Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
415/20.8T8PTG-D.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: ADVOGADO
PROTECÇÃO DA MATERNIDADE
POSSE
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Os critérios interpretativos consagrados no artigo 9.º do CC impõem uma interpretação extensiva das alíneas a) e b) do artigo 2.º do DL 131/2009, de 1 de Junho, “extensão teleológica, pois que a própria razão de ser da lei postula a aplicação a casos que não são diretamente abrangidos pela letra da lei mas são compreendidos pela finalidade da mesma”, devendo entender-se que a dilação ali prevista abrange também a prática de actos no processo.
II. Tendo formulado pedido de reconhecimento de direito de servidão de passagem com fundamento em usucapião, o qual foi julgado improcedente, não podem os RR reconvintes, em sede de alegações de recurso, pedir o reconhecimento de uma servidão originária com fundamento em destinação de pai de família, sendo distintos o pedido e a causa de pedir.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre
Juízo Local Cível de Portalegre - Juiz 2
Proc. n.º 415/20.8T8PTG-D.E1


I. Relatório
(…) e mulher (…), residentes na Av. Dr. (…), n.º 43, em Portalegre; (…), viúva, residente na Rua (…), n.º 20 - r/c, em Portalegre; (…), solteiro; (…), casada, residentes com a anterior; e (…), divorciado, residente na Rua (…), n.º 30, Portalegre, vieram instaurar contra a Massa Insolvente de "(…) e (…), Lda.", sociedade por quotas com sede social em (…), (…) - Portalegre, aqui representada pela Exma. Sra. Administradora de Insolvência, Dra. (…), acção declarativa, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o anexo e o pátio que identificam, construção e área que integram o prédio rústico denominado “(…)”, sito em (…), Portalegre, inscrito na matriz predial sob o artigo (…), secção (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º (…), o qual adquiriram por sucessão hereditária de (…) e (…), e a condenação da demandada na respectiva restituição.
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Citada a ré, apresentou contestação, na qual defendeu que as áreas reivindicadas pelos AA sempre integraram o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre sob o n.º (…), e aí inscrito a favor da declarada insolvente sociedade (…) e (…), Lda., apreendido para a massa insolvente, tendo sido por esta custeadas a sua construção e conservação, após o que sempre utilizou e fruiu tais espaços, o que ocorre desde 1960, pelo que se outro título não houvesse os teria adquirido por usucapião que expressamente invocou.
Com os aludidos fundamentos deduziu a final contra os AA pedido reconvencional, tendo em vista o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre os espaços reivindicados.
Os AA apresentaram réplica, peça na qual impugnaram a factualidade alegada pela reconvinte, sustentando a improcedência do pedido reconvencional.
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Determinada a apensação da presente acção ao processo de insolvência, teve lugar a audiência prévia e nela, frustrada a tentativa de conciliação, foi admitido o pedido reconvencional deduzido, prosseguindo a diligência com prolação de despacho saneador tabelar, delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova, peças que não foram objecto de reclamação.
No decurso da audiência final veio a Ré reconvinte requerer a ampliação do pedido formulado, requerendo subsidiariamente, para o caso de o pedido principal não obter procedência, a constituição de “servidão de passagem no que respeita ao pátio que está aqui em causa. Quer relativamente à padaria, quer relativamente à pastelaria”.
Os AA opuseram-se, tendo sido proferido despacho com o seguinte teor:
“Entendendo o tribunal que o pedido reconvencional subsidiário ora efectuado, como ampliação do pedido reconvencional original, é desenvolvimento e consequência do pedido primitivo, especialmente, e tendo em conta o teor do relatório pericial junto aos autos e os esclarecimentos prestados pelo Sr. perito em audiência de discussão e julgamento, ao abrigo do princípio da economia processual, por forma a evitar a propositura de outra acção, com os mesmos intervenientes, relativamente à mesma questão, admite-se o mesmo, ficando a ampliação a constar na ata respectiva, ao abrigo do disposto no artigo 265.º, n.ºs 2 e 3, do CPC”.
Inconformado com a decisão, dela interpuseram recurso os AA, tendo apresentado as pertinentes alegações, a que a Ré respondeu em contra-alegações.

Com data de 14 de Junho de 2022 foi proferido o despacho com a Ref.ª 31786580, no qual a Sr.ª Juíza titular comunicou às partes terem resultado da instrução da causa os factos que discriminou e que qualificou como instrumentais ou concretizadores dos alegados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC, em ordem a permitir que sobre eles se pronunciassem, querendo, em 5 dias.
Pronunciaram-se os AA no sentido da factualidade enunciada não dever ser considerada, após o que foi proferida sentença em 30 de Junho de 2022 (Ref.ª 31855095) que decretou a total procedência da acção e a improcedência dos pedidos formulados em via reconvencional, quer a título principal, quer subsidiário.
Por requerimento entrado em juízo em 15/7/2022 veio a Ré (Ref.ª 42881999) arguir a nulidade decorrente da omissão de notificação do despacho datado de 14 de Junho, notificação que só se verificou em 27 de Junho de 2022 na sequência do contacto que efectuou para o Tribunal, pelo que o prazo para se pronunciar se encontrava ainda em curso aquando da prolação da sentença.
Mais alegou a Il Mandatária ter sido mãe no dia 3 de Julho de 2022, conforme documento que juntou, pelo que, atendendo ao seu direito de gozar 42 dias úteis de licença após o nascimento da sua filha, a serem obrigatoriamente gozados nas semanas seguintes ao nascimento, não tendo conseguido responder em momento anterior, deve ser concedida à parte que representa a possibilidade de se pronunciar sobre o aludido requerimento ao abrigo do disposto no artigo 140.º do CPP, disposição legal que convocou.

Com data de 16 de Agosto de 2022 veio a Ré interpor recurso da sentença final e, tendo desenvolvido na alegação os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“I. Em primeiro lugar importa salientar a tempestividade do recurso apresentado atento o justo impedimento comprovado da mandatária.
II. Destarte, não obstante o declarado na sentença quanto ao cumprimento ao artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do NCPC, certo é que não foi dado cumprimento a este.
III. No passado dia 4 de Julho de 2022, foi a mandatária da Ré notificada da sentença proferida electronicamente.
IV. Sucede que a sentença data de 30 de Junho de 2022, data na qual se encontrava a decorrer prazo para a Ré se pronunciar do despacho proferido pela Meritíssima Juiz em 14 de Junho de 2022.
V. No dia 27 de Junho de 2022, foi a Ré notificada do despacho proferido pela Meritíssima Juíza no dia 14 de Junho de 2022, no qual foi concedido às partes o prazo de 5 dias para, querendo, se pronunciarem, nos termos e para os efeitos constantes do artigo 5.º, n.º 2, alínea b), in fine, do NCPC, após o que seria prolatada decisão de mérito (conforme documento que se junta em anexo sob o n.º 3).
VI. De acordo, em 30 de Junho de 2022, quando foi proferida a douta sentença ainda se encontrava a correr prazo para a Ré se pronunciar, aliás, a Ré apenas se presume notificada do despacho proferido em 14 de Junho de 2022 no dia 30 de Junho de 2022, iniciando-se o prazo para se pronunciar sobre o mesmo nesse dia, o mesmo dia em que foi proferida sentença.
VII. De acordo, o prazo para a Ré se pronunciar apenas terminava no passado dia 5 de Julho de 2022.
VIII. Porquanto, a sentença proferida no dia 30 de Junho de 2022, e notificada electronicamente no dia 4 de Julho de 2022, encontra-se ferida de nulidade, por vício da forma (uma vez que existia um prazo em curso) e violação do direito de resposta e contraditório, e da igualdade de partes, nulidade essa que se impõe que seja declarada, com todos os efeitos dai resultantes,
IX. devendo, ser dada, por sua vez, oportunidade à Ré para responder conforme notificação para tal – uma vez que a Ré ainda se encontrava em prazo para responder ao douto despacho de 14 de Junho, oportunidade que foi conferida aos Autores e que nesse sentido se pronunciaram ,
X. pelo que ao coarctar tal direito à Ré, violou o tribunal a quo o princípio do contraditório, o direito de resposta da Ré, e a igualdade de partes e justiça processual,
XI. sendo que tratando-se de princípios estruturantes do direito processual civil, sempre se dirá que a sentença proferida a coberto desse desvio processual fica ela própria contaminada, acabando por torná-la nula, nos termos do artigo 195.º do Código de Processo Civil.
