Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
641/19.2T8PTG-A.E1
Relator: CRISTINA DÁ MESQUITA
Descritores: PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
SUSTAÇÃO DA EXECUÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 06/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O princípio de adequação formal previsto no artigo 547.º do CPC não permite ao juiz deixar de ordenar a sustação da execução prevista no artigo 794.º do CPC, dispensando o exequente de reclamar o seu crédito na instância executiva fiscal onde se verificou a primeira penhora e de ordenar a notificação do primeiro exequente para reclamar o seu crédito na execução judicial sob o pretexto de adequação da tramitação processual às especificidades do caso.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 641/19.2T8PTG-A.E1
(1.ª Secção)
Relator: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL, exequente na ação que propôs contra (…) – Unipessoal, Lda. e outros, interpôs recurso do despacho proferido pelo Juízo Central Cível e Criminal de Portalegre, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, o qual indeferiu o pedido de dispensa da primeira de reclamar créditos no processo pendente de execução fiscal de onde emerge a penhora mais antiga sobre o imóvel penhorado também nos autos.

O despacho sob recurso tem o seguinte teor:
«Por requerimento de 22.10.2019, veio o exequente requerer a dispensa de reclamação de créditos em processo fiscal, onde emerge penhora mais antiga, de forma a evitar a sustação nos presentes autos e, consequentemente, notificando-se o IGFSS para, querendo, reclamar os seus créditos nos presentes autos.
Para tal alega que foi penhorado bem imóvel que já se encontrava anteriormente penhorado à ordem do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social. Sucede que o bem não foi vendido na execução fiscal uma vez que os executados se encontram a cumprir um plano prestacional, sendo que a penhora do bem em processo fiscal foi efetuada em 25.05.2012. Este plano impede assim que os credores sejam ressarcidos pelo seu crédito. Deverá esta execução cível prosseguir, dispensando-se a sustação, com vista ao alcance do efeito útil desta execução – deve entender-se que o exequente com segunda penhora não tem o ónus de intervir no processo da penhora mais antiga se o mesmo estiver parado, pois este ónus supõe que a primeira execução esteja numa situação dinâmica.
Cumpre apreciar e decidir já que a isso nada obsta.
Por força do artigo 794º, nº 1, do Código de Processo Civil a penhora de um bem em execução comum que antes fora penhorado numa execução fiscal que se mostra pendente determina a suspensão da primeira e o credor comum deverá reclamar o seu crédito na execução fiscal.
No caso em apreço, a Sra. Agente de Execução ainda não procedeu à sustação da execução relativamente ao imóvel, mas tem-se conhecimento de que existe uma penhora anterior do bem numa execução fiscal que se encontra pendente – consequentemente, nos termos do mencionado artigo, deverá a Sra. Agente de Execução proceder à sustação da execução relativamente a este imóvel.
Sucede que a execução fiscal está parada uma vez que se encontra a decorrer um acordo de pagamento com os executados. Assim, está ‘suspensa’ qualquer venda judicial dos imóveis.
Pode-se estabelecer um paralelismo entre esta situação e a situação prevista no artigo 244.º, n.º 2, do CPPT.
Compulsado o regime aplicável, preceitua o artigo 244.º, n.º 2, do CPPT que “Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efetivamente afeto a esse fim”.
Sobre a questão, esclarece o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.09.2017, processo n.º 1420/16.4T8VIS-B.C1 que:
“Inexistindo inércia da Fazenda Nacional na tramitação da execução fiscal (com penhora prioritária) mas, apenas, a consequência decorrente do regime jurídico que impede a venda, nesse processo, de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado (art.º 244º, n.º 2, do CPPT, na redação conferida pela Lei n.º 13/2016, de 23.5), afigura-se que, inviabilizado na execução fiscal mecanismo algum de tutela do direito do credor garantido pela penhora na execução comum (o credor reclamante, neste caso credor hipotecário, não pode requerer o prosseguimento da execução fiscal em circunstância alguma), não resta alternativa ao levantamento da sustação da execução comum para que se providencie pela atuação conducente à realização da venda no processo executivo cível, distribuindo-se o produto da venda em conformidade com o que for determinado na sentença de graduação. Entendimento contrário, cremos, postergaria os mais elementares princípios do processo executivo e afrontaria, necessariamente, o direito de propriedade privada constitucionalmente garantido e a garantia do credor à satisfação do seu crédito (artigo 62.º, n.º 1, da CRP), tornando, pelo menos, desproporcionadamente mais difícil ou onerosa a satisfação do direito do exequente (com violação do art.º 18 da CRP).”
