Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3465/20.0T8FAR.E1
Relator: FLORBELA MOREIRA LANÇA
Descritores: INTERPRETAÇÃO DE DECLARAÇÕES NEGOCIAIS
CONFISSÃO
CONTRADITÓRIO
PODERES DO JUIZ
DOMÍNIO HÍDRICO DO ESTADO
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
I.A interpretação de declarações vertidas em actos processuais deve, por força do disposto no art.º 295.º do Cod. Civil, reger-se segundo as regras enunciadas no art.º 236.º e no art.º 238.º, ambos do Cod. Civil, o que impõe, ademais, a necessidade de a interpretação encontrar algum arrimo no texto.
II. A confissão deve ser inequívoca (n.º 1 do art.º 357.º do Cod. Civil) e, como resulta do art.º 352.º do Cod. Civil, a noção de confissão tem por referência factos concretos da vida real, despidos de qualquer roupagem jurídica que se lhes possa associar.
III. A alteração da causa de pedir consubstancia-se na introdução de factos que delineiam uma relação jurídica diversa daquela que foi inicialmente vertida na petição inicial.
IV. Como deriva do art.º 294.º do CPC é essencial que a alteração da causa de pedir apresente um nexo causal com a confissão efectuada pelo Réu na contestação.
V. Este mecanismo processual não se destina a suprir falhas ou insuficiências de alegação. E, de acordo com o princípio dispositivo (n.º 1 do art.º 5.º do CPC), é sobre o A. que impende o ónus de, no momento para tanto apropriado – a redacção da petição inicial -, alegar os factos essenciais integrantes da causa de pedir
VI. O dever a que alude a al. b) n.º 1 do art.º 590.º tem em vista a existência de deficiências formais na formulação do pedido, não contemplando, como deriva do respeito devido à isenção e equidistância que o tribunal deve manter em relação às partes e aos princípios da auto-responsabilização das partes pela condução do litígio e do dispositivo, o aperfeiçoamento do petitório àquele que o julgador considera ser o mais conforme com a realidade fáctica ou com o enquadramento jurídico que tem como aplicável.
VII. O julgador não se acha limitado pelas alegações das partes no que tange à indagação, interpretação e aplicação de regras de direito. Assim se enuncia o princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos trazidos pelas partes – e que se exprime no brocado latino “Iura novit curia” –, actualmente consagrado no n.º 3 do art.º 5.º do CPC. Continua, pois, a prevalecer a máxima “da mihi factum dabo tibi ius” (“dá-me os factos e dou-te o direito”).
VIII. Sendo correntemente tido como uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão (cfr. art.º 204.º da CRP), tal princípio deve-se também ter como tributário do princípio dispositivo vigente no processo civil (serão as partes a introduzir na causa os factos e o conhecimento oficioso do direito cingir-se-á sempre ao objecto da causa).
IX. O princípio a que vimos fazendo referência deve ser concatenado com o princípio do contraditório e, em particular, com o disposto no n.º 3 do art.º 3.º do CPC, onde se consagra a proibição da prolação de decisões surpresa ou “decisões solitárias do juiz”.
X. As decisões-surpresa são apenas aquelas que assentam em fundamentos que não foram anteriormente ponderados pelas partes ou seja aquelas em que se detecte uma total desvinculação da solução adoptada pelo tribunal relativamente ao alegado pelas partes.
XI. Tendo a parte tido oportunidade de responder às alegações fáctico-jurídicas vertidas na contestação e posto que, no essencial, a decisão recorrida se louvou em idênticas considerações, não se vê como se possa considerar que foi preterido o exercício do contraditório.
XII. O correcto entendimento do princípio do contraditório não reclama que, a todo o tempo, o tribunal ausculte as partes sobre a decisão a tomar, só o devendo fazer quando preveja que esta se filiará em fundamentos fácticos ou jurídicos que aquelas não anteviram nem poderiam antever.
XIII. Ao conceito de domínio público hídrico, que remonta ao Decreto Real de 31 de Dezembro de 1864 e foi sendo replicado e actualizado pelos sucessivos diplomas posteriormente publicados, entre os quais, o Dec.-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro e a actual Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro, preside o propósito de acautelar o reconhecido interesse público dos bens contemplados nesse domínio, com o expresso propósito de os afastar do comércio jurídico.
XIV. A esse conceito subjaz uma presunção ilidível de dominialidade dos terrenos que constituem o leito e a margem das águas dominiais da sua jurisdição.
XV. Permite-se que terrenos incluídos na respectiva área possam ser utilizados por sujeitos privados ou, até, que possam ser objecto de propriedade privada. Sem embargo, a utilização/propriedade privatística depende do reconhecimento judicial (mediante acção judicial a intentar nos termos dos n.os 1 a 4 do art.º 15.º da Lei 54/2005) ou de um acto de desafectação do domínio público hídrico nos termos da lei (al. a) do n.º 5 e art.º 19.º do mesmo diploma). (sumário da relatora)
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


I.Relatório
V… intentou acção declarativa, com processo comum, contra S…, J… e Si… pedindo que:
a) Se reconheça que a A. adquiriu, por usucapião, a propriedade do prédio urbano constituído pela casa n.º … da ilha da Culatra, composto por dois quartos com casa de banho (suite), cozinha e sala, telhado e terraço de cobertura; e área descoberta situada na parte frontal do edifício, com alegretes, área pavimentada e poço, com a área total de 127 m2, localizada na latitude 36.994568 e longitude - 7.841272, junto à Igreja da Culatra, com o número de construção/porta …, confrontando a norte com área descoberta nas traseiras da Igreja da Culatra; a sul com passagem. a nascente com edifício vizinho e a poente com edifício vizinho e área descoberta, sito na Ilha da Culatra, da União das Freguesias da Sé e de São Pedro, do concelho de Faro;
b) Sejam os RR. condenados a entregar imediatamente à A. o imóvel referido em a):
c) Sejam os RR. solidariamente condenados no pagamento de quantia não inferior a € 100,00 diários por cada dia de atraso na entrega do imóvel à A., a título de sanção pecuniária compulsória.
Fundamenta tais pedidos, em síntese, no facto de ter adquirido, em 28.12.2018 a casa em causa, por doação verbal feita por J… que, em 1976, na sequência de ocupação da parcela de terreno, construiu a referida casa, à vista de todos, sem qualquer oposição e que a passou a utilizar como sua, tendo, entretanto, doado a mesma à A..
Mais refere que a ocupação da parcela de solo e a realização da construção foi empreendida pelo J… ao arrepio de qualquer concessão de direito público, ou licença/autorização administrativa para construir, podendo ser classificada, nessa perspectiva, como uma construção ilegal e, por ter sido edificada sobre terrenos públicos sem a devida concessão, a transmissão da propriedade ou de quaisquer direitos reais menores, quer sobre o imóvel quer sobre parte deste não pode ser realizada por intermédio de escritura pública ou documento particular autenticado, como a lei impõe para a transmissão da propriedade sobre imóveis e para constituição e transmissão de quaisquer outros direitos reais menores, consequência do facto de, em geral, ser considerado que a parcela de solo ocupada se insere no domínio público do Estado Português e assim se encontrar fora do comércio, para além de que o J… sabia que não podia transmitir qualquer posição que tinha sobre o imóvel por escritura pública ou documento particular autenticado, tendo a transmissão de ser realizada por acordo meramente verbal e/ou por escrito particular sempre acompanhado da tradição material ou simbólica da coisa.
Os RR., pessoal e regularmente citados, apresentaram contestação, na qual, em suma, invocam a ilegitimidade passiva do 3.° Réu e diversas excepções de direito material, entendendo que a A. não pode adquirir por usucapião um imóvel situado em área do domínio público marítimo, para além de que a doação verbal de imóvel é nula, impugnando, ainda, a generalidade dos factos alegados, concluindo pela improcedência da acção.
Exercendo o contraditório acerca das excepções deduzidas, a A. pugnou pela sua improcedência, salvo a da ilegitimidade do R. Si….
A A. requereu a alteração da causa de pedir, nos seguintes termos:
“V…, A. nos autos à margem identificados, tendo aceite expressamente factos alegados na contestação dos RR. que constituem confissão, vem nos termos do disposto no art.º 265.º, n.º 1 C.P.C. requerer a alteração da causa de pedir, o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
Para além do mais, no art.º 30.º do articulado apresentado em 15.04.2021, a A. aceitou expressamente o alegado pelos RR. no art.º 55.º da contestação e o documento n.º 2 junto com a contestação, ou seja, a A. aceitou expressamente a afirmação realizada pelos RR. de que o J…, não construiu o imóvel aqui em causa, mas antes, o comprou através do doc. 2 junto com a contestação.
Como se verifica da leitura da p.i., o pedido assenta em parte em facto diferente (ou oposto), i.e., no facto de que foi o J… a ocupar a parcela do solo e a construir o edifício aqui em causa.
Importa assim proceder á alteração da causa de pedir nos presentes autos, por um lado, expurgando a alegação dos factos relativos à ocupação da parcela de terreno pelo J… e substituindo esta pela alegação de factos relativos à transmissão da posse da coisa; e por outro lado, retirar as devidas ilações de facto daquela transmissão da posse.
A alteração da causa de pedir importa a alteração do contido nos art.ºs 1.º, 2.º, 3.º, 7.º (que é eliminado), 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 14.º, 15.º, 17.º, 18.º, 19.º (redação inovadora), 20.º (anterior redação do art.º 20.º da p.i.), 69.º e 71.º da p.i..
