Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
6452/17.2T8STB.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: INTERESSE EM AGIR
COOPERATIVA DE ENSINO
Data do Acordão: 05/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: O interesse em agir surge da necessidade do demandante obter a protecção de um interesse substancial, pressupondo a lesão desse interesse e a idoneidade da pretensão requerida tendo em vista a sua reintegração, destinando-se a assegurar a utilidade da decisão proferida.
É de reconhecer o interesse em agir como pressuposto processual autónomo inominado referente às partes, cuja falta consubstancia excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso.
Tem interesse na instauração de acção de anulação de deliberação tomada pela AG de cooperativa o cooperante que vê ser contra si instaurado procedimento disciplinar em cumprimento dessa mesma deliberação.
A sentença não é nula por excesso de pronúncia se o juiz tinha o poder ou o dever de conhecer ex officio da questão respectiva, não se verificando igualmente nulidade por pronúncia indevida quando o juiz conhece de questão indispensável à solução do litígio, ainda que não tenha sido suscitada por qualquer das partes.
Tendo sido licitamente conhecida a nulidade da cláusula estatutária, não estava vedado ao juiz declará-las, ainda que tal não tivesse sido pedido, atento o disposto no art.º 286.º do CC.(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 6452/17.2T8STB.E1

I. Relatório
(…), com morada profissional na Rua (…), n.º 21, 2.º B, em Lisboa, instaurou contra:
Universidade Setubalense da (…), CRL, Cooperativa de Ensino “(…)”, NIF (…), com sede no Parque do (…), em Setúbal;
(…), residente na Rua da (…), Lote 131, Vila Nogueira de Azeitão, Azeitão;
(…), residente na Praceta (…), n.º 17, 5.º Dto., em Setúbal;
(…), residente na Rua de (…), n.º 5, 8.º esquerdo, em Setúbal; e
(…), residente na Rua (…), n.º 45, 3.º Dto. 2900-515 Setúbal, a presente acção declarativa constitutiva, a seguir a forma única do processo comum, pedindo a final
a) fossem declarados prescritos os factos que lhe são imputados, por força do artigo 26.º, n.º 4, do Código Cooperativo (Lei n.º 119/2015, de 31 de Agosto);
b) a não ser assim entendido, fosse considerada nula a deliberação da Assembleia-Geral da (…) de 14 de Março de 2017, por força do artigo 39.º do Código Cooperativo;
c) fosse a Assembleia-Geral considerada incompetente para mandar proceder à instauração do processo disciplinar ao demandante, por ser da competência da Direcção nos termos do artigo 25.º do Código Cooperativo;
d) fossem os réus considerados como litigantes de má fé por terem deduzido uma providência cautelar contra o arguido com fundamentos que não deviam ignorar e a proposta de instauração dos autos de processo disciplinar, nos termos do artigos 542.º do Código do Processo Civil, devendo ser condenados em multa e numa indemnização a arbitrar.
Alegou para tanto, e em síntese, que a ré é uma cooperativa de ensino da qual faz parte como cooperador.
Mais alegou que na assembleia geral que teve lugar em 14 de Março de 2017 foi deliberado instaurar um processo disciplinar ao demandante, deliberação nula por não constar da ordem de trabalhos nos termos do art.º 39.º do Código Cooperativo, disposição legal que expressamente invocou, sendo também nula por abusiva. Acrescentou que a AG não tinha sequer competência para deliberar a instauração de processo disciplinar, matéria da competência reservada da direcção, sendo certo ainda que eventuais infracções sempre estariam prescritas.
Com fundamento no facto da 3.ª ré, com conhecimento dos demais, ter apresentado proposta cuja falta de fundamento não podia ignorar, pediu a condenação dos demandados como litigantes de má-fé no pagamento de multa e indemnização a fixar.
