Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
76651/18.1YIPRT.E1
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: CONTRATO DE ADESÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
Data do Acordão: 12/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Ao prescrever-se na al. d) do artigo 8º do DL 446/85, de 25 de Outubro, a exclusão dos contratos singulares das cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contraentes, o legislador pretendeu afastar a possibilidade de serem inseridas cláusulas depois de algum dos contratantes ter assinado, uma vez que, tal configuraria, então, uma alteração contratual que se afastava do mútuo consenso necessário à validade do acordo celebrado.
2 – As cláusulas contratuais constantes do verso da página do contrato onde se encontram as assinaturas dos contraentes não serão de excluir, se dos autos não resultar que as mesmas tenham sido inseridas após aquelas assinaturas.
3 – Estando demonstrado que a subscritora do contrato de adesão teve conhecimento das regras contratuais, nunca invocou o desconhecimento relativamente ao teor do acordo celebrado, recebeu extractos demonstrativos das operações comerciais realizadas com o cartão de crédito e utilizou aquele cartão durante um longo período de tempo e de forma regular, não existe motivo para que o Tribunal conclua oficiosamente pela nulidade de uma cláusula com o seguinte teor: «Subscrevo e aceito as Condições Gerais e Particulares de Utilização do Cartão Jumbo, apresentadas na frente e no verso da proposta de adesão, que li integralmente, e das quais recebi uma cópia».
IV – Em face da insuficiência de elementos para determinar o montante indemnizatório, nada obsta a que se profira condenação ilíquida, com a consequente remissão do apuramento da responsabilidade para momento posterior, desde que essa segunda oportunidade de prova não incida sobre a existência dos danos, mas apenas sobre o respectivo valor.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo nº 76651/18.1YIPRT.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Competência Genérica de Olhão – J2
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de injunção proposta por “(…) – Sucursal em Portugal” intentada contra (…), uma vez proferida sentença, a Autora veio interpor recurso dessa decisão.
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A Autora pediu que a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 4.575,36, acrescida de juros de mora vencidos, à taxa contratualmente fixada, no valor de € 1.369,38.
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Para tanto e em síntese, a Autora alegou que os litigantes celebraram um contrato de crédito Cartão Jumbo, que possibilita aos seus titulares a aquisição de bens e/ou serviços, através do crédito concedido, nas lojas e parceiros aderentes e que a Ré o utilizou na realização de compras.
Computa que, à data de entrada do requerimento de injunção, o valor em divida ascendia a 5.944,74 €, correspondendo 4.575,36 € a valor de capital utilizado e 1.369,00 € a juros e despesas.
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Em sede de oposição a Ré defendeu-se por impugnação, negando ter celebrado o contrato em causa ou ter autorizado o débito em conta para pagamento das despesas feitas com o cartão, bem como o recebimento na sua morada de quaisquer extratos ou de comunicação de incumprimento. Termina, concluindo pela absolvição do pedido.
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Realizado o julgamento, o Tribunal «a quo» decidiu declarar nulo o contrato de utilização de crédito celebrado entre a Autora e a Ré, condenando esta a devolver à primeira o valor das quantias utilizadas no âmbito do contrato e ainda em dívida, a apurar em sede de liquidação de sentença, acrescidas de juros de mora vencidos à data da entrada do requerimento de injunção, contados à taxa supletiva legal, em vigor em cada momento.
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A sociedade recorrente não se conformou com a referida decisão e a peça de recurso continha as seguintes conclusões:
«I. O Apelante propôs uma injunção, que veio a ser distribuída ao tribunal a quo, contra (…), devidamente identificada nos autos, peticionando a condenação da mesma no pagamento da quantia de 5.944,74 €, acrescida de juros de mora vincendos, tudo com custas, procuradoria e demais encargos legais a seu cargo.
II. Por sentença proferida em 02/10/2019, o Tribunal a quo julgou improcedente a acção, declarando nulo o contrato de utilização de crédito celebrado entre o ora Apelante e a Apelada, condenando a esta a devolver ao Apelante o valor das quantias utilizadas no âmbito do contrato e ainda em dívida.
III. Sem prejuízo de considerar provada a celebração do contrato de crédito entre as partes, como alegado pelo Apelante e confessado pela Apelada em sede de declarações de parte.
