Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2589/13.5TBFAR.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: GUARDA NACIONAL REPUBLICANA
ACIDENTE EM SERVIÇO
DIREITO DE REGRESSO
Data do Acordão: 03/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: De acordo com o regime jurídico dos acidentes de serviço dos trabalhadores que exercem funções públicas (Decreto-Lei nº 503/99, de 20/11), o direito à reparação desses trabalhadores por danos resultantes de tais acidentes, e o direito de regresso dos serviços e organismos que tenham pago a esses trabalhadores quaisquer prestações nesse âmbito, depende de se tratarem, de facto, de acidentes de serviço.
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2589/13.5TBFAR.E1-1ª (2014)
Apelação-1ª (2013 – NCPC)
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

Na presente acção de processo comum que o Estado português, representado pelo Ministério Público (MP) intentou contra (…), e actualmente a correr termos na Secção Cível da Instância Local de Faro da Comarca de Faro (depois de iniciado no Tribunal Judicial de Faro), foi pedida pelo A. a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de 5.303,50 €, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação, a título de indemnização por danos causados pelo R. na pessoa de militar da Guarda Nacional Republicana (GNR), alegadamente devidos ao A., por sub-rogação legal. Pelo A. foi alegado ter o R. agredido aquele militar da GNR, num estabelecimento de café em que este se encontrava (fora de serviço e sem estar fardado), e com isso causado lesões pessoais que o incapacitaram para o trabalho durante 115 dias, e ter o A., em consequência dessa actuação, suportado, através do Ministério da Administração Interna, despesas com remuneração, suplemento por serviço nas forças de segurança e complemento de fardamento, durante esse período, bem como despesas clínicas, tudo perfazendo o total acima referido.

Contestando, o R. impugnou o pedido, alegando, no essencial, ter sido ele vítima de agressão por parte do indivíduo identificado como militar da GNR e de outros, da qual apenas se defendeu, pelo que nega ter causado qualquer lesão ao referido indivíduo.

Na sequência da normal tramitação processual, foi realizado o julgamento, após o qual foi lavrada sentença em que se decidiu julgar improcedente a acção, absolvendo o R. do pedido.

Para fundamentar a sua decisão, argumentou o Tribunal, essencialmente, o seguinte: da matéria de facto provada resultou ter ocorrido um confronto físico envolvendo vários indivíduos, no decurso do qual o R. agrediu efectivamente o militar da GNR identificado nos autos, o qual sofreu lesões que o incapacitaram por 115 dias, tendo o Estado suportado as quantias peticionadas; porém, esse militar da GNR, na ocasião, não se encontrava de serviço, não estava fardado e estava de férias; de acordo com o regime jurídico dos acidentes de serviço dos trabalhadores que exercem funções públicas (Decreto-Lei nº 503/99, de 20/11), o direito à reparação desses trabalhadores por danos resultantes de tais acidentes, e o direito de regresso dos serviços e organismos que tenham pago a esses trabalhadores quaisquer prestações nesse âmbito, depende de se tratarem, de facto, de acidentes de serviço; ora, neste caso, o militar da GNR em referência não se encontrava de serviço [«tanto mais que (…) se encontrava de férias», como refere o tribunal a quo em reforço da sua anterior afirmação], pelo que não ocorrem as condições para o exercício do direito de sub-rogação legal do A..

Inconformado com tal decisão, dela apelou o A., formulando as seguintes conclusões:

«1. O presente recurso versa sobre a matéria de facto dada como provada, que se impugna parcialmente, e sobre a decisão de direito.

2. Todos os factos alegados pelo A. foram dados como provados.

3. O A. alegou no artigo 3 da p.i. que «Nessa altura, entrou no café o cabo de infantaria da GNR, (…), que nesse momento não se encontrava em serviço e também não estava fardado, o qual, ao presenciar os factos referidos, agarrou o réu pelas costas, a fim de o retirar do local».

4. A este segmento factual o Mº Juiz acrescentou o seguinte facto “encontrando-se de férias”, facto que considerou provado, por ter sido mencionado pela testemunha (…).

5. Do depoimento desta testemunha, na parte que toca a este facto, não é possível concluir pela sua verificação, pois como resulta da gravação, a testemunha depôs de forma dúbia e hesitante, denotando alguma insegurança e falta de memória quanto ao facto que acabara de afirmar.

6. Por conseguinte, impugna-se tal facto, que para além de não ter sido alegado pelas partes, não resulta minimamente provado, devendo a decisão de facto ser reapreciada nesta parte.

