Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
442/18.5T8STB.E1
Relator: CONCEIÇÃO FERREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Os tribunais administrativos e fiscais são os competentes para apreciar questões relativas à responsabilidade civil extracontratual da Administração em geral, quer os actos sejam praticados no âmbito de um exercício de gestão pública ou de gestão privada, uma vez que o critério assente em actos de gestão pública ou de gestão privada usado na vigência do ETAF de 1984 deixou de relevar decisivamente no âmbito do novo ETAF, aprovado pela Lei 13/2002.
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 442/18.5T8STB.E1 (2ª Secção Cível)



ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal (Juízo Local Cível de Setúbal - Juiz 2), corre termos ação declarativa de condenação pela qual (…) demanda o ESTADO PORTUGUÊS, ADMINISTRAÇÃO REGIONAL DE SAÚDE DE LISBOA E VALE DO TEJO I.P., AGRUPAMENTO DOS CENTROS DE SAÚDE DA ARRÁBIDA, (…), (…), (…) ENTRANCE SYSTEMS PORTUGAL, S.A. (anteriormente … – ENTREMATIC PORTUGAL), (…) e (…), pedindo a condenação dos réus no pagamento da quantia de € 39.461,37.
Como sustentáculo do peticionado, alegou em síntese, que ao entrar no Centro de Saúde de São Sebastião em Setúbal, onde iria realizar uma consulta, foi atingida pelo movimento da porta automática daquele Centro, o que lhe provocou diversos ferimentos e danos físicos, nomeadamente fratura craniana e do fémur, com consequências irreversíveis.
Citados os réus, vieram contestar, a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo IP, (…) Entrance Systems Portugal, SA, (…), (…) e (…) e, além do mais, invocara exceção dilatória de incompetência material do tribunal de jurisdição comum, entendendo dever o presente litígio correr termos no tribunal administrativo e fiscal.
No exercício do direito ao contraditório, veio a autora pugnar pela improcedência da exceção invocada, por entender serem competentes os tribunais judiciais.
Por despacho de 26 de Março de 2019 foi declarada a incompetência, em razão da matéria, para apreciação dos autos, do Juízo Local Cível de Setúbal por ser competente o tribunal de jurisdição administrativa, absolvendo-se os réus da instância.
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Inconformada, veio a autora interpor o presente recurso e apresentar as respetivas alegações, terminando por formular as conclusões que se passam a transcrever:
i. O pedido formulado pela A. contra os Réus não respeita a qualquer relação jurídica administrativa;
ii. O acidente em causa entronca numa responsabilidade extracontratual de índole privada, pelo que se afigura um litígio de direito privado, ainda que com alguns elementos públicos, atenta a natureza da demandante, estando, por conseguinte fora do âmbito da competência dos tribunais administrativos.
iii. O pedido da A. tem como causa de pedir um acidente que lhe causou danos e pelos quais responde os Réus deverão responder solidariamente.
iv. Para conhecer deste pedido atenta a sua causa de pedir e a qualidade em que a A. intervém na ação é competente o tribunal comum e não o tribunal administrativo.
v. Os Réus reconheceram a existência do acidente embora, declinem a responsabilidade pelo mesmo;
vi. A sentença recorrida ao absolver da instância todos os réus com a chamada por o tribunal ser incompetente em razão da matéria é ilegal.
vii. Assim ocorre porque a sentença viola, entre outros, os artigos 66º e 96º, n.º 1 e 97º do C.P.C. e artigo 4°, nº 1, al. g) dos Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que são interpretados pela jurisprudência de modo diverso daquele que foi feito naquela;
viii. Deve, por isso, ser revogada a sentença e declarar-se que o tribunal a quo é o competente.

AARSLVT veio contra alegar defendendo a manutenção do decidido.

Cumpre apreciar e decidir

O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso.

Tendo por alicerce as conclusões, a única questão que importa apreciar circunscreve-se em saber, tendo em conta o objeto na presente ação e as partes nela referenciadas, se a competência para o seu conhecimento, em razão da matéria, é atribuída, por lei, aos tribunais comuns ou aos tribunais administrativos.