No entanto, para que ocorra o levantamento da sustação da execução comum determinados requisitos têm de estar preenchidos nos termos do artigo 244.º do CPPT:
1 – Imóvel esteja destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar [artigo 244.º, n.º 2, do CPPT];
2 – Imóvel com valor tributável não se enquadre na taxa máxima prevista para a aquisição de prédio urbano ou de fração autónoma de prédio urbano destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, em sede de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis [artigo 244.º, n.º 3, do CPPT].
*
Ora, sucede que a situação prevista neste artigo é muito específica e tem apertados requisitos. Para que fosse possível levantar a sustação da execução relativamente a estes imóveis, implicaria uma comunicação da Autoridade Tributária a dizer que não iria proceder à venda do bem uma vez que este era a habitação própria e permanente do devedor. Ora, esta situação originaria uma situação de bloqueio, incomportável para o direito de propriedade consagrado constitucionalmente.
Neste caso, não existe tal situação – existe apenas um adiamento motivado por um acordo de pagamento entre executados e a Administração Fiscal.
Assim sendo, por se considerar que não existe fundamento legal para o levantamento/dispensa da sustação sobre o imóvel, indefere-se o requerido pelo exequente.
Notifique.»


I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«1. O processo de execução fiscal teve origem no já distante ano de 2012, pelo que a ausência de desenvolvimento e progresso que se observa nesse processo causa apreensão e receio na ora recorrente, no momento que vê possivelmente sustada a presente execução para em outra reclamar créditos, pois, dada a inércia e estagnação que levam a execução fiscal a ter já mais de 7 anos, não se vislumbra qualquer hipótese de sucesso e recuperação do seu crédito.
2. O Tribunal deveria, em nosso entender, operar uma simples adaptação de regime, no que à reclamação de créditos e aplicação do art.º 794 do mesmo diploma concerne, permitindo promover uma obtenção e satisfação dos créditos – tanto do IGFSS como da ora recorrente – mais célere e concretizável, em tempo útil; porém, o Tribunal a quo indeferiu o requerido.
3. Fê-lo com fundamento na ausência de base legal para operar a dispensa de reclamação e consequente notificação do IGFSS para reclamar seus créditos.
4. Assim, a ora recorrente vê a execução que propôs na iminência de ser sustada e a possibilidade de ser levada a reclamar créditos numa execução que se encontra completamente estagnada, protelando-se no tempo já há mais de 7 anos.
5. Não obstante o art.º 794º do CPC dispor que a presente execução (mais recente) deveria ser sustada para que a ora recorrente reclamasse créditos em sede de execução fiscal (mais antiga), é nosso entender que a sua aplicação no caso não assegura aquilo que deveria ser a mais adequada tramitação processual no caso, dadas as suas especificidades.
6. Ao abrigo do princípio da adequação formal, consagrado no art.º 547º do CPC, o Tribunal deveria precisamente “adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir”.
7. Deste modo, aplicando o art.º 794º do CPC ao caso, o Tribunal deveria conceder à ora recorrente a dispensa de sustação da execução, relativamente ao bem penhorado, determinado que, em sentido inverso ao legalmente disposto, se notificasse o IGFSS para, querendo, reclamar créditos nos presentes autos.
8. Assegurar-se-ia o correto e desenvolto curso do processo, que até à data se tem verificado nos presentes autos, ao contrário dos autos de execução fiscal, salvaguardando os interesses quer da ora recorrente quer do IGFSS, enquanto credores, permitindo promover pelas diligências de venda que podem levar ao pagamento das quantias exequendas/reclamadas.
9. O paralelismo estabelecido pelo Tribunal a quo entre o regime do n.º 2 do art.º 244º do CPPT e aquele que observamos nos autos não se nos afigura correto, nos termos em que as situações não são, de todo equiparáveis.
