Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
174/15.6T8RMR.E1
Relator: SÉRGIO CORVACHO
Descritores: PESSOA COLECTIVA
RESPONSABILIDADE CONTRAORDENACIONAL
Data do Acordão: 07/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - Na falta de disposição semelhante à prevenida no artigo 12.º do Código Penal, é de concluir que, nos casos previstos no n.º 2 do art. 7.º do RGCO, as actuações dos «órgãos» da pessoa colectiva apenas responsabilizam esta e não as pessoas individuais intervenientes.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

I. Relatório

No Processo de Contra-Ordenação nº 169/2010 da Câmara Municipal de Rio Maior, por Vereador deste órgão autárquico, no exercício de competências delegadas pelo respectivo Presidente, foi proferida em 27/5/15 decisão, que condenou JM numa coima no montante de € 750,00, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelas disposições conjugadas da al. c) do nº 2 do art. 4º e do nº 2 do art. 98º ambos do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, na redacção introduzida pelo DL nº 26/10 de 30/3, em vigor ao tempo dos factos.

O arguido impugnou judicialmente, nos termos do art. 59º do Regime Geral das Contra-ordenações (doravante RGCO), aprovado pelo DL nº 433/82 de 27/10 e sucessivamente alterado, a decisão administrativa que a condenou.

Na fase de impugnação judicial, os autos foram distribuídos ao Tribunal da Comarca de Santarém, Instância Local de Rio Maior, Secção de Competência Genérica e, em 23/10/15, foi proferida sentença pela Exmª Juiz desse Juízo, a qual decidiu não conceder provimento à impugnação judicial deduzida, mantendo a decisão administrativa recorrida, com base nos seguintes factos, que então se deram como provados:

1. Em 19 de novembro de 20 I O o arguido procedeu, no local da Estrada das Caroleiras, em Asseiceira, concelho de Rio Maior, à construção de um muro de vedação, construindo um excedente de 1.00 m de comprimento e 2.10 m de altura em zona non aedificandi, junto à via pública, não respeitando o afastamento mínimo legal de 4,5 m em relação ao eixo da via e ignorando ordens dadas pessoalmente pelos serviços de fiscalização, sem que para o efeito possuísse licença administrativa.

2. O arguido tinha consciência da necessidade de licença administrativa para a execução das obras.

3. Pelo que praticou livre, deliberada e conscientemente a infração, quando sabia que tal não lhe era permitido por lei.

Mais se provou que:
4. O Arguido é sócio gerente da sociedade JM - Sociedade de Construção…, Lda ..

5. O prédio onde foi construído o muro encontra-se registado a favor da referida sociedade comercial.

6. Foram os funcionários da sociedade, em cumprimento de ordens do arguido, na qualidade de legal representante da sociedade, e agindo no interesse desta, que procederam à construção do muro.

7. O Arguido aufere 1.000,00 € mensais da sua atividade profissional de gerente da referida sociedade.

8. Vive sozinho, em casa própria, pela qual paga 400,00 € mensais ao Banco.

9. Paga ainda mensalmente outra prestação bancária no valor de 100,00 €.

10. Tem um filho maior de idade.

Da sentença proferida o arguido veio interpor recurso devidamente motivado, formulando as seguintes conclusões:

a) O arguido é sócio gerente da sociedade JM- Sociedade de Construção… Lda ..

b) Esta sociedade é a proprietária do prédio onde foi construído o muro sem licença.

c) Foram os funcionários da sociedade, em cumprimento de ordens do arguido, na qualidade de legal representante da sociedade, e agindo no interesse desta, que procederam à construção do muro.

d) No caso o arguido não actuou em seu próprio nome e interesse, mas antes como gerente (orgão) daquela sociedade.

e) Nos termos do nº' 2 do art.º 7° do RGCO (DL 433/82, de 27 de Março) a responsabilidade pelos factos cometidos pelos órgãos das pessoas colectivas ou ou equiparadas é exclusiva das pessoas colectivas.

f) Tendo o arguido agido apenas como gerente da pessoa colectiva, e no interesse desta, a contraordenação não pode ser imputada ao gerente mas somente à sociedade em conformidade com o estatuído no citado n.º 2 do art.° 7° do RGCO.

g) Ao decidir de modo diferente violou o tribunal a quo o disposto no n.º 2 do art.° 7° do regime geral das contra ordenações.

h) Devendo, na sequência, a douta sentença ser revogada e ser substituída por outra que absolva o arguido da contraordenação que lhe é imputada.

