Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
687/16.2.T8TMR-H.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: CONVENÇÃO SOBRE OS ASPECTOS CIVIS DO RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS - CONVENÇÃO DE HAIA
ASSINADA EM 25 DE OUTUBRO DE 1980
ENTREGA JUDICIAL DE MENOR
CASO JULGADO
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1. O caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo posterior quando o objecto processual anterior (pedido e causa de pedir) é condição para a apreciação do objecto processual posterior.
2. O juiz tem de se abster de voltar a apreciar a matéria ou a questão que já se mostra jurisdicionalmente decidida, em termos definitivos, mas este juízo de abstenção não pode ser executado de modo formal e estático.
3. As decisões judiciais, como os contratos, como as leis, devem ser interpretadas, no seu contexto legal e processual, na sua lógica, e não apenas lidas.
4. No caso de entrega judicial de menores, caso surjam alterações dinâmicas supervenientes, o Tribunal pode rever ou alterar a decisão prévia de restituição ao progenitor residente fora do país, designadamente sempre que, por via da aplicação do artigo 4.º da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, o menor perfaça, entretanto, 16 anos.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 687/16.2.T8TMR-H.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Família e Menores de Santarém – J3
*
=CLS=
*
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
*
I – Relatório:
Nos presentes autos de entrega judicial de menores, a requerente (…) não se conformou com a decisão que indeferiu o pedido de não entrega de (…), por, entretanto, o menor ter completado 16 anos de idade.
A requerente interpôs ainda recurso da decisão que determinou à Autoridade Central da DGRSP que indicasse data, modo e operacionalização da entrega dos menores.
*
A – Da extinção da obrigação de entrega relativamente ao menor (…):
O Ministério Público requereu a instauração, com carácter de urgência, de processo para entrega judicial daquelas crianças (em executoriedade de decisão judicial proferida por Autoridade Judiciária Francesa) contra a mãe dos menores, (…).
*
Em 29/07/2014, o Tribunal de Família de Grande Instância de Bobigny decidiu que as responsabilidades parentais eram exercidas em conjunto pelo pai e mãe e que a guarda ficava deferida ao pai, que mantém residência em França, com início em Setembro de 2014.
*
Em 15/04/2016, os menores (…) e (…) saíram com a mãe de França e não regressaram na data acordada.
*
No dia 11/07/2019, o Tribunal “Grande Instance de Paris” determinou que a residência habitual da (…) e do (…) estava fixada junto do progenitor e que, como tal, estas crianças deviam regressar, de imediato, para junto daquele.
*
No dia 19/07/2019, a Autoridade Central Francesa solicitou à Autoridade Central Portuguesa (DGRSP) a execução do pedido de regresso daqueles menores ao território Francês, ao abrigo do disposto no n.º 8 do artigo 11.º do Regulamento CE 2201/2003.
*
Recebidos os autos, foi designada data para a audição das crianças.
*
Mostra-se junta aos autos certidão prevista no artigo 42.º e 11.º, n.º 8, do Regulamento (CE)a2201/2003, do Conselho, de 27NOV.
*
Por sentença datada de 12/09/2019, o Juízo de Família e Menores de Santarém (J3) decidiu estar verificada a executoriedade em Portugal da sentença proferida em 11/07/2019, pelo Tribunal de Grande Instance de Paris, em França, no processo n.º RG 19/35392, em que são partes o Requerente (…) e Requerida (…) e é determinada a entrega dos menores (…) e (…) ao pai, ao abrigo do estatuído nos artigos 11.º, n.º 8 e 42.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003.
*
Foi interposto recurso desta decisão. E, em 30/01/2020, o Tribunal da Relação de Évora julgou improcedente o recurso interposto, confirmando a decisão recorrida.
*
Interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, este Colendo Tribunal decidiu não admitir o recurso interposto.
Em sede de conferência, após reclamação, por acórdão lavrado em 20/01/2021, o Supremo Tribunal de Justiça não conheceu da reclamação, por ser extemporânea.
*
A título incidental, por requerimento datado de 03/12/2020, o Ministério Público veio, ao abrigo do disposto no artigo 4.º da Convenção Sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, solicitar que se declarasse que, em virtude de (…), nascido em 22/07/2004, ser já maior de 16 anos de idade, o mesmo deixou de estar abrangido por essa Convenção.
Mais requereu que essa declaração fosse levada em conta, designadamente para efeitos de não concretização da entrega do jovem em apreço.
*
O Supremo Tribunal de Justiça indeferiu essa pretensão com base na seguinte fundamentação: «a requerente pede a extinção da instância por inutilidade com fundamento no facto de o menor (…) ter completado 16 anos, e por esse motivo já não lhe ser aplicável a Convenção de Haia nos termos do seu artigo 4.º. E justifica a extinção da instância quanto à menor (…) “por extensão, por via da não separação dos irmãos”.
A convenção invocada pelo recorrente é a Convenção Sobre Aspectos Civis do Rapto Internacional, aprovada em Haia, e aprovada pelo Decreto do Governo n.º 33/83, DR, 1ª série de 11.05.1983.
A situação dos autos não se subsume àquela Convenção, que não foi invocada na decisão recorrida; o que está em causa nos autos é o reconhecimento e execução de uma decisão proferida por um tribunal francês em que o tribunal português é um mero Tribunal de Execução nos termos do Regulamento n.º 2201/2003 do Conselho, de 27.11.2003.
Não existe, assim, fundamento para declarar a extinção da instância, motivo por que se indefere o requerido a fls. 358».
*
Em 24/02/2021, o Ministério Público renovou a pretensão em causa junto da Primeira Instância[1] e o Juízo de Família e Menores de Santarém afirmou que o requerido já tinha sido objecto de decisão do Supremo Tribunal de Justiça, reproduzindo parte dessa decisão, julgando assim improcedente o referido pedido.
