Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1885/16.4T8TMR.E1
Relator: VICTOR SEQUINHO
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
CADUCIDADE DA ACÇÃO
Data do Acordão: 01/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, ao estabelecer um prazo de 10 anos para a propositura da acção de investigação da maternidade e, por remissão do artigo 1873.º do mesmo código, da acção de investigação da paternidade, prazo esse contado a partir da maioridade ou emancipação do investigante, não é inconstitucional.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1885/16.4T8TMR.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Família e Menores de Tomar.
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

(…) propôs acção declarativa de condenação, com processo comum, contra (…), pedindo que seja declarado que ele, autor, é filho de (…), falecido, ordenando-se o averbamento de tal paternidade e da avoenga paterna no seu assento de nascimento.
Devido à incapacidade de facto da ré, foi-lhe nomeado curador provisório.
Na contestação, foi excepcionada a caducidade do direito do autor à instauração de acção de investigação da paternidade.
Foi proferida sentença que julgou esta excepção procedente e, em consequência, absolveu a ré do pedido.

O autor interpôs recurso da sentença, com as seguintes conclusões:
1.ª O recorrente intentou acção contra (…), na qual pediu que fosse declarado filho de (…) e que fosse ordenado o averbamento de tal paternidade e da avoenga paterna no seu assento de nascimento.
2.ª Veio a recorrida, em sede de contestação, arguir a excepção de caducidade do direito do recorrente, pedindo a improcedência da acção.
3.ª Concluindo, o Tribunal a quo, que os autos já dispunham de todos os elementos de facto para se conhecer da supra referida excepção deu, em suma, como assente que:
O recorrente nasceu no dia 18 de Julho de 1945;
No seu assento de nascimento não consta a identificação do seu pai;
O recorrente alega que é filho biológico de (…), o qual faleceu em 20 de Setembro de 2004;
O recorrente alega que desde “tenra idade” que sabe que é filho do investigado;
A acção de investigação de paternidade foi instaurada em 30 de Novembro de 2016.
4.ª A sentença recorrida refere que o recorrente não replicou, nem nada disse em relação à excepção de caducidade e podia tê-lo feito.
5.ª Mais refere que resulta provado o decurso do prazo, que traduz um facto extintivo do direito de o recorrente investigar e estabelecer a filiação jurídica, pelo que, caducou o direito que este pretendia fazer valer na acção que intentou.
6.ª Porém, a sentença recorrida não deixou de se pronunciar quanto à questão da constitucionalidade do artigo 1817.º do Código Civil, defendendo que o mesmo não padece de nenhum vício de inconstitucionalidade e que nenhum imperativo constitucional existe de tornar absolutamente ilimitado no tempo o direito de querer ver judicialmente afirmada e reconhecida a paternidade biológica. Mais defende que não existe desequilíbrio axiológico-normativo ante a síntese material do conflito subjacente à inconstitucionalidade, que se pode esculpir em vértices opostos: de um lado, o direito à verdade biológica e, de outro, o direito a uma certeza e segurança.
7.ª Quanto ao facto de o recorrente não ter respondido à excepção de caducidade, somos do parecer de que não poderia, sequer, tê-lo feito, em virtude de tal resposta ou a réplica não ser legalmente admissível no caso em apreço.
8.ª Ademais, bem sabia o recorrente que, face ao preceituado no artigo 1817.º do Código Civil, o seu direito, de intentar acção de investigação de paternidade, estaria caducado. No entanto, também sabia que, ultimamente, este preceito tem sido, inúmeras vezes, declarado inconstitucional pelos diversos Tribunais da Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça, tese esta que o recorrente acreditava que o Tribunal a quo acolheria.
9.ª Por fim, diga-se que a contestação apenas tomou posição definida perante os factos que foram alegados pelo recorrente, não tendo alegado quaisquer factos novos ou deduzido reconvenção.
10.ª Quanto ao facto de o Tribunal a quo ter considerado que o artigo 1817.º do Código Civil não é inconstitucional, cremos que este não fez uma correcta ponderação dos direitos em conflito: direito à verdade biológica e direito a uma certeza e segurança.