XII. Mal andou a Meritíssima Juiz a quo ao proferir a sentença quando se encontra a decorrer prazo para pronúncia da Ré ora Recorrente, pelo que, proferindo o tribunal a quo a decisão agora recorrida, foi impedida a Recorrente de cumprir o ónus probatório relativo aos factos alegados, conforme lhe competia.
XIII. Pelo que deve tal decisão ser revogada por ilegal e determinado o prosseguimento do processo com vista à pronúncia da Ré.
XIV. A prolação da sentença quando se encontrava prazo em curso para se pronunciar, gera nulidade processual nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
XV. Devendo para tanto ser anulada a sentença recorrida e, em consequência, determinar a baixa do processo à 1a instância, e após se determine o prosseguimento dos autos, no qual deve ser dada oportunidade à Ré/ Recorrente para se pronunciar.
XVI. No que respeita aos factos provados, impõe se a alteração dos seguintes factos dados como provados:
12. No prédio identificado no ponto 1, mais concretamente num pátio com cerca de 279,02 m2, a que se acede por um portão pela Rua Prof. (…), em (…), o Sr. (…) construiu um pequeno anexo, com área de 78,72 m2, separado da restante parte urbana, e que integra o que actualmente corresponde ao prédio rústico descrito sob o n.º (…), de que os Autores são donos.
13. O dito anexo veio a ser melhorado, ao longo do tempo, por (…), o qual passou a ser conhecido como o escritório da empresa (…) e (…), onde eram praticados todos os actos administrativos e de contabilidade respeitantes à empresa, funcionando como o local de trabalho dos funcionários administrativos da empresa que realizavam essas funções, e onde os restantes trabalhadores se dirigiam para levantar e assinar os seus recibos de vencimento, e tratar de qualquer assunto com os patrões, que, por conveniência, também utilizam tal espaço como seu escritório pessoal, onde armazenavam documentos seus e da sua família.
XVII. Não pode aceitar a aqui Recorrente a posição do Tribunal a quo, quanto ao decidido, uma vez que, conforme decorre inclusive da prova produzida em Tribunal, não foi (…) quem construiu o anexo ou quem o melhorou, mas antes sim foi a sociedade “(…) e (…), Lda. que, a expensas suas, o fez.
XVIII. Tal decorre da inclusive do depoimento da Administradora de Insolvência, Dra. (…) prestado em Audiência de Julgamento no dia 26 de Maio de 2022, gravado das 10:29 horas às 10:41 horas, com a duração de 12 minutos e 18 segundos, ao minuto 07:45 ss a 08:23 ss.
XIX. Pelo que, em nenhum momento, se conclui que as obras teriam sido feitas pelo (…), mas sim pelo contrário, sendo que o uso do respectivo anexo, era de uso exclusivo da sociedade, mais que natural, que as obras fossem suportadas por esta.
XX. Nesse sentido, também o depoimento das seguintes testemunhas: … (Gravação: 16 h e 41 m – 16 h e 59 m – do dia 5 de maio de 2022) – Depoimento gravado do minuto 03:31 ss a 04:15 ss.
XXI. De acordo, de nenhum dos depoimentos se conclui que as obras e o respectivo anexo – escritório foram construídos por outra pessoa que não a sociedade “(…) e (…), Lda.”, antes pelo contrário, resulta da contabilidade o pagamento de obras que atenta a data em foram realizadas há aproximadamente 20 anos, correspondem ao ano de construção do anexo.
XXII. Em conclusão, impõe-se a alteração da matéria de facto no que respeita aos pontos 12 e 13 dos factos provados da sentença.
XXIII. Por fim, resta-nos analisar a questão da matéria de direito, a subsunção dos factos ao direito, o seu enquadramento jurídico e a decisão final.
XXIV. Em primeiro lugar, decorre da sentença recorrida que: “Assim como não há qualquer usucapião quando existia igualdade entre os donos da empresa e os donos do prédio rústico, precisamente porque (…) não podem as mesmas pessoas, simultaneamente, pretender exercer dois direitos distintos e contraditórios, sendo que, quando os AA actuavam na qualidade de gerentes da empresa, eram havidos como meros detentores (…)”.
XXV. Tal não se pode aceitar.
XXVI. De acordo, efectivamente os donos da empresa eram os donos do terreno rústico, mas conforme decorre inclusive da prova produzida e dos factos provados, os donos da empresa agiam enquanto legais representantes da sociedade no que respeita ao pátio e anexo, agindo como verdadeiros possuidores, em nome da empresa e não a título pessoal,
XXVII. pelo que, se existe separação do património da sociedade com o património pessoal, também deve ser valorado, a acção exercida a título pessoal ou enquanto representantes da sociedade,
XXVIII. Assim, resultando dos factos provados que: “A Ré, desde os anos 60, em que foi constituída a sociedade ora insolvente, sempre utilizou o pátio com cerca de 270m2, e o anexo com a área de 78,72m2 (com as respectivas obras de melhoramento, ao longo dos anos), de forma pública e ostensiva, sem qualquer interrupção ou oposição de quem quer que seja, fazendo à vista de todos e com ânimo de quem sempre exerceu um direito próprio”,
XXIX. conclui-se assim que a Ré, através dos seus legais representantes, actuou sempre como verdadeira possuidora, pelo que se mostram preenchidos os pressupostos para se declarar adquirido, por usucapião o direito de propriedade do anexo e respectivo pátio, desde 1960 – data da constituição da sociedade “(…) e (…), Lda..
XXX. Por outro lado, e caso assim não se entenda, sempre se conclui pela aquisição de relativamente ao pátio, pela destinação de pai de família, não se concordando que existe uma nova causa de pedir quanto a esta.
XXXI. Neste sentido, e conforme decorre aliás da própria sentença recorrida, em última ratio:
XXXII. O litígio neste caso resolve-se pela constituição originária de uma servidão de passagem relativamente ao pátio, não pela usucapião, mas pela destinação de pai de família, face às duas portas exteriores da padaria e da pastelaria que abrem directamente para o pátio. Efectivamente, pode ler-se no artigo 1549.º do Código Civil, o seguinte: «Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento».
XXXIII. A propósito veja-se o teor do Acórdão da Relação de Lisboa de 20-10-2013 (Proc. n.º 1183/10.7TBTVD-1), in dgsi.pt, assim sumariado: «I – A par da usucapião, a destinação de pai de família constitui uma forma originária não negocial de constituição de servidões aparentes, contínuas ou descontínuas. II - Enquanto os prédios ou fracções do mesmo prédio pertencerem ao mesmo dono, por imperativo da conhecida máxima nemini res sua servit, a servidão não existe, pois, no nosso ordenamento jurídico, não é admissível, a servidão do proprietário. III - Surgirá, porém, automaticamente, a figura jurídica da servidão, se os dois prédios ou as duas fracções se separarem, e passarem a ser de proprietários diferentes, verificados que sejam os seguintes requisitos: 1. Os dois prédios ou as duas fracções de um só prédio tenham pertencido ao mesmo dono; 2. Relação estável de serventia de um prédio a outro, correspondente a uma servidão aparente, revelada por sinais visíveis e permanentes (destinação) 3. Separação dos prédios ou fracções em relação ao domínio (separação jurídica), e inexistência de qualquer declaração no respectivo documento contrária à destinação».
XXXIV. Face ao supra exposto, deverá reconhecer-se e declarar-se como propriedade da Ré o anexo com área de 78,72 m2 e o pátio com área de cerca de 270 m2, aquisição essa por usucapião, nos termos do artigo 1287.º e seguintes do CPC, ou, caso assim não se entenda, concluir-se pela constituição de servidão por destinação de bom pai de família.