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Citados os RR, contestaram a 1.ª ré (…) e o 4.º réu (…), tendo arguido em sua defesa a nulidade de todo o processo decorrente da ineptidão da petição inicial, a ilegitimidade dos demandados pessoas singulares, a falta de interesse em agir por banda dos mesmos RR e ainda a excepção peremptória da caducidade do direito de acção. Em sede de impugnação defenderam a validade da deliberação tomada e, tendo concluído pela improcedência da acção, pediram a final a condenação do autor como litigante de má-fé numa indemnização no valor de € 2.000,00 por ter deduzido pretensão que bem sabia infundamentada.
Respondeu o autor, pugnando pela improcedência das excepções e refutando a imputação de litigância de má-fé.
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Dispensada a realização da audiência prévia foi proferido despacho saneador no âmbito do qual foi julgada improcedente a nulidade de todo o processo decorrente de ineptidão da petição inicial, mas procedente a excepção dilatória da ilegitimidade dos 2.º, 3.ª, 4.º e 5.º RR relativamente a todos os pedidos, com ressalva da pedida condenação como litigantes de má-fé, com a consequente absolvição daqueles RR da instância. Quanto ao pedido remanescente, no conhecimento do respectivo mérito, foi julgado improcedente, dele tendo sido absolvidos todos os demandados.
Prosseguindo os autos apenas contra a 1.ª Ré quanto aos demais pedidos formulados, foi delimitado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, sem reclamação das partes.
Realizou-se a audiência de julgamento, em cujo termo foi proferida douta sentença que decretou como segue: i. declarou nula a cláusula constante do artigo 27.º, nº 5, dos Estatutos da ré Universidade Setubalense da (…), CRL, Cooperativa de ensino, aprovados em 05.06.2015, por violação da norma imperativa constante do art.º 39.º do Código Cooperativo; ii. declarou nula a deliberação tomada na reunião de 14.03.2017 da Assembleia-Geral da ré Universidade Setubalense da (…), CRL, Cooperativa de ensino de instauração de um processo disciplinar para apreciação da conduta de (…), aqui autor, por violação da norma imperativa constante do art.º 39.º do Código Cooperativo; iii. absolveu o autor da pedida condenação como litigante de má-fé.
Inconformada, apelou a ré e, tendo apresentado as alegações, formulou afinal as seguintes conclusões:
1.ª O Tribunal incorreu em excesso de pronúncia em relação à nulidade do art.º 27.º, n.º 5 dos estatutos;
2.ª Na verdade o autor nunca formulou tal pedido;
3.ª Foi violado o art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC;
4.ª Nem todos os temas que sejam objecto de deliberação têm de constar da ordem de trabalhos para serem votados;
5.ª Um voto de louvor, uma censura ou uma recomendação no sentido de um órgão social iniciar um determinado comportamento não são susceptíveis de lesar juridicamente alguém, pelo que a deliberação respectiva não é impugnável, por falta de interesse em agir, se o tema deliberado não constava da ordem de trabalhos ou constava de forma insuficiente.
6.ª A douta sentença, enquanto anulou a deliberação tomada na Assembleia de 14 de Março de 2017 é ilegal, por errada interpretação do art.º 39.º do Código Cooperativo.
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O apelado defendeu doutamente a manutenção da sentença recorrida.
A Mm.ª juíza pronunciou-se sobre a arguida nulidade, decidindo no sentido da mesma não se verificar.
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões a decidir:
i. Nulidade da sentença;
ii. Falta de interesse em agir por banda do autor;
iii. Erro de julgamento por errada interpretação, disposto no art.º 39.º do Código Cooperativo.
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i. da nulidade da sentença
Sem questionar o acerto da sentença proferida no segmento em causa, diz a recorrente ser a mesma nula por excesso de pronúncia, uma vez que declarou a final a nulidade da disposição estatutária plasmada no n.º 5 do art.º 27.º dos Estatutos sem que tal tivesse sido pedido.
