Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
58/11.7BORQ-B.E1
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: BENS RELATIVAMENTE IMPENHORÁVEIS
CÂMARA MUNICIPAL
Data do Acordão: 06/05/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Sumário:
Apenas se um bem/saldo de conta bancária de Câmara Municipal estiver especialmente afectado à realização de fins de utilidade pública – a verificar de acordo com as circunstâncias do caso concreto – é que ficará isento de penhora, na previsão do artigo 823.º, n.º 1, do anterior CPC (actual artigo 737.º, n.º 1).

Sumário do relator
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes nesta Relação:

A Apelante/Executada “Câmara Municipal de ...”, aí com sede na …, vem interpor recurso da douta sentença que foi proferida em 15 de Novembro de 2013 (ora a fls. 52 a 55 verso), nestes autos de oposição à penhora, que havia deduzido no Tribunal Judicial da comarca de Ourique, contra a Apelada/Exequente “P..., Lda.”, com sede na … [correndo a execução por um montante de € 8.417,34 (oito mil, quatrocentos e dezassete euros, trinta e quatro cêntimos)] – decisão que julgando improcedente a oposição, manteve a penhora efectivada sobre os saldos bancários existentes em conta da Executada (com o fundamento que aí vem aduzido de que “os saldos bancários de que é titular uma Câmara Municipal podem ser penhorados, designadamente numa execução para pagamento de quantia certa, que não assenta numa garantia real”) –, intentando ver agora revogada tal decisão da 1ª instância, e que venha ainda a deferir-se a oposição e a levantar-se a penhora, alegando, para tanto, em síntese, que a decisão recorrida não fez a aplicação correcta do regime jurídico vertido no artigo 823.º, nº 1, do CPC, porquanto são impenhoráveis esses saldos bancários por estarem afectos à realização de fins de utilidade pública, isto é, tratarem-se de bens “sem os quais a entidade fica impossibilitada de prosseguir o seu escopo”, pelo que, assim, “a penhora efectuada, com a retenção do saldo, implicará que a Recorrente incumpra os compromissos que assumiu em sede judicial com os seus credores, mas igualmente, e mais grave, não consiga, desde logo, proceder ao pagamento dos salários dos seus funcionários, o que implicará cortes nos fornecimentos de materiais e serviços, dada a desconfiança gerada anteriormente junto desses mesmos fornecedores”. É, assim, “inequívoco que o saldo existente naquela conta bancária estava especial e efectivamente afetado à actual realização de fins de utilidade pública do Município”, conclui. “É, ainda, insofismável que a factualidade considerada provada impunha uma decisão que ordenasse o imediato levantamento da penhora sobre aquela conta”. São termos em que deverá a douta sentença recorrida vir agora a ser revogada.
Não foram apresentadas contra-alegações de recurso.
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Vêm dados por provados os seguintes factos:

1) Foi efectuada penhora de depósito bancário da conta …, aberta na “Caixa Geral de Depósitos” em nome da Executada.
2) A conta bancária sobre a qual recaiu a penhora é uma conta de operações de tesouraria, sendo que a quantia monetária constante da referida conta se destina a entregar à Caixa Geral de Aposentações pelos seus funcionários, a descontos de vencimentos nos salários dos seus funcionários por força de processos judiciais onde foram penhorados vencimentos, a entregar à Direcção-Geral do Tesouro, quando incidem penhoras sobre os vencimentos de trabalhadores.
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Ora, a questão que demanda apreciação e decisão da parte deste Tribunal ad quem é a de saber se o Tribunal a quo decidiu bem pela penhorabilidade dos saldos bancários de uma Câmara Municipal, ou se deveriam os mesmos ter sido considerados impenhoráveis, por se acharem adstritos à realização de fins de utilidade pública do respectivo Município. É isso que hic et nunc está em causa, como se extrai das conclusões alinhadas no recurso apresentado.

Nos termos do artigo 823.º, n.º 1, do anterior Código de Processo Civil – mas em vigor à data da penhora e da dedução da presente oposição e, portanto, aplicável ao caso –, “Estão isentos de penhora, salvo tratando-se de execução para pagamento de dívida com garantia real, os bens do Estado e das restantes pessoas colectivas públicas, de entidades concessionárias de obras ou serviços públicos ou de pessoas colectivas de utilidade pública, que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública”.
[No novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, o regime é o mesmo, na previsão do n.º 1 do seu artigo 737.º.]