XXXV. Em conclusão, deve, por isso, ser dado provimento ao recurso, com as legais consequências daí decorrentes.
Conclui que na procedência do recurso deve ser concedido à apelante prazo para se pronunciar, conforme impõe o artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC, alterando-se ainda a sentença recorrida nos termos alegados.
Contra alegaram os AA/recorridos, defendendo naturalmente a manutenção da decisão.

Apenas o recurso interposto pela Ré da sentença final veio a ser admitido como apelação, a subir nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, tendo sido omitida pronúncia sobre o recurso antes interposto.
A Sr.ª juíza pronunciou-se ainda sobre a nulidade arguida no sentido de a mesma não se verificar.
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Questão prévia:
Da tempestividade do recurso interposto
Conforme resulta do relato que antecede, os AA/recorridos suscitaram a título prévio a questão da intempestividade do recurso interposto, o qual deu entrada em juízo, dizem, muito depois do termo do prazo, que se verificou em 19/7/2022, acrescendo-lhe eventualmente o prazo de complacência a que alude o artigo 139.º, n.º 5, do CPC, recusando ser aplicável ao caso o regime que emerge do DL n.º 131/2009.
Indaguemos, pois, da tempestividade do recurso interposto.
Sendo incontroverso que os presentes autos comungam da natureza urgente do processo de insolvência, como decorre do artigo 9.º, n.º 1, do CIRE, o prazo para interposição de recurso é o de 15 dias previsto no artigo 638.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPC, acrescendo-lhe o de 10 dias a que se refere o n.º 7 do preceito, uma vez que contém impugnação sobre a matéria de facto.
O recurso, conforme resulta igualmente dos autos, deu entrada em juízo em 16 de Agosto de 2022, invocando a recorrente em seu benefício a extensão de duas semanas prevista no DL n.º 131/2009, de 1 de Junho, o que os recorridos contestam. Vejamos, pois, de que lado está a razão.
Encontra-se provado nos autos que a sentença foi notificada às partes mediante ofício certificado a 4 de Julho, donde presumir-se a notificação efectuada no dia 7 desse mesmo mês (cfr. artigos 132.º, n.º 1 e 248.º do CPC). Com efeito, e embora se encontre documentalmente comprovado no processo que a Il. Mandatária da Ré foi mãe no dia 3 de Julho, encontrando-se então internada, situação que se mantinha no dia 4, data em que foi emitida a declaração junta aos autos, então ainda omissa quanto à data da alta médica, a verdade é que não logrou ilidir a presunção que resulta daquele artigo 132.º. Iniciando o prazo a sua contagem no dia 8, encontraria o seu termo no dia 1 de Agosto, 2.ª feira, assim assistindo razão aos apelados, caso não seja de aplicar qualquer extensão.
O DL 131/2009, de 1 de Junho, reconhecendo a desprotecção dos advogados em caso de maternidade, paternidade e luto, veio “estender” a estes profissionais o direito a serem dispensados “de actividade durante certo período de tempo, em caso de maternidade ou paternidade e luto”, regulando o respectivo exercício.
O diploma veio a ser alterado pelo Decreto-Lei n.º 50/2018, de 25 de Junho, em cujo Preâmbulo se reconhece que “O Decreto-Lei n.º 131/2009, de 1 de junho, estendeu aos advogados o gozo do direito, reconhecido à generalidade dos cidadãos, de dispensa de atividade durante certo período de tempo, em caso de maternidade ou paternidade, ou de falecimento de familiar próximo”. Aí se pondera que “a advocacia, tradicional e maioritariamente exercida como profissão liberal, consubstancia-se, também, na intervenção da advogada ou do advogado em atos judiciais, cuja marcação não depende exclusivamente da sua vontade, mas em relação aos quais a sua presença é indispensável” (…), razão que levou a que se lhes reconhecesse o direito ao adiamento, e, consequentemente, ao reagendamento da marcação do ato judicial, nas situações acima descritas.
A consagração deste direito visou permitir uma desejável harmonização entre a vida profissional e a vida familiar do advogado, sem impacto relevante na almejada celeridade processual”.
Com directa incidência na alteração introduzida, esclareceu-se que a mesma se concretiza “no alargamento, por um lado, do período em que se reconhece o direito ao adiamento do ato por motivo de luto, em caso de falecimento de familiares próximos do advogado, e, por outro, do universo dos familiares considerados para este efeito, aproximando-se este regime ao constante da legislação laboral pública e privada. De igual modo, clarifica-se o âmbito de aplicação subjetiva destas normas, assegurando-se o exercício daquele direito em igualdade de circunstâncias a todos os advogados, mesmo no âmbito do patrocínio oficioso”.
Em causa está a interpretação do artigo 2.º do diploma em análise, impressivamente epigrafado de “Maternidade ou Paternidade”, e que dispõe como segue:
1. Em caso de maternidade ou paternidade, os advogados, ainda que no exercício do patrocínio oficioso, gozam do direito de obter, mediante comunicação ao tribunal, o adiamento dos atos processuais em que devam intervir, nos seguintes termos:
a) Quando a diligência devesse ter lugar durante o primeiro mês após o nascimento, o adiamento não deve ser inferior a dois meses e quando devesse ter lugar durante o segundo mês, o adiamento não deverá ser inferior a um mês;
b) Em caso de processos urgentes, os prazos previstos na alínea anterior são reduzidos a duas semanas e uma semana, respectivamente, sem prejuízo do disposto na alínea seguinte;
c) Nos casos em que existam arguidos sujeitos a qualquer das medidas de coacção previstas nos artigos 201.º e 202.º do Código de Processo Penal, não têm aplicação as disposições previstas nas alíneas anteriores”.
Fazendo do preceito uma interpretação declarativa, defendem os apelados, com apoio em jurisprudência que citam, que o adiamento previsto se circunscreve às diligências judiciais, implicando portanto a presença do Sr. Advogado ou patrono nomeado, não se aplicando aos prazos para a prática de actos judiciais; inversamente pugna a apelante pela sua aplicação também nestes casos. Vejamos, pois, qual a solução a adoptar.
Conforme esclarece o STJ no acórdão proferido em 18/1/2022 (processo n.º 9317/18.7T8PRT.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt), “interpretar consiste em retirar do texto um determinado sentido ou conteúdo de pensamento. O elemento gramatical (letra da lei) e o elemento lógico (espírito da lei) têm sempre que ser utilizados conjuntamente. Não pode haver uma modalidade de interpretação gramatical e uma outra lógica, pois que o enunciado linguístico, que é a letra da lei, é apenas um significante, portador de um sentido (espírito) para que nos remete”.
E prossegue “O texto constitui o ponto de partida da interpretação (artigo 9.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Civil). O intérprete deve, em princípio, optar por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no pressuposto de que o legislador soube exprimir com correção o seu pensamento (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
O elemento racional ou teleológico da interpretação da lei (artigo 9.º, n.º 1, do CC) consiste na razão de ser da lei (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma. O conhecimento deste objetivo constitui um auxílio da maior relevância para determinar o sentido com que a norma deve valer. O esclarecimento da ratio legis revela a "valoração" ou ponderação dos diversos interesses em jogo que a norma regula e, por conseguinte, o peso relativo dos mesmos interesses, a preferência de um deles em detrimento do outro traduzida na solução consagrada na norma”.
Em idêntico sentido, já o mesmo STJ tinha feito notar (AUJ 4/2015, in DR n.º 58, Série I, de 24 de Março de 2015) que “No caso de o sentido de uma norma exceder o significado que resulta diretamente da letra da disposição que a contém, o intérprete deve atribuir um significado mais amplo do que aquele que resulta do referido texto, de modo a abranger situações que, de acordo com o pensamento legislativo, deveriam ser reguladas pela referida norma. O n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil dispõe que a “(…) interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo (…)”. Tal significa, no contexto da interpretação extensiva, que a reconstrução do referido pensamento supõe que, quando o legislador diz, na letra da lei, menos do que objetivamente quereria ter dito, o intérprete deve corretivamente alargar o sentido da disposição legislativa de modo a abranger outras situações que permitam garantir fidelidade ao referido pensamento”.