As alterações à causa de pedir requeridas pela A. são as seguintes:
1.º - No dia 15 de Abril de 1977, por contrato de compra e venda verbal, J…, Jo…) adquiriu todos os poderes de facto correspondentes ao de proprietário sobre o edifício pertença dos herdeiros de Jo…, situado na Ilha da Culatra, concelho de Faro a seguir descrito, tendo pago aos transmitentes o preço de 40.000$00, cerca de € 200,00 (duzentos euros) na moeda atual, ato que foi acompanhado da entrega da coisa pelos transmitentes ao J… e da emissão por aqueles do documento escrito, em papel selado, outorgado no mesmo dia, na Fuzeta junto pelos RR. como doc. 2, sendo o edifício composto por construção térrea, sendo que, a área de solo não edificada, frontal ao edificado, é destinada a logradouro, encontrando-se delimitada por muro circundante em alvenaria de tijolo.
2.º - O edifício assim adquirido pelo J… tem a forma retangular, localiza-se na latitude 36.994568 e longitude -7.841272, tem a área total de 127m2 (cento e vinte e sete metros quadrados) – doc. 1.
3.º - O edifício assim adquirido pelo J… é composto por dois quartos com casa de banho (suite), cozinha e sala, telhado e terraço de cobertura; a área descoberta situada na parte frontal do edifício é composta por alegretes, área pavimentada e poço, sendo doravante designado abreviadamente por imóvel (expressão utilizada em sentido comum e não técnico jurídico) e também por Construção n.º ….
7.º - Eliminado.
8.º - Desde que adquiriu a Construção n.º … foi até à atualidade, foi o J… que, com exclusão de outrem (quer fossem entes públicos ou privados), quem, de forma ininterrupta, exerceu todos os poderes de facto sobre todo o imóvel, pois foi aquele:
a. Eliminado.
b. Mantém redação;
c. Mantém redação;
d. Mantém redação;
e. Mantém redação;
f. Mantém redação;
g. Mantém redação;
h. Mantém redação;
9.º - Ao atuar da forma descrita, o José da Câmara fazia-o com a intenção e.convicção de atuar como proprietário do imóvel que havia adquirido nos termos sobreditos.
10.º - Desde o dia 15.04.1977 que o J… se intitulou como proprietário do imóvel perante todos, erga omnes, pessoas físicas e perante as entidades administrativas com jurisdição no local (doc. 2).
11.º - O J… foi desde o dia 14.04.1977 reputado por todos os seus vizinhos no local, por todos os seus amigos e conhecidos e ainda publicamente por todos como sendo o único dono, único possuidor e o único proprietário da Construção n.º … da Ilha da Culatra.
12.º - Todos os atos de utilização do imóvel foram praticados pelo J…, pessoalmente, à vista de todos, cidadãos comuns e autoridades policiais e administrativas, sem que alguém ou alguma entidade pública ou privada alguma vez se tenha oposto à conduta daquele fosse porque forma fosse.
14.º - Considerando que a atividade levada a cabo pelo J… foi a ocupação/utilização de um edifício circundado por muro construídos em alvenaria de tijolo, sendo o edifício e o muro visíveis desde o primeiro momento em que começaram a ser construídos por todos quantos junto dele se assomaram, situação que se manteve depois de concluída até à atualidade, necessário é concluir que a situação de facto sempre foi pública.
15.º - O J… ignorava ao adquirir a Construção n.º 250 que lesava o direito de quem quer que fosse.
17.º - Face ao descrito, o J… tem de ser havido como o dono e legitimo possuidor do imóvel sito na Ilha da Culatra, Núcleo da Culatra com o n.º …, desde 15.04.1977 nos termos descritos.
18.º - A aquisição e a ocupação/utilização da Construção n.º 250 foi realizada pelo J… ao arrepio de qualquer concessão de direito público, ou licença/autorização administrativa , podendo ser classificada, nessa perspetiva, como uma construção ilegal.
19.º - Por ter sido edificada sobre terrenos públicos sem a devida concessão, a transmissão da propriedade ou de quaisquer direitos reais menores, quer sobre o imóvel quer sobre parte deste não pode ser realizada por intermédio de escritura pública ou documento particular autenticado, como a lei impõe para a transmissão da propriedade sobre imóveis e para constituição e transmissão de quaisquer outros direitos reais menores (art.º 875.º C.C.), consequência do facto de, em geral, ser considerado que a Construção n.º … se encontra construída em solo do domínio público do Estado Português e assim se encontrar fora do comércio (art.º 202.º, n.º 2 C.C.).
20.º - O J… sabia deste facto, pelo menos, desde o dia 15.04.1977, data em que adquiriu o imóvel por tradição material e simbólica da coisa e recebeu dos transmitentes a declaração escrita consubstanciada no doc. 2 junto com a contestação (artigo introduzido).
21.º - O J… sabia que não podia transmitir qualquer posição que tinha sobre o imóvel por escritura pública ou documento particular autenticado. Sabia que qualquer transmissão onerosa ou gratuita que quisesse realizar, tal como na aquisição que efetuou, teria de ser realizada por acordo meramente verbal e/ou por escrito particular sempre acompanhado da tradição material ou simbólica da coisa (redação do anterior art.º 20.º da p.i.).
69.º - Para os efeitos do n.º 1 do art.º 1256.º C.C., a A. declara juntar à sua posse de proprietária e subsidiariamente de nua proprietária a posse de proprietário mantida pelo J… desde 15.04.1977, pelo que a A. é possuidora do edifício aqui em causa com ânimo proprietária (e subsidiariamente de nua proprietária) há 44 anos.
71.º - A A. expressamente aqui invoca esta faculdade, pelo que tem de ser declarada e reconhecida como proprietária e legitima possuidora da Construção n.º … desde 15.04.1977, tantos anos quantos a Construção n.º … esteve na posse do J… e na sua. Caso se entenda que o J… reservou para si o usufruto da coisa, a A. tem de ser declarada e reconhecida como nua proprietária e legitima possuidora enquanto tal da Construção n.º … igualmente desde 15.04.1977.
Se renumerada a p.i., a eliminação do art.º 7.º da p.i. acarreta a renumeração dos artigos seguintes até ao artigo 19.º. A introdução de um art.º 19.º com uma nova redação, repõe daí em diante a numeração dos artigos constantes da p.i..
Entende-se ser mais adequado aos ulteriores termos do processo que se mantenha, na medida do possível, a ordem a numeração dos artigos constante da p.i. do que, manter a numeração original até ao art.º 19.º e dai em diante, alterar todos os artigos até final, por via da introdução de uma alegação nova, no lugar do art.º 20.º.
Com o propósito de minimizar o impacto da alteração da causa de pedir nos ulteriores termos do processo, a A. junta em anexo um texto atualizado da p.i., com as alterações acima indicadas, com adaptação de numeração de artigos entre o art.º 7.º (eliminado) e o 19.º (introduzido) e dai em diante mantendo a numeração original da p.i.
Nestes termos e nos demais de direito doutamente supríveis, deve a alteração da causa de pedir acima especificada ser admitida, e ordenados os ulteriores termos do processo até final.
E. D.”
Findos os articulados, o Tribunal dispensou a realização da audiência prévia e, entendendo que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa, foram as partes notificadas nos termos dos art.ºs 3.°, n.º 3 e 591°, n.º 1, al. b), 2.ª parte do CPC, para se pronunciarem, tendo apenas a A. emitido pronúncia no sentido que, face ao alegado nos artigos 50° e seguintes da contestação e à impugnação de documentos que os mesmos realizaram, resultam controvertidos factos essenciais para a correta decisão da causa, devendo a acção prosseguir para julgamento.
Foi então proferido despacho que não admitiu a alteração da causa pedir, com os seguintes fundamentos:
“A Autora veio requerer a alteração da causa de pedir, invocando confissão feita pelos Réus e aceite por si, nos termos do artigo 265°, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Os Réus vieram invocar a inadmissibilidade dessa alteração dessa causa de pedir, por não resultar de confissão feita por si.
Na presente ação, a Autora pretende que lhe seja reconhecida a propriedade de uma casa sita numa ilha barreira adquirida por usucapião e fundamentou o seu pedido, em síntese, no facto de ter adquirido, em 28-12-2018 a casa em causa, por doação verbal feita por J… que, em 1976, na sequência de ocupação da parcela de terreno, construiu a referida casa, à vista de todos, sem qualquer oposição e que a passou a utilizar como sua, tendo, entretanto, doado a mesma à Autora.
Mais refere que a ocupação da parcela de solo e a realização da construção foi empreendida pelo J… ao arrepio de qualquer concessão de direito público, ou licença/autorização administrativa para construir, podendo ser classificada, nessa perspetiva, como uma construção ilegal e, por ter sido edificada sobre terrenos públicos sem a devida concessão, a transmissão da propriedade ou de quaisquer direitos reais menores, quer sobre o imóvel quer sobre parte deste não pode ser realizada por intermédio de escritura pública ou documento particular autenticado, como a lei impõe para a transmissão da propriedade sobre imóveis e para constituição e transmissão de quaisquer outros direitos reais menores, consequência do facto de, em geral, ser considerado que a parcela de solo ocupada se insere no domínio público do Estado Português e assim se encontrar fora do comércio, Pra além de que o J… sabia que não podia transmitir qualquer posição que tinha sobre o imóvel por escritura pública ou documento particular autenticado, tendo a transmissão de ser realizada por acordo meramente verbal e/ou por escrito particular sempre acompanhado da tradição material ou simbólica da coisa.
Na sua contestação, os Réus Invocam, entre outros factos, que J… não construiu o imóvel aqui em causa, mas antes, em 15 de Abril de 1977, por contrato de compra e venda verbal, adquiriu todos os poderes de facto correspondentes ao de proprietário sobre o edifício pertença dos herdeiros de Jo…, situado na Ilha da Culatra, concelho de Faro, tendo pago aos transmitentes o preço de 40.000$00, cerca de € 200,00 na moeda atual, ato que foi acompanhado da entrega da coisa pelos transmitentes ao J… e da emissão por aqueles do documento escrito, em papel selado, outorgado no mesmo dia, na Fuzeta junto pelos RR. como doe. 2, sendo o edifício composto por construção térrea, sendo que, a área de solo não edificada, frontal ao edificado, é destinada a logradouro, encontrando-se delimitada por muro circundante em alvenaria de tijolo e é com base nesta alegação que a Autora pretende a alteração da causa de pedir.