IV. Tendo formulado a sua decisão com os fundamentos que se transcrevem:
«Conforme resultou da prova produzida, a Ré subscreveu o pedido de adesão ao cartão Jumbo da Autora, constando as condições gerais da utilização do cartão no verso da folha de adesão, condições que não se encontram assinadas e/ou rubricadas pela Ré (cfr. fls. 36).
Nos termos do disposto na al. d) do artigo 8º do DL nº 446/85, consideram-se excluídas dos contratos singulares “As cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contratantes”.
Encontrando-se as “Condições Gerais” do contrato em apreço colocadas depois da assinatura da Ré tais “Condições Gerais” têm-se por necessariamente excluídas do mesmo.
(…)
Sucede, porém, que in casu estando em causa o conjunto das condições gerais inerentes ao contrato de adesão e que o caracterizam, a sua exclusão conduz à nulidade do contrato por gerar uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais do mesmo (cfr. nº 2 do artigo 9º do citado diploma).
Tal nulidade é do conhecimento oficioso do tribunal, nos termos do artigo 286º do CC, tem efeito retroactivo, acarretando a obrigação de restituir tudo o que houver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (artigo 289º, nº 1, do C.C.).
Da nulidade assim reconhecida decorre, como é inevitável, a improcedência da acção baseada na validade do contrato e no respectivo incumprimento pela contraparte».
V. Nestes termos, o Tribunal a quo veio excluir as cláusulas contratuais constantes do contrato de crédito sub judice, em virtude de considerar que as mesmas não foram devidamente comunicadas à Ré, porquanto a respetiva assinatura encontra-se no rosto da proposta e não após as condições contratuais.
VI. No que diz respeito à comunicação das cláusulas contratuais, o DL n.º 446/85, de 25 de Outubro estabelece que a mesma deve ser integral, adequada e atempada, com vista a que se torne possível o seu conhecimento completo e efetivo pelo contraente de comum diligência.
VII. Quanto ao dever de informação, o DL n.º 446/85, de 25 de Outubro estipula que a parte proponente deve informar sobre os aspetos que justifiquem a aclaração das cláusulas contratuais, assim como a prestar todos os esclarecimentos razoáveis que sejam solicitados pela contraparte, com vista à perceção do conteúdo.
VIII. Isto é, quando o legislador estabelece deveres relativos à comunicação do contrato, a sua preocupação essencial é a de que sejam criadas condições para que, sem exagerado esforço, um aderente de razoável entendimento possa conhecer as suas cláusulas.
IX. Esta posição vem espelhada no Acórdão proferido pelo STJ em 24/03/2011 pela 7.ª Secção (disponível em www.dgsi.pt) e que aqui parcialmente se reproduz: «…Como se referiu, dado que a liberdade contratual de um dos outorgantes se limita, na prática, à liberdade de aceitar ou não as cláusulas impostas e a celebração do contrato, impõe-se que esse outorgante tenha, pelo menos, o conhecimento real e efectivo do teor dessas cláusulas, de forma a que possa decidir se quer ou não contratar nessas condições, destinando-se o dever de comunicação dessas cláusulas, de forma adequada e com a antecedência necessária, a combater o risco de desconhecimento de aspectos significativos do contrato. Pretende-se tornar possível ao aderente o conhecimento completo e efectivo do contrato, exigindo-se, também, que este adopte um comportamento diligente, tendo em vista o conhecimento real e efectivo das cláusulas que o integram.
X. Por isso, não se justifica que a protecção concedida à parte mais fraca fosse ao ponto de abarcar as situações em que a falta de conhecimento das cláusulas apenas decorreu de um comportamento negligente ou pouco diligente dessa parte que, apesar de ter sido colocado em posição de conhecer essas cláusulas, não teve qualquer preocupação em assegurar-se do seu teor.
XI. “O cumprimento desse dever prova-se através de indícios exteriores variáveis, consoante as circunstâncias. Assim perante actos correntes e em face de aderentes dotados de instrução básica, a presença de formulários assinados pressupõe que eles os entenderam; caberá, então, a estes demonstrar quais os óbices. Já perante um analfabeto, impõe-se um atendimento mais demorado e personalizado…».