Importa, pois, determinar a razão de ser da intervenção legislativa. Neste contexto, assume relevância a afirmação no preâmbulo do diploma de que se destina a estender “aos advogados o gozo do direito, reconhecido à generalidade dos cidadãos, de dispensa de atividade durante certo período de tempo, em caso de maternidade ou paternidade, ou de falecimento de familiar próximo” (é nosso o destaque). A referência a “dispensa de actividade” é, em nosso entender, reveladora e determinante para se apurar o âmbito de aplicação da lei: o que inspirou o legislador foi a constatação de que os advogados, pese embora a especificidade das funções -de relevante significado social- que exercem, confrontados com determinadas situações da sua vida pessoal ficavam, também eles, em situação de não lhes ser exigível que prosseguissem a sua actividade, estando ainda em causa, naturalmente, conforme é reconhecido aos trabalhadores por conta de outrem, os direitos constitucionalmente reconhecidos de protecção da família, da maternidade e da paternidade e da infância (cfr. artigos 67.º, 68.º e 69.º da CRP).
Tendo em conta a finalidade prosseguida – elemento teleológico que entendemos aqui determinante – afigura-se que a redutora redacção das alíneas a) e b) do artigo 2.º, quando, restringindo o âmbito do corpo do preceito, que alude a “acto”, se refere apenas a diligência, pressupondo a presença do advogado, há-de ser objecto de uma interpretação extensiva, de forma a incluir a prática de actos no processo, fatia relevante da actividade dos Srs. Advogados, que deve igualmente ficar abrangida pela dispensa. Com efeito, mal se compreenderia – e a situação retratada nos autos é disso particularmente ilustrativa – que uma Sr.ª advogada que acaba de ser mãe ficasse, ainda assim, obrigada a apresentar as alegações de recurso em processo cujo prazo se iniciava e terminava nos 30 dias subsequentes ao parto ou, em alternativa, a substabelecer, isto no pressuposto de que um seu colega aceitasse tal encargo naquelas precisas circunstâncias, uma vez que não estivera presente na audiência final.
Faz-se ainda notar que também o elemento sistemático aponta para esta solução, que vigora para os trabalhadores por conta de outrem e outros operadores judiciários, conforme é o caso dos magistrados. A unidade do sistema jurídico, que pressupõe “a coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica”, elemento que “compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretanda, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos)”[1] aponta igualmente, em nosso entender, para a bondade da aqui defendida interpretação extensiva.
Entendemos, pois, em conclusão, que os critérios interpretativos mencionados impõem uma interpretação extensiva das alíneas a) e b) do artigo 2.º do diploma em análise, “extensão teleológica, pois que a própria razão de ser da lei postula a aplicação a casos que não são diretamente abrangidos pela letra da lei mas são compreendidos pela finalidade da mesma. Está em causa a plena realização do fim da regra legal. Pretende-se também evitar uma contradição de valoração que não se afigura justificável”[2].
Deste modo, as referidas alíneas a) e b) do artigo 2.º devem, em nosso entender, ser interpretadas de modo a que a dilação ali prevista abranja também a prática de actos no processo, fazendo-se notar que não está prejudicada - mas não é imposta - a possibilidade de substabelecimento, cabendo ao advogado / patrono nomeado sopesar qual o melhor interesse dos seus clientes, entendendo-se ainda que a exiguidade da dilatação dos prazos no caso dos processos urgentes é suficiente para conciliar os interesses em presença.
Atento o que vem de se expor conclui-se que a recorrente dispunha de duas semanas mais para a interposição do recurso. Terminando o prazo, deste modo, no dia 15 de Agosto, feriado nacional, foi tempestiva a apresentação do requerimento de interposição no dia 16, dia útil imediatamente a seguir ao termo do prazo (cfr. artigo 138.º, n.º 2, do CPC).
Improcede, pelo exposto, a questão prévia suscitada pelos apelados.
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Afirmada a tempestividade do recurso, são as seguintes as questões submetidas à apreciação deste Tribunal:
i. Da nulidade da sentença recorrida;
ii. Do erro de julgamento quanto aos factos;
iii. Da aquisição por usucapião do direito de propriedade ou, quando assim não for entendido, do direito de servidão de passagem por destinação de pai de família.
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i. Da nulidade da sentença recorrida
A recorrente arguiu a nulidade da sentença por violação do princípio do contraditório, uma vez que foi proferida quando ainda se encontrava em curso o prazo de que dispunha para se pronunciar sobre o despacho proferido em 14 de Junho de 2022, a determinar a anulação da mesma e a devolução dos autos à 1.ª instância, em ordem a permitir-lhe a pronúncia que se impõe. Pronunciaram-se os apelados e a Sr.ª juíza no sentido de não estarmos perante nulidade, uma vez que a irregularidade cometida não teve influência na decisão da causa.
Apreciando:
É controvertida a questão de saber se eventual violação do princípio da proibição de decisões surpresa que decorre do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC configura nulidade processual nos termos do artigo 195.º do CPC, assim submetida ao regime previsto nos artigos 201.º e seguintes do citado diploma legal, devendo ser arguida no prazo de 10 dias e perante o Tribunal onde a irregularidade se verificou[3], sustentando outros, diferentemente, que a omissão de acto imposto pela lei vicia a decisão posteriormente proferida, determinando a sua nulidade por excesso de pronúncia, entendimento que tem vindo a registar crescente adesão[4]. Reveladora desta dicotomia é, aliás, a arguição da recorrente que, tendo arguido a nulidade da sentença, enquanto acto – nulidades que vêm taxativamente previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 615.º do CPC – parece, ainda assim, considerar que estamos perante uma irregularidade processual com valor de nulidade, nos termos do artigo 195.º do mesmo diploma legal.
Seja qual for o entendimento que se perfilhe a este respeito, certo é, porém, que nos presentes autos a ora apelante foi aos autos alertar para a omissão, pela secretaria, da ordenada notificação para se pronunciar sobre factualidade nova que iria ser considerada em sede de decisão, tendo posteriormente arguido a nulidade – da tramitação processual, nos termos do artigo 195.º citado – decorrente de a sentença ter sido prematuramente proferida, uma vez que ainda estava a decorrer o prazo para se pronunciar. Tal arguição quedou-se sem resposta por banda do tribunal, pelo que a parte prejudicada se viu na contingência de arguir a nulidade da sentença proferida – desta feita por excesso de pronúncia, ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), parte final –, uma vez que o tribunal conheceu de matéria de que não podia conhecer naquelas precisas condições.
Determina o artigo 3.º, n.º 3, do CPC que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Conforme sublinha o STJ no aresto de 13 de Outubro de 2020, o enunciado princípio “impõe ao juiz o dever de, antes de proferir decisão, conceder às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre todas as questões, ainda que de direito e de conhecimento oficioso, proibindo-se, por isso, as designadas decisões surpresa”. Tal proibição é imposta pelo respeito pelo princípio do contraditório, postulado pelo direito a um processo equitativo, que goza de garantia constitucional (cfr. artigo 20.º, n.º 4, da CRP). Com efeito, na sua moderna concepção, o princípio do contraditório é entendido como “(…) garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo.”[5].

Tendo presentes tais considerandos, e de volta ao caso sub judice, resulta evidente – e isso mesmo foi reconhecido pelo tribunal quando ordenou a notificação das partes para se pronunciarem sobre os novos factos que iriam ser considerados na sentença – que a agora recorrente tinha o direito de se pronunciar, o qual lhe foi coartado. Todavia, conforme justamente observa a Sr.ª juíza, a factualidade nova dada a conhecer naquela decisão favorecia a apelante, e tanto assim é que, tendo sido incluída no acervo factual dado como assente na sentença proferida, nenhum dos factos aditados foi impugnado no recurso interposto. Daqui decorre que eventual anulação da sentença em ordem a permitir uma pronúncia sobre factos que a apelante teve oportunidade de impugnar em sede de recurso, não o tendo feito, por lhe serem favoráveis, seria praticar um acto inútil e, nessa medida, proibido pela lei (cfr. artigo 30.º do CPC). Termos em que se desatende a arguida nulidade, passando a conhecer-se do mérito da apelação.