Ora, não houve qualquer confissão dos factos alegados pela Autora na petição inicial na contestação, mas sim os Réus apresentaram uma versão diferente da alegação constante da petição inicial relativa à forma como J…, a quem a Autora alega ter adquirido verbalmente a casa em causa nos autos, adquiriu tal imóvel, pelo que não admito a aliteração da causa de pedir, por não estarem verificados os pressupostos previstos no artigo 265°, n.º 1 do Código de Processo Civil.
(…)”.
Foi, de seguida, proferido saneador-sentença, que julgando a acção improcedente absolveu os RR., S… e Ju…, dos pedidos contra si formulados pela A., V….
A A., não se conformando com o despacho acima transcrito e com o saneador-sentença prolatado, deles interpôs recurso, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
A. O alegado pelos RR. no art.º 55.º da contestação consubstancia na economia da ação uma confissão porquanto constituindo a forma de aquisição da posse do J… uma questão à partida controvertida, que os RR. teriam em princípio do interesse em não admitir ou em dificultar a prova da A., a admissão por estes de uma forma concreta de aquisição da posse por aquele, mesmo que diferente da alegada na p.i. constitui claramente um facto que lhes é desfavorável porque por sua vez favorece a posição da A.
B. Aceite especificadamente esse facto de natureza confessória (art.º 352.º C.C.) pela A., tinha esta a faculdade de alterar a causa de pedir anteriormente alegada nos termos do art.º 265.º, n.º 1 C.P.C., o que esta fez, tempestivamente, através do requerimento apresentado em 19.04.2021.
C. Ao indeferir a alteração da causa de pedir requerida pela A. com fundamento em daquele art.º 55.º da contestação não resulta qualquer confissão dos factos alegados pela Autora na petição inicial, o Tribunal recorrido violou o disposto no art.º 265º, n.º 1 do C.P.C., devendo em consequência, esta decisão ser revogada e substituída por outra que admitida a alteração da causa de pedir requerida pela A..
D. A matéria em causa no art.º 55.º da contestação, aceite expressamente pela A. e determinante da alteração da causa de pedir revela-se da maior importância para o adequado julgamento da causa porquanto revela precisamente o ponto fulcral do pedido da A., o de que o J… havia adquirido não só a posse mas também os direitos sobre o imóvel, no ano de 1977, aspeto especialmente revelador do seu animus, que não pode deixar de ser o de correspondente ao de proprietário da construção n.º 250, o que deveria ter sido dado como provado.
E. O Tribunal ficou aquém do que lhe competia, na seleção dos factos provados.
Com efeito:
E.1. deveria ter dado como provado por acordo das partes o vertido no art.º 55 da contestação, facto que se entende ter especial relevância para a decisão da causa, nomeadamente para prova do momento e modo da aquisição da posse pelo J… e se concluir pelo conteúdo do corpus e do seu animus mas principalmente para prova do alegado nos art.ºs 20.º a 24.º da p.i.
E.2. deveria ter dado como provado por acordo das partes os factos constantes da p.i. e expressamente admitidos pelos RR., como sejam os constantes dos art.ºs 2.º, 4.º a 6.º, 8.º, 19.º, 45.º, 48.º a 51, 55.º e 56.º.
E.3. não devia ter ignorado a declaração constante do doc. 4 junto com a p.i., reproduzida no art.º 36.º b) da p.i..
E.4. declarou que para a formação da sua convicção contribuíram os documentos juntos aos autos não impugnados pelas partes ou que constituem documento autêntico, sem contudo especificar quais relativamente a cada facto dado como provado.
E.5. não elencou os factos não provados, nem fundamentou essa “opção”, omitindo assim uma pronúncia essencial e sendo por esta razão, salvo melhor entendimento, nula, nos termos do art.º 615.º, n.º 1 al. b) C.P.C..
E.6. em 2) dos factos provados, quando se refere que a A. … não possui título de aquisição… tal constitui já um juízo e não um facto objetivo e que por isso terá de ser excluído da matéria provada. Acresce que de tal juízo não se pode considerar devidamente fundamentado, sendo manifestamente insuficiente para justificar este juízo o que se encontra expendido nas 3 singelas linhas que a propósito dos Factos 1 e 2 se especifica na fundamentação da matéria de facto.
E.7. acresce que tal juízo se encontra em contradição direta com o doc. 4 junto com a p.i., e com a alegação da A. constante do art.º 36.º da p.i. relativamente aos quais não foi permitida a produção de mais prova em virtude da prolação do saneador-sentença.
E.8. quanto à demais matéria alegada pelas partes, controvertida ou não, considerou o Tribunal irrelevante porquanto a decisão de mérito seria invariavelmente a mesma. Não se pode concordar com esta afirmação porquanto, a questão a decidir não é a configurada corretamente pelo Tribunal e toda a matéria alegada pela A. se mostra relevante.
F. É por demais obvio que a matéria dada como provada manifestamente insuficiente para que seja proferida uma decisão de mérito devidamente fundamentada e que convença os seus destinatários e a sociedade, tendo incorrido na causa de nulidade da sentença prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º C.P.C..
G. E ao não especificar adequadamente os fundamentos que justificam a decisão sobre a matéria de facto, a sentença incorreu na causa de nulidade prevista na al. b) da mesma disposição legal.
H. O Tribunal recorrido encarou a ação intentada pela A. não como uma ação entre dois particulares, mas antes como uma ação da A. contra o Estado Português. O que, de todo, não é aqui o caso.
I. O que nesta ação se pretende (e ficou clara a posição da A. no articulado de resposta às exceções apresentado em 15.04.2021) é apenas dirimir um conflito entre particulares, consistente em saber, quem deve ocupar neste momento a posição ativa sobre a construção n.º … da Ilha da Culatra. Se a A. se os RR.. De todo não se trata de julgar, nem de decidir se, perante o Estado Português, a pretensão apresentada pela A. é viável, i.e., se o pedido de reconhecimento do direito adquirido por usucapião de uma determinada posição ativa sobre aquela construção é viável contra o Estado. Aliás, o Estado nem sequer é parte na causa e qualquer decisão aqui tomada não poderia fazer caso julgado contra ele.
Nesta ação apenas está em causa, no âmbito da configuração concreta e detalhadamente descrita pela A., decidir se deve ser a A. quem deve ter neste momento a relação direta com a coisa ou se os RR..
J. As referências que a A. faz nos art.ºs 18.º e 19.º da p.i. ao facto de a edificação se encontrar implantada em terrenos públicos encontra-se efetuada com o propósito de justificar que os sujeitos envolvidos pretéritos e atuais, alienantes e adquirentes do direito sobre aquela Construção n.º 250 sabiam que o único meio idóneo para o efeito era a venda verbal ou o escrito particular acompanhado pela tradição material da coisa.
K. A sentença labora em erro quando assenta todo o seu silogismo na premissa errada de que a A. se arroga direitos contra o Estado e o terreno onde foi construída a casa invocada pela Autora integra domínio público marítimo o que, a verificar-se, impede a sua aquisição por usucapião. Verifica-se pois um errado enquadramento da questão de mérito realizada pelo Tribunal, reconduzível à figura do erro de julgamento, devendo por esta razão a sentença recorrida ser revogada.
L. Não foi dado cumprimento ao art.º 3.º, n.º 3 do C.P.C. relativamente ao referido em K.. Com efeito, não se pode considerar que o Tribunal ao notificar as partes nos termos em que o fez apresentou às partes qualquer facto ou questão concreta sobre que estas se pudessem pronunciar adequadamente, sem o terem de fazer diabolicamente, i.e., sem o fazerem através de uma tese, ensaio ou estudo sobre o tema em geral e abstrato da natureza jurídica da parcela de terreno sobre a qual a Autora alega estar edificada uma construção urbana, designadamente se tal parcela pertence ao domínio público/privado do Estado, bem como para conhecer da invocada prescrição aquisitiva sobre a construção objeto do litígio o que é incompatível com a atuação processual.
M. Face ao que a final veio a constar da sentença a este propósito, fica-se agora a perceber que o adequado exercício do contraditório só teria sido assegurado se o Tribunal tivesse dado a conhecer às partes qual o seu concreto entendimento sobre os factos que já considerava provados e sobre a(s) questão(ões) colocada(s) para que assim estas se tivessem podido pronunciar adequadamente.
N. A decisão proferida constitui nos seus fundamentos uma decisão absolutamente surpresa e ao assim ter procedido o Tribunal a quo violou o disposto no art.º 3.º, n.º 3 C.P.C., sendo ilegal e por consequência nula.
O. Atenta a configuração da ação explicitada e contextualizada no articulado de resposta às exceções, a questão da natureza do terreno onde se encontra implantado o imóvel é indiferente para a questão essencial em causa nestes autos que é a referida em ____, porquanto também:
O.1. O facto da “construção 250” ser ilegal nos termos admitidos na p.i. e também referidos no art.º 23.º da contestação em nada impede o funcionamento dos institutos da posse e da usucapião entre particulares.
O.2. Admitindo-se que o solo no qual a construção se encontra implantada pertença ao domínio público do Estado, tem de se admitir também que a construção 250 é um bem do domínio privado, que aliás, tem sido objeto de atos e de relações jurídicas puramente privadas desde que foi construído, inclusivamente de uma transmissão dos herdeiros de Jo…s para o J… como os próprios RR. admitem no art.º 55.º da contestação, comprovada pelo doc. 2 junto com a contestação e aceite pela
A. e que continuará a ser objeto de atos e de relações jurídicas puramente privados enquanto o edifício continuar de pé.
O.3. Na relação entre o privado e público, quer parecer à A. que tanto esta como os RR. admitem as fragilidades inerentes à ocupação de algo que se encontra fora do comércio (o solo) e que pertence, ali, no preciso lugar em que a “construção 250” se encontra implantada, ao domínio público marítimo. Mas entre particulares, enquanto o pau vai e vem… nada obsta a que, se desenvolvam relações puramente privadas relativamente à construção (e não também ao solo) há mais de 44 anos e para o futuro enquanto a construção estiver de pé, que é unicamente o que aqui está em causa.