XII. No caso em concreto, a Apelada celebrou presencialmente o contrato em 15/12/2002, sendo um contrato de concessão de utilização de cartão de crédito, que possibilita ao seu titular a utilização do crédito para aquisição e bens e s/ou serviços.
XIII. Desde essa data até à data do incumprimento definitivo, que ocorreu em 01/02/2018, foram efectuadas várias utilizações do cartão e foram cobradas as prestações mensais, com a respetiva menção nos extratos de conta corrente que constam juntas aos autos.
XIV. Cumpre acrescentar igualmente que não parece verosímil que, durante vários anos de execução do contrato, tenham sido cobrados os valores acima indicados e a Apelada, alegadamente não sabendo do que se tratavam, não tenha interpelado o Apelante para apurar a sua respetiva origem.
XV. A Apelada utilizou o contrato de crédito durante um longo período sem invocar a invalidade do contrato por falta de comunicação e informação das cláusulas contratuais, fazendo-o apenas no decurso da ação judicial para condenação no pagamento dívida originada pela utilização do contrato de crédito aqui em causa.
XVI. O que, salvo melhor entendimento, configura um “venire contra factum proprium” e que expressamente se invoca, com as legais consequências – art. 334.º do C. Civil.
XVII. Pelo que, em face de todo o exposto, não pode proceder a alegada violação do dever de comunicação e informação das cláusulas contratuais, por carecer de fundamento, pelo que o contrato de crédito não se encontra ferido de invalidade, tal como foi decidido pelo Tribunal a quo.
XVIII. Com efeito, da análise do contrato sub judice verifica-se que, no campo destinado à assinatura do contrato, consta supra a seguinte declaração:
«Subscrevo e aceito as Condições Gerais e Particulares de Utilização do Cartão Jumbo, apresentadas na frente e no verso da proposta de adesão, que li integralmente, e das quais recebi uma cópia».
XIX. Ora, salvo melhor entendimento e com o devido respeito, não pode colher a tese do Tribunal a quo quanto à falta de assinatura e rúbrica das cláusulas contratuais no verso da proposta.
XX. Efectivamente, como acima demonstrado, ao subscrever a proposta, a Apelada declara ter conhecimento e estar informada quanto ao teor das cláusulas contratuais.
XXI. Donde se conclui que as cláusulas apostas no verso da proposta não se podem considerar excluídas, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 8.º do DL 446/85, de 25 de Outubro.
XXII. Ademais, cumpre salientar a jurisprudência existente quanto a esta questão, de referir o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29/04/2004, processo n.º 750/2004-2, relator Maria José Mouro, disponível no site da DGSI, cujo sumário refere: «As cláusulas contratuais constantes do verso da página do contrato onde se encontram as assinaturas dos contraentes, não serão de excluir, se dos autos não resultar que as mesmas tenham sido inseridas após aquelas assinaturas».
XXIII. Igualmente, menciona o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 03/05/2001, processo n.º 0028612, disponível no site da GDSI: «Ao prescrever-se no artigo 8º, d) ... a exclusão dos contratos singulares das cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contraentes, o que se pretendeu foi afastar cláusulas inseridas depois de algum dos contratantes ter assinado, uma vez que, configurando-se, então, uma alteração do contrato, não haveria mútuo consenso quanto ao conteúdo das cláusulas enxertadas. Nada obsta, pois, á inserção da declaração "toma-se conhecimento e aceitam-se plenamente as condições gerais de utilização constantes do verso deste documento", junto ao local da assinatura das partes».
XXIV. Com efeito, as cláusulas contratuais não foram inseridas no contrato após a celebração do mesmo, conforme resulta da prova produzida nos autos, pelo que não se encontram preenchidos os requisitos para exclusão das mesmas, ao abrigo do disposto no art. 8.º do DL 446/85, de 25 de Outubro.
XXV. Outrossim, resulta dos autos que a Apelada tinha conhecimento das regras contratuais, nunca tendo invocado tal desconhecimento perante o Apelante, e que utilizou o Cartão durante um longo período de tempo e de forma regular.