11.ª Pois cremos, ser de maior justiça o defendido no acórdão do STJ, de 06-07-10 que refere: «... é dogmaticamente mais consistente a tese da imprescritibilidade deste tipo de acções, por estar em causa o direito à identidade pessoal no qual se insere a chamado “direito ao conhecimento da ascendência biológica”, enquanto direito fundamental – art. 26.º, n.º 1, CRP -, tratando-se de um direito de personalidade imprescritível. IV- Assim, deve entender-se que, nesta matéria, os prazos de caducidade, sejam eles quais forem, traduzem uma restrição desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, mais precisamente ao direito à historicidade pessoal, sendo, por isso, inconstitucionais as normas dos art.ºs 1817.º e 1842.º do CC, na redacção introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 1/04, com o alargamento dos prazos. VII- As acções de investigação da paternidade e de impugnação de paternidade presumida, instauradas pelo filho, não estão sujeitos a prazos de caducidade.»
12.ª E o defendido no acórdão do STJ de 31-01-2017, que refere: «... IV- A norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade de a A., enquanto filha, propor a presente acção de investigação de paternidade, com fundamento no facto biológico da filiação, é inconstitucional, uma vez que o direito a conhecer a ascendência biológica constitui dimensão do direito à identidade pessoal ... e o direito a estabelecer os concomitantes vínculos jurídicos traduz uma dimensão do direito a constituir família ... consubstanciando tal prazo limitador uma restrição excessiva ou desproporcionada aos assinalados direito fundamental à identidade pessoal e o direito de constituir família, bem como ao próprio direito geral de personalidade dos investigantes...»
13.ª Bem como o muito bem defendido no acórdão do STJ, de 06-09-2011, que refere: «I- Mostra-se inconstitucional o estabelecimento ou estatuição, pelo art. 1817.º, n.º 1, do CC, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 14/2009, de 01-04, de um prazo legal para o filho possa investigar a verdade biológica da sua filiação. II- Na ponderação dos direitos fundamentais em lide posicionam-se, do lado do filho-investigante, o “direito à identidade pessoal”, o “direito à integridade pessoal” e o “direito ao desenvolvimento da personalidade” e, do lado do pretenso pai-investigado, os de “reserva da intimidade da vida privada e familiar” e o “direito ao desenvolvimento da personalidade”. III- Estando em causa direitos de raiz e feição absoluta, a regra será a não restrição dos direitos fundamentais, a menos que estejam em causa ou possam interferir no exercício desses direitos outros valores de “rango” constitucional que justifiquem a regulação por via legislativa. IV- Há que indagar quais os factos de ponderação que, no caso concreto, podem ser alinhados para aferição dos direitos e valores em causa e, nesta ponderação, terão que intervir critérios ou princípios de proporcionalidade, de razoabilidade, de adequação, de integração pessoal e familiar e de equivalência dos efeitos na esfera pessoal e familiar de cada um dos sujeitos involucrados. V- No conspecto dos valores em confronto, deve privilegiar-se aqueles que abonam e exoneram a pessoa humana em detrimento de valores de perturbação da tranquilidade familiar, da aquisição das situações pessoais e familiares estabelecidas e estabilização das relações económicas e/ou sucessórias, pelo que o n.º 1 do art. 1817.º do Código Civil, na versão da Lei n.º 14/2009, de 01-04, deve ser considerado inconstitucional, por impor um limite temporal ao direito de alguém ver reconhecida a sua paternidade.»
14.ª São, actualmente, inúmeros os Acórdãos que decidiram julgar, manifestamente, inconstitucional o artigo 1817.º do Código Civil, de entre os quais, os:
TRP, de 13-03-2014
TRC, de 06-07-2010
STJ, de 14-01-2014
STJ, de 31-03-2017
STJ, de 06-09-2011
STJ, de 15-11-2011,
todos eles disponíveis em www.dgsi.pt,
mas poderíamos mencionar outros, os quais fazem uma correcta ponderação dos direitos fundamentais conflituantes – a identidade pessoal e direito à reserva da intimidade da vida privada – e, em nome da verdade material/biológica, da justiça e de valores que merecem diferente tutela, decidem que deve prevalecer o direito à identidade pessoal sobra a “paz social”.
Nestes termos e nos mais de Direito deve julgar-se procedente a presente apelação, revogando-se a sentença recorrida e, consequentemente, julgar-se inconstitucionais as normas dos artigos 1817.º e 1842.º do Código Civil, declarando-se que, por isso, não caducou o direito do recorrente de investigar a sua paternidade, por se tratar de direito imprescritível, seguindo-se os demais trâmites.
Mais deve julgar-se que o recorrente não poderia ter respondido à excepção de caducidade na réplica.