O.4. Entre particulares, nem os RR. nem ninguém pode negar que relativamente à Construção n.º 250, esta teve durante cerca de 41 anos um único dono, o J…, o qual era reconhecido por todos como sendo o dono e proprietário da Construção …, qualidade que aquele podia invocar erga omnes nos termos gerais. Mas também, perante o domínio público o J… era havido como o ocupante do solo e o dono da construção edificada, seguramente ilegítimo, mas que ainda assim lhe conferia legitimidade ativa para apresentar às entidades públicas as pretensões que entendesse relativas àquele imóvel e a legitimidade passiva para ser destinatário dos atos jurídicos emanados das autoridades públicas relativos àquela mesma construção.
O.5. Não é correto afirmar que a Construção … pertence ao domínio público marítimo, porquanto não foi objeto de qualquer ato de integração no mesmo. A correta análise da realidade não pode deixar de ser esta: a Construção …, não obstante se encontrar implantada em solo pertencente ao domínio público marítimo, não deixa de ter natureza particular, quer perante particulares quer perante as entidades públicas. Só após um ato jurídico de integração da Construção … no domínio público (pois essa integração pode não ser do interesse público) aquela perderá a sua natureza particular e adquirirá natureza pública. Até lá há uma dicotomia entre solo público e edificação privada que importa respeitar
O.6. Os RR. são partes ilegítimas relativamente às questões do domínio do solo e da legalidade ou ilegalidade da ocupação do solo pela Construção …, pois qualquer que seja o ângulo pelo qual se olhe a sua posição face ao domínio público marítimo, a mesma não tem qualquer enquadramento no art.º 30.º C.P.C.. Os RR. não têm interesse em agir neste sentido nem esta alegação os pode beneficiar pois que se encontram, face ao domínio público, em igualdade de circunstâncias com a A..
P. A questão concreta e específica que a A. veio colocar ao Tribunal é diferente da decidida e é a seguinte: existe uma situação de facto, i.e., encontra-se erigida a Construção n.º … que é pacificamente reconhecido pelas partes que é objeto de atos e de relações jurídicas privadas, de posse e de gozo da sua totalidade por particulares e de transmissão dessa posse e desse gozo da coisa entre particulares (veja-se a transmissão da coisa realizada em 1977 dos herdeiros de Jo… para o J… e depois deste, em 28.12.2018 para a A., esta última por contraposição aos efeitos do fenómeno sucessório daquele para a R.); e em face de uma situação de facto como a que descreveu, estritamente entre particulares, qual das duas partes deve ter a relação de facto com a Construção n.º … (edifício e logradouro): se a A em consequência do ato de doação alegado no art.º 36.º da p.i., se os RR. em consequência do fenómeno sucessório.
Esta é a questão mor desta ação.
Q. Esta posse, sobre a Construção n.º … (sobre o edifício em si e sobre o logradouro) não pode deixar de ser plenamente operante entre particulares, sob pena de se criar uma dimensão da realidade sem tutela jurídica adequada.
R. Aquela questão mor ficou por decidir. Ao ficar por decidir, o Tribunal violou o disposto no art.º 2.º, n.º 2 e ao não se ter pronunciado sobre aquela questão concreta (mas sim sobre outra diferente) violou o disposto no art.º 615.º, n.º 1 al. d) 1.ª parte, ambos do C.P.C., sendo assim nula.
S. A A. culminou a sua pretensão dirigida apenas contra os RR. com o pedido ao Tribunal que a declare que a A. é há pelo menos 44 anos dona e legítima proprietária, por usucapião, da Construção n.º … da ilha da Culatra, que descreveu e que os RR.
fossem condenados a reconhecer o direito de propriedade da A. atrás indicado, a entregar imediatamente o edifício e em sanção pecuniária compulsória.
T. Mas caso se entenda que os pedidos formulados em 1) e 2) da p.i. inicial e da p.i. alterada na causa de pedir são excessivos ou descontextualizado em face da situação real em que se insere a Construção n.º … (domínio público marítimo) ainda assim o Tribunal não estava impedido de corrigir tais pedidos, por uma de duas formas:
T.1. Ditado pelo princípio da economia processual, dirigindo um convite à A. para que corrigisse o pedido, reduzindo-o qualitativamente para a petição de reconhecimento e entrega da posse, porquanto os autos reúnem todos os elementos de alegação e meios de prova para o efeito; ou
T.2. Seguindo os autos para julgamento e declarando a final que a A. é há pel menos 44 anos legítima possuidora (apenas) da Construção … da ilha da Culatra, em detrimento dos RR. sempre poderia condenar estes a reconhecer a posse da A. sobre aquela construção e a ordenar a entrega imediata desta construção à A. e no demais pedido porquanto tal lhe era permitido pelo art.º 609.º, n.º 1 C.C., uma vez que a declaração da A. como única e legitima possuidora daquela Construção n.º 250 não excede o pedido formulado pela A., quer quantitativa quer qualitativamente, inserindo-se ainda no objeto do pedido (qualitativamente é menos do que o pedido, mas ainda inserido no mesmo âmbito).
U. Impunha-se que o Tribunal a quo decidisse, dir-se-ia, de forma corretiva, por razões de economia e celeridade processual (art.ºs 130.º e 131.º C.P.C.) e a maiori, ad minus (art.º 609.º, n.º 1 C.P.C.), ordenando o prosseguimento dos autos para julgamento, aproveitando a instância, conhecendo em verdadeira substância o pedido sub iudice. V. Ao assim não proceder, o Tribunal a quo violou também estas disposições legais.
W. A sentença recorrida considera ainda como fundamento da sua decisão uma outra questão que não foi sujeita ao contraditório das partes, concretamente, quando a propósito do decurso de um eventual prazo de usucapião a favor da A. contra o Estado quando se refere à a oposição do Estado Português à aquisição do respetivo direito de propriedade por particulares, interruptiva do prazo legal previsto para a usucapião, manifestada através da emissão de atos legislativos e normativos nos quais reconhece o local como pertencendo ao domínio Público Marítimo.
X. Embora no entender da A. não deixe de se tratar de uma questão descentrada do essencial da presente ação (pois, repita-se, não se discute a posse nem a propriedade do solo, mas apenas da Construção n.º …), os factos e a questão referida foram considerados e tiveram influência decisiva na decisão agora em crise, constituindo (mais) um argumento surpresa determinante (também) de uma decisão surpresa. Com efeito,
Y. A questão da alegada clara oposição ao longo dos anos à aquisição do direito de propriedade dos terrenos da Ilha da Culatra por particulares não foi discutida nos articulados, nem o foi nos termos que se encontram exarados na sentença.
Z. A consideração destes factos e argumentos na decisão recorrida, tendo tido influência clara na decisão proferida, violou o disposto nos art.ºs 3.º, n.º 3 C.P.C., sendo assim a decisão nula nos termos desta última disposição legal.
AA. Mas mesmo que assim não se considere, ainda assim aquelas 3 classes de factos não poderiam constituir obstáculo à usucapião em geral porquanto:
AA.1. a mera emissão de legislação deve ser equiparada p. ex. ao pagamento de impostos relativos ao bem pretendido usucapir pelo pretenso usucapiente. É irrelevante. Se só os atos materiais sobre a coisa contam para efeito de usucapião, só os atos de oposição material àqueles outros devem também contar.
AA.2. a transferência do terreno com a área de 1.024.324 m2 para a Marinha: não foi sujeito ao contraditório a localização desta área. Em todo o caso, a Construção n.º … não se situa naquela área pois onde se instalam militares não se instalam civis, pelo que tal consideração é irrelevante também;
AA.3. Por fim, cada uma das aludidas licenças referir-se-á seguramente a um determinado local, não se sabendo se a Construção n.º … se se situa nos locais relativos àquelas licenças. Irrelevante. O que se apura é que a Construção n.º … não tem qualquer licença. Ponto.
BB. Com relevância para a concreta decisão tomada considera ainda o Tribunal que por outro lado, não se alega, nem se prova documentalmente, que a Autora possua qualquer licença emitida pelo Estado relativa à construção realizada no terreno, o que, desde logo, também inviabilizaria o reconhecimento do respetivo direito de propriedade.
CC. A eventual falta de licença da Construção n.º … não é obstáculo ao funcionamento do instituto da usucapião. Em abono desta posição refere-se a jurisprudência maioritária constante do Ac. STJ de 06.04.2017 – Proc. n.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1 do qual se extrai a jurisprudência de que a usucapião é um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo (arts. 1287.º e 1316.º do CC) que depende apenas da verificação de dois elementos: a posse e o decurso de certo lapso de tempo, e à qual são absolutamente alheias quaisquer questões de legalidade ou de licenciamento.
DD. Por fim, refere a sentença recorrida que em causa está o leito da Ria Formosa, a qual, na Ilha da Culatra, é composto por mouchões e não resulta dos autos que a porção de leito em causa tenha sido desafetada do domínio público do Estado, não sendo por isso suscetível de redução a propriedade particular, inalienável, imprescritível, impenhorável e não onerável pelos modos do direito privado, atento o disposto nos artigos 202º, n.º 2 do Código Civil e artigos 18º, 19º e 20º do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto.