10. Enquanto a proibição do n.º 2 se aplica aos casos em que a entidade fiscal pretende a venda da habitação do executado ou seu agregado familiar, no caos dos autos não estamos perante a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado, como resulta de cópia do registo predial junto aos autos.
11. Deste modo, deve-se olhar sim à consequência prática da impossibilidade de prosseguimento dos autos e a situação atual da execução fiscal, parada por inércia do exequente (ainda que em cumprimento de um plano de pagamentos, nunca cumprido) e que não apresenta perspetivas de qualquer efetiva obtenção de pagamento.
12. Em ambos os casos a execução encontra-se parada, inexistindo quaisquer perspetivas de pagamento das quantias devidas ou sequer de novos desenvolvimentos processuais.
13. Poderia ser o caso de a ora recorrente ter a possibilidade de promover o andamento do processo onde reclamaria créditos enquanto “reclamante especial”, em virtude do estatuto que adquire pela aplicação do art.º 794º e pugnar pela efetivação e tomada de diligências como de um exequente; porém tal não é possível pois a posição processual não é idêntica, dada a diferente tutela e regime legislativo aplicável impedem que assim seja – apenas o poderia ser caso estivéssemos perante duas execuções para pagamento de quantia certa, igualmente reguladas nos termos do CPC.
14. Deste modo, surge fundamento para uma adaptação de regime, ao abrigo do princípio da adequação formal, por parte do Tribunal, que permita à instância civil prosseguir, não sendo sustada quanto àqueles bens, desenvolvendo-se na procura de obter o pagamento das quantias devidas, em tempo útil, em respeito da garantia constitucional do n.º 4 do art.º 20º da CRP, que não é respeitada em sede de execução fiscal.
15. A ausência de fundamento legal não deve obstar a que se possa adaptar a aplicação do regime adequado ao caso concreto em resposta a condicionantes que surjam e demandem outro cenário, pois a essência do princípio da adequação formal invocado, presente no art.º 547º do CPC, respeita precisamente à resposta que o Tribunal deve dar a eventuais questões e problemas que influam no normal curso do processo e para as quais não há previsão legal expressa.
16. O Tribunal deve sim olhar à causa e ao estado da instância, atentar nas suas especificidades e concluir se existirá alguma adequação que se possa levar a cabo que permita uma melhor e mais célere tramitação processual, quer oficiosamente quer a pedido das partes, como é o caso.
17. Não pode o Tribunal, que dispõe de poderes de adequação formal do processo, impor à ora recorrente que abandone a sua execução e que reclame o seu crédito em outra que já se vem prolongando há mais de 7 anos sem que alguma conclusão esteja à vista, quando esse mesmo Tribunal tem vindo a acompanhar o desenvolvimento adequado e tempestivo desses mesmo autos, que seguramente permitirão à ora recorrente obter o seu pagamento!
18. Em nosso entender, o Tribunal violou o art.º 547º do Código de Processo Civil com a decisão que proferiu em despacho, indeferindo aquela que é a mais adequada forma de salvaguardar os interesses das partes, inclusive aqueles do IGFSS, que não parecer ser capaz de obter qualquer resultado da execução que promoveu.»
I.3.
Não foi apresentada resposta às alegações de recurso.
O recurso interposto pelo autor foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no art. 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, nº 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (art. 608.º, n.º 2 e art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (arts. 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do CPC).

II.2.
A questão que cumpre decidir é apenas a de saber se, ao abrigo do princípio da adequação processual plasmado no art. 547.º do CPC, o tribunal a quo deveria ter deferido o pedido da exequente no sentido de a dispensar de reclamar o seu crédito (exequendo) nos autos de execução fiscal no âmbito dos quais foi efetuada uma penhora anterior sobre o bem penhorado nos presentes autos e, concomitantemente, ordenado a notificação do primeiro exequente (IGFSS) para, querendo, reclamar créditos na presente execução.

II.3.
FACTOS
Resulta dos autos a seguinte factualidade:
1 – No âmbito dos presentes autos de execução foi penhorado, em 21.05.2019, para pagamento da quantia exequenda e despesas prováveis, no montante global de € 131.294,88, o prédio urbano sito em Fronteira, na Zona Industrial, lote n.º (…), freguesia de Fronteira, concelho de Fronteira, inscrito na matriz sob o art. (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Fronteira sob o n.º (…), o qual se encontra registado em nome da executada (…), Unipessoal, Lda., pela inscrição Ap. (…), de 2007/02/22.