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ii. Do erro de julgamento dos factos
Porque as questões de facto precedem logicamente as de direito, por aquelas iniciaremos o conhecimento dos invocados erros de julgamento.
A recorrente impugna os factos 12 e 13 do elenco dado como assente na sentença proferida, pretendendo que seja alterado no sentido de imputar antes à sociedade “(...) e (...), Lda. a prática dos factos ali discriminados, a expensas suas, modificação imposta pelo depoimento da Sr.ª Administradora de Insolvência, Dra. (…), e testemunho de (…), nas passagens que identificou. Contrapuseram os apelados com o depoimento/declarações de parte prestadas pela autora (…) e testemunho da mesma (…).
Está em causa a seguinte factualidade:
12. No prédio identificado no ponto 1 mais concretamente num pátio com cerca de 279,02 m2, a que se acede por um portão pela Rua Prof. (…), em (…), o Sr. (…) construiu um pequeno anexo, com área de 78,72 m2, separado da restante parte urbana, e que integra o que actualmente corresponde ao prédio rústico descrito sob o n.º (…), de que os Autores são donos.
13. O dito anexo veio a ser melhorado, ao longo do tempo, por (…), o qual passou a ser conhecido como o escritório da empresa (…) e (…), onde eram praticados todos os actos administrativos e de contabilidade respeitantes à empresa, funcionando como o local de trabalho dos funcionários administrativos da empresa que realizavam essas funções, e onde os restantes trabalhadores se dirigiam para levantar e assinar os seus recibos de vencimento, e tratar de qualquer assunto com os patrões, que, por conveniência, também utilizam tal espaço como seu escritório pessoal, onde armazenavam documentos seus e da sua família.
Foram ouvidos os depoimentos/testemunhos invocados e ainda o prestado pela Dr.ª (…), Sr.ª advogada que elaborou o acordo de cessão de quotas e que foi referenciada pela autora (…). E da audição feita, conjugada com a prova documental junta aos autos e relatório pericial junto, conclui-se que tais elementos probatórios em nada suportam a pretensão modificativa dos recorrentes, antes apoiando o acerto do julgamento feito pela 1.ª instância.
Começando pelo depoimento da Sr.ª Administradora da Insolvência, resultou evidente que nenhum conhecimento directo tinha dos factos, tendo-se limitado a reproduzir a informação que recebeu do Eng.º … (um dos adquirentes das quotas da insolvente) quando a questão foi espoletada pelos aqui AA.
A depoente aludiu ainda ao facto de nos mapas de imobilizado estarem inscritos desde 1995 o terreno – sem especificar qual fosse – e o imóvel, havendo ainda referência à realização de obras várias ao longo dos tempos e de valores relevantes – € 9.000 / € 12.000, segundo mencionou – mas sem especificação dos locais onde as mesmas foram executadas, sendo certo que existem registos anteriores a 1995. Não obstante, esclareceu, nos casos em que uma sociedade está instalada em imóveis pertença dos sócios é comum – e a AT não tem colocado entraves a tais práticas – que o custo das obras realizadas nos edifícios sejam imputados à própria sociedade.
Do testemunho prestado por (…), contratada quando contava 15/16 anos pelo “Sr. (…)” (sogro da depoente …), e que trabalhou no escritório montado no anexo em discussão nos autos durante cerca de 40 anos, tendo saído pouco depois da cedência das quotas da sociedade insolvente, resultou evidente o que os demais elementos probatórios confirmaram: que o espaço em causa, pertencente à família (…), foi utilizado pelo patriarca como escritório, ali tendo centralizado o tratamento da documentação relativa às diversas actividades a que se dedicava, quer a de panificação, explorada pela sociedade (…) e (…), Lda. a partir de 1960, data em que foi constituída, tendo por sócios os seus cunhados, irmãos da mulher, (…), quer a de exploração do lagar e da cortiça a que também se dedicava, ali sendo ainda recebidas as rendas das diversas propriedades que mantinha arrendadas. E tanto assim era que a própria testemunha (…), embora se encontrasse inscrita na Segurança Social como trabalhadora da sociedade (…) e (…) e por esta fosse paga, realizava também tarefas relativas às restantes actividades que o mesmo (…) desenvolvia em seu nome pessoal.
Acresce que como a autora (...) não deixou de referir no seu longo depoimento, trata-se de anexo que fora em tempos curral, afectação dada pelos sogros – a testemunha (…) também mencionou que o “escritório” inicial sofreu um aumento à custa de uma pequena arrecadação “onde haviam coisas da horta” (sic) – e que as obras foram custeadas pelos seus donos, tendo a própria declarante custeado o pequeno WC que foi mais tarde acrescentado, para evitar, segundo explicou, que o marido tivesse que se deslocar a casa dos pais sempre que precisava de se servir da casa de banho.
Afigura-se de toda a justiça referir que o depoimento/declarações prestados pela autora (…) nos mereceu ampla credibilidade, numa clara divergência com a apreciação que do mesmo foi feito pela 1.ª instância, afigurando-se que, a despeito da dura inquirição a que foi submetida, se manteve consistente tendo, para além do mais, quanto declarou sido confirmado nos seus pontos essenciais pelo sólido, idóneo e desinteressado testemunho da Dr.ª (…). E o que dele resulta, em termos coincidentes com o da aludida testemunha (…), é o de uma utilização mista do escritório, ali se cuidando de negócios particulares e da sociedade, sem se curar de uma rigorosa distinção dos espaços, como é habitual e corrente em situações similares, quando os sócios e gerentes das sociedades são, simultaneamente, proprietários dos espaços onde se desenvolve a actividade societária. Não obstante, assinala-se, não deixou aquela testemunha (…) de referir que tinha uma chave do portão de acesso ao pátio e que a utilização deste não seria livre para os trabalhadores, fornecedores ou clientes da sociedade – estava ligado à casa do Sr. (…), conforme também esclareceu – que se serviam por detrás, pela padaria, ali efectuando cargas e descargas, com uma única excepção a partir de 2012, a saber, os carros dos supermercados (…), por exigência destes.
E que os espaços em causa foram excluídos do negócio de cessão das quotas resultou demonstrado pelo depoimento de parte prestado pela A., corroborado pelo testemunho da já mencionada Dr.ª (…), cuja isenção resultou evidente. Admitindo esta testemunha não ter assistido às negociações prévias à celebração do acordo, declarou que já em 2017 e depois disso, no seu escritório e na sua presença, em várias ocasiões em que se reuniu com a identificada (…) e com o Eng.º (…) – uma vez que a sociedade insolvente já então se encontrava em dificuldades para cumprir o acordo celebrado –, a questão do escritório foi abordada, reconhecendo este que o ocupava precariamente, por lhe ter sido concedida autorização para tal enquanto não fizesse as obras de adaptação que se propunha fazer no edifício da fábrica. Refira-se que a testemunha (…) não deixou também ela de referir que o Eng.º (…), numa ocasião, lhe dissera que iria fazer obras, melhoramentos, e que os escritório iriam para cima da pastelaria. Tais declarações foram acolhidas, ficando o facto a constar do ponto 19.
Em suma, porque os elementos probatórios indicados não permitem a alteração dos pontos impugnados no sentido pretendido, antes corroborando o que deles ficou a constar como factos provados, improcede a impugnação. Não obstante, a fim de evitar contradições, importa rectificar o ponto 29, na sua parte final.
No ponto em causa ficou consignado que “A Ré, desde os anos 60, em que foi constituída a sociedade ora insolvente, sempre utilizou o pátio com cerca de 270 m2, e o anexo com a área de 78,72 m2 (com as respectivas obras de melhoramento, ao longo dos anos), de forma pública e ostensiva, sem qualquer interrupção ou oposição de quem quer que seja, fazendo à vista de todos e com ânimo de quem sempre exerceu um direito próprio”. Ora, pese embora não se concretize em termos de que direito próprio foram exercidos os actos especificados, nem tal, salvo melhor opinião, resulta da demais factualidade apurada, a verdade é que nada aponta para que a sociedade entretanto declarada insolvente tivesse actuado por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro qualquer direito real, a fazer presumir um qualquer “animus”. Nestes termos, ao abrigo do preceituado no artigo 607.º, n.º 4, aplicável aos acórdãos ex vi do disposto no n.º 2 do artigo 663.º do mesmo diploma legal, tendo em vista evitar contradições e prevenir equívocos, determina-se a eliminação da parte final do ponto 29.