EE. A consideração ou o assumir que a natureza do leito da Ria Formosa, a qual, na Ilha da Culatra, é composto por mouchões consubstancia a consideração de um facto, e um facto essencial, que foi tomado em consideração mas que não foi alegado pelas partes, nem dado como provado, nem objeto de contraditório. A consideração deste facto viola o disposto no art.º 3.º, n.º 3 C.P.C. e é causa de nulidade da sentença recorrida;
Nestes termos e nos demais de direito,
Deve a sentença recorrida ser revogada , e em consequência ser determinada a baixa do processo ao Tribunal de primeira instância, sendo ordenado que admita a alteração da causa de pedir requerida pela A. e que os autos prossigam para julgamento.
Pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido, deve ser dado provimento ao presente recurso, com o que se fará
JUSTIÇA.”.
Não foi apresentada resposta às alegações.
Foram providenciados os vistos e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.
II. Objecto do Recurso
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC), importa conhecer as seguintes questões:
- admissibilidade da alteração da causa de pedir;
- inviabilidade da prolação de despacho saneador-sentença em virtude de:
a) nulidade da sentença apelada, no segmento atinente à fixação da matéria de facto, por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia;
b) insuficiência do elenco factual; e
c) violação de normas processuais;
- violação do princípio do contraditório;
- omissão de pronúncia sobre a questão solvenda;
- erro de julgamento.
III. Fundamentação
1.De Facto
Na sentença recorrida foram julgados:
Provados os seguintes factos:
1. Na Ilha da Culatra, União das Freguesias da Sé e de São Pedro, do concelho de Faro existe uma construção identificada pelo n.º …, que é uma construção sem qualquer autorização ou licença administrativa que foi utilizada por J… desde 1977.
2. A Autora V… não possui título de aquisição ou utilização ou registo relativamente à construção referida em 1.
3. O sistema da Ria Formosa constitui uma unidade morfológica, que engloba duas penínsulas e cinco ilhas barreira, Ilhas da Barreta, Culatra, Armona, Tavira e Cabanas, individualizadas por seis barras de maré.
2. O Direito
1.ª Questão
A primeira questão a solucionar relaciona-se com a admissibilidade da alteração da causa de pedir.
Como se sabe, a regra é a estabilização da instância, uma vez citado o Réu (n.º 1 do art.º 261.º do CPC.
Uma das excepções a essa regra figura no art.º 264.º e no n.º 1 do art.º 265.º, ambos daquele diploma, onde se dispõe, respectivamente, que:
Alteração do pedido e da causa de pedir por acordo
Havendo acordo das partes, o pedido e a causa de pedir podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura, em 1.ª ou 2.ª instância, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito.
Alteração do pedido e da causa de pedir na falta de acordo
1 - Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação”.
A alteração da causa de pedir consubstancia-se na introdução de factos que delineiam uma relação jurídica diversa daquela que foi inicialmente vertida na petição inicial.
No caso vertente, não foi alegado nem se divisa que exista qualquer acordo das partes na modificação da causa de pedir que a apelante pretende introduzir na causa, pelo que é manifesta a inaplicabilidade do preceituado no art.º 264.º do CPC.
Resta determinar se, como se preconiza, a pretensão pode ser acolhida ao abrigo daqueloutro preceito. Como dele deriva, é, para tanto, essencial que a alteração da causa de pedir apresente um nexo causal com a confissão efectuada pelo Réu na contestação.
Sustenta a A. que, no art.º 55.º da contestação os RR. confessaram factos por si alegados, o que foi por si especificadamente aceite.
Afirmava ALBERTO DOS REIS[1]: “A confissão nos articulados consiste em o réu reconhecer, na contestação, como verdadeiros, factos afirmados pelo autor na petição inicial, ou em o autor reconhecer, na réplica, como verdadeiros, factos afirmados pelo Réu, na contestação, ou em o réu reconhecer, na tréplica, factos afirmados pelo autor na réplica”.
É, por outro lado, consabido que a interpretação de declarações vertidas em actos processuais deve, por força do disposto no art.º 295.º do Cod. Civil, reger-se segundo as regras enunciadas no art.º 236.º e no art.º 238.º, ambos do Cod. Civil, o que impõe, ademais, a necessidade de a interpretação encontrar algum arrimo no texto.
Por outro lado, importa ainda considerar que a confissão deve ser inequívoca (n.º 1 do art.º 357.º do Cod. Civil).
Posto isto, atente-se no que os RR., nos art.ºs 50.º a 55.º da contestação, fizeram constar:
“50.º E, sem prejuízo da impugnação especificada que se deduzirá, os R.R impugnam, por não corresponder à verdade, a factualidade vertida nos artigos 1.º, 3.º, 7.º, 8.º (na parte “a)…para construção do edifício …” que é falso) 9.º (na parte “…e construído…” que é falsa), 10.º (na parte “…e que realizou a construção…” que é falsa), 12.º (na parte “…e construção do edifício…” que é falsa), 14.º (excepto na parte …”através da construção…” que é falso), 24.º, 29.º, 30.º. 31.º, 32.º, 33.º, 34.º, 35.º, 36.º, 38.º, 39.º, 40.º, 41.º, 42.º, 43.º, 46.º, 47.º, 52.º, 65.º, 66.º, 67.º, 68.º, 69.º da P.I.
53. A restante matéria é conclusiva e/ou de Direito.
Vejamos:
54. Não é verdade que, no ano de 1976, o Sr. J… ocupou a parcela de terreno onde está implantada a Casa … da Ilha da Culatra, tampouco que tenha iniciado e concluído a sua construção.
55. O falecido J…, dizia recorrentemente que tinha comprado os direitos sobre o imóvel, denominado “construção …” da Ilha da Culatra, no ano de 1977, aos herdeiros de Jo…, pelo preço de 40.000$00, cerca de 200,00€ (duzentos euros) na moeda atual, através documento escrito, em papel selado, celebrado no dia 15 de abril de 1977, na Fuzeta, tendo inclusive pedido à R. Sara que o guardassem, o qual aqui se junta como documento n.º 2.”.
Face a este enunciado, parece ser de meridiana clareza a conclusão de que os apelados jamais reconheceram factos alegados pela apelante no que concerne à actuação de J… – o alegado antecessor da apelante – sobre o imóvel em causa, apresentando uma diferente versão daquela que nem sequer é coincidente com a que figura na petição inicial.
A impugnação motivada que foi apresentada não se reconduz, pois, a confessar coisa alguma, antes se consubstanciando em dar a conhecer aos destinatários do articulado (o Tribunal e à contraparte) o seu conhecimento dos factos. Por outras palavras, os RR. não alegaram factos que lhes eram desfavoráveis e que favoreciam a parte contrária, independentemente do uso que esta possa fazer dos factos alegados.
Ao contrário do que a apelante parece entender e como resulta do art.º 352.º do Cod. Civil, a noção de confissão tem por referência factos concretos da vida real, despidos, pois, de qualquer roupagem jurídica que se lhes possa associar.
Por isso, ainda que fosse possível discernir, naquele segmento do articulado uma “admissão (…) de uma forma concreta de aquisição da posse (…), mesmo que diferente da alegada na p.i. (…)”, jamais poderíamos considerar que nos deparamos com uma confissão no sentido próprio do termo.
Daí que, com propriedade, não se possa afirmar que os RR. confessaram inequivocamente quaisquer factos vertidos na petição inicial.
Por isso, bem se decidiu ao considerar que não existia qualquer confissão de factos que suportasse a pretendida alteração da causa de pedir.
Cabe, em aditamento, salientar que este mecanismo processual não se destina a suprir falhas ou insuficiências de alegação[2]. E, de acordo com o princípio dispositivo (n.º 1 do art.º 5.º do CPC), é sobre o A. que impende o ónus de, no momento para tanto apropriado – a redacção da petição inicial -, alegar os factos essenciais integrantes da causa de pedir, sendo que, como já ensinava CASTRO MENDES[3] “(…) antes do processo investigará o A. quanto puder até estar apto a afirmar um direito (…)”.
Por isso, é de destacar a vanidade com que se alega a “maior importância” deste facto para o desenlace da causa.
Destarte, nenhuma censura merece o despacho que não admitiu a alteração da causa de pedir.
2.ª questão
Sustenta também a apelante, em resumo, que a causa foi decidida precocemente.
Para tanto, aponta que, em sede de fundamentação e selecção da matéria de facto, o despacho saneador-sentença apelado incorreu em nulidades sentenciais e padece de incompletude e insuficiências.
Mais advoga que, mesmo concluindo que a construção estava implementada em solo integrante do domínio público marítimo, o tribunal deveria ter procedido de forma correctiva, prosseguindo os autos para julgamento.
A respeito daqueles primeiros aspectos consta do despacho saneador o seguinte:
“III- FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS PROVADOS
a) Dos elementos constantes dos autos resultam provados, com relevância para a decisão, os seguintes factos:
1) Na Ilha da Culatra, União das Freguesias da Sé e de São Pedro, do concelho de Faro existe uma construção identificada pelo n.º …, que é uma construção sem qualquer autorização ou licença administrativa que foi utilizada por J… desde 1977.
2) A Autora V… não possui título de aquisição ou utilização ou registo relativamente à construção referida em 1).
3) O sistema da Ria Formosa constitui uma unidade morfológica, que engloba duas penínsulas e cinco ilhas barreira, Ilhas da Barreta, Culatra, Armona, Tavira e Cabanas, individualizadas por seis barras de maré.
Consigna-se que a matéria não selecionada dos articulados permanece controvertida, é mera repetição, conclusiva, de direito, de mera impugnação, meras suposições, não incumbe o ónus da prova da mesma a quem a alega e não se seleciona o facto na negativa ou não assume qualquer relevância para a decisão da causa.
AB) Fundamentação da matéria de facto
Assim, a convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e ponderada dos seguintes meios de prova:
a) No acordo das partes, nos termos do artigo 574º, nos 2 e 3 do Código de Processo Civil, relativamente aos factos disponíveis em causa nos autos.
b) Nos documentos juntos aos autos, os quais não foram impugnados pelas partes ou constituem documento autêntico.