2 - A penhora supra mencionada encontra-se registada pela Ap. (…), de 2019/05/21.
3 – Sobre o imóvel descrito em 1 encontra-se registada uma hipoteca a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do (…), CRL, pela apresentação (…), de 2008/06/20.
3 – O referido imóvel foi penhorado, em 25.05.2012, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 120 120 110 001 4036, para satisfação da quantia exequenda de € 4.620,88.
4 – A penhora referida em 3 encontra-se registada a favor do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP, pela Ap. (…), de 2012/05/2.
5 – O processo de execução fiscal referido em 3 não foi ainda declarado extinto, tendo sido deferido um plano prestacional à executada, em 23.07.2019, o qual, em 07.10.2019, não estava a ser cumprido pela segunda.

II.4.
Apreciação do objeto do recurso
A apelante insurge-se contra a decisão do tribunal a quo que indeferiu o pedido por aquela apresentado no sentido de ser dispensada de ir reclamar o seu crédito hipotecário ao processo de execução fiscal onde ocorreu penhora mais antiga sobre o prédio melhor identificado nos autos, evitando a sustação dos presentes autos de execução prevista no art. 794.º, n.º 1, do CPC, ordenando-se, ao invés, a notificação da primeira exequente para reclamar o seu crédito exequendo na presente ação.
Sustenta a recorrente que o princípio de adequação formal consagrado no art. 547.º do CPC permitiria ao tribunal a quo ter adaptado o regime legal previsto no art. 794.º, n.º 1, do CPC, aplicando-o de «forma inversa», isto é, dispensando a apelante de reclamar créditos na execução fiscal e ordenando a notificação do IGFSS para, querendo, reclamar créditos nos presentes autos.
Para fundar a sua posição, a apelante afirma que a execução fiscal está pendente há mais de 7 anos «sem que alguma conclusão esteja à vista» pois encontra-se parada por inércia do exequente ainda que em cumprimento de um plano de pagamentos nunca cumprido e «não apresenta perspetivas de qualquer efetiva obtenção de pagamento» ou «sequer de novos desenvolvimentos processuais» e que ela-exequente não pode «pugnar pela efetivação e tomada de diligências» porque o processo onde foi realizada a penhora mais antiga é um processo de execução fiscal. Conclui, afirmando que só a solução por si proposta lhe permitirá, em tempo útil e em respeito da garantia constitucional do n.º 4 do art. 20.º da CR, obter o pagamento das quantias exequendas.
Apreciando.
A apelante impugna a decisão recorrida na perspetiva de uma (alegada) violação do princípio de adequação formal consagrado no art. 547.º do Código de Processo Civil.
Resulta dos autos sobre o imóvel penhorado nos mesmos pende uma penhora mais antiga, realizada no âmbito de um processo de execução fiscal, para satisfação de um crédito do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP e no qual foi realizado um acordo de pagamento da quantia exequenda em prestações.
A recorrente defende que o tribunal a quo, fazendo aplicação do princípio da adequação formal consagrado no art. 547.º do CPC, deveria ter dispensado a sustação da execução relativamente ao imóvel penhorado nos autos e deveria ter dispensado a exequente/apelante de ir reclamar o seu crédito no processo de execução fiscal, «determinando que, em sentido inverso ao legalmente imposto, se notificasse o IGFSS para, querendo, reclamar créditos nos presentes autos».
Dispõe o art. 547.º do CPC, sob a epígrafe Adequação formal, que «O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo».
O princípio da adequação formal – uma emanação do princípio da gestão processual previsto no art. 6.º do mesmo diploma legal – permite agilizar e simplificar o processo de forma a alcançar a celeridade processual e adequar a tramitação processual às especificidades do caso.