XXVI. Em face de todo exposto, é fácil concluir que o contrato de crédito sub judice não se encontra ferido de invalidade, pelo que a sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser revogada.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, anulando-se a sentença proferida e em consequência:
a) Ser reapreciada a decisão proferida;
b) Ser a Ré condenado no pedido.
Decidindo em conformidade, farão Vossas Excelências Justiça!».
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A parte contrária alegou, dizendo, em resumo, que o recurso deverá ser julgado improcedente.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de existência de erro na apreciação de direito na perspectiva da declaração de nulidade do contrato por violação das cláusulas contratuais gerais, bem como no computo das quantias devidas.
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III – Matéria de facto:
3.1 – Factos provados:
Da discussão em audiência de julgamento e dos documentos juntos ao processo resultaram assentes os seguintes factos:
1. O Autor e a Ré celebraram um contrato de crédito Cartão Jumbo, que possibilita aos seus titulares a aquisição de bens e/ou serviços, através do crédito concedido, nas lojas e parceiros aderentes.
2. O contrato foi celebrado presencialmente em 15/12/2002, na loja Jumbo de Faro mediante o preenchimento e assinatura da proposta de adesão.
3. Aquando da concessão e emissão do cartão com limite de crédito, foi atribuído à Ré o respectivo número pessoal e secreto de identificação (PIN), de cuja digitação depende a realização de transações comerciais com o cartão “Jumbo Mais”, bem como um Código (…) Contacto, que serve como meio de identificação nos contactos com o Autor, nomeadamente para a realização de operações telefónicas e automáticas, quando aplicável.
4. Tanto o PIN como o Código (…) Contacto são de uso e conhecimento exclusivo do titular.
5. Conforme as Condições Gerais do contrato, a utilização do PIN em cada transacção efectuada através do cartão, assume, para todos os efeitos, o valor da assinatura do titular do cartão, reconhecendo-se o titular como devedor da mesma.
6. As modalidades de pagamento são escolhidas pelo titular do cartão, no acto de aquisição, de acordo com as modalidades contratualmente aceites e descritas nas Condições Gerais.
7. Os pagamentos são efectuados através do sistema de Débito Direto ou por transferência bancária da conta da titular para a conta do Autor.
8. Sendo que em caso de incumprimento, incide sobre as quantias em mora e sobre a taxa de juro remuneratória, uma sobretaxa de 3% (valor atual).
9. Com o supracitado cartão, a Ré efectuou compras as quais foram objecto de menção expressa nos extractos de conta do cartão Jumbo.
10. O primeiro incumprimento verificou-se com a falta de pagamento da prestação mensal de 05/03/2016, sendo que todos os pagamentos efetuados posteriormente a esta data nunca regularizaram na íntegra os montantes em mora.
11. Após se ter verificado o primeiro incumprimento, os serviços de recuperação de crédito do Autor contactaram telefonicamente a Ré, com vista à regularização das prestações mensais em atraso, sempre sem sucesso.
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3.2 – Factos não provados:
12. À data de entrada do requerimento de injunção o valor em dívida ascendia a € 5.944,74.
13. Mediante a assinatura do contrato sub judice, a Ré aceitou que o crédito utilizado vencesse juros à taxa TAN 24,96% e respetiva TAEG de 29,280%.
14. O primeiro incumprimento verificou-se com a falta de pagamento da prestação mensal de 05/10/2016.
15. O valor do capital utilizado à data de entrada do requerimento de injunção ascendia a € 4.575,36.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Das cláusulas contratuais gerais:
A sociedade Autora pretendia que que a Ré fosse condenada a pagar-lhe determinada quantia em dinheiro resultante da utilização do cartão de crédito Jumbo emitido a favor desta no âmbito do contrato entre elas celebrado, acrescida do valor dos encargos de cobrança em contencioso acordados e dos juros de mora vencidos e vincendos à taxa contratual de 27,360%.
Ficou apurado que, no âmbito do exercício da sua atividade, a Autora celebrou com a Ré, em 15 de Dezembro de 2002, um contrato de atribuição de cartão de crédito, através do qual esta passou a ser titular de um cartão de crédito Jumbo.
