normativas ulteriores que não tenham indicação diversa.