7. Tal facto, por se tratar de facto complementar, não podia ser considerado pelo Mº Juiz sem que fosse dada às partes a possibilidade de sobre ele se pronunciarem, conforme estabelece o art.5º/2 al. b) do CPC.

8. A omissão da exigência do contraditório nesse caso constitui uma nulidade processual, que influi no exame e decisão da causa, conforme art.195º/1 do CPC.

9. Por isso, deverá ser, caso se entenda dar como provado esse facto, ordenado o cumprimento do contraditório.

10. Como decorre da sentença todos os factos integrantes dos pressupostos da responsabilidade civil se mostram provados, devendo o réu responder pelos danos causados com a sua conduta ilícita.

11. O Estado tem direito ao reembolso das quantias que pagou ao seu servidor, o cabo de infantaria (…), porque este foi interveniente num acidente considerado pelo art. 7º nº 4 do Decreto- Lei nº 503/99, de 20 de Novembro, como acidente em serviço.

12. Acidente em serviço para os efeitos desta lei é não só aquele que ocorre nas circunstâncias em que se verifica o acidente de trabalho, como é dito no nº 1 do art. 7º, mas também o incidente ou acontecimento perigoso de que venha a resultar lesão corporal, que embora não tenha as características do acidente de trabalho, assuma os contornos do nº 4 do referido artigo.

13. Embora o cabo da GNR, servidor do Estado, não estivesse em serviço, sobre o mesmo impendiam vários deveres, nomeadamente o dever de zelo, que lhe impunha que mesmo fora do exercício normal de funções, tivesse que intervir na condição plena de agente de autoridade para tomar conta de ocorrências e impedir por todos os meios ao seu alcance qualquer flagrante delito, deveres que lhe são impostos pelo Regulamento de Disciplina da GNR e Regulamento de Disciplina Militar.

14. Nessa medida o facto em causa em que interveio o cabo da GNR releva para efeitos de aplicação do disposto no art. 7º nº 4 do DL nº 503/99, de 20 de Novembro.

15. Por força do art.15º do mesmo diploma, o referido militar da GNR manteve o direito à remuneração, incluindo os suplementos de carácter remuneratório e despesas médicas, ficando o Estado com direito ao reembolso perante terceiros, das quantias que suportou a título de assistência médica, remuneração e outras prestações de carácter remuneratório relativas ao período de incapacidade para o trabalho, nos termos do art. 46º do mesmo diploma.

16. Assim, ao contrário do decidido, estamos em presença de um acidente em serviço e, por força do art. 46º do DL nº 503/99, de 20 de Novembro, e art. 592º nº 1 do C.C., o A. tem direito, por via do direito de sub-rogação legal, ao reembolso da quantia indemnizatória que peticionou contra o réu, ou seja, o montante de € 5.305,50.

17. Ao declarar improcedente a acção e decidir absolver o réu do pedido, o Tribunal interpretou erradamente a lei, violando o disposto nos artigos 7º nº 4, 15º e 46º do Decreto-Lei nº 503/99, de 20 de Novembro.»


O R. apelado contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. artos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do NCPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (cfr. artº 608º, nº 2, ex vi do artº 663º, nº 2, do NCPC).

Do teor das alegações do recorrentes resulta que a matéria a decidir se resume a apreciar a eventual modificabilidade da matéria de facto, no sentido de eliminar o segmento «encontrando-se de férias» integrado no ponto de facto enunciado no 3º parágrafo da factualidade provada, ao abrigo do artº 662º do NCPC (e conferindo ainda a eventual nulidade por se ter considerado esse elemento de facto ex novo, em violação do princípio do contraditório) e a aferir das consequências, no plano jurídico, da eventual procedência dessa impugnação da matéria de facto, do ponto de vista da integração por essa factualidade do conceito de “acidente de serviço”, para efeitos do exercício de um direito de sub-rogação legal do A. quanto a quantias por si suportadas em consequência desse acidente, sendo que é pretensão do apelante obter tal integração e a consequente procedência do pedido por si formulado na acção.

Cumpre apreciar e decidir.

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II – FUNDAMENTAÇÃO:
A) DE FACTO:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, que se passam a reproduzir:

«– No dia 22 de Junho de 2012, durante a tarde, o R. entrou no café denominado “Grupo Desportivo (…)”, sito em (…), Faro.