Ainda em respeito pela prova produzida, considerando os elementos de prova a que se fez referência, cabe ainda esclarecer, no que respeita ao ponto 32, que também a correspondência pessoal dos ditos (…) e mulher e, depois das suas mortes, dos filhos, era ali recebida, e que os carros estacionados no pátio eram, na verdade, dos membros da família, ainda que fossem simultaneamente os sócios e gerentes da sociedade.
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II. Fundamentação
De facto
É a seguinte a factualidade relevante para a decisão da causa:
1. Os Autores são donos e legítimos donos do prédio rústico denominado (…), sito em (…), Portalegre, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre sob o n.º (…), e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…), Secção (…), composto por cultura arvense, dependência agrícola e oliveiras.
2. No passado eram seus donos (…) e (…), tendo sido por sucessão hereditária dos mesmos que os Autores, actuais donos, adquiriram o referido prédio.
3. Em 28/06/1960, por (…), (…) e (…) – estes dois últimos irmãos de (…) e, por isso, cunhados de (…) – foi constituída a empresa “(…) e (…), Lda.”, a qual se destinava à exploração do comércio e indústria de moagem e padaria, localizada na parte urbana do prédio misto denominado (…).
4. Em 04/04/1973 os sócios da mencionada sociedade eram (…), (…), (…) e (…), ou seja, grande parte do capital social da empresa era detida por membros da família (…), que eram simultaneamente donos do prédio onde aquela exercia a sua actividade, sendo que o (…) era cunhado do (…) e tio do (…) e de (…).
5. Em 20/01/1995 (…) faleceu, sucedendo-lhe, como donos do prédio misto, (…) e (…) e dono das quotas da sociedade, (…).
6. Em 02/02/1995, a parte urbana do prédio onde operava a indústria de fabrico de pão e de bolos, foi desanexada destoutro, dando origem ao prédio urbano descrito sob o n.º (…), o qual foi adquirido pela empresa “(…) e (…), Lda.”, por escritura de compra e venda, a qual só veio a ser formalizada em 07/04/1995.
7. Foram intervenientes nessa escritura como vendedores (…), (…) e sua esposa, (…), (…) e sua esposa, (…), e como compradora a empresa “(…) e (…), Lda.”, aí representada pelos sócios (…) e (…).
8. À excepção de (…), todos os intervenientes na compra e venda do imóvel em causa pertenciam à família (…), alguns deles intervindo até, caso de (…), tanto a título de dono vendedor, como na qualidade de sócio gerente da empresa compradora.
9. Em 16/05/1995 (…) dividiu e transmitiu a sua quota a (…) e (…) e abandonou a empresa, momento a partir do qual a sua composição social passou a ser ocupada, na totalidade, pela família (…).
10. (…) e (…) passaram a ser simultaneamente donos da empresa dona do imóvel urbano e donos do imóvel rústico que o envolvia.
11. Tudo assim se manteve – no que à estrutura da empresa diz respeito – até que por contrato de compra e venda de participações sociais celebrado em 30/11/2016, os Autores (…), (…), (…) e (…), sócios de “(…) e (…), Lda.” à data, venderam a totalidade das participações sociais à “Pastelaria (…), Lda.”, (…) e (…), os quais passaram assim a deter a totalidade da composição do seu capital social, tornando-se seus donos e novos gerentes.
12. No prédio identificado no ponto 1, mais concretamente num pátio com cerca de 279,02 m2, a que se acede por um portão pela Rua Prof. (…), em (…), o Sr. (…) construiu um pequeno anexo, com a área de 78,72 m2, separado da restante parte urbana, e que integra o que actualmente corresponde ao prédio rústico descrito sob o n.º (…), de que os Autores são donos.
13. O dito anexo veio a ser melhorado, ao longo do tempo, por (…), e passou a ser conhecido como o escritório da empresa (…) e (…), onde eram praticados todos os actos administrativos e de contabilidade respeitantes à empresa, funcionando como o local de trabalho dos funcionários administrativos da empresa que realizavam essas funções e onde os restantes trabalhadores se dirigiam para levantar e assinar os seus recibos de vencimento, e tratar de qualquer assunto com os patrões, que, por conveniência, também utilizam tal espaço como seu escritório pessoal, onde armazenavam documentos seus e da sua família.
14. (…) e mulher eram também donos de um lagar de azeite, que se encontrava em funcionamento na parte rústica do mesmo prédio, referido no ponto 1, lagar esse que (…) explorou praticamente até ao fim da sua vida, utilizando também o referido anexo para atender clientes e fornecedores do lagar, fazer pagamentos, e guardar papéis inerentes a essa actividade.
15. Com a saída de (…) da empresa, o (…), não obstante a sua divisão em parte rústica e parte urbana, passou a ser detido, na prática, pelos mesmos sujeitos, (…) e (…), fazendo-o a título pessoal, quanto ao prédio rústico, e a título de gerentes da empresa, quanto ao prédio urbano, onde esta desenvolvia a sua actividade.
16. O prédio urbano transmitido à empresa “(…) e (…), Lda.” compreende somente os dois edifícios contíguos, compostos de rés-do-chão, e primeiro andar, onde se integra o complexo de moagem e padaria para fabrico de pão, e de pastelaria para fabrico de bolos.
17. Nada mais integrou tal desanexação e transmissão, nem era intenção dos donos fazê-lo, nomeadamente quanto ao anexo referido no ponto 12, não obstante lá se encontrarem documentos e objetos da empresa, e não só da família (…).
18. Também não integrou a desanexação e transmissão o pátio referido no ponto 12, apesar de a única saída para o exterior do edifício da pastelaria se efectuar por esse pátio, nunca tendo, em 40 anos, existido ligação interior entre os edifícios da padaria e da pastelaria, que apenas era feita pelo referido pátio através de duas portas exteriores, situadas cada uma em seu edifício.
19. Tal situação foi explicada aos adquirentes, o que estes entenderam, reconheceram e aceitaram, sem qualquer contestação ou reserva, inclusivamente comprometeram-se a remover do dito anexo, assim que possível, tudo o que respeitasse à empresa “(…) e (…), Lda.”, e levá-lo para as suas instalações.
20. A remoção dos referidos pertences do anexo foi sendo adiada, a pedido dos adquirentes, por razões logísticas, até que estivessem concluídas as obras no 1.º andar do edifício da pastelaria, para aí ser transferido o escritório, o que os AA foram aceitando, por mera tolerância.
21. Do mesmo modo, o pátio referido no ponto 12 continuou a ser utilizado pela nova gerência de “(…) e (…), Lda.”, da mesma forma que os Autores sempre o fizeram, quer antes, quer depois da escritura de 07/04/1995, fosse para aceder ao anexo, fosse para aceder ao edifício da pastelaria, designadamente para fazer entrar e sair mercadorias e trabalhadores, e transferir os bolos já confeccionados para dentro do edifício da padaria, para poderem ser carregados nas carrinhas de distribuição.
22. Por razões de ordem sanitária, os produtos já confeccionados de padaria e pastelaria não podem sair pela frente, pela Rua Prof. (…), mas têm que ser carregados nas traseiras, pelo edifício da padaria, à qual se acede apenas pelo interior do prédio rústico referido no ponto 1, pertencente aos Autores, os quais desde sempre prestaram autorização para o estabelecimento definitivo dessa serventia.
23. No cumprimento de regras de higiene e segurança no trabalho, os trabalhadores da pastelaria quando entravam ao serviço, já fardados, tinham que vir pelo interior da padaria até ao pátio, onde posteriormente entravam na pastelaria.
24. Apenas o edifício da padaria tem saída directa para o exterior, pela rua principal, a Rua Prof. (…), através da loja de venda ao público, além de ter uma porta traseira para o prédio rústico referido no ponto 1, o que não sucede com o edifício da pastelaria.