Está ainda demonstrado que, mediante a utilização do referido cartão, a Ré adquiriu bens e serviços em estabelecimentos comerciais e que esses montantes não foram pagos à Autora, nem aquando do seu vencimento, nem em momento posterior.
É claro e indiscutível que estamos perante um tipo contratual de atribuição de cartão de crédito. O cartão de crédito pode definir-se como sendo o documento pessoal e intransmissível, emitido por uma entidade bancária, por uma instituição financeira ou outro estabelecimento comercial, a favor de um determinado titular, cuja posse confere a este a possibilidade de adquirir bens e serviços junto de estabelecimentos comerciais previamente definidos sem necessidade de pagamento imediato.
Este contrato foi celebrado através de um mecanismo de adesão, que reclama a convocação do regime das cláusulas contratuais gerais.
O Decreto-Lei nº 446/85, de 25/10 instituiu o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais e tais contratos constituem uma manifestação jurídica da moderna vida económica, ligados à actual estrutura de produção económica e respectiva distribuição de bens e serviços, e radicam nas profundas transformações verificadas a partir da Revolução Industrial[1] [2].
Como resulta da nota explicativa da introdução da legislação no espácio geográfico interno as sociedades técnicas e industrializadas da actualidade introduziram alterações de vulto nos parâmetros tradicionais da liberdade contratual. A negociação privada, assente no postulado da igualdade formal das partes, não corresponde muitas vezes, ou mesmo via de regra, ao concreto da vida. Para além do seu nível atomístico, a contratação reveste-se de vectores colectivos que o direito deve tomar em conta. O comércio jurídico massificou-se: continuamente, as pessoas celebram contratos não precedidos de qualquer fase negociatória. A prática jurídico-económica racionalizou-se e especializou-se: as grandes empresas uniformizam os seus contratos, de modo a acelerar as operações necessárias à colocação dos produtos e a planificar, nos diferentes aspectos, as vantagens e as adscrições que lhes advêm do tráfico jurídico.
Com se vê as cláusulas contratuais gerais têm a sua génese na sociedade de consumo em massa e surgem como reflexo da necessidade de contratação massificada em que na realização de negócios jurídicos intervêm empresas de poder económico considerável e o cidadão ou empresas consumidoras desses bens e serviços. E são identificados na doutrina e na jurisprudência relevantes traços essenciais que se traduzem na pré-formulação, na generalidade e na imodificabilidade das cláusulas negociais, as quais condicionam assim a liberdade contratual.
Na concepção técnica dominante o contrato de adesão pode ser definido como aquele em que um dos contraentes, não tendo a menor participação na preparação das respectivas cláusulas, se limita a aceitar o texto que o outro contraente oferece, em massa, ao público interessado[3]. Em sentido próximo podem ser ainda consultados os contributos de Galvão Telles[4] [5], Almeida e Costa[6], Mota Pinto[7] e Almeno de Sá[8].
Numa visão conservadora e preventiva, parte da doutrina desconfia das cláusulas contratuais gerais e sublinha que as respectivas cláusulas são previamente elaboradas pela parte com mais poder económico (são preparadas genericamente para valerem em relação a todos os contratos singulares desse tipo que venham a ser celebrados com os destinatários) e, como tal, tais contratos são caracterizados por uma defesa exaustiva dos interesses da parte emitente e por um marcado desinteresse ou falta de protecção dos direitos da parte mais fraca, o cliente/consumidor aderente[9] [10].
Contudo, tendo em consideração as actualizações legais e os juízos valorativos correctores emanados dos Tribunais Nacionais, num enfoque mais contemporâneo é de sopesar que, por um lado, as padronizações negociais favorecem o dinamismo do tráfico jurídico, conduzindo a uma racionalização ou normalização contratuais e maior eficácia benéfica para o desenvolvimento da economia de mercado e, por outro, não se pode igualmente esquecer que, de facto, frequentemente, ao predisponente são impostas restrições inadmissíveis e que do texto contratual podem derivar despesas ou encargos irrazoáveis ou iníquos para os particulares, os quais obviamente devem ser sancionados ou, em último ratio, corrigidos.
Na sua actual conformação legislativa, no artigo 1º do diploma em apreço, ficou assente que «1 - As cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo presente diploma».