Trata-se de um princípio «destinado a introduzir alguma flexibilidade na tramitação ou marcha do processo, permitindo adequá-la integralmente a possíveis especificidades ou peculiaridades da relação controvertida ou à cumulação de vários objetos processuais a que correspondam formas procedimentais diversas, visando ultrapassar – através do estabelecimento de uma tramitação “sucedânea” – possíveis inadequações ou desadaptações das formas legal e abstratamente instituídas, no âmbito de qualquer processo. Acentua-se com a consagração deste princípio – que se substitui ao do estrito e rígido respeito pela legalidade das formas processuais – o caráter funcional ou instrumental do processamento ou tramitação, que não pode ser perspetivado como encerrando um fim em si mesmo, mas antes entendido como visando a realização de objetivos essenciais: a justa composição do litígio, alcançada com respeito integral pelos princípios essenciais estruturantes do processo civil, nomeadamente os da igualdade das partes e do contraditório.» - Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª Edição, 2004, Almedina, p. 261 (itálicos nossos).
Como assinalam Paulo Ramos Faria/Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, 2014, 2.ª edição, Almedina, pp. 455 e ss., o princípio da adequação formal tem sempre em vista uma perspetiva de eficiência processual traduzida na ideia de realização da justiça material com um menor custo de tempo e de meios, implicando um dever de adoção da forma processual mais adequada e um dever de adaptação do conteúdo e da forma dos atos processuais ao seu fim. Deveres que estão, ambos, ao serviço de um processo equitativo, o qual constitui não apenas um limite ao princípio da adequação formal mas também a sua causa.
Importa, contudo, sublinhar que apesar de o princípio da adequação formal permitir ao juiz proceder a adaptações da forma legal ao caso concreto, considerando as especificidades da causa, ele não o legitima a preterir atos da forma legal que sejam imperativos ou a derrogar normas imperativas.
No caso concreto, a norma legal que a apelante pretende ver aplicada «de forma inversa» ao abrigo do referido princípio é, como se referiu, a constante do art. 794.º, n.º 1, do CPC que, sob a epígrafe Pluralidade de execuções sobre os mesmos bens, dispõe o seguinte:
«Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga» (itálico nosso).
O normativo em causa é igualmente aplicável quando a penhora sobre os mesmos bens ocorre numa execução judicial e numa execução fiscal, sendo esta a mais antiga. Nesse circunstancialismo, o credor pode reclamar o seu crédito na execução fiscal nos mesmos termos em que o poderia fazer numa execução judicial.
Com o preceito acima transcrito pretende-se não permitir a adjudicação ou a venda dos mesmos bens em processos diferentes, uma vez que a liquidação deve ser única e deve operar-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar - Alberto dos Reis, Processo de Execução, volume 2.º, reimpressão, Coimbra Editora, 1985, p. 287. Com efeito, autorizar o prosseguimento de mais que uma execução sobre o mesmo bem não iria permitir atender de forma ponderada e em simultâneo aos direitos dos diversos credores, possibilitando, até, a derrogação da preferência prevista no art. 822.º do Código Civil, preceito que consagra a prevalência da penhora mais antiga sobre as posteriores.
Dito isto, a nosso ver, o princípio de adequação formal invocado pela apelante não permite ao juiz “inverter” o regime aplicável do art. 794.º do CPC no sentido de dispensar o exequente de reclamar o seu crédito na instância executiva fiscal onde se verificou a primeira penhora, ordenando, simultaneamente, a notificação do primeiro exequente para reclamar o seu crédito na presente execução. E não se diga que a notificação do primeiro exequente para reclamar o seu crédito na segunda execução obstaria a que fosse postergado o regime legal constante do art. 822.º do Código Civil porquanto a lei não obriga o primeiro exequente a reclamar o seu crédito na execução onde o bem sobre o qual tem uma garantia real (penhora) foi penhorado em segundo lugar; logo, não reclamando ele o seu crédito naquela (segunda) execução, a não sustação da instância executiva onde o bem foi penhorado uma segunda vez seria suscetível de gerar a preterição da preferência prevista no art. 822.º do Código Civil.