25. Os Autores nunca deram permissão aos Réus para utilizar, a título definitivo, o pátio que circunda o anexo cuja ocupação havia sido facultada, embora nunca tivessem discutido o fecho das duas portas exteriores referidas no ponto 18.
26. Para contornar tal situação no futuro, os Réus chegaram a equacionar a compra do referido pátio e anexo, ou o estabelecimento de uma ligação interior entre os edifícios da padaria e da pastelaria, o que nunca veio a ocorrer.
27. A empresa “(…) e (…), Lda.” foi, entretanto, a 3/04/2020, por sentença transitada e julgado, nos autos principais, declarada insolvente.
28. Em 25/05/2020, os Autores, considerando que já tinha cessado o fundamento para ocupação do espaço do anexo e do pátio, solicitaram a “(…) e (…), Lda.” a desocupação imediata de tais áreas e a sua entrega aos Autores, o que até ao momento não ocorreu.
29. A Ré, desde os anos 60, em que foi constituída a sociedade ora insolvente, sempre utilizou o pátio com cerca de 270 m2, e o anexo com a área de 78,72 m2 (com as respectivas obras de melhoramento, ao longo dos anos), de forma pública e ostensiva, sem qualquer interrupção ou oposição de quem quer que fosse, fazendo à vista de todos.
30. Aquele pátio é também usado para as cargas/descargas dos produtos de pastelaria, a que a empresa se dedica.
31. Sem ter acesso ao pátio não é possível ao edifício da pastelaria continuar a laborar.
32. É também pelo portão do pátio para a Rua Prof. (…) que a correspondência da empresa sempre entrou, sendo recebida no anexo, a par da correspondência pessoal do referido (…) e mulher (…) e, depois da morte destes, dos seus filhos, bem como a entrada de qualquer pessoa que pretendesse tratar de assuntos respeitantes à empresa, e dos próprios donos da empresa, membros da família (…), os quais estacionavam o seu carro dentro do pátio.
33. Do lado direito do referido portão, no muro do lado de fora, com vista para a via pública, encontra-se colocada uma placa com a identificação da empresa.
34. Já a distribuição da empresa está centrada e realiza-se pelas traseiras do edifício da padaria, num telheiro, onde se efectuam as cargas e descargas das mercadorias, e se faz também a entrada e saída dos trabalhadores, fornecedores, camiões e carrinhas da empresa.
35. Os balneários dos trabalhadores, onde os mesmos se equipavam para entrar ao serviço, situa-se nas traseiras do edifício da pastelaria, dentro do prédio rústico dos Autores.
36. Existe apenas um contador de electricidade para o prédio rústico, o anexo e o prédio urbano onde se encontram instaladas a padaria e pastelaria, suportando a empresa todos os custos.
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Factos não provados:
Da petição inicial:
A) O pequeno anexo foi inicialmente foi utilizado como vacaria.
B) A natureza daquele espaço era pessoal, ou seja, eram (…) – maioritariamente – e sua esposa (…) quem utilizava tal espaço, ao longo do tempo.
Da reconvenção:
C) A Ré desde sempre realizou todos os atos próprios de quem é legítimo titular do direito de propriedade sobre o referido anexo (escritório) e pátio aqui em causa, designadamente, efetuando obras de conservação, pagando e suportando todos os encargos, entre outras.
D) Foi, de facto, na intenção e na nunca contestada convicção de que o pátio e o anexo lhe pertenciam que a Pastelaria (…), Lda., (…) e (…) decidiram realizar o negócio no qual adquiriram a totalidade das participações sociais da sociedade ora insolvente.
E) Sem o anexo não é possível à sociedade continuar a laborar.
F) Tanto assim é, como tal se confirma até da visualização de uma reportagem – “Grande Reportagem – Negócios de Família”, no ano de 2011, dada por uma das Autoras, (…), do minuto 10’11 ss ao minuto 23’22 ss, na qual se verifica a Autora a dirigir-se para o escritório da empresa, a saída e entrada das cargas e descargas pelo pátio e a elaboração da contabilidade na sociedade do respectivo escritório.
G) De acordo, foi a sociedade “(…) e (…), Lda.” quem terá procedido à construção e edificação do escritório, e terá suportado todos os custos e encargos associados a essa empreitada, desde o levantamento topográfico em 1981.
H) Na verdade, sempre aqueles espaços pátio e anexo foram utilizados, melhorados e conservados, deles retirando os respectivos frutos, pela sociedade “(…) e (…), Lda.” como sua dona e legítima proprietária, e sempre foi assim.
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De Direito
Da aquisição por usucapião do direito de propriedade
Os AA vieram a juízo pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o anexo e a área de logradouro (pátio) que identificam e a sua restituição, alegando que são os donos, por terem adquirido tais espaços por usucapião, que expressamente invocaram.
A Ré contestou e reconveio, alegando a prática de actos de posse pública, pacífica e de boa fé que, tendo perdurado por mais de 20 e 30 anos, conduziu à aquisição por usucapião, mas a seu favor, dos mesmos espaços, assim em disputa.
No decurso da audiência e conforme se deixou antes referido, ainda que com a oposição dos AA, admitiu o Tribunal a formulação pela reconvinte do pedido subsidiário de reconhecimento de uma servidão de passagem constituída por usucapião no que respeita ao pátio, quer para acesso “à padaria, quer relativamente à pastelaria”.
Na sentença recorrida, depois de se julgarem improcedentes os pedidos formulados em via reconvencional, concluiu-se pela procedência do pedido principal, decisão que a Massa Insolvente, aqui recorrente, pretende ver revertida, porquanto, argumenta, foram apurados verdadeiros actos de posse por parte dos donos do rústico, que actuavam em nome da empresa, e não a título pessoal, como resulta do facto provado 29. Verificando-se tal actuação desde os anos 1960, data da constituição da sociedade “(…) e (…), Lda., deu-se a aquisição dos espaços por usucapião, tal como foi invocado.
Quando assim se não entenda, e tal como decorre da sentença proferida, pretende ver declarada a constituição originária de uma servidão de passagem relativamente ao pátio, já não por usucapião, mas antes por destinação de pai de família, “face às duas portas exteriores da padaria e da pastelaria que abrem directamente para o pátio, nos termos do artigo 1549.º, solução que a própria sentença aponta”.
Vejamos se a factualidade apurada suporta as pretensões recursivas da recorrente.
Não se questiona que a posse constitui caminho para uma verdadeira dominialidade, já que "na sua força jurísgena aspira ao direito, tende a converter-se em direito. Daí que o ordenamento, não somente a proteja, como a reconheça como um caminho para a autêntica dominialidade, reconstituindo, através dela, a própria ordenação definitiva. É o fenómeno da usucapião. ... Donde, não só a presunção de direito que se liga à posse, mas também a admissão de que a posse, por certo lapso de tempo e com certas características, deve conduzir ao direito real que indicia"[6].
A posse, define-a a lei como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou outro direito real (artigo 1257.º).
Conforme vem sendo tradicionalmente entendido, aceitando que a nossa lei civil acolheu nesta matéria a tese subjectivista[7], a posse pressupõe a reunião do elemento material, “corpus”, que se traduz na prática de actos materiais sobre a coisa correspondentes ao exercício do direito, e do elemento psicológico, o “animus”, ou intenção de se comportar como verdadeiro titular do direito real correspondente, e não um mero poder de facto sobre ela. Todavia, consciente da dificuldade de o exercente “fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente”, estabelece o n.º 2 do artigo 1252.º uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (“corpus”), tendo o STJ afirmado a doutrina de que “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa” o que equivale a dizer, numa outra formulação, que “no exercente do poder de facto presume-se o “animus” (Cfr. o AUJ de 14 de Maio de 1996, in DR n.º 144, de 24/6/96).
No que ao caso que nos ocupa diz respeito, vista a factualidade apurada, verifica-se que não logrou a recorrente fazer prova da prática, em momento algum, de uma actuação por parte da sociedade (…) e (…) sobre o anexo e o pátio como se dona fosse; pelo contrário, os factos apurados ilustram que a utilização de tais espaços, nunca exclusiva, foi sempre justificada pela circunstância de os aqui AA terem sido, ao longo dos anos, também os sócios e os gerentes daquela.