O diploma em apreço aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar (artigo 2º, nº 2).
Após enunciar correctamente sobre as relações contratuais entre as partes envolvidas, o Juízo de Competência Genérica de Olhão apurou que a Ré subscreveu o pedido de adesão ao cartão Jumbo da Autora, constando as condições gerais da utilização do cartão no verso da folha de adesão, condições que não se encontram assinadas e/ou rubricadas pela Ré (cfr. fls. 36).
Com base na disciplina vertida na al. d) do artigo 8º do DL nº 446/85, foi decidido que as “Condições Gerais” tem de necessariamente ser excluídas do contrato em apreço por estarem colocadas depois da assinatura da Ré.
Ao jeito de um regime próximo da regra geral da redução do negócio jurídico prevista no artigo 292º do Código Civil, o Tribunal «a quo» assume que a exclusão das cláusulas ao abrigo do artigo 8º do DL nº 446/85 não gera necessariamente a nulidade do contrato, tendo em vista o disposto no nº1 do artigo 9º do mesmo diploma, que prevê a manutenção do contrato “vigorando na parte afectada as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos”.
Neste enquadramento técnico-fáctico, o julgador de Primeira Instância decidiu que «in casu estando em causa o conjunto das condições gerais inerentes ao contrato de adesão e que o caracterizam, a sua exclusão conduz à nulidade do contrato por gerar uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais do mesmo (cfr. nº 2 do artigo 9º do citado diploma).
Tal nulidade é do conhecimento oficioso do Tribunal, nos termos do artigo 286º do CC, tem efeito retroactivo, acarretando a obrigação de restituir tudo o que houver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (artigo 289º, nº 1, do C.C.)».
Em decorrência da nulidade declarada, a Primeira Instância reconhece que a Ré deve restituir à Autora o montante que utilizou. No entanto, relegou esse montante para sede de incidente de liquidação, por não haver «elementos que permitam determinar o valor da quantia utilizada, já que os valores dos saldos em divida constantes dos extratos juntos aos autos incluem seguros, despesas e juros remuneratórios».
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A sociedade recorrente contesta este entendimento, porquanto da análise do contrato sub judice verifica-se que, no campo destinado à assinatura do contrato, consta supra a seguinte declaração: «Subscrevo e aceito as Condições Gerais e Particulares de Utilização do Cartão Jumbo, apresentadas na frente e no verso da proposta de adesão, que li integralmente, e das quais recebi uma cópia».
Neste contexto negocial, à míngua de outra factualidade de suporte, não se pode concluir que a Ré não teve conhecimento ou não foi informada quanto ao teor das cláusulas contratuais.
Na realidade, a jurisprudência nacional estabilizou o entendimento que as cláusulas contratuais constantes do verso da página do contrato onde se encontram as assinaturas do contraentes, não serão de excluir, se dos autos não resultar que as mesmas tenham sido inseridas após aquelas assinaturas[11].
Na realidade, ao prescrever-se na al. d) do artigo 8º do diploma em análise que a exclusão dos contratos singulares das cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contraentes, «o que se pretendeu foi afastar cláusulas inseridas depois de algum dos contratantes ter assinado, uma vez que, configurando-se, então, uma alteração do contrato, não haveria mútuo consenso quanto ao conteúdo das cláusulas enxertadas. Nada obsta, pois, à inserção da declaração "toma-se conhecimento e aceitam-se plenamente as condições gerais de utilização constantes do verso deste documento", junto ao local da assinatura das partes»[12].
Regressando à hipótese vertente não está disponibilizado nenhum facto que consolide a leitura que as cláusulas contratuais foram inseridas no contrato após a celebração do mesmo e assim não se encontram preenchidos os requisitos para exclusão das mesmas, ao abrigo do disposto no artigo 8.º do DL 446/85, de 25 de Outubro.
Outrossim, perscrutada a matéria de facto assente, apurou-se que a recorrida teve conhecimento das regras contratuais, nunca invocou o desconhecimento relativamente ao teor do acordo celebrado, recebeu extractos demonstrativos das operações comerciais realizadas com o cartão de crédito e utilizou o Cartão Jumbo durante um longo período de tempo e de forma regular.