Porém, afinal, e apesar de vir avisando que não é essa a sua posição, a ora apelante/executada/opoente não deixa de perfilhar – escudando-se nela – a tese de que toda e qualquer conta bancária de que seja titular uma Câmara Municipal é destinada a fins de utilidade pública e, portanto, isenta de penhora.
O que é, de todo, inaceitável, face àquele preceito legal.
Pois que se assim não fosse, não viria, por exemplo, defender, como vem, que é de utilidade pública um desconto no vencimento de um seu trabalhador, ordenado por um Tribunal (podendo também sê-lo, v. g., pelas Finanças ou pela Segurança Social). Esse é um fim de utilidade bem particular dos respectivos credores. E, no entanto, também com base nele, a par de outros, vem a Apelante defender a impenhorabilidade dos saldos das suas contas bancárias, por estarem adstritos a fins de utilidade pública.

Naturalmente, que não foi nada disso que quis o legislador – sob pena de se achar (e blindar) um sistema que acabaria por ser prejudicial para as próprias Câmaras Municipais e para o badalado interesse público, pois que dificilmente, assim, alguém com elas passaria a contratar ou a emprestar-lhes dinheiro.
O sistema é mais um equilíbrio entre o interesse dos credores (afinal, o do próprio comércio jurídico) e o interesse público sério e efectivamente existente, como inculca a utilização, no mencionado preceito, do advérbio Especialmente (“… que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública”). Não é a afetação a um fim de utilidade pública qualquer (como serão praticamente todos aqueles a que procede uma Câmara Municipal), mas que tais bens se encontrem especialmente afetados a um desses fins.
E como é que um valor exequendo de cerca de € 8.500,00 põe em causa tudo aquilo que a Apelante diz que põe? (“A penhora efectuada, com a retenção do saldo, implicará que a Recorrente incumpra os compromissos que assumiu em sede judicial com os seus credores, mas igualmente, e mais grave, não consiga, desde logo, proceder ao pagamento dos salários dos seus funcionários, o que implicará cortes nos fornecimentos de materiais e serviços, dada a desconfiança anteriormente gerada junto desses mesmos fornecedores”, aduz). Pois se trata apenas de retirar da conta bancária (ela própria o pode fazer voluntariamente) o valor necessário à execução, e a vida da Câmara continua!...

Pelo que, salva melhor opinião, se constata que, afinal, a douta sentença impugnada decidiu acertadamente a problemática que lhe era colocada, atentos precisamente os contornos do caso concreto, não fazendo a penhora perigar um qualquer tipo de interesse público de relevo, assim dando cumprimento à regra geral da penhorabilidade de todos os bens do devedor (estabelecida no artigo 821.º do C.P.C.), e não havendo nenhum motivo para lhe introduzir a excepção prevista naqueloutro normativo legal (artigo 823.º).
[Vide, em apoio da solução por nós propugnada, o Conselheiro Lopes do Rego, no seu “Comentários ao Código de Processo Civil”, volume II, 2ª edição, ano de 2004, anotação II ao artigo 823.º, a páginas 47: aqui se estabelece que “a impenhorabilidade relativa pressupõe que os bens em causa estejam especial e efectivamente afectados à (actual) realização de fins de utilidade pública” (este sublinhado é nosso); e o Conselheiro Eurico Lopes Cardoso, no seu “Manual da Acção Executiva”, da INCM, ano de 1987, página 330: “as coisas particulares pertencentes aos corpos administrativos, as coisas do seu domínio privado, ao contrário do que sucedia perante o Código de 1876, podem, sem restrições, ser apreendidas para a execução, desde que não estejam afectadas ou aplicadas a fim de utilidade pública”.]

Razão para que, nesse enquadramento fáctico e jurídico, se deva, agora, manter, intacta na ordem jurídica, a douta sentença da 1ª instância que assim veio a decidir, e improcedendo o presente recurso de Apelação.

E, em conclusão, dir-se-á:
Apenas se um bem/saldo de conta bancária de Câmara Municipal estiver especialmente afectado à realização de fins de utilidade pública – a verificar de acordo com as circunstâncias do caso concreto – é que ficará isento de penhora, na previsão do artigo 823.º, n.º 1, do anterior CPC (actual artigo 737.º, n.º 1).
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pela Apelante.
Registe e notifique.
Évora, 05 de Junho de 2014
Mário João Canelas Brás
Jaime de Castro Pestana
Paulo de Brito Amaral