*
B – Decisão que determinou que a Autoridade Central da DGRSP indicasse datas e modo e operacionalização da entrega dos menores.
Em 18/02/2021 foi prolatada a seguinte decisão: «Comunique à Autoridade Central Direção-Geral de Reinserção Social, sendo ainda para indicar data e modo de operacionalizar a entrega dos menores».
*
Inconformada com tais decisões, a recorrente apresentou recursos de apelação[2] e as respectivas alegações continham as seguintes conclusões:
«1) Conforme consta dos autos, o menor (…) atingiu a idade de 16 anos no passado dia 22.07.2020.
2) Corre no apenso E nestes autos, no mesmo tribunal a quo autos de alteração do exercício das responsabilidades parentais, doutamente promovido pelo Ministério Público em representação dos menores.
3) Atualmente, as circunstâncias relativas aos menores já não são as mesmas que se verificavam quando França requereu a Portugal (em Julho de 2019) a entrega destas crianças.
4) Todavia, ao invés de analisar e subsumir a realidade atual e as circunstâncias atuais em que se encontram os menores atualmente nas normas legais aplicáveis, emite-se a decisão recorrida que se demite da sua função de decidir em conformidade com os factos, para se “demitir dessa função” e socorrer-se de uma decisão do STJ que nada mais foi que uma decisão sobre um requerimento de extinção de instância naquele processo que corria termos naquele STJ.
a) A decisão recorrida foi proferida apesar de ter elementos no processo que indicam o seguinte:
b) Existe e encontra-se pendente um pedido de transferência de competência, ao abrigo do artigo 15.º do Regulamento 2201/2003, DE 27.11 DE 2003, a dirigir ao Tribunal de Grande Instância de Bobigny, para que os autos de regulação de poder paternal passem a ser tramitados em Portugal;
c) (…) e (…) mantêm, na atualidade, uma ligação especialmente estreita com Portugal, seja pelo facto de este ser o país da sua nacionalidade seja porque, desde há quase cinco anos, o seu quotidiano familiar, escolar, social e afetivo se desenvolve, sem interrupções, neste país.
d) É em Portugal que, entre outras, se situam as estruturas escolares e de saúde que, de forma próxima, têm tido intervenção na vida de (…) e de (…).
e) Corre uma ação de alteração de regulação do exercício das responsabilidades parentais promovida pelo MP junto do Tribunal.
f) (…) tem hoje a idade de 13 anos e (…) tem a idade de 16 anos e manifestam a sua vontade em ficar a viver com a sua mãe e seu agregado familiar, em Portugal.
g) Atenta a idade dos menores a sua vontade não pode deixar de ser valorizada.
h) Os menores estão a viver com a respetiva mãe e declaram-se e sentem-se bem com essa situação.
i) A Convenção de Haia de 1980 deixou de ser aplicável ao jovem (…) uma vez que o mesmo atingiu já os 16 anos de idade (artigo 40.º da Convenção).
j) A permanência dos menores (…) no mencionado agregado familiar juntamente com os seus irmãos preservará os laços e vivências afetivas a que todos estão habituados.
k) Só essa permanência dos menores no respetivo agregado materno contribuirá para a manutenção das suas rotinas e ligações afetivas diárias construídas.
l) Ou seja, se os menores se mantiverem no agregado materno salvaguardam-se as relações familiares já estabelecidas, preserva-se o seu círculo de relações, a estabilidade emocional daqueles e, bem assim, toda a estruturação de vida que, entretanto, os mesmos granjearam e que se lhes tem revelado favorável.
m) A vontade manifestada pelos jovens é, atenta a sua idade, consciente, legítima, atendível e merece ser relevada.
n) A pretensão dos jovens tem acolhimento na Convenção dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de setembro de 1990 e também por França em 7.09.1990: Art. 3.º: n.º 1 todas as ações relativas à criança, sejam elas levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de assistência social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar primordialmente o melhor interesse da criança.
5) Com o devido respeito, o que se pedia era que a decisão recorrida olhasse para os autos e procurasse entender que os autos e estes menores pedem que se tenham em conta as suas circunstâncias concretas.
6) Como explicar ao menor (…), que já tem 16 anos de idade, que tem que ir para França com base numa Convenção que já se não lhe aplica. Como explicar à menor (…) que tem que ir para França sozinha e deixar os seus irmãos aqui em Portugal, cortando de forma abrupta todos os laços que enraizou aqui em Portugal na comunidade escolar, nos amigos e vizinhos e com a sua família que tem estado ligada em Portugal sem interrupções desde 2016. Para voltar para um progenitor que nunca a procurou sequer… O tribunal a quo consegue explicar isto? E enquadrar a vida dos menores neste contexto?
7) A decisão recorrida é uma decisão tecnocrata, fria, desumana e, por isso, impensável do ponto de vista, legal, consuetudinário e constitucional.
8) Cuja interpretação ofende os princípios mais elementares da base de qualquer ser humano.
9) “A criança gozará de proteção especial e deverão ser-lhe dadas oportunidades e facilidades através da lei e outros meios para o seu desenvolvimento psíquico, mental, espiritual e social num ambiente saudável e normal e em condições de liberdade e dignidade. Na elaboração das leis com este propósito, o superior interesse da criança constituirá a preocupação fundamental – “Princípio 2.º da Declaração dos Direitos da Criança de 1959”.
10) “Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas, ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança” – artigo 3.º da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989.
11) Na procura da concretização do mencionado princípio apoiamo-nos no artigo 69.º da Constituição da República Portuguesa, procurando sempre o desenvolvimento integral da criança.