Assim, apesar de não se estar perante um quadro de venire contra factum proprium, dado que a situação foi conhecida oficiosamente pelo Tribunal «a quo», a aliança entre o princípio da confiança e a ausência de factos que viabilizassem o entendimento prosseguido pelo Juízo de Competência Genérica de Olhão determina que conclua em sentido contrário. Não existe assim motivo para declarar nulo o contrato de utilização de crédito celebrado entre a Autora e a Ré.
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4.2 – Da condenação em liquidação de sentença:
A Autora pretende receber a quantia reclamada na petição inicial mas o Tribunal «a quo» decidiu apenas condenar a Ré a devolver à “(…) – Sucursal em Portugal” o valor das quantias utilizadas no âmbito do contrato e ainda em dívida, a apurar em sede de liquidação de sentença, acrescidas de juros de mora vencidos à data da entrada do requerimento de injunção, contados à taxa supletiva legal, em vigor em cada momento.
O seu raciocínio silogístico foi exteriorizado da seguinte forma: «não havendo elementos que permitam determinar o valor da quantia utilizada, já que os valores dos saldos em divida constantes dos extratos juntos aos autos incluem seguros, despesas e juros remuneratórios, o respectivo montante deverá ser apurado em sede de incidente de liquidação, nos termos do artigo 609º, nº 2, do CPC».
A aplicação do nº 2 do artigo 609º do Código de Processo Civil, depende da verificação, em concreto, de uma indefinição de valores de prejuízos, mas como pressuposto primeiro da sua aplicação deverá ocorrer a prova da existência dos danos. Este preceito tanto se aplica no caso de se ter inicialmente formulado um pedido genérico e de não se ter logrado converter em pedido específico, como ao caso de ser deduzida pretensão sem que se tenha conseguido fazer prova da especificação, ou seja, quando não se tenha logrado coligir dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, a quantidade de condenação. No caso de o autor ter deduzido um pedido específico (isto é, um pedido de conteúdo concreto), caso não logre fixar com precisão a extensão dos prejuízos poderá fazê-lo em liquidação em execução de sentença.
Deste cotejo resulta que só é possível deixar para liquidação em execução de sentença a indemnização respeitante a danos relativamente aos quais, embora se prove a sua existência, não existam os elementos indispensáveis para fixar o seu quantitativo, nem sequer recorrendo à equidade.
Na realidade, o ordenamento jurídico nacional permite que se defina o montante dos prejuízos em sede de liquidação, mas, como se disse e foi realmente feito, impõe que, em sede de acção declarativa, se aleguem e provem os fundamentos da pretensão em causa[13] [14] [15] [16] [17] [18].
Em face da insuficiência de elementos para determinar o montante indemnizatório, nada obsta a que se profira condenação ilíquida, com a consequente remissão do apuramento da responsabilidade para momento posterior, desde que essa segunda oportunidade de prova não incida sobre a existência dos danos, mas apenas sobre o respectivo valor[19].
Se é certo que o âmbito da condenação deve envolver juros remuneratórios, seguros e outras despesas contratualizadas por força da (não in)validade do contrato, por outro lado, na situação judicanda os pressupostos de cálculo não estão plasmados na matéria de facto apurada.
Na realidade, o Tribunal recorrido considerou como não provada a matéria contida nos pontos 12[20], 13[21], 14[22] e 15[23] e na impugnação por via recursal não foi pedida a modificação da matéria de facto, mostrando-se assim consolidado o acervo factual apurado pela Primeira Instância.
Deste modo, o Tribunal recorrido não têm meios para se substituir à Primeira Instância na concretização do montante em dívida, na definição da taxa de juro aplicável e na determinação do momento em que se iniciou a mora e na materialização do valor dos seguros e demais acessórios aqui em disputa.
E assim, neste segmento da decisão, mantém-se a decisão de relegar a execução de sentença o valor da dívida limitado ao montante de capital de € 4.575,36 (quatro mil e quinhentos e setenta e cinco euros e trinta e seis cêntimos), acrescida de juros e demais despesas contratualizadas.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se:
a) Revogar a sentença recorrida na parte em que declara nulo o contrato de utilização de crédito celebrado entre a Autora e a Ré.
b) Condenar a Ré a proceder ao pagamento das quantias em dívida relacionadas com a utilização do cartão de crédito, relegando para a execução de sentença o respectivo cálculo limitado ao montante de capital de € 4.575,36 (quatro mil e quinhentos e setenta e cinco euros e trinta e seis cêntimos), acrescida de juros e demais despesas contratualizadas.