A ré, através do seu curador provisório, apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:
1ª Para além de outras, as conclusões 4ª, 7ª e 8ª do apelante reportam-se a matérias estranhas ao pedido formulado.
2ª Confessa o apelante não ter fundamento para recorrer ao prazo estabelecido no artigo 1817º, nº 3, do Código Civil, restando-lhe como fundamento para a sua pretensão o prazo previsto no nº 1 do mesmo artigo.
3ª Face ao que carece de fundamento o pedido para que se “ … julgue que o recorrente não poderia ter respondido à excepção de caducidade na réplica”.
4ª Consiste o pedido do apelante na pretensão de que este Venerando Tribunal profira declaração de inconstitucionalidade das normas “dos artigos 1817º e 1842º “ (ou 1873º?) do Código Civil.
5ª As conclusões do apelante não identificam a norma jurídica que considera violada.
6ª A omissão de indicação da norma jurídica violada constitui violação do Artº 639º, nº 2, do C.P.C..
Termos em que – e nos demais de direito aplicáveis – se requer seja indeferido o presente recurso, mais requerendo seja confirmada a sentença recorrida.

O recurso foi admitido.

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do CPC). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

A única questão a resolver consiste em saber se o direito do recorrente à instauração de acção de investigação da paternidade caducou.

Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos:
1) O autor nasceu no dia 18 de Julho de 1945.
2) No assento de nascimento do autor, consta (…), identificada como sua mãe.
3) Nesse assento de nascimento não consta a identificação do pai do autor.
4) (…) faleceu em 20 de Setembro de 2004, no estado de viúvo.
5) O autor alega que é filho biológico do indicado (…).
6) O autor alega que este sempre, mesmo perante terceiras pessoas, o tratou como filho até falecer sempre lhe dispensou cuidados, amparo, atenção e carinho, oferecia-lhe roupas e calçado, tratava-o por “o meu filho”, e aceitava que os seus familiares, amigos e vizinhos se referissem ao autor como sendo seu filho.
7) O autor alega que (…) viveu toda a sua vida convicto de que o autor era seu filho.
8) O autor alega que desde “tenra idade” que sabe que é filho do (…).
9) O autor alega que sempre foi reputado como filho do (…) e tratado como tal pelo público, nomeadamente pelas pessoas da freguesia da Chamusca, onde o autor e o (…) viviam, como filho deste.
10) O autor alega que a ré, quando via o autor na rua, dizia para as amigas “Olha vai ali o meu irmão”.
11) O autor alega que a mãe do (…) tratava o autor como seu neto.
12) O autor alega que nasceu de gravidez surgida de uma das relações sexuais mantidas no período de Janeiro a Dezembro de 1944 entre (…) e a indicada (…).
13) A presente acção foi instaurada em 30 de Novembro de 2016.

Na sequência das suas 4.ª, 7.ª, 8.ª e 9.ª conclusões, o recorrente requer que se julgue que não poderia ter respondido à excepção de caducidade na réplica. A sentença recorrida refere, efectivamente, que o recorrente não replicou, nem respondeu à excepção de caducidade, podendo tê-lo feito. Contudo, daí não retirou qualquer consequência jurídica. Trata-se, pois, de questão sem interesse para a decisão do recurso, pelo que não pronunciaremos sobre ela.
A questão a resolver é, como acima referimos, a de saber se o direito do recorrente à instauração de acção de investigação da paternidade caducou. É pacífico que já decorreu o prazo estabelecido pelo artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, aplicável à acção de investigação da paternidade por remissão do artigo 1873.º do mesmo código. A problemática que o recorrente suscita é a da constitucionalidade do artigo 1817.º do Código Civil (embora trazendo à colação, desnecessariamente porque inaplicável à situação dos autos, também o artigo 1842.º do mesmo código) por, no seu entendimento, restringir desproporcionadamente, através do estabelecimento de prazos de caducidade do direito de propor acção de investigação da maternidade ou da paternidade, o direito fundamental à identidade pessoal, consagrado no artigo 26.º da Constituição.
A sentença recorrida abordou a questão da constitucionalidade do artigo 1817.º do Código Civil, resolvendo-a no sentido que consideramos correcto. Também é nosso entendimento que o direito fundamental à identidade pessoal não é um direito absoluto e, como tal, insusceptível de, nomeadamente em matéria de investigação da paternidade, ver o seu exercício condicionado em homenagem a outros valores constitucionalmente tutelados, como são os da certeza e segurança jurídicas, elementos essenciais do Estado de Direito. A esta luz, é constitucionalmente admissível e, por isso, cabe na margem de liberdade do legislador ordinário, o estabelecimento de prazos de caducidade do exercício do direito de investigação da paternidade, desde que tais prazos sejam suficientemente amplos – como o são os do artigo 1817.º – para permitir uma decisão madura e ponderada, por parte do titular do direito, sobre se há-de, ou não, exercê-lo, através da propositura da correspondente acção de investigação.
A questão tem vindo a ser amplamente debatida na jurisprudência e na doutrina, podendo referir-se, a título de exemplo, os acórdãos n.ºs 401/2011 e 247/2012 do Tribunal Constitucional (Diário da República, II Série, de 03.11.2011 e 25.06.2012), que decidiram no sentido da constitucionalidade do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil. Os argumentos que vêem sendo esgrimidos de um e outro lado são conhecidos, o que dispensa, neste momento, maior desenvolvimento. Entendemos, pelas razões acima apontadas, que o artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, ao estabelecer um prazo de 10 anos para a propositura da acção de investigação, contado a partir da maioridade ou emancipação do investigante, não é inconstitucional, pelo que o recurso deverá ser julgado improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Sumário:
O artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, ao estabelecer um prazo de 10 anos para a propositura da acção de investigação da maternidade e, por remissão do artigo 1873.º do mesmo código, da acção de investigação da paternidade, prazo esse contado a partir da maioridade ou emancipação do investigante, não é inconstitucional.

Decisão:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
Évora, 11 de Janeiro de 2018
Vítor Sequinho dos Santos (Relator)
Conceição Ferreira
Rui Machado e Moura