O recurso interposto foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo.

O MP respondeu à motivação da recorrente, tendo formulado, por seu turno, as seguintes conclusões:

1. A construção do muro foi levada a cabo por funcionários do arguido, sob as suas ordens e o mesmo agia em representação e no interesse da sociedade.

2. Assim, não restam dúvidas que o mesmo praticou igualmente a contra-ordenação que lhe vem imputada.

3. O artigo 7.º, nº 2 do RGCO não dispõe que a responsabilidade pelos factos cometidos pelos órgãos de pessoas colectivas ou equiparadas é exclusiva das pessoas colectivas, conforme alega o recorrente.

4. A responsabilidade individual do agente ou dos agentes não se transfere para a pessoa colectiva, no sentido de que a responsabilidade desta não afasta a responsabilidade daquele ou daqueles pela sua actuação.

5. Assim, tendo o arguido agido na qualidade de gerente da sociedade por si representada não poderá deixar de ser condenado pelos factos por si praticados nessa qualidade.

6. Deste modo, a douta decisão recorrida não violou o art. 7.º, nº 2 do RGCO ou qualquer outra norma de que nos cumpra conhecer, devendo portanto ser mantida nos exactos termos em que foi proferida.

A Digna Procuradora-Geral Adjunta junto desta Relação emitiu parecer sobre o recurso em presença, o qual foi notificado ao recorrente, a fim de se pronunciar, não tendo ele exercido o seu direito de resposta.

Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência.

II.Fundamentação
Nos recursos penais, o «thema decidendum» é delimitado pelas conclusões formuladas pela recorrente, as quais deixámos enunciadas supra.

Tal princípio é extensivo aos recursos interpostos de sentenças proferidas sobre impugnações judiciais de decisões administrativas condenatórias, em processos de contra-ordenação, por força do disposto no nº 1 do art. 41º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), aprovado pelo DL nº 433/82 de 27/10, que manda aplicar a esses procedimentos, subsidiariamente, as regras do processo criminal.

A sindicância da sentença recorrida, que emerge das conclusões do recorrente, centra-se nesta única questão:

- Tendo ficado provado que a obra em que se concretizou a contra-ordenação por cuja prática o arguido foi condenado foi efectuada num edifício propriedade de uma sociedade de que o arguido é sócio-gerente e foi levada a efeito por trabalhadores dessa sociedade, às ordens do arguido, e no interesse dela, seria exclusivamente a sociedade que deveria ter sido responsabilizada, atento o disposto no nº 2 do art. 7º do RGCO.

O art. 7º do RGCO é do seguinte teor:

1 - As coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas colectivas, bem como às associações sem personalidade jurídica.

2 - As pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções.

O êxito da pretensão recursiva depende em exclusivo da resposta que se dê à questão interpretativa de saber se a responsabilidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas, prevista no nº 2 do normativo agora transcrito, é cumulável com a das pessoas singulares que actue em nome delas ou se, pelo contrário, a exclui.

A tese interpretativa que serve de base à pretensão do recorrente foi já expressamente debatida na fundamentação da sentença sob recurso, nos termos a seguir reproduzidos (transcrição com diferente tipo de letra):

Dispõe o artigo 7º n.º 2 do Regime Geral das Contraordenações que "as pessoas coletivas serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções".

Alento o citado dispositivo legal, dúvidas não restam de que a sociedade representada pelo arguido deveria ser responsabilizada pela prática da presente contraordenação.

Isso significa que não poderá a mesma ser imputada ao arguido?
Não.