Custas a cargo na proporção do respectivo decaimento, atento o disposto no artigo 527º do Código de Processo Civil, tomando-se em consideração o benefício de apoio judiciário concedido à Ré.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138º, nº 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 19/12/2019
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Matos Peixoto Imaginário
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[1] Mota Pinto, in Contratos de Adesão (Uma manifestação jurídica da moderna vida económica), RDES ano XX, nºs 2, 3 e 4.
[2] A. Pinto Monteiro, in Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, 1985, pág. 339.
[3] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9ª ed., págs. 265 e seguintes.
[4] Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª edição, pág. 75, defende que tais contratos contêm por via de regra «cláusulas preparadas genericamente para valerem em relação a todos os contratos singulares de certo tipo que venham a ser celebrados nos moldes próprios dos chamados contratos de adesão».
[5] Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 4ª Edição, pág. 318, refere que são «cláusulas elaboradas, sem prévia negociação individual, como elementos de um projecto de contrato de adesão, destinadas a tornar-se vinculativas quando proponentes ou destinatários indeterminados se limitem a subscrever ou aceitar esse projecto».
[6] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª Edição, pág. 246, afirma que se tratam de negociações no âmbito de fornecimentos massificados, ou em série, de bens ou serviços, que avultam em nossos dias. Os clientes subordinam-se a cláusulas previamente fixadas, de modo geral e abstracto, para uma série indefinida de efectivos e concretos negócios.
[7] Mota Pinto, Teoria Geral de Direito Civil, 3ª edição, que afirma que o contrato de adesão é aquele em que uma das partes, normalmente uma empresa de apreciável dimensão, formula unilate­ralmente as cláusulas negociadas (no comum dos casos, fazendo-as constar de um impresso ou formulário) e a outra parte aceita essas condições, mediante a adesão ao modelo ou impresso que lhes é apresentado, não sendo possível modificar o ordenamento negocial apresentado.
[8] Para Almeno de Sá, Cláusulas Contratuais Gerais e Directivas sobre Cláusulas Abusivas, 2ª edição, pág. 212 as cláusulas contratuais gerais são «estipulações predispostas em vista de uma pluralidade de contratos ou de uma generalidade de pessoas, para serem aceites em bloco, sem negociação individualizada ou possibilidade de alterações singulares».
[9] Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, vol. III, pág. 364.
[10] Galvão Telles, in Direito das Obrigações, 6ª edição, pg. 75.
[11] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/04/2004, processo n.º 750/2004-2, disponível no site www.dgsi.pt.
[12] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03/05/2001, processo n.º 0028612, disponível no site www.dgsi.pt.
[13] Só é possível deixar para liquidação, em execução de sentença, a indemnização respeitante a danos relativamente aos quais, embora provada a sua existência, não existam elementos para fixar o montante, nem sequer recorrendo à equidade.
[14] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/06/74, BMJ 238-204, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01/07/80, BMJ 301-469; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/12/1998, in www.dgsi.pt.
[15] Alberto dos Reis, Código Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 71.
[16] Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 114º, pág. 309.
[17] Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 233.
[18] Esta é a posição deste colectivo do Tribunal da Relação de Évora já enunciada no acórdão datado de 23/03/2017, publicado em www.dgsi.pt.
[19] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/04/2014, in www.dgsi.pt.
[20] (12) À data de entrada do requerimento de injunção o valor em divida ascendia a 5.944,74 €.
[21] (13) Mediante a assinatura do contrato sub judice, a Ré aceitou que o crédito utilizado vencesse juros à taxa TAN 24,96% e respetiva TAEG de 29,280%.
[22] (14) O primeiro incumprimento verificou-se com a falta de pagamento da prestação mensal de 05/10/2016.
[23] (15) O valor do capital utilizado à data de entrada do requerimento de injunção ascendia a 4.575,36 €.