12) O direito que a criança tem à conservação das suas ligações psicológicas profundas, ou seja, numa continuidade das relações afetivas estruturantes e do seu interesse, são, há mais de duas décadas reconhecidas como base na interpretação sistemática das normas vigentes.
13) Os menores, (…) e (…), conforme consta de dois pareceres médicos, encontram-se do ponto de vista psicológico, estáveis desde que se encontram com a Requerente. Gera-se uma certa perturbação e ansiedade nos menores com a simples possibilidade de poderem regressar para França.
14) Os menores encontram-se em Portugal, desde 2016, legalmente, conforme decisão do tribunal de Tomar. E mercê desses factos, o menor (…) encontra-se atualmente com 16 anos de idade! O que se traduz numa circunstância nova que altera os termos do processo.
15) Se virmos este direito reconhecido ás crianças, de continuarem a conservar esta ligação afetiva e psicológica criada e perfeitamente estável, torna-se indispensável até para a saúde mental dos menores e o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade.
16) Residindo os menores, desde 2016 em Portugal, e não querendo estes voltar para França, para junto do seu progenitor, já nos revela tempo suficiente para se garantir que se encontram estáveis e com laços e relações perfeitamente estruturadas.
17) Os menores encontram-se com a Requerente, e na verdade como refere Bowlby (1988) e Berger (1998), "a relação precoce afectiva entre bebé e mãe, ou outra figura de vinculação, pautada pela segurança, a protecção e regulação emocional, marca o desenvolvimento psicológico do indivíduo, os sentimentos existenciais básicos de confiança e segurança em si próprio e no outro".
18) Toda a convivência, todos os cuidados que são prestados às crianças pela Requerente, fazem com que estas desenvolvam modelos internos de vinculação muito fortes. Os menores demonstram que não querem claramente voltar para França.
19) A decisão recorrida não teve em conta o superior interesse das crianças. O Tribunal deveria ter prosseguido este interesse, de modo a defendê-lo e a preservá-lo. Nada disso aconteceu. Sabendo-se, inclusive, dos maus tratos que os menores sofreram em França, por parte do Pai, porque tal foi referido expressamente pelos menores e consta do processo.
20) A criança tem o direito de ver a sua opinião ser tomada em consideração.
Não podemos continuar a assistir à sucessiva deliberação de decisões sobre estas crianças, sem que lhes seja dada oportunidade de expressar a sua opinião. Tanto mais agora em que a própria Lei confere a faculdade de não se aplicar ao caso do menor (…), pelo facto de este ter atingido os 16 anos.
21) Como refere Fernanda Palma a propósito da audição da criança trata-se de “uma abertura da regulação jurídica a um sujeito de direitos especialmente frágil e que necessita de participar na definição de algo complexo, que é o seu interesse, evitando-se o tradicional modelo paternalista”.
22) Se o nosso País foi precursor na consagração legal do direito da criança a ser ouvida, esta é mais uma oportunidade para se elevar essa capacidade que Portugal sempre demonstrou ser pioneiro em olhar em primeiro lugar para as pessoas e para as circunstâncias pessoais de cada um.
23) Fomos os pioneiros na abolição da escravatura, na abolição da pena de morte e na aceitação do superior interesse das crianças.
24) A Convenção sobre os Direitos da Criança veio reforçar este direito da criança, no seu artigo 12.º ao estabelecer que deve ser garantido à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade.
25) O que se viabiliza de extrema importância é que os menores (…) e (…) cresçam num cerne de promoção do seu bem-estar e do seu desenvolvimento.
26) Olhar pelo superior interesse das crianças, é também permitir a preservação da relação afetiva que estas têm com o seu irmão de 6 anos. 27) Merece também ponderação a situação das fratrias, cuja separação deverá ser evitada, sob pena de poderem ser causados prejuízos sérios na estabilidade afetiva e no equilíbrio emocional das crianças.
28) E sobre o superior interesse da criança cita, os Desembargadores Helena Bolieiro e Paulo Guerra, in A Criança e a Família – Uma questão de Direitos, Coimbra Editora, 2009, pág. 322, que propõem a seguinte forma de densificação do conceito “superior interesse da criança”: «[…] podemos definir o interesse superior da criança (não definido em termos legais) como o interesse que se sobrepõe a qualquer outro interesse legítimo».
29) O Comité dos direitos da Criança explica que: “O conceito do interesse superior da criança é, portanto, flexível e adaptável. Deverá ser ajustado e definido numa base individual, em conformidade com a situação específica da criança ou das crianças envolvidas, tendo em conta o seu contexto, situação e necessidades pessoais”.
30) Com o devido respeito, o tribunal consente num completo atropelo aos direitos das crianças e sem qualquer tipo de preocupação em apurar qual é, efetivamente, o superior interesse dos menores (…) e (…).
31) Desrespeitando o que a Constituição consagra no artigo 69.º, n.º 1: “As crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições”.
32) A decisão recorrida não teve capacidade para aplicar o direito às circunstâncias destes autos, que agora se alteraram.
33) Já não estamos no domínio da Convenção de Haia. Isso resulta da Lei.
34) Devia pura e simplesmente aplicar-se a Lei e olhar para o superior interesse destes menores.
35) Verifica-se, igualmente, que o tribunal não teve em conta disposições legais, tais como: artigos 3.º e 12.º da Convenção sobre os Direitos da Criança adotada pela Assembleia-geral da ONU.
36) Não se preocupou em explicar porque não as considerou.
37) Com o entendimento proferido na decisão recorrida não se deram à recorrente todas as garantias de defesa, bem como se proferiu uma “decisão surpresa” que não devia ter sido proferida, sem, pelo menos se dar a oportunidade à recorrente para se pronunciar ou corrigir o que houvesse a corrigir.
38) Acrescendo ainda que esta decisão foi proferida sem que se desse prévio conhecimento da sua intenção às partes, sem se ouvir os menores, sem se ter em consideração que as circunstâncias do processo implicam uma nova avaliação dos autos, bem como determinam novos ditames no sentido em que se mostra imprescindível uma nova reapreciação porque está em causa agora a separação destes irmãos o que é inconcebível a todos os níveis.
39) Mas, com tal entendimento faz-se “tábua rasa” de tudo isto sem se importar com estas crianças.
40) A decisão proferida pelo tribunal a quo não apreciou assim devidamente o presente processo, nem conseguiu interpretar devidamente os elementos em questão neste processo, nem tomou devido conhecimento das questões que lhe foram apresentadas.
41) Nem conseguiu aplicar devidamente a Lei a este caso concreto.
42) Sofre, assim, a decisão recorrida de nulidade, que aqui se invoca com todos os efeitos legais (artigos 615.º, n.º 1, alínea d) e 616.º, n.º 2, alíneas a) e b), todos do CPC).
43) A decisão recorrida não esteve à altura das circunstâncias suprarreferidas e não interpretou corretamente os elementos constantes dos autos, nem interpretou e aplicou devidamente as normas jurídicas aplicáveis ao caso em concreto, face à nossa Constituição.
44) Deverá, assim, revogar-se a decisão recorrida.
Termos em que, se requer a V. Exªs revogação da decisão recorrida, por ser de Lei, Direito e Justiça».
*
O Ministério Público contra-alegou.
*
Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso o thema decidendum está circunscrito à apreciação das nulidades suscitadas e da possibilidade de entrega do menor.
*
III – Factos com interesse para a justa decisão provisória da causa:
Além da matéria já descrita no relatório inicial, com relevância para a justa decisão da causa têm interesse os seguintes factos:
1. (…) nasceu em 22/07/2004 e é natural de (…), Seine Saint Denis, França.
2. (…) nasceu em 05/08/2007 e é natural de (…), Seine Saint Denis, França.
3. Ambos têm registado como pai (…) e como mãe (…).
4. Em 29/07/2014 por decisão do Tribunal de Família de Grande Instância de Bobigny foi fixado o exercício das responsabilidades parentais conjunto pelo pai e mãe com guarda e residência com o pai em França, a partir do início de Setembro de 2014.
5. Os menores saíram com a mãe de França em 15/04/2016, com regresso previsto a 01/05/2016, não mais tendo regressado, tendo ficado viver com a mãe.
6. Por decisão de 06/03/2017, já transitada em julgado, proferida nos autos principais, o Tribunal recusou-se a ordenar o regresso dos menores para junto do progenitor.
7. No dia 11/07/2019, conhecendo a referida decisão judicial proferida nestes autos, tendo a requerida sido representada no ato por um Defensor, o Tribunal “Grande Instance de Paris” determinou, além do mais, que a residência habitual dos menores fosse fixada junto do progenitor, ordenando o regresso dos menores.
8. No dia 19/07/2019, aquele Tribunal, Autoridade Central Francesa, veio solicitar, à Autoridade Central Portuguesa (DGRSP), a execução do pedido de regresso daqueles menores ao território Francês, ao abrigo do disposto no artigo 11.º, n.º 8, do Regulamento CE 2201/2003, tendo remetido a certidão prevista no artigo 42.º do mesmo regulamento.
9. As crianças foram, novamente, ouvidas, tendo manifestado clara oposição a regressarem a casa do pai, tendo declarado preferirem ficar com a mãe.
10. Por sentença datada de 12/09/2019, o Juízo de Família e Menores de Santarém (J3) decidiu estar verificada a executoriedade em Portugal da sentença proferida em 11/07/2019, pelo Tribunal de Grande Instance de Paris, em França, no processo n.º RG 19/35392, em que são partes o Requerente (…) e Requerida (…) e é determinada a entrega dos menores (…) e (…) ao pai, ao abrigo do estatuído nos artigos 11.º, n.º 8 e 42.º do regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, de 27/11/2003.
11. Em 30/01/2020, o Tribunal da Relação de Évora julgou improcedente o recurso interposto, confirmando a decisão recorrida.
12. Interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, este Colendo Tribunal decidiu não admitir o recurso interposto.
13. Em sede de conferência, após reclamação, por acórdão lavrado em 20/1/2020, o Supremo Tribunal de Justiça não conheceu da reclamação, por ser extemporânea e, a título incidental, relativamente à pretensão de extinção do procedimento relativamente ao menor (…), indeferiu o requerido.
14. A pretensão em causa foi renovada junto da Primeira Instância e o Juízo de Família e Menores de Santarém afirmou que o requerido já tinha sido objecto de decisão do Supremo Tribunal de Justiça, reproduzindo parte dessa decisão, termos que não haveria a determinar a esse propósito.
*
IV – Fundamentação:
4.1 – Nulidade relativa à omissão de pronúncia:
De acordo com a primeira parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, a sentença é nula, quando «o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».
Entende a recorrente que o Tribunal «a quo» violou a sobredita norma. A nulidade da decisão por omissão de pronúncia só acontece quando o acto decisório deixa de decidir alguma das questões suscitadas pelas partes, salvo se a decisão tiver ficado prejudicada pela solução dada a outra questão submetida à apreciação do Tribunal.
Questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
É a violação daquele dever que torna nula a decisão e tal consequência justifica-se plenamente, uma vez que a omissão de pronúncia se traduz, ao fim e ao cabo, em denegação de justiça e o excesso de pronúncia na violação do princípio dispositivo que contende com a liberdade e autonomia das partes.
Coisa diferente são as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, as quais correspondem a simples argumentos e não constituem questões na dimensão valorativa estipulada no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.
Na esteira do preconizado por Alberto dos Reis há que não confundir questões suscitadas pelas partes com motivos ou argumentos por elas invocados para fazerem valer as suas pretensões. Na realidade, «são, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão»[3].
É jurisprudência consolidada e absolutamente pacífica que não pode falar-se em omissão de pronúncia quando o tribunal, ao apreciar a questão que lhe foi colocada, não toma em consideração qualquer argumento alegado pelas partes no sentido de procedência ou improcedência da acção. O que importa é que o julgador conheça de todas as questões que lhe foram colocadas, excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras[4].
E aqui todas as questões suscitadas foram apreciadas. Aliás, trata-se de um requerimento formulado pelo Ministério Público em que apenas se pretendia a não entrega do menor (…). E na outra apelação autónoma, em função do estado do processo, de forma oficiosa, o Tribunal «a quo» decidiu determinar a intervenção da autoridade nacional para operacionalizar a entrega de ambos os menores.
E, por conseguinte, não existe qualquer nulidade por omissão de pronúncia ao abrigo da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, não havendo lugar à reforma da decisão nos termos das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 616.º do Código de Processo Civil.
*
4.2 – Da violação do princípio do contraditório:
Para além desta regra base precipitada no artigo 3.º[5] do processo civil português, existem regras de direito internacional, convencional e interno que impõem a audição dos menores em todos os procedimentos susceptíveis de afectar os respectivos interesses, direitos e garantias.
Relativamente à questão matricial da entrega é fácil de descortinar que os menores foram ouvidos (diligência ocorrida em 19/08/2019). Efectivamente, os menores já se pronunciaram categoricamente sobre a pretensão de se manterem em território nacional. Para além disso, os menores não têm se ser ouvidos sobre matérias de cariz meramente jurídico sempre que as mesmas são suscitadas jurisdicionalmente.
Não existe assim a preterição do exercício do contraditório.
*
4.3 – Das questões novas:
O requerimento do Ministério Público que está na génese do presente recurso tem um único objecto e o mesmo tinha a finalidade de não ser concretizada a entrega de (…), dado que este completou 16 anos e assim já não está abrangido pela obrigação de restituição previamente determinada.
Lidas as alegações formuladas pela recorrente constata-se que o articulado de recurso contempla matérias não abrangidas pela decisão e que não foram suscitadas junto do Tribunal de Primeira de Instância, onde sobressai o tema da eventual separação dos irmãos.
Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo acto recorrido. Na verdade, Miguel Teixeira de Sousa ensina que no direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o Tribunal recorrido no momento do seu proferimento. Isto significa que, em regra, o Tribunal não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados. Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamento de questões novas[6].
De acordo com a jurisprudência unânime dos Tribunais Superiores[7] os recursos ordinários visam o reexame da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o Tribunal recorrido no momento em que a proferiu. A título de exemplo, pode consultar-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 2010[8] que firmou posição no sentido de que «os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a conhecer questões novas, não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas sim a apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso. Despistam erros in judicando, ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados (quanto à questão de facto), ou com referência à regra de direito respeitante à prova, ou à questão controvertida (quanto à questão de direito) que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. Assim, o julgamento do recurso não é o da causa, mas sim do concreto recurso e tão só quanto às questões concretamente suscitadas e não quanto a todo o objecto da causa. Não pode, pois, o Tribunal Superior conhecer de questões que não tenham sido colocadas ao Tribunal de que se recorre». Também na segunda instância a jurisprudência editada é idêntica[9].
Deste modo, a matéria introduzida ex novo não é susceptível de ser apreciada em sede de recurso. E, com isto, não se está a ignorar ou a desvalorizar a questão suscitada, mas tão só a afirmar que, pelo menos no âmbito das decisões recorridas, o Juízo de Família e Menores de Santarém nunca foi confrontado com os assuntos inovadores que foram introduzidos na peça de impugnação da decisão recorrida e, como decorrência lógica, também o Tribunal de Recurso está impedido de o fazer.
*
4.4 – Das hipotéticas inconstitucionalidades:
As matérias relativas à inconstitucionalidade não têm acolhimento, pois, para além da problemática do domínio do direito internacional sobre o direito interno, não foi alegada uma concreta violação da lei fundamental com referência a um acto normativo.
As matérias relativas à inconstitucionalidade não têm acolhimento, face ao domínio do direito internacional sobre o direito interno, aliada ao facto de não ter sido alegada uma concreta violação da lei fundamental com referência a um acto normativo.
Na verdade, ao cabo e ao resto, a parte recorrente limita-se a categorizar de injusta a medida de entrega judicial, invocando, em benefício da sua tese, normas constitucionais sobre a defesa da família, designadamente o artigo 69.º da Constituição da República Portuguesa.
Porém, na dimensão teórico-prática, a aferição da compatibilidade constitucional é dirigida a normas e não a decisões judiciais, por o sistema jurídico não comportar o recurso de amparo. Efectivamente, o modelo de fiscalização da constitucionalidade adoptado internamente é de cariz meramente normativo, só aferindo a conformidade constitucional de actos normativos gerais e abstractos, ficando fora do controlo da justiça constitucional os actos não normativos, onde incluem, em primeira linha, as decisões judiciais. E é isto – e exclusivamente isto – que o articulado de recurso faz.
E, a montante, convém recordar que o Tribunal Constitucional tem uma jurisprudência perfeitamente consolidada sobre os requisitos de admissão de recursos incidentes sobre matérias de aferição da compatibilidade constitucional de normas, as quais aqui não estão minimamente cumpridas. E, tal omissão, repercute-se igualmente nos poderes de controlo da fiscalização concreta por parte dos Tribunais comuns.
*
4.5 – Do mérito da decisão:
Os presentes autos têm a sua génese no pedido formulado via autoridade central, com vista ao regresso dos menores para junto do progenitor, o qual foi feito formalmente ao abrigo do Regulamento CE n.º 2201/2003, de 27/11 e da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis de Rapto Internacional de Crianças concluída em Haia a 25/10/1980 e ratificada pelo Estado Português através do DL n.º 33/83 de 15/05, esta essencialmente no plano substantivo.
Por sentença datada de 12/09/2019, o Juízo de Família e Menores de Santarém (J3) decidiu estar verificada a executoriedade em Portugal da sentença proferida em 11/07/2019, pelo Tribunal de Grande Instance de Paris, em França, no processo n.º RG 19/35392, em que são partes o Requerente (…) e Requerida (…) e é determinada a entrega dos menores (…) e (…) ao progenitor pai, ao abrigo do estatuído nos artigos 11.º, n.º 8 e 42.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, do Conselho, de 27 de Novembro de 2003.
Esta decisão foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora e o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça não foi admitido. Neste colendo Tribunal, a título incidental, em sede de reclamação, o Ministério Público veio requerer a extinção do procedimento relativamente ao menor (…).
O Supremo Tribunal de Justiça decidiu que «a situação dos autos não se subsume àquela Convenção, que não foi invocada na decisão recorrida; o que está em causa nos autos é o reconhecimento e execução de uma decisão proferida por um tribunal francês em que o tribunal português é um mero Tribunal de Execução nos termos do Regulamento n.º 2201/2003 do Conselho, de 27.11.2003.
Não existe, assim, fundamento para declarar a extinção da instância, motivo por que se indefere o requerido a fls. 358».
Descidos os autos, a pretensão em causa foi renovada pelo Ministério Público junto da Primeira Instância e o Juízo de Família e Menores de Santarém afirmou que o requerido já tinha sido objecto de decisão do Supremo Tribunal de Justiça, reproduzindo parte dessa decisão, julgando assim improcedente o pedido formulado e dando seguimento ao procedimento de entrega dos menores.
*
Como ponto de partida para a discussão, é verdadeiramente lamentável que o advogado subscritor do recurso classifique a decisão em apreço como «uma perfeita aberração», em clara violação do dever de urbanidade e de respeito institucional, tal como seria igualmente censurável se o Tribunal de Recurso se prontificasse a depreciar as alegações de recurso. Existem mínimos éticos e deontológicos no exercício do mandato profissional que devem ser observados, independentemente do sucesso (ou não) dos pedidos formulados.
Relativamente à matéria do pedido de transferência de competência, ao abrigo do artigo 15.º do Regulamento n.º 2201/2003, apenas se poderá afirmar que a simples existência dessa solicitação não tem a virtualidade de suspender (rectius, extinguir) o cumprimento da determinação ordenada nos autos.
A requerente invoca ainda a existência de um pedido de alteração da regulação das responsabilidades parentais. Todavia, também aqui não existe qualquer decisão definitiva que permita concluir em sentido oposto àquele que já se encontra deliberado no processo.
A questão a apreciar tem, assim, o seu centro nuclear na existência ou não de caso julgado.
*
Sobre o alcance e o efeito preclusivo do caso julgado podem ser consultados Alberto dos Reis[10], Manuel de Andrade[11], Antunes Varela[12], Teixeira de Sousa[13], Fernando Ferreira Pinto[14], José João Batista[15] e Remédio Marques[16], entre outros.
O instituto do caso julgado material é analisado numa dupla perspectiva: como excepção de caso julgado e como autoridade de caso julgado. O caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo posterior quando o objecto processual anterior (pedido e causa de pedir) é condição para a apreciação do objecto processual posterior[17].
Na esteira daquilo que já deixamos atrás expresso, Alberto dos Reis refere que «o caso julgado exerce duas funções: a) uma função positiva; b) uma função negativa. Exerce a primeira quando faz valer a sua força e autoridade; exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo Tribunal. A função positiva tem a sua expressão quando faz valer a sua força e autoridade; exerce a segunda quando impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo Tribunal. A função positiva tem a sua expressão máxima no princípio da exequibilidade, consagrado no n.º 1 do artigo 46.º e nos artigos 47.º a 49.º, servindo de base à execução, o caso julgado afirma inequivocamente a sua força obrigatória, definida no artigo 671.º. A função negativa exerce-se através da excepção do caso julgado”[18]. Acrescenta seguir que quer se trate da função positiva, quer se trate da função negativa são sempre necessárias as três identidades exigidas pelo artigo 502.º (hoje artigo 581.º, n.º 1).
Essa imutabilidade ou indiscutibilidade da decisão judicial definitiva impede que a questão que foi objecto da decisão proferida e inimpugnável (ou não tempestiva e adequadamente impugnada) possa voltar a ser, ela própria, na sua essencial identidade, recolocada à apreciação do Tribunal: se tal ocorrer, por força da figura da excepção de caso julgado – que reflecte a chamada função negativa da figura do caso julgado – deve o juiz abster-se de voltar a apreciar a matéria ou a questão que já se mostra jurisdicionalmente decidida, em termos definitivos, como objecto de uma anterior acção[19].
O caso julgado previne decisões contraditórias concretamente incompatíveis e confere força vinculante ao acto de vontade do juiz que definiu uma hipótese jurisdicional num determinado contexto histórico, factual e jurídico. Com efeito, na esteira de Anselmo de Castro, perfilhamos o entendimento que o caso julgado visa apenas obstar à contradição prática e não já à contradição teórica ou lógica da decisão[20]. Isto é, a figura impede que «o Tribunal decida de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta, já definida por decisão anterior»[21].
No diálogo entre a lei, a doutrina e a jurisprudência pode afirmar-se que este efeito da sentença consiste exactamente na insusceptibilidade da substituição ou da modificação da decisão por qualquer Tribunal, incluindo o Tribunal que a tenha proferido[22].
O trânsito em julgado imprime à decisão carácter definitivo e, como tal, em nome dessa ideia de estabilidade processual, uma vez transitada em julgado, salvo nos casos excepcionalmente previstos, a decisão não pode ser alterada, prevalecendo inclusivamente em regra sobre a eficácia da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade.
*
É verdade que as decisões, como os contratos, como as leis, devem ser interpretadas, no seu contexto legal e processual, na sua lógica, e não apenas lidas[23]. E assim, antes de mais, importa fazer uma leitura actualista e integrada do segmento do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que foi posteriormente reproduzido na decisão recorrida.
Complementarmente, é também de sublinhar que, tanto na determinação (indagação), como na interpretação e na aplicação do direito, o juiz não está sujeito às alegações das partes (la court sait le droit; da mihi factum dabo tibi ius). Ter os movimentos livres na aplicação do Direito significa, além do mais, que o juiz não se encontra adstrito à qualificação jurídica dos factos efectuada pelas partes[24].
Esta é uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão, que busca o seu fundamento genético na tradição romana e tem a sua proclamação primária no brocado latino jura novit curia. Configura assim mandamento incontestável que: o Tribunal não está condicionado pelas alegações das partes no domínio da indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas.
E quem fala de qualificação fala igualmente dos instrumentos legais ou convencionais de suporte de qualquer pretensão.
*
A situação tem de ser analisada em dois planos distintos: o da formalidade e o da substância. E também em duas etapas interpretativas: a estática e a dinâmica. E é da combinação entre estes parâmetros que surge a resposta judicial à questão contida no requerimento do Ministério Público.
Na sua dimensão formal, o Ministério Público instaurou processo para entrega judicial daquelas crianças ao abrigo do disposto nos artigos 11.º, n.º 8, e 42.º do Regulamente CE do Conselho n.º 2201/2003 de 27/11/2003. E, numa óptica protocolar, o Supremo Tribunal de Justiça veio afirmar que, com base no instrumento convencional convocado na petição inicial, os seus poderes decisórios estavam esgotados e não poderia socorrer-se de outras fontes normativas internacionais.
E, com base neste pressuposto, até pela respectiva imediação e também pelo dever funcional de acatamento de decisões de Tribunais Superiores, o Tribunal de Primeira Instância replicou aquilo que tinha sido decidido. E num enfoque formal e estático a decisão recorrida estava devidamente fundamentada.
Analiticamente, o Supremo Tribunal de Justiça diz que não se pode pronunciar sobre a situação da separação dos irmãos, dado que a mesma não foi discutida no processo. Como já se mencionou no ponto 4.3 do presente acórdão também agora a primeira questão não integra o objecto dos autos, apesar de estar indevidamente integrada no articulado de recurso. E, assim sendo, a exemplo daquilo que já foi afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça, a resposta do Tribunal da Relação só poderia ser a mesma: trata-se de matéria inovatória insusceptível de ser conhecida em primeira mão pela instância recursiva.
Em adição, salvo melhor opinião, quanto à aplicação da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, o Supremo Tribunal de Justiça não declara que a mesma é inaplicável ao caso concreto, antes salienta que, força das regras de proposição de causas, recorrendo aos fundamentos contidos na petição inicial formulada pelo Ministério Público, não pode tomar posição sobre ela em sede de avaliação do mérito de uma decisão que incidiu sobre a homologação da executoriedade de uma decisão internacional de entrega de menores.
Porém, na sua materialidade, a situação em discussão configura um rapto internacional de crianças, uma vez que, indiscutivelmente, se está perante um caso de deslocação e retenção ilícita de menores por ter sido efectivada em violação de um direito de custódia atribuído ao outro progenitor, num momento em que os filhos tinham a sua residência habitual imediatamente antes da respectiva transferência irregular em território estrangeiro.
E, para além da avaliação dos procedimentos de verificação da executoriedade da sentença proferida por Tribunal estrangeiro, desta combinação entre forma e substância resulta claramente que é aplicável à situação sub judice a Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças. E, inclusivamente, no plano da law in action, este instrumento de direito internacional consta inclusivamente da fundamentação da sentença datada de 12/09/2019.
E, por força da concorrência destes instrumentos internacionais convencionais na resolução do caso concreto, na projecção dinâmica resulta que, após a decisão proferida pela Meritíssima Juíza de Direito em 12/09/2019, um dos menores abrangidos pela decisão de transferência completou 16 anos. E, devido à sua superveniência, esta matéria não integrava o objecto da decisão anteriormente transitada em julgado.
O enunciado vinculativo desta fonte de direito é absolutamente peremptório quando, no texto do artigo 4.º, dita que a aplicação da Convenção cessa quando a criança atingir a idade de 16 anos. De forma complementar e casuisticamente, esta estatuição deve ser combinada com a vontade validamente expressa pelo menor no sentido de desejar permanecer junto do agregado materno. A isto, associa-se ainda o tempo decorrido desde a ilícita subtracção do menor e a particularidade do filho se encontrar totalmente integrado no seu novo ambiente.
E é salientar que, de forma equilibrada, sopesando devidamente o interesse dos menores, em devido tempo, a Meritíssima «a quo» decidiu suster a decisão de entrega por razões associadas à pandemia Covid e à situação escolar dos menores e este cenário foi exactamente ditado, por razões supervenientes, que não se encontravam verificadas à data da prolação da sentença proferida nos autos. E, neste particular, também não se pode afirmar que este protelamento da entrega dos menores configurava um desacatamento de qualquer decisão prévia.
Isto apenas significa que os processos não são fenómenos estáticos e que, por vezes, a realidade dinâmica implica a adopção de soluções aparentemente conflituantes com outras já determinadas nos autos, desde que não sejam viciadoras das regras do caso julgado.
Desta soma de factos e de fontes de direito aplicáveis à situação concreta, temos de concluir que, por motivo superveniente, de natureza dinâmica, que não se encontra abrangido pelo efeito do caso julgado, relativamente ao (…) deve ser considerada extinta a determinação de reposição forçada e de entrega do menor à guarda e custódia do progenitor pai, tal como foi determinado pelo Tribunal da Grande Instance de Paris e, posteriormente, e com toda a propriedade, decidido pelo Juízo de Família e Menores de Santarém e confirmado por este mesmo Tribunal.
Deste modo, ao assim decidir não se incorre em qualquer desrespeito relativamente às regras da organização hierárquica dos Tribunais Judiciais, por não se estar no âmbito de um julgamento repetido sobre a mesma hipótese concreta, valorizando-se assim integralmente os compromissos assumidos pelo Estado português ao subscrever o artigo 4.º da Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças. Neste contexto, por decorrência, a decisão de operacionalização da entrega do menor (…) deve ser revogada.
No mais, como já atrás se mencionou e repetiu, em termos genéricos, as outras matérias correspondem a questões novas, o que inviabiliza uma pronúncia do Tribunal de Recurso sobre as mesmas. E, nesse enquadramento lógico-jurídico, uma vez transitada a presente decisão, por via da não entrega do menor por facto associado a ser maior de 16 anos de idade, é que poderão ser espoletados outros procedimentos relacionamento com a defesa da união familiar.
*
V – Sumário: (…)
*
VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedentes os recursos interpostos, revogando-se, em parte, as decisões recorridas e, consequentemente, determina-se que a decisão de entrega de (…) não seja accionada, devendo ser cancelados os procedimentos de operacionalização junto da Autoridade Central Direção-Geral de Reinserção Social relativamente a este menor.
Sem tributação, atento o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
*
Dê conhecimento ao processo registado sob o n.º 687/16.2.T8TMR-I.E1, que corre termos neste Tribunal da Relação e, oportunamente, após trânsito em julgado, remeta certidão do presente acórdão àquele apenso.
*
(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).
*
Évora, 14/07/2021
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Maria Peixoto Imaginário

__________________________________________________
[1] O requerimento em causa contém a seguinte fundamentação:
«O Ministério Público, na sequência da notificação do despacho proferido por V. Exa. Com a referência 7494889, de 18.02.21, no qual foi determinada a comunicação à Autoridade Central da DGRSP que indicasse datas e modo de operacionalização da entrega dos menores (…) e (…), vem reiterar o já exposto no requerimento referência 7313227, de 3.12.21, no qual se invocou o estabelecido no artigo 4.º da Convenção Sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional, que dispõe:
“A Convenção aplica-se a qualquer criança com residência habitual num Estado Contratante, imediatamente antes da violação do direito de custódia ou de visita. A aplicação da Convenção cessa quando a criança atingir os 16 anos”.
Ora, o jovem (…), nascido em 22.07.2004, já atingiu os seus 16 anos, pelo que a entrega que se encontra acionada nos autos não o deve abranger, o que se volta a requer a V. Exa. seja tomado em devida consideração».
[2] Os dois recursos são substancialmente idênticos e, assim, transcreve-se o mais extenso, que apenas comtempla como inovação relativamente ao recurso primeiramente apresentado os pontos 38) e 39) da impugnação recursal referenciada no ponto B do relatório.
[3] Código de Processo Civil anotado, Volume V, Coimbra Editora, 1981 (reimpressão), pág. 143.
[4] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23/06/2004 e 02/12/2013, in www.dgsi.pt.
[5] Artigo 3.º (Necessidade do pedido e da contradição):
1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2 - Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4 - Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.
[6] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., LEX, Lisboa, 1997, pág. 395.
[7] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27/07/1965, BMJ 149-297; de 26/03/1985, BMJ 345-362; de 02/12/1998, BMJ 482-150; de 12/07/1989, BMJ 389-510; de 28/06/2001, in www.dgsi.pt, de 30/10/2003, in www.dgsi.pt, de 20-07-2006, in www.dgsi.pt, de 04/12/2008, in www.dgsi.pt.
[8] www.dgsi.pt.
[9] No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/10/2013, in www.dgsi.pt, pode ler-se que « «no direito português, os recursos ordinários, como é o caso, são de reponderação; visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o Tribunal recorrido no momento do seu proferimento; o que significa que o Tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados. Daí o dizer-se que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamentos de questões novas; estando por isso excluída a possibilidade de alegação de factos novos na instância de recurso».
[10] Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1984, págs. 156-157 e 173-180.
[11] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1976, págs. 303-335.
[12] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 701-733.
[13] O objecto da sentença e o caso julgado material, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 325, págs. 148 e seguintes.
[14] Lições de Direito Processual Civil, 2ª edição, Ecla Editora, Porto, 1997, pág. 451-453.
[15] Processo Civil. Parte Geral e Processo Declarativo, vol. I, 8ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, págs. 470-475.
[16] Acção Declarativa à luz do Código Revisto (pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto), Coimbra Editora, Coimbra, 2007, págs. 432-437.
[17] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/02/1998, in www.dgsi.pt.
[18] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 91.
[19] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/04/2013, in www.dgsi.pt.
[20] Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, Coimbra, 1982, pág. 391.
[21] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1976, págs. 317.
[22] Neste sentido pode ser consultado Remédio Marques, Acção Declarativa à luz do Código Revisto (pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto), Coimbra Editora, Coimbra, 2007, págs. 434.
[23] Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 28/06/1994, in www.dgsi.pt.
[24] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 1984, pág. 659.