Como recordam António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, Notas ao regime Geral das Contraordenaçõcs c Coimas, 3' Edição, Almedina, páginas 37 e 38: "E, conquanto as pessoas coletivas sejam incapazes, por si mesmas, da atividade física que concretiza a sua vontade delitiva, a verdade é que são elas as instigadoras dessa atividade material e é a esse titulo que devem ser perseguidas e reprimidas, pelo que lhes são aplicáveis sanções pela prática de contraordenações. Prática que sendo necessariamente realizada por pessoa ou pessoas físicas, conduz a que a responsabilidade contraordenacional de qualquer ente coletivo não seja concebível independentemente da responsabilidade de uma ou mais pessoas físicas que atuem por ela, sendo a responsabilidade do ente coletivo, nesta perspectiva, uma responsabilidade reflexa, supondo um substrato humano. E daí que o ente coletivo só possa ser responsabilizado por atos contraordenacionalmente puníveis praticados pelas pessoas físicas que por ela atuam, pelo que a responsabilidade do ente coletivo está dependente (sempre) da responsabilidade contraordenacional de uma ou mais pessoas físicas.
(…)
Assim, a responsabilidade individual do agente ou dos agentes não se transfere para a pessoa coletiva, no sentido de que a responsabilidade desta não afasta a responsabilidade daquele ou daqueles pela sua atuação, bem como que tal responsabilidade subsiste, mesmo nos casos e situações em que o lipo legal contraordenacional exija que o agente pratique o facto no seu interesse e se verifique que aluou no interesse da pessoa coletiva; não se pretende pois regular aqui qualquer problema de comparticipação, mas tão só estender a punibilidade de tipos legais contraordenacionais, que suponham uma atuação no interesse próprio, mas em que o agente ou agentes atuaram no interesse do ente coletivo" (sublinhado nosso)

Ora, tendo-se provado, porquanto admitido pelo arguido, que a construção do muro foi levada a cabo por funcionários seus, sob as suas ordens e que o mesmo agia em representação e no interesse da sociedade, não restam dúvidas que o mesmo praticou igualmente a contraordenação que lhe vem imputada.

Na motivação do recurso, o arguido indica dois Arestos, sufragadores da tese interpretativa por ele propugnada, a saber, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 29/4/97, proferido no processo nº 000845 e relatado pela Exª Conselheira Dra. Isabel Martins e da Relação de Guimarães de 31/1/05, proferido no processo nº 2191/04-1 e relatado pelo Exº Conselheiro Dr. Francisco Marcolino, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, o primeiro apenas em forma de sumário e o segundo em texto integral.

Na consulta à base de dados, não encontrámos qualquer outro Aresto, que tenha tratado expressamente a questão que agora nos incumbe dirimir, embora, num Acórdão desta Relação de Évora, datado de 4/2/10, proferido no processo 573/08.0TBEVR.E1 e relatado pelo Exº Desembargador Dr. Martinho Cardoso, é feita referência à responsabilidade das pessoas colectivas e equiparadas por ilícitos contra-ordenacionais, prevista no nº 2 do art. 7º do RGCO, no sentido de ser cumulativa com a das pessoas singulares que actuem em nome delas.

Passamos a reproduzir a parte da fundamentação do Acórdão da Relação de Guimarães de 31/1/05, que se nos afigura relevante para a questão e apreço (transcrição com diferente tipo de letra):

Se bem se interpreta o citado n.º 2, a responsabilidade pelos factos cometidos pelos órgãos das pessoas colectivas ou equiparadas é exclusiva das pessoas colectivas.

Crê-se que é a única interpretação possível face à letra da lei (as pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis).

Por outro lado, o legislador quis, de forma inequívoca, restringir a responsabilidade contraordenacional às pessoas colectivas, e não aos seus órgãos.

Se assim não fosse, o DL 433/82 teria de ter uma norma paralela à do art.º 12º do C. Penal ou, a título de exemplo, à do art.º 2º do DL 28/84, de 20 de Janeiro, ou à do art.º 6º do RGIT (argumento utilizado pelo Sr. Juiz, mas para cujos crimes fiscais existe norma expressa) que “estendem” a responsabilidade ao próprio membro do órgão.

Só por força de tais preceitos legais é possível estender a autoria aos titulares dos órgãos. Outra interpretação, porque extensiva para efeitos de determinar a autoria, seria perigosa, se não mesmo proibida.

É verdade que o art.º 32º do RGCO estatui:

“Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal”.

Entende-se que, neste domínio, não há qualquer lacuna, como se referiu.

Antes, a vontade do legislador é no sentido da aludida restrição e, por isso, não há que ir buscar disposições ao Código Penal para efeitos de imputação da responsabilidade contraordenacional ao órgão da pessoa colectiva (se tal fosse legalmente possível…).