– No exterior deste café, o R. dirigiu-se a (…), desentendeu-se com este, após o que se envolveram fisicamente um com o outro, tendo ambos caído ao solo.

– Nessa altura, o cabo de infantaria da GNR, (…), que nesse momento não se encontrava em serviço e não estava fardado, encontrando-se de férias, e que, ao presenciar os factos, agarrou o R. pelas costas, quando este se encontrava em cima de (…), para os separar.

– O R., ao sentir-se agarrado, começou a espernear tendo atingido (…) no pé esquerdo, com o que lhe causou traumatismo, com entorse da articulação de Lisfranc e fratura do 1º cuneiforme, tendo, por isso, recebido tratamento hospitalar no HF E.P.E..

– Em resultado destas lesões, (…) ficou incapacitado de trabalhar durante 115 dias.

– Durante os dias de doença e convalescença acima referidos, o autor (Estado-GNR) esteve privado dos serviços que o cabo (…) lhe prestaria se estivesse ao serviço.

– Durante o período de baixa (115 dias) o A. pagou ao cabo (…), a título de remuneração, suplemento por serviço nas forças de segurança e complemento de fardamento, as seguintes quantias, correspondentes ao período de 23 de Junho a 26 de Novembro de 2012: Vencimentos – 4.331,63 €; complemento de fardamento – 62,74 €; e suplemento por serviço nas forças de segurança – 896,63 €.

– (…), no dia 8 de Agosto de 2012, foi assistido no Hospital de Faro, em consulta externa, onde também efetuou exames complementares de diagnóstico, cujas taxas moderadoras importaram a quantia de nove euros e cinquenta.

– No dia 28 de Agosto de 2012, (…) foi observado em consulta de Fisiatria, na Clínica do Alportel, tendo o Estado pago pela consulta a importância de cinco euros.»


B) DE DIREITO:

1. Como se disse, o apelante pretende que o tribunal a quo, indevidamente, aditou à matéria de facto provada um elemento de facto que não tinha sustentação bastante na prova produzida em audiência – e que, por isso, deve ser retirado do elenco de factos provados. Trata-se de segmento integrado no ponto de facto enunciado no 3º parágrafo da factualidade provada, quando, depois de se dizer que o militar da GNR lesado «não se encontrava em serviço e não estava fardado», se adita a expressão «encontrando-se de férias».

Acresce que o apelante considera este elemento novo um facto que, a ser admitido a figurar na matéria provada, integraria a previsão do artº 5º, nº 2, al. b), do NCPC, quando ali se alude aos «factos que sejam complemento (…) dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa» e que obrigaria, como decorreria desse preceito, a conceder às partes a possibilidade de sobre tal elemento se pronunciarem, em cumprimento do princípio do contraditório – o que, não tendo ocorrido in casu, constituiria nulidade processual enquadrável no artº 195º, nº 1, do NCPC, por «influir no exame ou na decisão da causa».

Comece-se por dizer que se discorda do enquadramento conceitual ensaiado pelo apelante.

Se tivermos presente a distinção doutrinária entre «factos instrumentais» e «factos complementares ou concretizadores», que já provém do artº 264º do anterior CPC, e que foi vertida no artº 5º do actual CPC, verificamos que este segundo termo ainda se refere a «factos essenciais», como aliás se indicava expressamente no nº 3 daquele artº 264º. Como explicitava LOPES DO REGO, esses «factos complementares ou concretizadores» ainda teriam de ser «factos essenciais», e, como tal, «absolutamente indispensáveis à identificação, preenchimento e substanciação das situações jurídicas» invocadas (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2004, p. 252). E, com o novo CPC, apesar de ter desaparecido a menção expressa ao qualificativo essencial, a natureza dos «factos complementares ou concretizadores» como essenciais mantém-se, pois só assim se explica a distinção entre a al. a), que se refere aos «factos instrumentais», e a al. b) do nº 2 do artº 5, sendo que os «factos complementares ou concretizadores» dos factos essenciais nucleares são «ainda constitutivos da causa de pedir – e, como tal, essenciais à procedência da acção –, mas desnecessários à identificação do tipo legal substantivo e à individualização da relação jurídica» (neste sentido, PAULO RAMOS DE FARIA/ANA LUÍSA LOUREIRO, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, Coimbra, 2013, p. 36). Por sua vez, os «factos instrumentais» são, segundo estes autores (e, na mesma linha de LOPES DO REGO), aqueles que «não preenchendo a fatispécie de qualquer norma de direito substantivo que confira um direito ou tutele um interesse das partes, permitem, mediante presunção, chegar à demonstração de factos principais – tendo, pois, uma função probatória» (ibidem).

Ora, perante esta distinção afigura-se claro que a menção à eventual situação de férias do militar da GNR lesado constituirá mero facto instrumental – e não facto essencial complementar. Não é a situação de férias que afasta a aplicação da norma cuja interpretação está em causa nos autos e que se reporta ao conceito de «acidente em serviço»: essa situação não integra a previsão normativa e a norma não foi interpretada tendo essa integração por pressuposto. Na fundamentação da decisão recorrida, a menção à situação de férias surge como um argumento coadjuvante [daí a expressão «tanto mais que (…) se encontrava de férias»], depois de se inferir ser entendimento do tribunal a quo que a factualidade alegada pelo A. quanto à situação do lesado (e que foi dada como provada: «nesse momento não se encontrava em serviço e não estava fardado») já bastaria para afastar a caracterização do evento como «acidente em serviço».

Sendo o segmento probatório relativo à situação de férias do lesado um mero facto instrumental, então é manifesto que não se coloca qualquer questão de violação do princípio do contraditório, que apenas se poderia colocar se estivéssemos perante facto essencial complementar, como decorre do artº 5º, nº 2, al. b), do NCPC – nem, consequentemente, ocorreu a pretensa nulidade processual invocada pelo A., que sempre teria de improceder.

Em todo o caso, subsiste ainda a questão de saber se deve ou não ser alterada a matéria de facto provada quanto a esse segmento relativo à situação de férias do lesado. Note-se que foi o próprio lesado – o militar da GNR, (…) – que, no seu depoimento, admitiu a possibilidade de estar de férias na ocasião do evento lesivo, mas sustenta agora o A. que esse depoimento se produziu «de forma dúbia e hesitante, denotando alguma insegurança e falta de memória».

Perante esta alegação, seria, em princípio, caso de se proceder à audição da gravação desse depoimento. Teríamos então de considerar as condicionantes próprias da impugnação da matéria de facto – e que se traduzem em dois parâmetros essenciais: por um lado, a noção de que a garantia do duplo grau de jurisdição não pode subverter o princípio da livre apreciação da prova; por outro, a ideia de que o tribunal de 2ª instância não deve ir além de um juízo sobre a razoabilidade da convicção probatória da 1ª instância, face aos elementos disponíveis nos autos. No desenvolvimento destes tópicos, seria de assinalar o seguinte: quanto ao primeiro aspecto, que, conforme já dizia o Ac. RE de 3/6/2004 (CJ, XXIX, t. III, p. 249), «(…) o sistema legal, tal como está consagrado, [mesmo] com recurso à gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, não assegura a fixação de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do julgador perante o qual foram produzidos os depoimentos em causa», tendo aqui em mente aqueles «elementos intraduzíveis e subtis», como a «mímica e todo o aspecto exterior do depoente», de que falava LOPES CARDOSO (in BMJ, nº 80, pp. 220-221, citado por ABRANTES GERALDES, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 4ª ed, Almedina, Coimbra, 2004, p. 247); sobre o segundo ponto, que, conforme se pronuncia o Ac. RC de de 3/10/2000 (CJ, XXV, t. IV, p. 27), «o tribunal da 2ª jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si», sendo antes caso de «através das regras da ciência, da lógica e da experiência, (…) controlar a razoabilidade daquela convicção [do tribunal de 1ª instância] sobre o julgamento do facto como provado ou não provado», conforme se expressa TEIXEIRA DE SOUSA (in Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lex, Lisboa, 1997, p. 348).

Já se referiu que foi o próprio lesado a admitir que se encontrava de férias na ocasião do evento lesivo, tendo o tribunal a quo resolvido acolher essa versão dos factos, não obstante a alegada hesitação ou insegurança do lesado no seu depoimento. Perante isto, e atentos os elementos supra referenciados, muito provavelmente seria de chegar à conclusão de que não se evidenciaria erro de julgamento, traduzido em desconformidade flagrante entre os elementos probatórios e a decisão – o que excluiria a pretendida modificação da factualidade provada.

Porém, cremos que nem se justificará a pretendida audição da gravação em referência, por uma simples razão de economia processual. Valerá a pena proceder ainda à requisição da gravação ao tribunal de 1ª instância (já que não foi junta ao recurso), adiando a prolação da presente decisão, quando é possível constatar, pela simples análise da factualidade provada, que a eliminação do segmento em causa é totalmente irrelevante para tal decisão?

Perante esta questão, diremos que se nos afigura plenamente conforme ao princípio da economia processual evitar toda uma tramitação que se traduziria na realização de actos inúteis, proibidos por lei (artº 130º do NCPC). É o que sucederia na situação presente, já que a eliminação do segmento de facto relativo à situação de férias do lesado não alteraria o sentido da decisão a ser proferida, pelo que qualquer diligência intercalar apenas adiaria uma decisão inevitável, como se demonstrará infra.

Para os efeitos da pretensão de alteração da matéria de facto (com eliminação do segmento referenciado), diremos então que se mostra fundada a recusa dessa eliminação, assim improcedendo a impugnação formulada. Mas, por conveniência de análise (atentas as mencionadas razões de economia processual), podemos mesmo partir do princípio de que essa eliminação ocorreria, para, nessa base, demostrar a sua irrelevância para a decisão de direito do presente caso. É o que faremos de seguida.

2. Partindo da matéria de facto provada e supra descrita, relativamente à conduta do R., não oferece dúvida que, perante esta, se devem ter por verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil – facto voluntário ilícito e culposo, nexo de causalidade, dano.

Questão controvertida é antes a de saber se esse evento configura um “acidente em serviço” de funcionário do Estado – do qual, confirmada aquela caracterização, se pudesse extrair um dever de o R. indemnizar o Estado, por sub-rogação legal, quanto às despesas suportadas por este (ponto este que também já se encontra demonstrado nos autos).

Está aqui em causa o regime previsto no Decreto-Lei nº 503/99, de 20/11, que estatui sobre os acidentes em serviço e as doenças profissionais na Administração Pública. Segundo esse diploma, que se aplica «a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração directa e indirecta do Estado» (artº 2º, nº 1), é definido como «acidente em serviço» o «acidente de trabalho que se verifique no decurso da prestação de trabalho pelos trabalhadores da Administração Pública» (artº 3º, nº 1, al. b)) ou, mais rigorosamente, «todo o que ocorre nas circunstâncias em que se verifica o acidente de trabalho, nos termos do regime geral, incluindo o ocorrido no trajecto de ida e de regresso para e do local de trabalho» (artº 7º, nº 1) – o que remete para o conceito de «acidente de trabalho» constante da legislação laboral. Por sua vez, encontra-se no artº 8º, nº 1, da Lei nº 98/2009, de 4/9 (diploma que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, por remissão do artigo 284º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, de 12/2) a definição desse conceito, nos seguintes termos: «É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte».

Aquele artº 7º do Decreto-Lei nº 503/99 contém ainda uma outra norma relevante, no seu nº 4, segundo a qual «pode considerar-se ainda como acidente em serviço o incidente ou o acontecimento perigoso de que venha a resultar lesão corporal, perturbação funcional ou doença, em que se comprove a existência do respectivo nexo de causalidade». Porém, atento o enquadramento sistemático desta norma, nada consente que esse nº 4 seja interpretado no sentido de um alargamento do conceito de «acidente em serviço» para situações em que já não haja prestação de serviço: o que aí se trata é de considerar como «acidente em serviço» situações que já dificilmente caberiam na noção de «acidente» (e daí a referência a «incidente ou acontecimento perigoso», fórmula já muito próxima da noção de «causa de força maior», que se pode caracterizar como «acontecimento imprevisível, cujo efeito danoso é inevitável com as precauções normalmente exigíveis», conforme a definição, reportada a veículos, usada por ANTUNES VARELA, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, pp. 681-682). Esse «incidente ou acontecimento perigoso» ainda tem de ocorrer num contexto de prestação de serviçoi.e., decorre do elemento sistemático que o nº 4 tem de ser interpretado subordinadamente ao nº 1, sob pena de total descaracterização do conceito de «acidente em serviço».

Afastada a interpretação descontextualizada do nº 4 do artº 7º do Decreto-Lei nº 503/99 intentada pelo A., acaba a controvérsia por se reconduzir apenas à questão de apurar se se deve considerar que o militar da GNR se encontrava na ocasião da lesão por si sofrida «em serviço» – e isso não obstante se ter consignado na factualidade provada que aquele «nesse momento não se encontrava em serviço e não estava fardado».

Importa aqui então conhecer melhor o estatuto funcional do lesado. Sobre esta matéria rege o Decreto-Lei nº 297/2009, de 14/10, que «aprova o Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana» (artº 1º, nº 1, do EMGNR). Entre os deveres dos militares da GNR, avultam, com interesse para o caso, os de disponibilidade e de zelo: o primeiro significa que «o militar da Guarda encontra-se permanentemente disponível para o serviço» – o que não é o mesmo que estar permanentemente de serviço (artº 10º, nº 1); o segundo importa «a obrigação do militar da Guarda de acudir com rapidez e prestar auxílio em situações de catástrofe ou calamidade pública» (artº 11º, nº 2). E são-lhes impostos ainda deveres de «tomar a iniciativa na repressão de qualquer infracção de que tenha conhecimento» (artº 16º, al. b)) ou de «actuar para reprimir qualquer tentativa ou cometimento de crime (…) de que tome conhecimento» (artº 16º, al. c)). Na mesma linha se apresenta o Regulamento de Disciplina da GNR (aprovado pela Lei nº 145/99, de 1/9), para que remete o artº 5º, nº 1, do EMGNR, que diz consistir o dever de disponibilidade em «manter-se permanentemente pronto para o serviço» (artº 15º, nº 1). Também o Regulamento de Disciplina Militar (aprovado pela Lei Orgânica nº 2/2009, de 22/7), para que igualmente remete o artº 5º, nº 1, do EMGNR, ainda que sem trazer algo de muito relevante neste ponto, contempla idêntica delimitação do dever de disponibilidade, referindo-se a uma «permanente prontidão para o serviço» (artº 14º, nº 1).

Do conjunto destas normas podemos, pois, extrair a conclusão de que os militares da GNR não estão sempre em serviço: podem estar em exercício de funções ou fora delas, mas podem, em qualquer momento em que estejam fora de funções, passar a estar em funções se tal for necessário para reprimir infracção de que tenham conhecimento – mas em tal intervenção têm, necessariamente, de assumir de pleno a sua condição de militares da GNR, ou seja, têm de intervir enquanto tal, o que implica fazerem-se reconhecer nessa qualidade.

Ora, no caso dos autos (e mesmo excluindo – por conveniência de análise, como referimos – a eventualidade de o lesado se encontrar em situação de férias), afigura-se evidente que o militar da GNR lesado não se encontrava «em serviço», nem se pode afirmar que “reentrou” ao serviço na ocasião, assim como está excluída qualquer situação de «catástrofe ou calamidade pública» que justificasse uma prestação de auxílio imediata. Está provado que o lesado não estava em exercício de funções e que não estava fardado – e nada se comprovou que demonstre ter-se feito reconhecer perante os circunstantes como agente da autoridade: v.g., não se identificou como tal, nem praticou qualquer acto que caracterize uma intervenção como agente da autoridade. Limitou-se, como qualquer outro cidadão poderia ter feito, a interferir numa altercação entre dois indivíduos, com intenção de os separar, mas sem revelar a sua condição – e em face de uma situação que configuraria, quando muito, um crime semi-público de ofensas à integridade física, em que a intervenção como agente da autoridade seria normalmente para colher uma eventual apresentação de queixa.

Tanto nos basta para poder afirmar que o lesado não se encontrava, de facto, «em serviço» na ocasião do evento lesivo (e apenas com base na afirmação, constante da factualidade provada, de que o lesado «nesse momento não se encontrava em serviço e não estava fardado») – o que afasta a qualificação desse evento como «acidente em serviço», para efeitos da aplicação do Decreto-Lei nº 503/99.

Sendo assim, e não obstante o A. ter despendido quantias em benefício do lesado (com remunerações e outras prestações e com despesas clínicas) – o que, em princípio, lhe conferiria um direito de regresso (ou, mais rigorosamente, um direito de sub-rogação legal) contra o terceiro civilmente responsável (o aqui R.), nos termos do artº 46º do Decreto-Lei nº 503/99 –, não poderá proceder a pretensão do A. contra o R., por claudicar a caracterização do evento lesivo como «acidente em serviço». E, nessa conformidade, assistia razão ao tribunal a quo ao julgar improcedente a presente acção.

Não se vislumbra, pois, qualquer fundamento para alterar ou revogar o que foi decidido na 1ª instância – e assim deverá improceder integralmente a presente apelação.

3. Em suma: não merece censura o juízo decisório formulado na sentença recorrida, não se mostrando violadas as disposições legais mencionadas nas respectivas alegações de recurso.

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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o presente recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo apelante (artº 527º do NCPC).

Évora, 12 / 03 / 2015
Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)