Os factos a ter em conta para apreciação das questões são, essencialmente, os elencados no relatório que nos dispensamos de reproduzir, de novo.
Conhecendo da questão
Desde já, diremos, que perfilhamos do entendimento proferido pela M.ª Juiz do Tribunal “a quo”, de que no caso em apreço, e no que concerne ao réu Estado Português, Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo I.P., deva ser atribuída aos tribunais administrativos, competência em razão da matéria para julgamento da causa, porque, embora sejam demandados conjuntamente outros réus, tal não influi na atribuição da competência material, como as normas inerentes definem e atribuem tal competência.
A respeito da questão da competência material convirá dizer, antes de mais, que os tribunais judiciais gozam de competência genérica – o que significa que são competentes para o conhecimento de todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (artºs 211º, da Constituição da República Portuguesa e 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais).
Neste sentido dispõe ainda o art.º 64º do CPC que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, designadamente à jurisdição administrativa e fiscal que é exercida pelos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19/02, na redação da Lei nº 107-D/2003, de 31/12.
Assim, não cabendo uma causa na competência de outro tribunal, será a mesma da competência residual do tribunal comum.
Para apreciar a competência deste Tribunal em razão da matéria, há que ter em primeira linha de conta, conforme uniformemente tem sido entendimento da Jurisprudência, ao pedido e à causa de pedir, ou seja, há que atender há natureza da relação jurídica material em apreço segundo a versão apresentada em juízo pelo autor atendendo-se ao direito de que o mesmo se arroga e que pretende ver judicialmente protegido.
É pacífico o entendimento de que o pressuposto processual da competência se determina em função da ação proposta, tanto na vertente objetiva, atinente ao pedido e à causa de pedir, como na subjetiva, respeitante às partes (entre muitos outros, cfr. os Ac. do Tribunal de Conflitos de 28-09-2010, 20-09-2011, 17-06-2010 e 10-07-2012, in www.dgsi.pt), importando essencialmente para o caso ter em consideração a relação jurídica invocada.
Efetivamente, a atribuição da competência em razão da matéria será daquele tribunal que estiver melhor vocacionado para apreciar a questão colocada pelo autor, projetando um critério de eficiência que só poderá ser aferido em função do pedido deduzido e da causa de pedir, donde, portanto a necessidade de verificar se existe norma que atribua a competência a um tribunal especial e, não havendo, caberá ela subsidiária e residual aos designados tribunais comuns (Ac. do STJ de 12-02-2009, in www.dgsi.pt).
Os tribunais administrativos têm a sua competência limitada às causas que lhe são especialmente atribuídas nos termos do artº 212º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa e artº 1ºdo ETAF, e a competência cinge-se ao julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
Nos termos do estatuído na alínea g) e h) do nº 1 do artº 4º do ETAF em vigor desde 1 de Janeiro de 2004, compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa.
Ora, desde a entrada em vigor da citada lei, todas as ações por responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público passaram a ser da competência dos tribunais administrativos. Aliás, tal decorre das Linhas Gerais da Reforma do Contencioso Administrativo. (v. Ac. do STJ de 27-09-2007).
Na verdade, como se salienta no Ac. do STA de 20/09/2012, disponível in www.dgsi.pt, seguindo os ensinamentos de Sérvulo Correia, in Direito do Contencioso Administrativo I, pag.714, a inclusão na competência material dos tribunais administrativos o conhecimento de questões em que haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa justifica-se, por uma incidência subjetiva, independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos.