Especificadamente:
Factos 1 e 2 - Provados com base no acordo das partes, designadamente na aceitação que existe uma construção ilegal localizada na Ilha da Culatra sem qualquer documento que demonstre essa utilização.
Facto 3 - A caracterização do sistema da Ria Formosa e respetiva Ilha da Culatra resultou provada atento o acordo das partes, bem como da circunstância de ser facto público e notório na região, nos termos do disposto no artigo 5º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Civil.”
Vêm invocadas as nulidades a que aludem as als. b) e d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.
“Como é sabido, as decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas causa distintas, obstando qualquer delas à sua eficácia ou validade, a saber: a) por se ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respetiva consequência a sua revogação; e b) como atos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do CPC.
Os vícios determinativos de nulidade das decisões judiciais encontram-se taxativamente elencados no art. 615º do CPC, e reportam-se a vícios formais da sentença em si mesma considerada, decorrentes de na sua elaboração não terem sido respeitadas as normas processuais que regulam a sua estruturação ou as que balizam os limites da decisão nela proferida, isto é, o campo de cognição do tribunal fixado pelas partes não foi respeitado na sentença, porquanto ficou aquém ou foi além do thema decidendum por elas fixados nos autos ao tribunal.
Deste modo, os vícios determinativos de invalidade da sentença são defeitos de actividade ou de construção da própria sentença em si mesma considerada, isto é, trata-se de vícios formais que afectam a sentença em si, por nela não terem sido respeitadas as normas processuais que regulam a respetiva estruturação, como é o caso da falta de assinatura do juiz – al. a), do n.º 1 do art. 615º do CPC -, os fundamentos enunciados na sua alínea b) - falta de fundamentação - e c) - oposição entre os fundamentos e a decisão -, ou por padecer de vícios relativos aos limites à sombra do qual a sentença é proferida, a que se reportam as alíneas d) - omissão ou excesso de pronúncia – e e) - pronuncia ultra petitum.
Os vícios determinativos da nulidade da sentença são vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”.
Diferentemente desses vícios são os erros de julgamento (error in iudicando), os quais contendem com vícios quanto ao julgamento da matéria de facto nela realizado ou do julgamento da decisão de mérito nela proferida, pelo que a sentença proferida padece de uma distorção da realidade factual, por os factos nela julgados como provados ou não provados não terem assento na prova produzida, que antes impunha decisão diversa quanto ao julgamento da matéria de facto nela explanado (error facti), e/ou por se assistir a uma distorção na aplicação do direito, de modo que a decisão de mérito proferida na sentença não está conforme ao direito efetivamente aplicável ao caso, assistindo-se a uma deficiente enunciação e/ou interpretação das normas e dos institutos jurídicos aplicados ao caso (error iuris).
Os erros de julgamento, por já não respeitarem a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença ou os limites à sombra dos quais aquela é proferida, mas ao mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas antes de error in iudicando, atacáveis em via de recurso”[4].
Assim, as nulidades da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito.
A respeito da falta de fundamentação, há a observar que as decisões judiciais devem ser factual e juridicamente fundamentadas (n.º 1 do art.º 205.º da CRP e n.º 1 do art.º 154.º do CPC), exigência que tem como propósito permitir ao julgador apreciar criticamente a lógica da decisão que está tomar, facultar às partes o recurso com perfeito conhecimento do percurso seguido pelo decisor e viabilizar o efectivo controle daquela pela instância de recurso.
Justifica-se, por isso, que a lei comine a nulidade arguida para a decisão que careça de fundamentação.
Porém, como já ensinava ALBERTO DOS REIS[5] “(…) há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto” (…)”.
Por seu turno, a omissão de pronúncia relaciona-se com a inobservância do disposto na segunda parte do n.º 2 do art.º 608.º do CPC, onde consta que o juiz não “(…) pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. (…)”.
Este último preceito postula o conhecimento, na sentença, de todas as questões juridicamente relevantes que a apreciação do pedido e causa de pedir apresentadas pelo A. ou as excepções deduzidas pelo R. suscitem e, por outro, confina a estas a actividade judicativa.
É consabido que os fundamentos (de facto ou direito) apresentados pelas partes para defender a sua posição, os raciocínios, argumentos, razões, considerações ou pressupostos - que, podem, na terminologia corrente, ser tidos como “questões” - não integram matéria que deva ser objecto de pronúncia judicial. Não se podem, assim, confundir questões com argumentos ou razões, pois o preceito reporta-se, tão só, a questões do ponto de vista substantivo que sejam relevantes, em termos fácticos e jurídicos, para solucionar o litígio em face do pedido e dos seus fundamentos.
Por estas razões, a lei adjectiva considera nula a decisão judicial quando deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
Como se colhe da transcrição supra, o despacho saneador-sentença apelado não identificou os factos não provados.
Independentemente de se poder aventar que nem teria que o fazer[6], há a notar que, como se facilmente se percebe, tal omissão não se identifica com a falta de pronúncia sobre uma questão colocada pelas partes. E, por outro lado, a falta de demonstração de determinados factos equivale, na economia processual, à sua inexistência, pelo que seria ilógico considerar que a falta de referência aos factos indemonstrados integra qualquer omissão de pronúncia.
Certo é que, “os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença”, já que “a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de dar lugar à actuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (artº 662º, nº 2, c) e d) do nCPC)”.[7]
A omissão não é, pois, reconduzível à sobredita nulidade.
Por outro lado, é patente que o despacho saneador-sentença apelado contém uma fundamentação da decisão de facto, a qual especifica os factos tidos como provados e os motivos pelos quais o tribunal se decidiu pela sua fixação como tal.
Essa fundamentação fáctica está exposta em termos claros e facilmente entendíveis.
A crítica a essa fundamentação constitui o cerne do recurso e é viável considerar que a recorrente entendeu os motivos pelos quais assim se decidiu. Essa fundamentação permite igualmente a esta Relação discernir o percurso encetado.
Mostram-se, pois, cumpridos os propósitos que presidem à exigência legal a que antes aludimos.
Reitere-se, que, patentemente, a invocada incompletude do elenco factual não é reconduzível à nulidade atinente à absoluta falta de fundamentação.
Desatende-se assim a arguição das nulidades em apreço.
Para enfrentarmos, agora, a invocação de que o elenco factual padece de incompletude importa ter em conta que o tribunal a quo considerou, em apertada síntese, que o imóvel cuja aquisição originária pretendia a A. ver reconhecida a seu favor estava integrado no domínio público marítimo.
Há a notar que quer o que se inscreveu nos art.ºs 2.º, 4.º a 6.º [8], 8.º, 19.º, 45.º, 48.º a 51.º, 55.º e 56.º da petição inicial e a declaração junta como documento n.º 4 quer no supra referido art.º 55.º da contestação não infirmam nem contradizem esse juízo fáctico-jurídico.
Por isso, é de concluir que tais factos e meio de prova são, ao contrário do que se aventa, desprovidos da suprema relevância que – injustificadamente, diga-se - a apelante lhes outorga.
Assim, atentando nos moldes em que os apelados delinearam a excepção peremptória (art.ºs 16.º a 34.º da contestação) que veio a ser julgada procedente, não se divisa que a ampliação do acervo factual revelasse qualquer utilidade, não cabendo, pois, fazer uso da faculdade anulatória a que se refere a al. c) do n.º 2 do art.º 662.º do CPC.
Insurge-se ainda a apelante contra a presença, no ponto n.º 2 do elenco factual, de um juízo.
A referência à falta de título de aquisição ou utilização ou de registo merece, de facto, censura por desrespeitar a boa ortodoxia processual.
É que como consta dos n.os 3 e 4 do art.º 607.º do CPC, a fundamentação de facto da sentença deve apenas fazer alusão a factos – já que é para a sua demonstração que serve a prova produzida (art.º 341.º do Cod. Civil) -, o que, logicamente, determina que a formulação de juízos valorativos sobre as ocorrências da vida sensorial tidas como demonstrados seja reservada para a argumentação a empregar na fundamentação do juízo decisório.
Impõe-se, pois, expurgar da matéria de facto o dito juízo valorativo.
Esta tem sido, aliás, a orientação já consistentemente firmada pelo STJ[9], relativamente à eliminação do elenco da matéria de facto das expressões e asserções na mesma incluídas que não revistam tal natureza fáctica, já que as asserções de natureza conclusiva reconduzem-se à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum, devendo, por isso, as afirmações de natureza conclusiva ser excluídas do acervo factual a considerar.
Destarte, a intervenção desta Relação não se dá ao nível da (re)apreciação da prova, mas antes “na despistagem (identificação/qualificação/expurgação), nos pontos da matéria de facto em causa, das afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito”[10], ao abrigo da previsão constante do n.º 4 do art.º 607.º do CPC, que não no âmbito do disposto nos art.ºs. 640.º (impugnação da decisão relativa à matéria de facto feita pela parte/recorrente) ou 662.º (modificabilidade da decisão de facto) do CPC.
Cabe notar que a supressão das expressões de cariz jurídico-conclusivo, não tem a virtualidade de afastar a valoração dos concretos factos que constem da decisão da matéria de facto provada.[11].
Por isso e sem que, para tal, seja sequer necessário invocar os poderes em matéria de facto desta Relação (porquanto basta a confrontação daqueles juízos com os normativos acima citados), proceder-se-á à expurgação do falado juízo valorativo do elenco factual.
Nessa sequência e em conformidade com o que se extrai do aludido documento n.º 4, o ponto n.º 2 do elenco factual passará a ter seguinte redacção:
“2. Em 28 de Dezembro de 2018, J… declarou:
“Eu, J…, (…), proprietário até à presente data da casa n.º … da Ilha da Culatra, declaro que faço a doação da mesma a V… (…). Mais informo que a V…, faz desta casa a sua residência permanente e do seu agregado familiar (…) Mais declaro que permaneço como elemento do agregado, no que à utilização da casa diz respeito”.