Ora, porque o arguido agiu apenas como gerente da pessoa colectiva, e no interesse desta, a contraordenação tem de ser imputada à sociedade e não ao gerente, em conformidade com o estatuído no citado n.º 2 do art.º 7º do RGCO.

Somos sensíveis ao argumento segundo o qual o normativo do RGCO, aprovado pelo DL nº 433/82 de 27/10, não enferma de lacunas que necessitem de ser colmatadas com recurso às normas do Código Penal, como prevê o art. 32º daquele Regime, naquilo que diz respeito à responsabilização de pessoas colectivas e entidades equiparadas, pela prática de contra-ordenações.

O texto do art. 7º do RGCO permanece inalterado desde a entrada em vigor do DL nº 433/82 de 27/10.

É sabido que este diploma legal foi parte de um movimento de reforma legislativa, que teve como principal aspecto a publicação do DL nº 400/82 de 23/9, o qual colocou em vigor o novo Código Penal, para substituir o anterior que datava de 1886.

Como pode verificar-se, o nº 1 do art. 7º do RGCO colocava as pessoas colectivas e entidades a elas equiparadas tendencialmente «em pé de igualdade» com as pessoas singulares, para o efeito de responderem por ilícitos contra-ordenacionais.

Diferentemente, o art. 11º do CP de 1982 estatuía:

Salvo disposição em contrário, só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal.

Como pode verificar-se, no que se refere à responsabilização de pessoas colectivas e entidades equiparadas, o RGCO foi muito mais inovador do que o CP de 1982, que entrou em vigor sensivelmente ao mesmo tempo e que se manteve fiel, no essencial ao velho princípio «societas delinquere non potest».

Nesta ordem de ideias, deverá entender-se que o normativo do RGCO, em matéria de responsabilidade de entidades colectivas, é auto-suficiente em relação ao clausulado do CP, por ter inovado onde o outro não o fez, pelo que não pode existir, nesta parte lacuna de lei que careça de ser integrada.

Como tal, deve considerar-se inaplicável aos ilícitos de mera ordenação social, que se rejam pelo RGCO, o art. 12º do CP, cujo teor também permanece inalterado desde 1982, salvo detalhes inócuos:

1 - É punível quem age voluntariamente como titular de um órgão de uma pessoa colectiva, sociedade ou mera associação de facto, ou em representação legal ou voluntária de outrem, mesmo quando o respectivo tipo de crime exigir:

a) Determinados elementos pessoais e estes só se verificarem na pessoa do representado; ou

b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado.

2 - A ineficácia do acto que serve de fundamento à representação não impede a aplicação do disposto no número anterior.

Ora, o RGCO não contém em si qualquer «norma de extensão», que preveja, no contexto das contra-ordenações, a responsabilização, cumulativa com a das entidades colectivas, dos indivíduos que actuem em representação delas.

Na falta de semelhante normativo, teremos de concluir que, nos casos previstos no nº 2 do art. 7º do RGCO, as actuações dos «órgãos» da pessoa colectiva apenas responsabilizam esta e não as pessoas individuais intervenientes.

Retornando ao caso concreto, verifica-se que, em face dos pontos 4, 5 e 6 da matéria de facto provada, a obra (construção de um muro), em que se concretizou contra-ordenação pela qual o ora recorrente foi condenado, foi levada a efeito num prédio que se encontra registado a favor de uma sociedade comercial de que o arguido é sócio gerente, por trabalhadores ao serviço da sociedade, em cumprimento de ordens do arguido, enquanto representante da mesma e no interesse dela.

Nesta conformidade, de acordo com a interpretação que perfilhamos do nº 2 do art. 7º do RGCO, a responsabilidade pela contra-ordenação em causa incumbe exclusivamente à referida sociedade comercial e não ao arguido, enquanto pessoa singular.

Por conseguinte, terá o recurso de proceder, impondo-se a absolvição do arguido.

III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida, absolvendo o arguido da contra-ordenação por que foi condenado.

Sem custas.
Notifique.
Évora,12/7/16 (processado e revisto pelo relator)

(Sérgio Bruno Póvoas Corvacho)

(João Manuel Monteiro Amaro)