Constata-se, assim, como refere Carlos Alberto Fernandes Cadilha in, Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Anotado, 26 - 27, ter o ETAF (aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19.02) operado «um alargamento da competência dos tribunais administrativos em matéria de responsabilidade civil das pessoas coletivas de direito público através de três diferentes vias: (a) uniformizou o âmbito da jurisdição no que se refere à responsabilidade decorrente da atividade administrativa, passando a atribuir aos tribunais administrativos as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, sem qualquer prévia distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada (artigo 4º, nº1, alínea g), segmento inicial); (b) passou a incluir no âmbito da jurisdição administrativa a responsabilidade por danos resultantes do exercício da função legislativa, bom como do funcionamento da administração da justiça (…); (c) passou igualmente a abarcar na competência dos tribunais administrativos a «responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado». (…).
Assim, podemos concluir que só os tribunais administrativos e fiscais são os competentes para apreciar todas as questões relativas à responsabilidade civil extracontratual da Administração em geral, quer os atos sejam praticados no âmbito de um exercício de gestão pública ou de gestão privada, uma vez que o critério assente em atos de gestão pública ou de gestão privada usado na vigência do ETAF de 1984 deixou de relevar decisivamente no âmbito do novo ETAF, aprovado pela Lei 13/2002.
Neste sentido se tem pronunciado a jurisprudência, citando-se, a título meramente enunciativo, os Acs. do STJ, de 11/10/2005, proc.05B2294; do T.R.L. de 17/05/2018, proc.19031/16.2T8LSB.L1-2; do T.R.E. de 11/04/2019, proc. 31/17.1T8SLV.E1.
Ora, atento o alegado na petição inicial, está em causa apurar a responsabilidade civil extracontratual emergente de danos materiais sofridos pela autora, em consequência de acidente, ocorrido nas instalações do Centro de Saúde de S. Sebastião, ao Vale do Cobro, em Setúbal, onde se refere que é responsável a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, I.P. (ARSLVT).
Ora, sendo a ré ARSLVT, uma pessoa coletiva de direito público e pretendendo a autora acionar a sua responsabilidade civil extracontratual, é a jurisdição administrativa a competente para conhecer da respetiva ação. (v. Ac do STA de 26/09/2007, in www dgsi.pt e Ac. do Tribunal de Conflitos de 17/06/2010; Mário Aroso de Almeida in O Novo Regime de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, 99; Santos Serra in A Nova Justiça Administrativa e Fiscal Portuguesa, comunicação efetuada em 28 de Agosto de 2006, no Congresso Nacional e Internacional de Magistrados, VI Assembleia da Associação Ibero Americana dos Tribunais de Justiça Fiscal e Administrativa, realizada na Cidade do México; Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Almeida in Código do Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, vol. I, 59; Pedro Cruz e Silva in Breve estudo sobre a competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais em matéria de responsabilidade civil e de contratos, disponível in www.verbojuridico.net).
Tendo sido também demandados outros réus que não exercem poderes de autoridade pública, são também competentes os Tribunais Administrativos para apreciar o litígio, conforme configurado pela autora.
Pois, o Dec-Lei nº 214-G/2015, introduziu no artº 4º do ETAF um novo nº 2 com a seguinte redação: “Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.”
Conforme se pondera no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 22/03/2018, proc. 056/17, “a competência da jurisdição administrativa emergente desta norma tem como pressuposto as situações de responsabilidade solidária entre entidades públicas e privadas pela reparação de danos para cuja produção tenham conjuntamente contribuído, ou que tenham assumido contratualmente a obrigação de reparação desses danos”.
Ora, a situação trazida a juízo pela autora/recorrente, é precisamente, a de concorrência de entidades públicas e particulares na produção de danos cujo ressarcimento a autora visa.
Concluindo-se, assim, pela competência material dos Tribunais Administrativos, não merece censura o decidido, que conhecendo de exceção dilatória de incompetência absoluta do mesmo Tribunal, absolveu os réus da instância.
Nestes termos, a decisão recorrida é de manter, improcedendo, assim as conclusões formuladas, não havendo violação dos preceitos legais cuja violação foi invocada.

DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
Sem custas, atendendo a que a apelante goza do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo.

Évora, 11 de Julho de 2019
Maria da Conceição Ferreira
Rui Manuel Duarte Amorim Machado e Moura
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes