Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1445/12.9TBBNV.E2
Relator: EMÍLIA RAMOS COSTA
Descritores: TAXA DE JUSTIÇA
REMANESCENTE
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 06/25/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – A taxa de justiça, como, aliás, todas as taxas, deve possuir uma correlação entre o valor pago pelas partes e o serviço público prestado pelos tribunais, não existindo necessariamente uma equivalência entre o aumento do valor da causa e um aumento da actividade jurisdicional.
II – Na realidade, apesar de ser essa a filosofia subjacente às normas legais de fixação da taxa de justiça (por esse motivo, o acrescento de 3 UC na 1.ª instância e de 1,5 UC nas instâncias de recurso por cada fracção de € 25.000,00, nas causas de valor superior a € 275.000,00), não é essa, muitas vezes, a prática efectiva da actividade judiciária.
III – Daí que a única forma de adequar os princípios constitucionais da proporcionalidade, decorrentes dos arts. 2.º e 18.º, n.º 2, segunda parte, da Constituição da República Portuguesa, e do direito de acesso aos tribunais, consagrado no art. 20.º do mesmo diploma legal, impõe que se interprete o n.º 7 do art. 6.º do Regulamento das Custas Processuais no sentido de que compete ao juiz, na análise da situação concreta, não só dispensar do pagamento a totalidade do remanescente da taxa de justiça, como parte deste, sob pena de não ser possível adequar, com justeza e proporcionalidade, a taxa de justiça final, quer por excesso, quer por defeito, às especificidades da situação em apreço.
IV – À luz dos princípios da proporcionalidade e da igualdade, sem nunca esquecer o direito de acesso à justiça e a realidade económica nacional, é manifestamente excessivo o pagamento, a título de remanescente da taxa de justiça, da quantia de € 408.816,00, relativamente a um processo, em que apesar de ter estado pendente durante sete anos nos tribunais e de nele terem sido realizadas duas perícias, teve articulados com poucas páginas (o maior teve 37 páginas), apenas foram ouvidas treze testemunhas no equivalente a quatro dias de julgamento, a sentença proferida possui 55 páginas e ainda que tenha havido recurso quer para o Tribunal da Relação quer para o STJ, neste último, apenas foi proferido despacho e acórdão de indeferimento de recurso, com, respectivamente, 4 e 5 páginas.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 1445/12.9TBBNV.E2
2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora[1]
Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
“(…) – Produção Nacional de Hortofrutículas, S.A.” (Autora) intentou, em 10-10-2012, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “Companhia de Seguros (…), S.A” (Ré), solicitando, a final, que a Ré seja condenado a pagar-lhe os seguintes valores:
A) Indemnização correspondente ao valor dos bens (equipamento/maquinaria) que pereceu no sinistro, identificado no artigo 28 desta p.i., no total de € 725.316,50;
B) Indemnização correspondente ao valor dos bens (equipamento/maquinaria) em face das circunstâncias (perecimento do edifício e decurso do tempo), conforme artigo 29 desta p.i., no total de € 169.800,00;
C) Indemnização correspondente ao valor das existências identificadas no artigo 30 desta p.i., no total de € 73.766,52;
D) Indemnização correspondente ao valor dos bens (Mobiliário, equipamento de escritório, computadores e acessórios) identificados no artigo 30 desta p.i., no total de € 9.030,00;
E) Indemnização correspondente ao valor das Matérias-Primas, Subsidiárias e Produtos Acabados danificados pelo sinistro, no valor de € 12.092,00;
F) Indemnização correspondente ao valor dos bens (instalação elétrica e telefónica) que pereceu no sinistro, identificado no artigo 30 desta p.i., no total de € 45.450,00;
G) Indemnização correspondente ao valor da indemnização que, objectivamente, a autora está obrigada a pagar a “(…), S.L.”, pelo incumprimento do contrato com esta celebrado, no montante de € 1.386.000,00; juros e encargos que a este valor acrescerem, até à data em que a autora esteja em condições de proceder ao pagamento, ou seja, até à data em que a ré disponibilizar à autora o correspondente valor indemnizatório.
H) Indemnização correspondente aos encargos permanentes, de acordo com o contrato de seguro, relativos ao período de seis meses após o sinistro, no montante de € 117.554,27;
I) Aos valores peticionados nas alíneas precedentes, deverão acrescer os juros moratórios, às taxa legais sucessivamente em vigor, que se venceram desde 90 dias após o sinistro, ou seja, desde 09/08/2010, ou, pelo menos e subsidiariamente, desde 30 dias após o encerramento do inquérito que correu pelo MP de Benavente, ou seja, desde 04/02/2011.
J) Mais deverá a ré ser condenada a pagar à autora uma indemnização pela perda da capacidade de ganho (lucro cessante), pelo menos desde 30 dias após o encerramento do sobredito inquérito, no montante que se liquida, até ao final do exercício de 2012, no total de € 5.131.187,40;
K) E uma indemnização correspondente aos valores que a A se encontra em incumprimento perante terceiros, (financiadores e trabalhadores e demais custos fixos), num total que se liquida até à presente data (31/08/2012), em € 261.631,89;
L) A cujos valores, peticionados nas alíneas J) e K) precedentes, deverão acrescer os juros moratórios, às taxas legais sucessivamente em vigor, que se vencerem desde a citação até integral e efetivo pagamento;
M) Deverá ainda a ré ser condenada a pagar à autora os valores a título de indemnização pelo lucro cessante que, sendo previsível não é, todavia, desde já quantificável, a liquidar em futura execução de sentença, a apurar de acordo com os melhores juízos de equidade, seteris paribus, pelo diferencial entre o valor que a autora lograr auferir da sua actividade e o valor que, de acordo com um prognose razoável, tivesse a ré reposto a maquinaria necessária e adequada ao funcionamento da actividade da autora, esta lograria obter; considerando, sempre em benefício da ré a eventual evolução negativa do mercado ou outros factores com que razoavelmente, a
esta data, não se possa contar.
N) E pelos valores dos custos fixos que haja de continuar a despender, em consequência da sua actual incapacidade de laboração, a peticionar em sede de futura ampliação do pedido ou de liquidação em execução de sentença; e os juros moratórios legais, às taxas comerciais sucessivamente em vigor.
Na petição inicial, deduziu 132 artigos, com 37 páginas, arrolou sete testemunhas e juntou aos autos 216 documentos.
A Ré “Companhia de Seguros (…), S.A” contestou, admitindo aceitar apenas o pagamento de uma indemnização no montante de € 355.723,16.
Deduziu 186 artigos, em 31 páginas, arrolou seis testemunhas e juntou aos autos 6 documentos.
A Autora “(…) – Produção Nacional de Hortofrutículas, S.A.” replicou, deduzindo 95 artigos, com 14 páginas.
A Ré veio solicitar o desentranhamento da réplica.
O tribunal a quo proferiu despacho saneamento, tendo fixado o valor da causa em € 8.621.828,58. Identificou igualmente a matéria de facto controvertida em 95 artigos.
Por ter existido reclamação à selecção da matéria de facto, o tribunal a quo proferiu despacho, deferindo parcialmente o requerido. Deferiu ainda a realização de duas perícias.
Foi junto aos autos o relatório de peritagem patrimonial com 67 páginas e respectivos anexos com 45 páginas.
Foi igualmente junto pelo revisor oficial de contas vários documentos num total de 18 páginas.
Para a realização das perícias, a autora juntou aos autos documentos num total de 1819 páginas.
O relatório colegial da perícia económica-financeira foi apresentado em 11-06-2015.
A Autora veio solicitar esclarecimentos adicionais aos peritos.
A Ré veio reclamar da notificação que lhe foi efectuada para pagamento dos encargos com as perícias.
A Autora veio reclamar do pagamento antecipado dos encargos relativamente à perícia.
O tribunal a quo considerou que o pagamento dos encargos referentes às perícias ordenadas pertencia à Autora, mas como esta ainda não tinha procedido a tal pagamento, determinou o adiantamento desse pagamento pelo tribunal.
Em 06-11-2015 foi junto aos autos o segundo relatório pericial requerido.
Relativamente às duas perícias realizadas, pelo tribunal a quo foi paga a quantia de € 23.955,77, a título de honorários, aos Senhores Peritos.
A Autora e a Ré vieram requerer a prestação de esclarecimentos pessoais dos Srs. Peritos em audiência final.
Foi realizada audiência de julgamento que comportou a realização de oito sessões, sendo cada sessão de meio-dia.
Foram ainda juntas fotografias num total de 36 páginas.
Em 22-06-2016 foi proferida sentença, com 55 páginas, e com o seguinte teor.
Termos em que, julgo a acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, condeno a R. Companhia de Seguros (…), S.A., a pagar à A. (…), S.A., a quantia de € 824.118,58, acrescida de juros às taxas atrás referidas, até integral pagamento.
Custas por A. e R. na proporção do decaimento.
Dessa sentença foi interposto recurso pela Ré com impugnação da matéria de facto.
Também a Autora interpôs recurso da sentença, com impugnação da matéria de facto.
Autora e Ré contra-alegaram.
O tribunal a quo, antes de admitir os recursos, proferiu despacho de rectificação de lapsos materiais contantes da sentença.
Em 28-06-2018 foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora, de 72 páginas, com o seguinte teor decisório:
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação da A. e parcialmente procedente a apelação da R. e, em consequência, revogar parcialmente a sentença recorrida, condenando-se a R. Companhia de Seguros (…), S.A., a pagar à A. (…), S.A., a quantia de € 818.579,88, acrescida de juros a taxa legal, desde 16/06/2012 até integral pagamento.
Custas do recurso da A. a cargo desta.
Custas da apelação da R. a cargo de ambas as partes, na proporção do respectivo decaimento.
A Ré veio interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
A A. veio interpor recurso subordinado de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
A Ré veio responder ao recurso subordinado.
Tendo sido imputadas pela Ré nulidades do acórdão do Tribunal da Relação, foram tais nulidades decididas por acórdão proferido em 17-01-2019, com 3 páginas, nos seguintes termos:
Em face do exposto, acordam em Conferência os juízes deste Tribunal da Relação em julgar inverificadas as arguidas nulidades.
Admitidos os recursos pelo Tribunal da Relação de Évora, o Supremo Tribunal de Justiça, por decisão proferida pelo relator, em 24-05-2019, de 4 páginas, não admitiu os recursos, por se verificar uma situação de dupla conforme, tendo condenado a Recorrente em custas.
A Ré veio solicitar que a decisão proferida fosse submetida à conferência.
Em 04-07-2019, foi proferido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, com 5 páginas, com o seguinte teor:
Face ao exposto, verificando-se uma situação de dupla conforme, sem fundamentação essencialmente diferente, julga-se inadmissível o recurso de revista interposto pela Recorrente/Seguradora, ao abrigo do artigo 671.º, n.º 3, do CPC.
Custas pela Recorrente/seguradora.
Em 09-07-2019, a Autora veio pugnar pela dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, alegando, em síntese, que:
- no presente processo o tribunal não foi obrigado a trabalho judiciário suplementar;
- a causa não ofereceu grande complexidade, nem de facto nem de direito, não ultrapassando uma complexidade média, normal às invocadas situações de incumprimento contratual;
- as partes mantiveram-se claramente dentro dos limites da boa conduta processual, não tendo nenhuma delas apresentado sequer posição temerária;
- em respeito pelo princípio da proporcionalidade, a taxa de justiça deverá ter tendencial equivalência ao serviço publico prestado; e
- pelas razões acima expostas, mostra-se irrazoável cobrar mais taxa de justiça para além da já arrecadada no processo.
Em 11-07-2019, a Ré veio igualmente pugnar pela dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
O presente processo transitou em 03-09-2019.
Ouvido o M.º P.º, sobre a solicitada dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, foi pelo mesmo promovido, em síntese, a não dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, por não se vislumbrar qualquer simplicidade processual que possa justificar a solicitada dispensa, não sendo o montante previsto desproporcional aos custos desenvolvidos pelo Estado, uma vez que os presentes autos foram instaurados em 2012, possuem mais de três mil folhas, foi realizada audiência de julgamento e interpostos recursos até ao Supremo Tribunal de Justiça, o processo possui vasta prova documental, tendo, inclusive, sido necessário recorrer à realização de perícias com encargos que não foram sequer ainda suportados pelas partes.
Em 11-12-2019, o tribunal a quo, relativamente à solicitada dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, proferiu a seguinte decisão:
Remanescente da taxa de justiça
As partes requerem a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, alegando que a extensão dos articulados se deveu ao facto de a causa de pedir, por se ter tratado de um incêndio de grandes proporções, que não obrigou o tribunal a um trabalho excecional, referindo ainda que a causa não ofereceu grande complexidade, nem de facto nem de direito, e que as partes mantiveram boa conduta processual.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de não ser de dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça em dívida, dizendo que os autos datam de 2012, têm mais de três mil folhas e a sua tramitação foi vasta, com recurso a perícias complexas que não foram oportunamente suportadas pelas partes, concluindo que não se afigura desproporcional aos custos desenvolvidos pelo Estado o valor reclamado a título de taxa de justiça.
Cumpre apreciar e decidir.
Sendo o valor da causa superior a € 275.000,00, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta final, nos termos dos artºs. 6º, nº 7 e 14º, nº 9, RCP.
Apenas razões objectivas elencadas no artº 6º, nº 7, parte final, podem justificar a dispensa do seu pagamento, nos casos em que a especificidade do caso o justificar, atendendo à complexidade da causa e à conduta processual das partes. No entanto, a parte que não seja condenada a final fica dispensada do referido pagamento, que será imputado à parte vencida e considerado na conta final.
Assim, “a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça nas causas de valor superior a € 275.000,00, prevista no nº 7, do artº 6º, do RCP, depende de, no caso concreto, se verificar uma situação específica de notório desvio para menos do que é a normal e esperada complexidade pressuposta no respectivo processo em função do valor e dos interesses objecto do litígio conexionados com este. Esse desvio deve objectivamente revelar-se numa específica simplicidade dos termos, fluidez da tramitação, celeridade dos respectivos actos, rapidez no alcance do seu desfecho, linearidade da relação jurídica substantiva e questões sobre ela suscitadas, facilidade da respectiva decisão e em que seja notória uma atitude (activa ou omissiva) positiva de franca cooperação das partes que, elevando-se para cima da normalmente esperada, as torne merecedoras e premiáveis com a dispensa imposta e até legitimamente fundada em princípios de razoabilidade, proporcionalidade, igualdade, em suma, de justiça.” (cfr. Ac. TRG, de 18.01.2018, Processo: 258/10.7TCGMR-A.G1, em que foi relator o desembargador José Amaral).
No caso dos autos, resulta evidente que a tramitação do processo foi complexa, não só pela sua vastidão (o processo tem neste momento 12 volumes), como pela dificuldade das questões que foram surgindo ao longo de toda a tramitação, com recurso a perícias técnicas e análise de questões que determinaram não um desvio para menos na tramitação normal, mas ao contrário, uma complexidade agravada, fruto até do elevado valor dos bens em causa, reflectido no valor do processo, que ficou igualmente patente quer na sentença, quer nos acórdãos que se seguiram.
Deste modo, não se verifica a necessária simplicidade que determinaria a rapidez no alcançar do desfecho da acção.
Estabelecendo o RCP o critério com base no valor da causa para determinar o pagamento do remanescente da taxa de justiça, não se vislumbra nos autos qualquer razão objectiva, entre aquelas que se encontram previstas no artº 6º, nº 7, do RCP, que possa justificar a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Termos em que se indefere o requerido por A. e R.
Notifique.
Não se conformando com o despacho proferido, veio a Autora “(…), SA” interpor recurso de apelação, terminando as suas alegações com as conclusões que se seguem:
1. Pese embora os articulados das partes evidenciem alguma extensão, face ao seu teor repetitivo e meramente descritivo, nem por isso obrigaram ao tribunal a suplementar labor judiciário, não oferecendo a causa grande complexidade, nem de facto nem de direito, sendo mesmo de considerar que não ultrapassa uma complexidade média, normal às invocadas situações de incumprimento contratual;
2. As partes mantiveram-se claramente dentro dos limites da boa conduta processual, sendo de assinalar que nenhuma delas apresentou, sequer, posição temerária.
3. Devendo a mesma corresponder à contrapartida pecuniária de tal exercício e obedecer, além do mais, aos critérios previstos nos artigos 530.º, n.º 7, do CPC, e 6.º, n.º 7, do RCP, pelo que, perante o valor da acção, o grau de complexidade dos autos e o comportamento processual das partes, poderá dispensar-se, total ou parcialmente, o pagamento do remanescente da taxa de justiça a considerar na conta a final.”
4. Não é imperioso retirar da norma do artigo 6º, nº 7, do RCP interpretação abraçada pela decisão em apreço, isto é, que se deve considerar que todos os processos estão sujeitos à tributação objectiva constante da tabela, excepto se evidenciarem uma especial simplicidade. Bem ao invés, a norma do nº 7, do artigo 6º do RCP deve se interpretada no sentido de que ao juiz é licito dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, sempre o valor da causa exceda os € 275.000,00, consoante o resultado da ponderação das especificidades do processo em concreto, ou seja a utilidade económica da causa, a complexidade do processado e a conduta processual das partes, à luz dos princípios da proporcionalidade, igualdade e efectivo acesso à Justiça.
5. A não proceder a argumentação da recorrente, a quantia que virá a ser exigida, face às custas já pagas, afigura-se inteiramente desajustada face à realidade do processo, à complexidade do mesmo e à conduta processual assumida pelas partes, constituirá um valor manifestamente excessivo para a actividade jurisdicional desenvolvida.
6. A “especificidade da situação”, nomeadamente, a ausência de especial “complexidade da causa” e a “conduta processual” das partes (artº. 530°, n° 7, CPC) justificam a dispensa do remanescente da taxa de justiça.
7. Impõe-se, pois, apreciar se será aceitável e admissível que as custas finais a embolsar pelo Estado, como contrapartida pelo respectivo serviço correspondente à tramitação do processo e à composição do litígio, possam perfazer um montante superior a € 6.528,00, ou seja, o equivalente a mais de 10 salários mínimos nacionais?
8. A decisão sobre recurso constitui uma autêntica “condenação” das partes a pagar mais € 514.089,91, ou seja, o equivalente a 810 salários mínimos nacionais... ou seja, considerando que um trabalhador recebe 14 salários por ano, o equivalente a 58 anos de trabalho...
9. O que viola a mais insensível que seja, consciência ético-jurídica.
10. Os critérios de cálculo da taxa de justiça devem pressupor e garantir um mínimo de proporcionalidade entre o valor cobrado a quem recorre ao sistema público de administração da justiça e o custo/utilidade do serviço que efectivamente lhe foi prestado.
11. Tal quantia, atendendo ao princípio da proporcionalidade a que toda a actividade pública está sujeita, deverá ter-se por absolutamente razoável como contrapartida (taxa) do serviço prestado (realização da justiça);
12. As partes já pagaram de taxas (por adiantamento) a quantia de € 6.528,00, ou seja, o equivalente a mais de 10 salários mínimos nacionais; quantia esta que se deve ter por adequada a compensar o estado pela actividade jurisdicional desenvolvida.
13. Na verdade, a norma do artigo 6º, nº 7, do RCP, quando interpretada a interpretação no sentido de que só permite a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça quando se verifique um “notório desvio para menos do que é a normal e esperada complexidade pressuposta no respectivo processo em função do valor e dos interesses objecto do litígio conexionados com este.” equivale a considerar que a taxa de justiça fica definida apenas em função do valor da acção, sem qualquer limite máximo, desconsiderando o grau de complexidade do processo e o caracter manifestamente desproporcional entre serviço oferecido e o montante a esse título exigido, é inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade consagrado nos artigos 18.º, n.º 2 e 266.º da CRP, e o princípio do acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional, consagrados nos artigos 2.º, 18.º e 20.º, n.º 1, da CRP.
14. Impondo-se assim, na procedência do pressente recurso, deve a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que dispense as partes do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
O M.º P.º apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1ª- Recorre a A. por discordar do douto despacho que não o dispensou do pagamento do remanescente da Taxa de Justiça devida nos autos, alegando, em seu favor, a colaboração da partes e simplicidade do processo.
2º- Sucede que o Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Dec. Lei nº 34/2008, de 26.12, que sucedeu ao Código das Custas Judiciais, procurou adequar o valor da taxa de justiça ao tipo de processo em causa e aos custos que, em concreto, cada processo acarreta para o sistema de justiça.
3º- Nessa perspectiva, concorda-se que o valor da taxa de justiça não deve ser fixado com base numa mera correspondência tabelar face ao valor da causa, antes se estabelece um sistema misto que assenta por um lado no valor da acção, até um certo máximo, e, por outro, na possibilidade de correcção da taxa de justiça quando se trate de processos especialmente complexos, independentemente do valor atribuído à causa.
4º- Assim, como regra geral, a taxa de justiça é fixada em função do valor da causa – art.º 6º, nº 1, do Reg. das Custas Processuais e 447º, nº 2, do C. P. Civil, cabendo ao juiz determinar, a final, a aplicação de valores agravados de taxa de justiça às acções e recursos que revelem especial complexidade, por respeitarem a “questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou que importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso” e “ audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova extremamente complexos ou a realização de várias diligências de prova morosas” – artigo 6º, nº 5, RCP e 447º-A, nº 7, CPC.
5º- Pelo contrario, o artº 6º nº 7 do RCP, pela Lei 7/2012, de 13.02, aditou ao artº 6º o nº 7, prevendo que “nas causas de valor superior a 275.000,00 euros, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente á complexidade da causa e conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.
6º- Do exposto resulta que o pagamento integral do montante total da taxa de justiça é a regra, podendo ser alterado se as circunstâncias concretas do processo evidenciarem uma clara desproporção entre o valor exigido e a tramitação processual.
7º- O Dec. Lei 52/2011, de 13.04, com o propósito de permitir uma maior facilidade de acesso à justiça, veio recuperar a possibilidade de pagamento faseado da taxa de justiça (em vigor no CCJ de 96), permitindo o seu pagamento em duas prestações – taxa de justiça inicial e subsequente.
8º- O juízo de oportunidade a formular pelo juiz ocorre no término do processo, pois é este o momento em que é passível aferir os custos reais de intervenção do tribunal, em função dos parâmetros considerados na lei e supra reproduzidos, podendo neste momento, com segurança, exercer o poder dever de adequar o valor da taxa aos custos do processo.
9º- Pretende-se, pois, evitar a manifesta desproporção entre o valor cobrado de taxa de justiça e o custo implicado na acção, recorrendo, para tal, a critérios de razoabilidade, proporcionalidade e adequação, designadamente reportados à utilidade ou valor económico dos interesses atendidos, comportamento e lisura processual das partes e complexidade da tramitação processual.
10º- In casu, o despacho recorrido teve presente que se tratou de um processo, com 12 volumes e 9 sessões de julgamento, com apresentação, só pela A/recorrente de 216 documentos com o articulado inicial, sem contar com os requerimentos probatórios juntos posteriormente, em que foi realizada perícia colectiva à contabilidade, requerida pela A. mas que esta não pagou, foram proferidos dois acórdãos pelo tribunal da Relação e um pelo STJ, o que, só por si, é revelador de que não se trata de processo que revele simplicidade, antes denotando uma actividade considerável por parte do Tribunal.
Para além disso, importa considerar, na senda do Ac. STJ de 12.12.2013 supra citado, que a utilidade económica do processo se cifrou, para a Autora aqui recorrente, em montante superior a 800.000,00 euros.
11º- Tanto basta para que se faça notar não existir motivo que, fundadamente, justifique a dispensa de pagamento da totalidade do remanescente da taxa de justiça, atenta a considerável disponibilização de meios operada pelo tribunal.
12º- Acresce que o valor do remanescente devido não é o apresentado pela Autora recorrente, antes breve simulação no programa informático das custas permite estabelecer que esse valor se cifra em € 103.836,00, ou seja, cerca de 1/5 do valor calculado pela A.
Termos em que, mantendo a douta decisão sob recurso farão Vª Exª a costumada JUSTIÇA!
O processo possui actualmente 12 volumes.
O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso, e, após ter sido recebido o recurso neste tribunal nos seus exactos termos e dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – Objecto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Assim, no caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Requisitos de aplicação do disposto no n.º 7 do art. 6 do Regulamento das Custas Judiciais; e
2) Inconstitucionalidade da interpretação dada na decisão recorrida ao disposto no n.º 7 do art. 6.º do Regulamento das Custas Judiciais.
III – Matéria de Facto
Os factos relevantes para a decisão são os que já constam do relatório.
IV – Enquadramento jurídico
Conforme supra mencionámos, o que importa analisar no presente recurso é se (i) se verificam os requisitos de aplicação do disposto no n.º 7 do art. 6º do Regulamento das Custas Judiciais; e (ii) é inconstitucional a interpretação dada na decisão recorrida ao disposto no n.º 7 do art. 6.º do Regulamento das Custas Judiciais.
1 – Requisitos de aplicação do disposto no n.º 7 do art. 6º do Regulamento das Custas Judiciais
Segundo a Apelante, no presente processo o tribunal não teve suplementar labor judiciário, não oferecendo a causa grande complexidade, nem de facto nem de direito, sendo mesmo de considerar que não ultrapassa uma complexidade média, normal às invocadas situações de incumprimento contratual, pelo que, nos termos dos arts. 530.º, n.º 7, do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais, perante o valor da acção, o grau de complexidade dos autos e o comportamento processual das partes, poderá dispensar-se, total ou parcialmente, o pagamento do remanescente da taxa de justiça a considerar na conta a final.
Mais alegou que não é correcto interpretar o n.º 7 do art. 6.º do Regulamento das Custas Processuais no sentido de que se deve considerar que todos os processos estão sujeitos à tributação objectiva constante da tabela, excepto se evidenciarem uma especial simplicidade, devendo, pelo contrário, tal norma ser interpretada no sentido de que ao juiz é licito dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, sempre que o valor da causa exceda os € 275.000,00, consoante o resultado da ponderação das especificidades do processo em concreto, ou seja, da utilidade económica da causa, da complexidade do processado e da conduta processual das partes, à luz dos princípios da proporcionalidade, igualdade e efectivo acesso à Justiça.
Alegou ainda que uma interpretação diversa da defendida pela Apelante implicaria o pagamento de custas desajustado face à realidade do processo, à complexidade do mesmo e à conduta processual assumida pelas partes, constituindo um valor manifestamente excessivo para a actividade jurisdicional desenvolvida, não sendo justificável, no caso concreto, que as custas finais a embolsar pelo Estado possam perfazer um montante superior a € 6.528,00, ou seja, o equivalente a mais de 10 salários mínimos nacionais, implicando a condenação das partes a pagar mais € 514.089,91, ou seja, o equivalente a 810 salários mínimos nacionais.
Dispõe o art. 6.º do Regulamento das Custas Processuais, que:
1 - A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada em função do valor e complexidade da causa de acordo com o presente Regulamento, aplicando-se, na falta de disposição especial, os valores constantes da tabela i-A, que faz parte integrante do presente Regulamento.
2 - Nos recursos, a taxa de justiça é sempre fixada nos termos da tabela i-B, que faz parte integrante do presente Regulamento.
3 - Nos processos em que o recurso aos meios electrónicos não seja obrigatório, a taxa de justiça é reduzida a 90 /prct. do seu valor quando a parte entregue todas as peças processuais através dos meios electrónicos disponíveis.
4 - Para efeitos do número anterior, a parte paga inicialmente 90 /prct. da taxa de justiça, perdendo o direito à redução e ficando obrigada a pagar o valor desta no momento em que entregar uma peça processual em papel, sob pena de sujeição à sanção prevista na lei de processo para a omissão de pagamento da taxa de justiça.
5 - O juiz pode determinar, a final, a aplicação dos valores de taxa de justiça constantes da tabela i-C, que faz parte integrante do presente Regulamento, às acções e recursos que revelem especial complexidade.
6 - Nos processos cuja taxa seja variável, a taxa de justiça é liquidada no seu valor mínimo, devendo a parte pagar o excedente, se o houver, a final.
7 - Nas causas de valor superior a (euro) 275.000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.
8 - Quando o processo termine antes de concluída a fase de instrução, não há lugar ao pagamento do remanescente.
9 - Nos processos administrativos, a taxa de justiça é reduzida a 90 /prct. do seu valor quando a parte proceda à elaboração e apresentação dos respetivos articulados em conformidade com os formulários e instruções práticas constantes de portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.

Dispõe, por sua vez, o art. 530.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, que:
7 - Para efeitos de condenação no pagamento de taxa de justiça, consideram-se de especial complexidade as ações e os procedimentos cautelares que:
a) Contenham articulados ou alegações prolixas;
b) Digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; ou
c) Impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas.

Apreciemos.
O disposto no n.º 7 do art. 6.º do Regulamento das Custas Processuais, apenas veio a ser consagrado pela Lei n.º 7/2012, de 13-02, uma vez que na versão original do D.L. n.º 52/2011, de 13-04, apenas era possível ao julgador alterar o montante fixo da taxa de justiça apurado em face do valor da acção, constante de tal diploma, nas situações de especial complexidade, nos termos do n.º 5 do art. 6.º, já não nas situações de especial simplicidade ou de manifesta desproporcionalidade entre a actividade jurisdicional desenvolvida e a taxa de justiça exigida, a final, às partes.
Conforme bem se refere no acórdão do STJ, proferido em 12-12-2013, no âmbito do processo n.º 1319/12.3TVLSB-B.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt:
Sucede que este novo regime, consagrado pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, não contemplava a possibilidade – antes prevista pelo CCJ, no n.º 3 do artigo 27.º, na redacção introduzida pelo citado Decreto-Lei n.º 324/2003 – de o juiz, se a especificidade da situação o justificasse, dispensar, de forma fundamentada, o pagamento do remanescente, atendendo, designadamente, à complexidade da causa e à conduta processual das partes.
Assim, o RCP, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, ao fixar para o último escalão de valor das acções e demais procedimentos tributáveis (€ 250.000,00 a € 275.000,00) uma taxa de justiça de valor fixo (16UC ou 8 UC, consoante o tipo de procedimento) que progressivamente se agravava, sem qualquer limite máximo, na proporção directa do aumento do valor da causa (em acréscimos de 3 UC ou 1,5 UC, consoante nos movemos na coluna A ou na coluna B), a fixar a final, por cada € 25.000,00 ou fracção), acolheu efectivamente, em aparente dissidência com a declaração de intenções proclamada no diploma preambular, um sistema de taxa de justiça que toma como critério exclusivo o valor da causa, presumindo inelutavelmente que os factores ou elementos que permitiriam uma graduação em concreto das custas, nomeadamente a complexidade real da acção, recurso ou procedimento e a utilidade efectiva que as partes dela retiram, se agravam na proporção directa do respectivo valor.
Na verdade, face ao regime de custas processuais plasmado no DL 52/11, o pretendido sistema misto de taxação, assente não apenas no valor da causa mas também na complexidade dos autos, apenas garante que os processos susceptíveis de serem qualificados como especialmente complexos possam importar para o sujeito passivo da correspondente obrigação tributária um custo que efectivamente reflicta esse maior grau de complexidade, através da aplicação dos valores constantes da coluna C da citada Tabela I. Porém, não estavam previstos instrumentos que facultassem uma valoração prudencial em sentido contrário, assegurando às causas de valor particularmente elevado mas que ficassem claramente aquém de um padrão médio de complexidade um nível de tributação adequado à menor relevância ou intensidade do serviço efectivamente prestado aos litigantes.

Exactamente por tal motivo, o Tribunal Constitucional[2] veio a julgar inconstitucionais, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente dos arts. 2.º e 18.º, n.º 2, segunda parte, igualmente consagrado na Constituição, as normas contidas nos artigos 6.º e 11.º, conjugadas com a tabela I-A anexa, do Regulamento das Custas Processuais, na redação introduzida pelo D.L. n.º 52/2011, de 13-04, quando interpretadas no sentido de que o montante da taxa de justiça é definido em função do valor da acção sem qualquer limite máximo, não se permitindo ao juiz que reduza o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a complexidade do processo e o caráter manifestamente desproporcional do montante exigido a esse título.
Com a introdução do mencionado n.º 7 no art. 6.º do Regulamento das Custas Processuais, a inconstitucionalidade normativa foi sanada, sendo, desde então, possível ao julgador ponderar, no caso concreto, a adequação, justeza e proporcionalidade da taxa de justiça apurada nos termos da tabela anexa ao Regulamento das Custas Judiciais (I-A e I-B) com as especificidades da situação em análise.
Efectivamente, a taxa de justiça, como, aliás, todas as taxas, deve possuir uma correlação entre o valor pago pelas partes e o serviço público prestado pelos tribunais, não existindo necessariamente uma equivalência entre o aumento do valor da causa e um aumento da actividade jurisdicional. Na realidade, apesar de ser essa a filosofia subjacente às normas legais de fixação da taxa de justiça (por esse motivo, o acrescento de 3 UC na 1.º instância e de 1,5 UC nas instâncias de recurso por cada fracção de € 25.000,00, nas causas de valor superior a € 275.000,00), não é essa, muitas vezes, a prática efectiva da actividade judiciária.
Daí que a única forma de adequar os princípios constitucionais da proporcionalidade, decorrentes dos arts. 2.º e 18.º, n.º 2, segunda parte, da Constituição da República Portuguesa, e do direito de acesso aos tribunais, consagrado no art. 20.º do mesmo diploma legal, impõe que se interprete o n.º 7 do art. 6.º do Regulamento das Custas Processuais no sentido de que compete ao juiz, na análise da situação concreta, não só dispensar do pagamento a totalidade do remanescente da taxa de justiça, como parte deste, sob pena de não ser possível adequar, com justeza e proporcionalidade, a taxa de justiça final, quer por excesso quer por defeito, às especificidades da situação em apreço.
Nesse mesmo sentido, o acórdão do STJ, proferido em 12-12-2013, e já mencionado, que novamente se cita:
Afigura-se que os objectivos de plena realização prática dos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da adequação, que estão subjacentes à norma flexibilizadora consagrada no citado nº7 do art. 6º do RCP, só são plenamente alcançados se ao juiz for possível moldar ou modular o valor pecuniário correspondente ao remanescente da taxa de justiça devida nas causas de valor especialmente elevado, ponderando integralmente as especificidades do caso concreto e evitando uma lógica binária de tudo ou nada, segundo a qual ou apenas seria devido o montante da taxa de justiça já paga ou teria de ser liquidada a totalidade das custas correspondentes ao valor da causa – devendo antes poder dispensar o pagamento, conforme seja mais adequado, da totalidade ou apenas de uma parcela ou fracção daquele valor remanescente.
Na verdade, a entender-se que ao juiz apenas estaria facultada a opção, ou por uma dispensa total, ou pelo integral pagamento do remanescente, criar-se-ia uma intolerável desproporção de resultados, consoante a decisão tomada (…)
Por outro lado, esta solução levaria a tratamentos claramente violadores do princípio da igualdade entre os litigantes, ao impossibilitar uma plena consideração e balanceamento das especificidades próprias de cada caso ou situação processual, obrigando, de forma rígida e injustificada, a parificá-las artificiosamente, apesar das substanciais diferenças que entre elas pudessem verificar-se: no caso dos autos, a dispensar-se tabelarmente o pagamento da totalidade do remanescente das custas, seria devida pelos recorrentes a quantia de apenas €816, apesar do elevadíssimo valor da acção e da grande complexidade das relações materiais subjacentes à admissão ou não do recurso interposto – sendo exactamente essa a quantia que seria também devida num recurso de apelação interposto no mais banal procedimento cautelar, em que fosse o próprio requerido a pretender usar duplicadamente as vias impugnatórias, sem envolver a menor complexidade o desenho da relação material controvertida e cujo valor processual fosse de apenas € 276.000 …
Considera-se, pois, pelas razões apontadas, que a norma do citado nº7 do art. 6º do RCP deve ser interpretada em termos de ao juiz ser lícito dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de € 275.000, consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação, feita à luz dos princípios da proporcionalidade e da igualdade.

Dir-se-á, de igual modo, que, apesar de o n.º 7 do art. 6.º do Regulamento das Custas Processuais determinar que a situação normal é a de ser considerado na conta a final o remanescente da taxa de justiça, pelo que a sua dispensa (total ou parcial) reportar-se-á sempre a uma situação excepcional, importa atentar que a normalidade processual (no fundo, a actividade processual desenvolvida pelo tribunal no âmbito de cada processo) terá de se tornar cada vez mais complexa à medida que o valor da acção vai crescendo, sob pena de aquilo que, em regra, se considera uma normal tramitação (articulados, audiência prévia, julgamento, sentença e recurso) implicar a aplicação de taxas de justiça, apenas em face do valor da acção, profundamente díspares e iníquas.
Nos presentes autos, sendo o valor da causa no montante de € 8.621.828,58, até € 275.000,00 cada uma das partes pagou de taxa de justiça a quantia de € 1.632,00 (ou seja, no total € 3.264,00), apurando-se o remanescente, relativamente à actividade da primeira instância, com o acréscimo de 3 UC por cada montante a mais de € 25.000,00, e, relativamente a cada instância de recurso, com o acréscimo de 1,5 UC por cada montante a mais de € 25.000,00.
Assim, e diferentemente dos cálculos indicados quer pela Apelante, quer pelo M.º P.º, o remanescente da taxa de justiça (sem a ela adicionarmos os montantes adiantados pelo tribunal a título de honorários aos Srs. Peritos) a pagar pelas partes, em face do valor da causa (€ 8.621.828,58), é de € 408.816,00[3], sendo o total da taxa de justiça (sem nela incluirmos os montantes relativos aos encargos) de € 412.080,00[4].
Tendo em atenção a actividade desenvolvida pelos tribunais no presente processo (o processo esteve pendente entre 2012 e 2019, foram realizadas duas perícias, teve recurso para o Tribunal da Relação de Évora com impugnação da matéria de facto e recurso para o Supremo Tribunal de Justiça), é evidente que a quantia de € 3.264,00 é manifestamente insuficiente para compensar a actividade jurisdicional desenvolvida.
Porém, de igual modo, tendo em atenção o montante do remanescente que ainda importa pagar (€ 408.816,00), o mesmo, atentos os princípios da proporcionalidade e do direito de acesso à justiça, também se afigura desajustado face à especificidade do caso concreto, quer perante a complexidade da causa quer perante a conduta processual das partes.
Na realidade, importa atentar que, no caso concreto, a petição inicial tinha 37 páginas, a contestação 31 e a réplica 14; no total foram arroladas 13 testemunhas; a matéria controvertida assentou em 95 artigos; o julgamento desenrolou-se em 8 sessões de meio-dia, ou seja, num total de 4 dias; a sentença tinha 55 páginas; o acórdão do Tribunal da Relação de Évora 72 páginas; o acórdão de nulidades deste Tribunal 3 páginas; a decisão do STJ 4 páginas; o acórdão do STJ 5 páginas; e o processo terminou com 12 volumes.
E, se é verdade, que se tratou de um processo com alguma dimensão, cujas matérias importaram alguma complexidade (daí o diferimento de duas perícias), também é verdade que, atento o montante total da taxa de justiça, que é de € 412.080,00, sem sequer estarem incluídos os encargos, a normal tramitação de um processo em que é pago este montante elevadíssimo de taxa de justiça deverá ser bem mais complexa do que a dos presentes autos (designadamente, com articulados bastante mais extensos, com mais sessões de julgamento e mais moroso, e em que as decisões proferidas implicassem um esforço de trabalho bem mais significativo, sendo tal situação manifesta no caso do recurso para o STJ).
Por outro lado, tendo em atenção a realidade económica nacional, em que o montante de € 412.080,00 equivale praticamente a 649 salários mínimos nacionais, apenas um processo em que a sua tramitação normal corresponda a um certo grau de complexidade poderá à luz dos princípios da proporcionalidade e da igualdade, sem nunca esquecer o direito de acesso à justiça, justificar a aplicação de tais montantes.
Por outro lado, nada há a censurar relativamente à conduta processual das partes, que actuaram dentro dos ditames da boa fé, lançando mão dos normais meios de impugnação, os quais consideraram adequados à defesa das suas posições, sem recurso a actuações dilatórias ou abusivas.
Assim, e em face do disposto no n.º 7 do art. 6.º do Regulamento das Custas Processuais, tendo em atenção os princípios da proporcionalidade, da igualdade e do direito de acesso à justiça, considera-se adequado dispensar as partes do pagamento de 40% do remanescente da taxa de justiça, na parte que corresponderia ao excesso sobre o valor tributário de € 275.000,00, apenas sendo, deste modo, devido pelas partes, o valor de 60% do dito remanescente.
Nesta conformidade, procede parcialmente a pretensão da Apelante.
2) Inconstitucionalidade da interpretação dada na decisão recorrida ao disposto no n.º 7 do art. 6.º do Regulamento das Custas Judiciais
Segundo a Apelante, a norma do art. 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais, quando interpretada no sentido de que só permite a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça quando se verifique um notório desvio para menos do que é a normal e esperada complexidade pressuposta no respectivo processo em função do valor e dos interesses objecto do litígio conexionados com este – o que equivale a considerar que a taxa de justiça fica definida apenas em função do valor da acção, sem qualquer limite máximo, desconsiderando o grau de complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcional entre serviço oferecido e o montante a esse título exigido –, é inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade consagrado nos arts. 18.º, n.º 2 e 266.º da Constituição da República Portuguesa e o princípio do acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional, consagrados nos arts. 2.º, 18.º e 20.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.
Decidamos.
No caso em apreço, como foi dada parcialmente razão à Apelante, considerando-se ser de dispensar as partes de parte do pagamento do remanescente da taxa de justiça, em face precisamente dos princípios constitucionais da proporcionalidade e do direito de acesso à justiça, a apreciação desta questão ficou prejudicada.
Sumário elaborado pela relatora (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
(…)
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que dispensa as partes do pagamento de 40% do remanescente da taxa de justiça, correspondente ao valor da causa, na parcela excedente a € 275.000,00, atento o grau de complexidade do processado e à conduta dos litigantes.
Sem custas.
Notifique.
Évora, 25 de Junho de 2020
Emília Ramos Costa (relatora)
Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura

__________________________________________________
[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Conceição Ferreira; 2.º Adjunto: Rui Machado e Moura.
[2] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 421/2013, consultável em www.tribunalconstitucional.pt.
[3] 1.ª instância: € 8.621.828,58 - € 275.000,00 = € 8.346.828,58 : € 25.000,00 = 333,87314 (334 fracções), 334 fracções x 3 UC (306) = € 102.204,00 x 2 = € 204.408,00; Recurso TR: € 8.621.828,58 - € 275.000,00 = € 8.346.828,58 : € 25.000,00 = 334 fracções x 1,5 UC (153) = € 51.102,00 x 2 = € 102.204,00; Recurso STJ: montante idêntico ao do recurso para o TR, ou seja, € 102.204,00.
[4] € 408.816,00 + € 3.264,00.