E é aditado um ponto n.º 2-A nos seguintes moldes:
“A construção mencionada em 1. não está registada”.
Assim, mostra-se consolidado o elenco factual, nos seguintes termos:
1. Na Ilha da Culatra, União das Freguesias da Sé e de São Pedro, do concelho de Faro existe uma construção identificada pelo n.º …, que é uma construção sem qualquer autorização ou licença administrativa que foi utilizada por J… desde 1977.
2. Em 28 de Dezembro de 2018, J… declarou:
“Eu, J…, (…), proprietário até à presente data da casa n.º … da Ilha da Culatra, declaro que faço a doação da mesma a V… (…). Mais informo que a V…, faz desta casa a sua residência permanente e do seu agregado familiar (…) Mais declaro que permaneço como elemento do agregado, no que à utilização da casa diz respeito.”.
2-A A construção mencionada em 1. não está registada.
3. O sistema da Ria Formosa constitui uma unidade morfológica, que engloba duas penínsulas e cinco ilhas barreira, Ilhas da Barreta, Culatra, Armona, Tavira e Cabanas, individualizadas por seis barras de maré.
Porém, daqui não segue, necessariamente, a procedência do recurso, até porque, como resulta do que viemos de expor e do que se exporá, a eliminação dos mencionados juízos não entronca sobre o seu intrínseco demérito.
Atentemos, enfim, na alegação de que o tribunal deveria ter convidado a proceder ao aperfeiçoamento do pedido e, a final e apesar do entendimento adoptado, condenado no pedido nos limites admissíveis.
Desde já se nota que a indevida omissão do cumprimento do dever a que alude a al. b) n.º 1 do art.º 590.º do CPC constitui uma nulidade processual que deve ser arguida nos termos do n.º 1 do art.º 199.º do mesmo diploma.
Não tendo a apelante a arguido em devido tempo, a mesma mostrar-se-ia sanada.
E, em todo o caso, há a notar que aquele dever tem em vista a existência de deficiências formais na formulação do pedido, não contemplando, como deriva do respeito devido à isenção e equidistância que o tribunal deve manter em relação às partes e aos princípios da auto-responsabilização das partes pela condução do litígio e do dispositivo, o aperfeiçoamento do petitório àquele que o julgador considera ser o mais conforme com a realidade fáctica ou com o enquadramento jurídico que tem como aplicável.
Daí que nem se sequer se deva considerar que se preteriu indevidamente o cumprimento daquele dever.
Por outro lado, e posto que, adiante se exporá, se concluiu pela existência de disposições legais que vedavam a usucapião do prédio em causa, mostra-se logicamente vedada a prolação de uma decisão condenatória que se situasse aquém dos limites do pedido. Na verdade, estando o imóvel que constitui o objecto material dos pedidos formulados nos pontos n.º 1 e 2 do petitório todo ele integrado no domínio público marítimo, não se vislumbra como seria possível “segmentar” o mesmo com vista a que fosse viável conhecer a “verdadeira substância” do pedido como preconiza a apelante.
Não se vislumbra, pois, qualquer infracção das normas contidas nos art.º 130.º e 131.º e no n.º 1 do art.º 609.º do CPC que implique a conclusão de que à decisão apelada subjaza qualquer precipitação ou ligeireza que devam ser censuradas. De resto, perante um simples excurso pelo conteúdo da decisão apelada e dos presentes autos, facilmente se alcança que aquela respeitou o comando contido na al. b) do n.º 1 do art.º 595.º do CPC.
Sustenta também a apelante que, em diversas dimensões, foi violado o princípio do contraditório e que, por esse motivo, a decisão padece de nulidade.
Atentemos nos termos em que a questão deve ser dirimida.
Como se sabe, o julgador não se acha limitado pelas alegações das partes no que tange à indagação, interpretação e aplicação de regras de direito.
Assim se enuncia o princípio da oficiosidade do conhecimento e aplicação do direito aos factos trazidos pelas partes – e que se exprime no brocado latino “Iura novit curia” –, actualmente consagrado no n.º 3 do art.º 5.º do CPC. Continua, pois, a prevalecer a máxima “da mihi factum dabo tibi ius” (“dá-me os factos e dou-te o direito”). Ao abrigo deste princípio, o tribunal pode e deve apreciar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões jurídicas distintas daquelas que foram concitadas pelas partes.
Sendo correntemente tido como uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão (cfr. art.º 204.º da CRP), tal princípio deve-se também ter como tributário do princípio dispositivo vigente no processo civil (serão as partes a introduzir na causa os factos e o conhecimento oficioso do direito cingir-se-á sempre ao objecto da causa)[12].
É, no entanto, certo que o princípio a que vimos fazendo referência deve ser concatenado com o princípio do contraditório e, em particular, com o disposto no n.º 3 do art.º 3.º do CPC, o qual preceitua que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Do preâmbulo do Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro extrai-se que, neste enunciado, se consagra a proibição da prolação de decisões surpresa ou “decisões solitárias do juiz”.
Nessa defluência, tem sido considerado que as decisões-surpresa são apenas aquelas que assentam em fundamentos que não foram anteriormente ponderados pelas partes ou seja aquelas em que se detecte uma total desvinculação da solução adoptada pelo tribunal relativamente ao alegado pelas partes. O campo privilegiado de valência desta proibição são as questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado[13].
No caso vertente, a apelante foi confrontada com a aludida excepção peremptória na contestação e respondeu a essa arguição na resposta que espontaneamente apresentou.
Os fundamentos em que repousou a excepção peremptória foram, no essencial, aqueles que foram tidos em consideração no despacho saneador apelado.
Com efeito, não nos deparamos, no despacho saneador, com um entendimento diverso dos termos da causa. O que, em síntese, ali se decidiu foi que o imóvel em causa era insusceptível de ser adquirido por usucapião por estar integrado no domínio público marítimo. E, ao contrário do que profusamente se aventa, a inviabilidade desse reconhecimento não teve em consideração o ente contra o qual se pretendia ver reconhecida a aquisição mas antes aquele juízo fáctico-conclusivo.
Daí que, tendo a parte tido oportunidade de responder às alegações fáctico-jurídicas vertidas na contestação (o que equivale por dizer que não se lhe exigia qualquer exercício de pendor diabólico a elaboração de “uma tese, ensaio ou estudo sobre o tema em geral e abstrato da natureza jurídica da parcela”) e posto que, no essencial, a decisão recorrida se louvou em idênticas considerações, não se vê como se possa considerar que foi preterido o exercício do contraditório.
Acrescente-se que o correcto entendimento do princípio do contraditório não reclama que, a todo o tempo, o tribunal ausculte as partes sobre a decisão a tomar, só o devendo fazer quando preveja que esta se filiará em fundamentos fácticos ou jurídicos que aquelas não anteviram nem poderiam antever[14].
Não é nitidamente esse o caso dos autos.
Os factos que basearam a decisão sobre a referida excepção acham-se inscritos no ponto n.º 1 e, em parte, no ponto n.º 3 do elenco factual e resultaram da admissão, pelos apelados, de factos vertidos nos art.ºs 1.º e 6.º da petição inicial, pelo que, de modo algum, a consideração como assentes pode constituir uma surpresa.
E a excepção peremptória aduzida pelos apelados integra inequivocamente o thema decidendum, integrando-se, pois, a sua resolução no cumprimento do dever que para o julgador dimana do n.º 2 do artigo 608.º do Código de Processo Civil.
Assim, mal se percebe que se advogue que o tribunal deveria “ter dado dado a conhecer às partes qual o seu concreto entendimento sobre os factos que já considerava provados e sobre a(s) questão(ões) colocada(s) para que assim estas se tivessem podido pronunciar adequadamente”.
Neste conspecto, é ainda de salientar que o tribunal não considerou inovatoriamente a oposição protagonizada pelo Estado mediante a emissão de actos legislativos e/ou regulamentares e através da transferência do terreno com a área de 1.024.324 m2 para a Marinha.
O que se extrai do segmento da fundamentação a este respeito destacado pela apelante é, apenas e só, um raciocínio especulativo segundo o qual, para a hipótese de se considerar que o terreno em causa estava integrado no domínio privado do Estado, aquelas actuações estaduais deveriam ser enquadradas como uma oposição com eficácia interruptiva do prazo invocado na petição inicial.
Trata-se, pois, de um obiter dictum desnecessário, ao qual não deve ser reconhecida qualquer relevância. É que o entendimento perfilhado pela Mma. Juiz a quo que sustentou a decisão tomada foi, como ad nauseam se salientou, bem diverso e este, como vimos, nada tem de inovador ou de surpreendente.
É, enfim, de salientar que o despacho saneador-sentença apelado não deu como provado que o leito da Ria Formosa é composto por mouchões, não se tendo, por isso, considerado um facto essencial sem prévia submissão a contraditório.
E, em todo o caso, constata-se que a proclamação de ciência a que a apelante faz menção nem sequer assume, em face do disposto na al. c) do art.º 3.º e no n.º 1 do art.º 10.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro e aos demais preceitos invocados no despacho saneador-sentença apelado, qualquer cariz de essencialidade, constituindo, na economia da decisão, um mero argumento de respaldo, porventura inspirado no entendimento professado no aresto ali citado.
Deste modo e na confluência de todas estas considerações, cabe desatender a nulidade processual arguida.
Invoca-se, em seguida, que o tribunal omitiu a pronúncia sobre a “questão mor” que consiste em saber “qual das duas partes deve ter a relação de facto com a Construção n.º 250”.
Importa sintetizar os termos desta alegação para que melhor se perceba a resposta.
Considera-se, para o efeito, que o despacho saneador-sentença apelado tomou posição sobre uma questão que é indiferente para o desfecho da causa (qual seja a natureza do solo em que aquela está implantada) já que a mesma “é um bem de índole privada e, entre particulares, enquanto o pau vai e vem, nada obsta a que, relativamente, à edificação, se estabeleçam relações de direito privado”.