Acresce que, em contra-mão com a pretensão da recorrente, está provado que os AA têm inscrito a seu favor o prédio rústico denominado (…), sito em (…), Portalegre, descrito na Conservatória do Registo Predial de Portalegre sob o n.º …/19950120, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo (…), Secção (…), cuja descrição compreende ainda casa de rés do chão e primeiro andar com uma parte para a indústria de moagem e fabrico de pão, com área de 548 m2 (padaria) e 242 m2 de moagem, do qual foi desanexado uma parte urbana extractada na ficha …/19950202. Tal prédio foi adquirido pelos AA por sucessão por morte dos seus antepassados … e … (cfr. pontos 1 e 2).
Mais se apurou que no aludido prédio, descrito sob o n.º (…), mais concretamente num pátio com cerca de 279,02 m2, a que se acede por um portão pela Rua Prof. (…), em (…), o referido (…) construiu um pequeno anexo, com a área de 78,72 m2, separado da restante parte urbana, no qual foi realizando melhoramentos ao longo do tempo, o qual foi sendo utilizado como escritório, quer pelo referido (…) para cuidar dos seus negócios pessoais, quer pela sociedade de que era sócio, juntamente com seus cunhados (cfr. pontos 12, 13).
Resultou também provado que em 1995, na sequência do óbito do referido (…), os seus herdeiros procederam ao destaque do edifício afectado “ao fabrico do pão e de bolos” (ainda que esta operação não tenha sido concluída, conforme o Sr. perito fez constar do seu relatório e resulta igualmente dos pontos 16 e 17 dos factos assentes, quando confrontado com o descrição predial n.º …[8]) e procedeu à sua venda à sociedade (…) e (…), Lda.”. No entanto, pese embora o uso que pela sociedade vinha sendo feito do anexo e pátio pela sociedade, ficou demonstrado nos autos que “nada mais integrou tal desanexação e transmissão, nem era intenção dos donos fazê-lo” (pontos 17 e 18), numa inequívoca demonstração de que os donos do prédio, nele se incluindo aqueles espaços, quiseram manter o seu domínio sobre os mesmos. E que o anexo e o pátio não integravam o prédio da sociedade veio a ser explicitado aos adquirentes, anos mais tarde, aquando da transmissão das quotas à Pastelaria (…), Lda., (…) e (…) ocorrida em 30 de Novembro de 2016, de tudo resultando que só a utilização feita pelos membros da família (…) se assumiu como a prática de actos de posse em nome próprio, como donos, quer do anexo, quer do pátio, a qual, tendo perdurado durante mais de 30 e 40 anos, conduziu à aquisição por usucapião do direito de propriedade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1251.º, 1255.º, 1260.º, 1261.º, 1262.º, 1287.º, 1296.º e 1316.º, todos do Código Civil.
O reconhecimento do direito de propriedade sobre os espaços reivindicados a favor dos AA impõe a improcedência do pedido de reconhecimento desse mesmo direito a favor da Ré, o que aqui se confirma. Remanesce, porém, a questão de saber se lhe poderá ser reconhecido o direito de servidão de passagem sobre a área do pátio, desta feita com fundamento em destinação de pai de família, não estando em causa o segmento decisório em que lhe foi negado o reconhecimento do direito de servidão com fundamento em usucapião, que se mostra assim transitado, tornando inútil qualquer pronúncia sobre o recurso antes interposto pelos aqui apelados (cfr. ainda o artigo 660.º do CPC).
Apreciemos, pois, este derradeiro fundamento.
Para o que aqui releva, dispõe o artigo 265.º do CPC que
“1. Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação.
(…)
6. É permitida a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir desde que não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida”.
As alterações e a convolação processual aqui previstas são corolários dos princípios da economia, da gestão processual e da adequação formal, que visam o maior aproveitamento possível do processo, de modo a obter a resolução do maior número possível de litígios, e a sua flexibilização e agilização, em ordem a atingir uma decisão justa no tempo adequado. Os identificados princípios terão, todavia, de conciliar-se com o da estabilidade da instância, este consagrado no artigo 260.º do CPC, nos termos do qual «citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvo as possibilidades de modificação consignadas na lei».
Ora, como lapidarmente se considerou no acórdão do TRC de 13 de Maio de 2014, no processo n.º 1153/13.0TBVNO.C1, acessível em www.dgsi.pt., com directa aplicação nestes autos: “Não têm a mesma causa de pedir e pedido acções em que, numa, se pede o reconhecimento de servidão constituída por usucapião e, na outra, se pede o reconhecimento de servidão constituída por destinação de pai de família; sendo o respectivo título constitutivo que define o conteúdo, extensão e modo de exercício duma servidão, não tratam ambas as acções da mesma concreta servidão (por muitas semelhanças que a alegação factual e o pedido possam ter).
2 – A regra do artigo 664.º do VCPC = 5.º do NCPC tem que conter-se e mover-se dentro do princípio do pedido; isto é, sem que seja formulado um concreto e exacto pedido/direito, o tribunal não pode apreciá-lo e decidi-lo, não podendo extrair todas e quaisquer virtualidades / ilações jurídicas dos factos que haja reunido, mas apenas as compreendidas no espectro do pedido.
3 – Assim, pedido o reconhecimento, por usucapião, duma servidão, não pode sequer o tribunal, julgado improcedente este modo de aquisição (único invocado), debruçar-se sobre a aquisição por destinação de pai de família”.
Não podia assim a apelante vir agora, nas alegações de recurso e em clara violação das disposições legais antes citadas, alterar o pedido e a causa de pedir, em ordem a obter uma decisão favorável à sua pretensão. Trata-se de pedido e causa de pedir não apreciados na decisão recorrida que, a despeito das considerações aí a propósito feitas, nada determinou a esse respeito, encontrando-se excluídos do objecto do processo e, consequentemente, dos poderes de cognição deste Tribunal.
Improcedentes os fundamentos recursivos, impõe-se manter a sentença recorrida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante.
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Sumário: (…)
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Évora, 30 de Março de 2023
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite
José Manuel Barata


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[1] Ainda do acórdão do STJ de 18/1/2022 citado.
[2] Idem.
[3] Cfr., neste preciso sentido, o aresto do STJ de 2/6/2020, processo 496/13.0TVLSB.L1.S1, ainda que a propósito da violação do disposto no n.º 3 do artigo 665.º do CPC, e o comentários crítico do Prof. M. Teixeira de Sousa no Blog do IPPC, entrada de 8/3/2021.
[4] Assim, o aresto do mesmo STJ de 13/10/2020, no processo 392/14.4.T8CHV-A.G1.S1 e o acórdão do TRG 19/3/2020, processo 6760/19.8T8GMR-A.G1, este com anotação concordante do Prof. MTS – Blog IPPC, entrada de 8/9/2020 –, na esteira da opinião já antes ali expendida (cfr. ainda o comentário postado pelo mesmo Prof. no Blog em 12/10/2021).
[5] José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil Conceito e Princípios Gerais, págs. 108/109.
[6] Prof. Orlando Carvalho, “Introdução à posse”, in RLJ, ano 122, n.º 3780, pág. 66.
[7] Pressuposto que, todavia, tem vindo a ser progressivamente questionado pela doutrina – vide, sugestivamente, Prof. Dr. Rui Ataíde, “Sobre a Distinção Entre Posse E Detenção”, acessível em https://www.oa.pt/upl/%7B4513b71a-245e-4bdd-ac4a-8c64a6757bc4%7D.pdf.
Os próprios apelantes, não questionando aparentemente este entendimento, acabam nas alegações apresentadas por defender uma interpretação do instituto marcadamente objectivista.
[8] Importa ainda reter, do mesmo relatório, a circunstância de existirem discrepâncias de áreas e o facto de a desanexação dos edifícios afectos à actividade industrial da sociedade insolvente, segundo o mesmo relatório, não se ter completado, questões que, todavia, exorbitam do objecto do recurso, mas que as partes deveriam preferencialmente resolver por acordo, em ordem a viabilizar a venda do imóvel.