Não se olvida que o regime de execução fiscal apresenta algumas especificidades que colocam o exequente civil cuja penhora incida sobre os mesmos bens em desvantagem, designadamente quando a execução fiscal é sustada por motivo de acordo de pagamento da dívida em prestações já que, neste caso, o credor que tenha garantia sobre os bens não se pode opor a tal sustação, restando-lhe aguardar o desfecho de tal acordo. Porém, o Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido do regime previsto no anterior 871.º do CPC (antecessor do atual art. 794.º do CPC) não ser inconstitucional, concretamente nos acórdãos n.ºs 51/99, de 19.01, 281/99, de 05.05 e 283/99, de 05.05, publicados, respetivamente, no DR, II Série de 05.04.99, 01.03.2000 e 14.07.99, resultando desta jurisprudência que a interpretação daquele normativo no sentido de ser sustada a execução judicial em que se penhorem bens já anteriormente penhorados numa execução fiscal não é inconstitucional, não só por não haver nenhuma diminuição da garantia do credor à satisfação do seu crédito – garantia que é abrangida pelo direito de propriedade consagrado no art. 62.º, n.º 1, da CR – mas também por essa satisfação não se tornar mais difícil ou onerosa, em desrespeito do art. 18.º, n.º 2, da CRP. Com efeito, assinala-se no Acórdão n.º 51/99 que «o artigo 871.º do CPC impõe a sustação da execução nos casos em que, efetuada a penhora ordenada nessa execução, se verificar a existência de penhora(s) anterior(es) à ordenada/efetuada nessa execução, abrindo-se prazo para o credor reclamar o crédito na execução onde a penhora foi registada com anterioridade. Mas refira-se que a natureza do crédito, ou melhor, a garantia do crédito decorrente da penhora mantém-se, em nada a afetando o regime previsto no art. 871.º do CPC. Aliás essa garantia da penhora é determinante quer no novo prazo para reclamação de créditos que é facultado ao credor, quer na preferência a efetuar em sede de graduação de créditos. Não pode dizer-se que, por força do mecanismo legal previsto no normativo em apreço, a posição do credor saia prejudicada ou seja para ele mais difícil a cobrança do seu crédito, tanto mais que a dívida não é estática, procedendo-se à contagem dos respetivos juros, que obviamente revertem a favor do credor. Por outro lado, o credor pode sempre impulsionar a execução sustada ao abrigo do artigo 871.º do CPC, nomeando à penhora outros bens do devedor, se os houver. Podendo, igualmente, acordar com o devedor o pagamento da dívida exequenda em prestações, nos termos do artigo 882.º do Código de Processo Civil […]. Essencialmente preservada a garantia do crédito, não pode dizer-se que as vicissitudes da execução fiscal – a que o exequente comum se sujeita – seja, de tal forma gravosas que, num quadro de necessária ponderação do interesse público em jogo naquela execução, afetem de forma desproporcionada tal garantia.»
Acresce que nos termos do art. 200.º, n.º 1, do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), em caso de acordo de pagamento em prestações, a falta de pagamento sucessivo de três prestações, ou de seis interpoladas, importa o vencimento das seguintes se, no prazo de 30 dias a contar da notificação para o efeito, o executado não proceder ao pagamento das prestações incumpridas, prosseguindo o processo de execução fiscal os seus termos. Pelo que, e ao contrário do que sustenta a apelante (cfr. conclusão n.º 12 das alegações de recurso), a falta de pagamento das prestações acordadas levará necessariamente a novos desenvolvimentos processuais com vista à satisfação da quantia exequenda e dos créditos que ali vierem a ser reclamados, não se verificando pois uma inviabilização definitiva da satisfação do crédito da ora apelante no âmbito do processo de execução fiscal. Dito de outra forma, mantém-se a possibilidade de o processo de execução fiscal evoluir para a fase da venda do bem ali penhorado e, consequentemente, a possibilidade de o aqui exequente ali se poder fazer pagar pelo produto da venda do imóvel penhorado, sendo, portanto, completamente justificada a sustação da execução prevista no artigo 794.º, n.º 1, do CPC.
Não merece, pois, censura a decisão do juiz a quo ao indeferir o pedido de não sustação da execução e de dispensa da exequente de reclamar os seus créditos na primeira execução.
Por todo o exposto, improcede a presente apelação.


Sumário:
(…)

III. DECISÃO

Em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente a Apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
As custas de parte na presente instância recursiva são da responsabilidade da recorrente (artigos 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º, 533.º, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).
Notifique.
Évora, 4 de junho de 2020
Cristina Dá Mesquita
José António Moita
Silva Rato