Já antes se adiantou o enquadramento jurídico desta arguição.
E, em face do mesmo, é inescapável a conclusão de que não assiste razão à arguição em apreço.
Vejamos.
Como resulta do petitório, o objecto material dos dois primeiros pedidos é o “prédio urbano constituído pela casa n.º … da ilha da Culatra, composto por dois quartos com casa de banho (suite), cozinha e sala, telhado e terraço de cobertura; e área descoberta situada na parte frontal do edifício, com alegretes, área pavimentada e poço, com a área total de 127 m2, localizada na latitude 36.994568 e longitude - 7.841272, junto à Igreja da Culatra, com o número de construção/porta 250, confrontando a norte com área descoberta nas traseiras da Igreja da Culatra; a sul com passagem, a nascente com edifício vizinho e a poente com edifício vizinho e área descoberta, sito na Ilha da Culatra, da União das Freguesias da Sé e de São Pedro, do concelho de Faro”.
O conceito de prédio inscrito na al. a) do n.º 1 do art.º 204.º do Cod. Civil é amplo, abrangendo o solo e as construções edificadas no mesmo terreno.
Ora, não estando aquela construção individualizada (quer em termos registrais quer em termos matriciais) do terreno em que está implantada em moldes que deste a autonomizem, é patente que a mesma está integrada num único prédio.
Daí que seja artificiosa a alegação de que a sujeição do solo se revela indiferente para a resolução da questão solvenda enunciada pela Autora na petição inicial.
Na verdade, é em função da consideração da indissociabilidade entre o solo e o edificado/logradouro cuja aquisição originária se pretende ver reconhecida que se deve dirimir a excepção peremptória suscitada pelos RR. a que supra se fez referência e, correlativamente, a questão solvenda.
Acrescente-se que, em sede de acção declarativa, a pronúncia do tribunal deve apenas incidir sobre o pedido de tutela jurídica formulada pelo A., não lhe cabendo, pois, dispensar qualquer sorte de tratamento à realidade factual apurada.
Por isso, o despacho saneador-sentença apelado não omitiu indevidamente a pronúncia sobre a questão solvenda enunciada pela A. na petição inicial. Resolveu-a desfavoravelmente em virtude da procedência da dita excepção de direito material.
Improcede, pois, a arguição em apreço.
3.ª questão
Esparsamente, ao longo das suas extensas conclusões e sem os individualizar, a apelante invoca, amiúde, erros de julgamento.
Importa agora proceder à sua apreciação uniformizada.
Primeiramente, advoga-se que o prédio urbano em questão não foi objecto de qualquer acto de integração no domínio público marítimo.
Vejamos.
O conceito de domínio público hídrico remonta ao Decreto Real de 31 de Dezembro de 1864 e foi sendo replicado e actualizado pelos sucessivos diplomas posteriormente publicados, entre os quais, o Dec.-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro e a actual Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro.
A esse conceito, preside o propósito de acautelar o reconhecido interesse público dos bens contemplados nesse domínio, com o expresso propósito de os afastar do comércio jurídico.
A esse conceito subjaz uma presunção ilidível de dominialidade dos terrenos que constituem o leito e a margem das águas dominiais da sua jurisdição[15].
Permite-se, é certo, que terrenos incluídos na respectiva área possam ser utilizados por sujeitos privados ou, até, que possam ser objecto de propriedade privada.
No entanto, a utilização/propriedade privatística depende do reconhecimento judicial (mediante acção judicial a intentar nos termos dos n.os 1 a 4 do art.º 15.º da Lei 54/2005) ou de um acto de desafectação do domínio público hídrico nos termos da lei (al. a) do n.º 5 e art.º 19.º do mesmo diploma).
Deste modo, é preclara a desnecessidade de um acto integratório como aquele que vem advogado.
Na verdade, para que a discussão da causa se cingisse à consideração da posição das partes perante o objecto material da mesma, requerer-se-ia, justamente, um acto (uma decisão judicial ou acto administrativo) por intermédio do qual se concluísse que este não estava, afinal, integrado no domínio público marítimo. Em síntese, um acto de conteúdo inverso àquele que é propugnado.
Nem se diga, por outro lado, que a questão solvenda foi perspectivada como se de uma relação entre a apelante e o Estado se tratasse. Nitidamente, não é esse o sentido decisório do despacho saneador-sentença apelado que, como já se salientou, se limitou a reconhecer que, em vista da integração do imóvel que constitui o objecto material dos pedidos no domínio público marítimo, era inviável reconhecer a usucapião.
E, como é bom de ver, o apelo a normas de direito público serve apenas para solucionar a questão solvenda colocada pela invocação da dita excepção peremptória.
Debalde se invoca também a ilegitimidade dos apelados “relativamente às questões do domínio do solo e da legalidade ou ilegalidade da ocupação do solo pela Construção 250, pois qualquer que seja o ângulo pelo qual se olhe a sua posição face ao domínio público marítimo, a mesma não tem qualquer enquadramento no art.º 30.º C.P.C.. Os RR. não têm interesse em agir neste sentido nem esta alegação os pode beneficiar pois que se encontram, face ao domínio público, em igualdade de circunstâncias com a A.”.
Tal entendimento limita desproporcionadamente e, por isso, intoleravelmente, a amplitude que pelo n.º 2 do art.º 571.º do CPC é consentida à dedução de defesa por excepção.
E também olvida que o art.º 1287.º do Cod. Civil, indica, como pressuposto do reconhecimento da pretendida aquisição originária, a inexistência de disposição que vede a aquisição de direitos por intermédio da reunião dos pressupostos de que depende o reconhecimento da usucapião.
Assim, mesmo que fosse defeso aos apelados protagonizar a invocação em apreço, o princípio da oficiosidade no conhecimento do Direito (n.º 3 do art.º 5.º do CPC) sempre imporia a aplicação das normas que pertinentemente foram concitadas na sentença apelada.
Daí que não se surpreenda qualquer erro in judicando que deva ser corrigido por este tribunal.
Por outro lado, vimos já que a decisão recorrida perfilhou o entendimento de que o objecto material se encontra integrado no domínio público marítimo e foi nesse juízo fáctico-jurídico que assentou a procedência da excepção peremptória aduzida e a correlativa improcedência da acção.
Nessa medida e como se expôs, revelam-se espúrias as considerações tecidas no despacho saneador-sentença apelado a respeito da eventualidade de se entender que aquele estava, afinal, integrado no domínio privado do Estado e, decorrentemente, irrelevantes as alegações vertidas na conclusão AA.1.
Ainda nessa conformidade, há a notar que, no despacho saneador-sentença apelado, não se reconheceu qualquer relevância ao facto de a construção não dispor de licença administrativa. Por isso, idêntico entendimento deve ser adoptado quanto ao que se alega nas conclusões AA.3, BB e CC, não cabendo aqui discutir a (ir)relevância das autorizações administrativas como factor obstativo do reconhecimento da aquisição originária.
É, pois, manifesta a improcedência da apelação.
Assim, pelas razões aduzidas, em face dos prolegómenos supra convocados, nega-se provimento à apelação e, consequentemente, mantem-se a sentença apelada.
As custas serão suportadas, porque vencida, pela apelante (n.º 1 e 2 do art.º 527.º do CPC)


IV. Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em negar provimento à apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Registe.
Notifique.
Évora, 16 de Dezembro de 2021
Florbela Moreira Lança (Relatora)
Elisabete Valente (1.ª Adjunta)
Cristina Dá Mesquita (2.ª Adjunta)
- acórdão assinado digitalmente -
_______________________________________________
[1] Código de Processo Civil Anotado, IV, Coimbra, pp. 86.
[2] Neste sentido, vide. PAULO RAMOS DE FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Almedina, I, pp. 232.
[3] Processo Civil, II, AAFDL, pp. 270.
[4] Ac. da RG de 06.06.2019, proc. n.º 209/09.1TBPTL.G2, acessível em www.dgsi.pt
[5] Código de Processo Civil Anotado, V, Reimpressão, Coimbra Editora, pp. 140
[6] Como se sabe, apenas é viável conhecer do mérito da causa no despacho saneador “sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória” (al. b) do n.º 1 do art.º 595.º do CPC).
[7] Assim, Ac. da RC de 20.01.2015, proferido no proc. n.º 2996/12.0TBFIG.C1. No mesmo sentido, de distinção das nulidades da sentença dos vícios que afectam a própria elaboração da decisão de facto vide Ac. da RL de 29.10.2015, proferido no proc. nº 161/09.3TCSNT.L1-2, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[8] Sendo que este, de algum modo, até confirma a conclusão fáctico-jurídica extraída pelo tribunal a quo.
[9] Assim, vide, entre outros, Acs do STJ de 29.04.2015, em nota de rodapé (7), proferido no proc. n.º 306/12.6TTCVL.C1.S1 e de 28.09.2017, proferido no proc. n.º 809/10.7TBLM.C1.S1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt
[10] Ac. do STJ de 29.04.2015, Proc. n.º 360/12.6TTCVL.C1.S1 , 4.ª secção, acessível em www.dgsi-pt
[11] Neste sentido, vide Ac. STJ de 14.05.2014, Proc. n.º 260/07.6TTVRL.P1.S1, 4.ª secção, acessível em ww.dgsi.pt
[12] Neste sentido, vide LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado”, 1.º, 3.ª ed., Coimbra, pp. 19
[13] Assim LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, op. cit., pp. 9 e PAULO RAMOS DE FARIA e ANA LOUREIRO, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, I, Almedina, pp. 27 e 28.
[14] Assim, o Ac. do STJ de 22.02.2017, proferido no proc. n.º 1512/07.0TBCSC.L1. e acessível em www.dgsi.pt
[15] Assim, vide o Ac. do STJ de 05.07.2018, proferido no proc. n.º 1339/16.9T8FAR.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt, que se segue de perto.