A nulidade decorrente do excesso de pronúncia prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC tem a ver, conforme é sabido, com a inobservância do preceituado no n.º 2 do art.º 608.º do mesmo diploma, no segmento em que determina que o juiz “não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
Decorre do preceito vindo de transcrever que se, por um lado, o juiz tem o dever de dar resposta aos pedidos deduzidos pelo autor ou reconvinte, apreciar as várias causas de pedir invocadas (quando mais do que uma, em relação de subsidiariedade, funde o pedido) e, bem assim, as excepções peremptórias que hajam sido deduzidas pelo réu ou autor reconvindo, de outro só pode pronunciar-se sobre as questões que as partes tenham suscitado. A propósito do que devem ser consideradas questões para este efeito, discorria o Prof. A. dos Reis em termos sempre actuais, remetendo para a obra de Alfredo Rocco “La sentenza civile”, que “Pedido é, para este efeito, toda a questão que a parte submete ao juiz, todo o ponto acerca do qual a parte reclama do juiz um julgamento, um juízo lógico; não é só, pois, a questão principal, pedidos são também as questões secundárias que constituem premissas indispensáveis para a solução daquela”.
A enunciada regra sofre ainda um outro importante desvio, uma vez que o juiz deve também pronunciar-se sobre todas as questões de conhecimento oficioso.
Assentemos pois em que não se verifica nulidade se o juiz tinha o poder ou o dever de conhecer ex officio da questão respectiva; não se verifica igualmente nulidade por pronúncia indevida quando o juiz conhece de questão indispensável à solução do litígio, ainda que não tenha sido suscitada por qualquer das partes.
No caso vertente, conforme se deixou já referido, o autor invocou a nulidade da deliberação ao abrigo do disposto no art.º 39.º do Código Cooperativo (sendo certo que a mesma sanção constava já do art.º 50.º do revogado DL 51/96, de 7 de Setembro), tendo a ré contraposto que a sanção correspondente à deliberação tomada sobre assunto que não constava da ordem de trabalhos era tão-somente a anulabilidade por força da aludida norma estatutária, donde encontrar-se caducado o direito do autor interpor a competente acção anulatória. Verifica-se assim que a invocação pela recorrente da norma estatutária por cuja aplicação pugnou interessava à caducidade por si invocada, excepção que o Tribunal tinha imperativamente que resolver. E para tal tinha necessariamente que determinar, no confronto entre a disposição legal a que o autor se acolheu e a estipulação estatutária convocada pela ré, qual das duas devia prevalecer.
É certo que, em bom rigor, nenhuma das partes arguiu de forma expressa a nulidade da cláusula estatutária por contrariar norma legal imperativa, mas não só a Mm.º juíza tinha o dever de conhecer ex officio de tal questão nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 286.º do CC e citado n.º 2, parte final, do art.º 608.º, este do CPC, como a solução a dar-lhe era pressuposto necessário da decisão a proferir sobre a excepção peremptória da caducidade invocada pela agora recorrente (ainda que, conforme se teve o cuidado de anotar na sentença, a improcedência da excepção seria de decretar mesmo que a sanção fosse a anulabilidade), recaindo assim no âmbito das excepções que se deixaram apontadas à regra enunciada.
Deste modo, e em suma, porque a Mm.ª juíza tinha o poder e o dever de se pronunciar sobre a validade da estipulação estatutária em causa, não ocorreu excesso de pronúncia. É certo que deveria, em nosso entender, ter advertido as partes de que iria conhecer da questão, conforme impõe o n.º 3 do art.º 3.º do CPC, dispositivo a que não foi dado cumprimento. Tal omissão consubstancia nulidade processual de que, todavia, por não ter sido arguida, não cabe aqui conhecer.
Mas a apelante, ainda que não tenha citado a disposição legal, apontou também à sentença recorrida a nulidade a que se reporta a al. e) do mesmo n.º 1 do art.º 615.º do CPC, por ter condenado para além do que pelo autor fora pedido.
Epigrafado de “limites da condenação”, prescreve o art.º 609.º, no seu n.º 1, que “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”.
Resulta do transcrito normativo que se o juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes, não lhe é igualmente lícito ultrapassar nem em quantidade, nem em qualidade, os limites do pedido por elas formulado: deverá verificar-se na sentença não só identidade entre a causa de pedir e a causa de julgar, mas também entre o pedido e o julgado. Mas se, como vimos, uma excepção àquela primeira regra é constituída pelas questões que o juiz pode ou deve oficiosamente conhecer, afigura-se que, no caso em apreço, tendo licitamente conhecido da nulidade da estipulação não lhe estava vedado a final declará-la tal como, de resto, se encontra expressamente previsto no art.º 286.º do Código Civil, sem ofensa do disposto no art.º 609.º, este do CPC.
Improcedem, pelo exposto, as arguidas nulidades.
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ii. Da excepção dilatória da falta de interesse em agir
Sustenta ainda a recorrente que se verifica a excepção da falta de interesse em agir, uma vez que, não sendo a deliberação impugnada susceptível de lesar o autor/apelado, não tem este interesse na presente acção.
Faz-se notar, antes de mais, que tendo os contestantes invocado na contestação apresentada a falta de interesse em agir, fizeram-no por reporte à posição dos RR, arguição que veio a ser reconduzida pela Mm.ª juíza, cremos que bem, à também suscitada excepção da ilegitimidade, e como tal conhecida.
Vem agora a recorrente nas alegações invocar a falta de interesse em agir do autor/apelado, com o fundamento que se deixou referido, argumento cuja consistência cabe agora apreciar.
Por pressupostos processuais costumam designar-se aqueles requisitos de que depende dever o juiz proferir decisão sobre o mérito da causa, concedendo ou denegando a providência judiciária requerida pelo demandante”.
O interesse em agir, “cuja caracterização jurídica e autonomização face aos restantes processuais não é pacífica, tem sido definido como a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção”. Numa outra idêntica formulação “O interesse em agir consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela jurisdicional”, “é o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, tornando por isso legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece”.
O interesse em agir surge assim da necessidade do demandante obter a protecção de um interesse substancial, pressupondo a lesão desse interesse e a idoneidade da pretensão requerida tendo em vista a sua reintegração. Não se destina a assegurar a eficácia da sentença, mas antes a sua utilidade, nisso se distinguindo da ilegitimidade porquanto, sendo uma das partes ilegítima, a decisão proferida será sempre ineficaz.
Assim sendo, entendemos ser de reconhecer o interesse em agir como pressuposto processual autónomo inominado referente às partes – a não ser exigido, a actividade jurisdicional seria exercida em vão –, cuja falta consubstancia excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso.
E por se tratar de excepção de conhecimento oficioso – cfr. art.º 578.º – não formando caso julgado a afirmação tabelar, em sede de prolação do despacho saneador, de que se não verificam outras excepções dilatórias (o caso julgado formal forma-se apenas em torno das questões concretamente apreciadas, solução expressamente consagrada no n.º 3 do art.º 595), nada obsta ao seu conhecimento nesta fase. Vejamos:
Face a uma deliberação da Assembleia-Geral da Cooperativa Ré no sentido de lhe ser instaurado processo disciplinar - e é este inequivocamente o sentido da deliberação, por mais que a apelante pretenda atribuir-lhe um outro, diverso - na sequência do que, conforme dão conta os autos, foi efectivamente instaurado processo dessa natureza, o autor sofreu uma lesão na sua esfera jurídica, tendo interesse em que tal deliberação, a ser, como defende, nula, não produza efeitos. O autor aspira portanto a que, suprimida a deliberação que fundamentou a abertura do processo, este venha a ser afectado na sua validade - questão sobre a qual, todavia, não nos cabe aqui pronunciar -, manifestando assim um interesse real e atendível na obtenção de uma decisão favorável. E é quanto baste para que lhe seja reconhecido interesse em agir, com a consequente improcedência da excepção agora invocada.
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II. Fundamentação
De facto
É a seguinte a factualidade que, sem impugnação, consta da sentença recorrida:
1. A ré é uma cooperativa de ensino que tem como objecto o desenvolvimento de actividades educativas, culturais, formativas, junto das pessoas da terceira idade, nomeadamente ministrar cursos livres de ensino superior, promovendo social e culturalmente, a terceira idade nas áreas de educação, cultura, saúde e outras, estabelecendo parcerias com outras universidades e sem fins lucrativos.
2. Em 2004 o autor foi um dos cooperadores fundadores da ré, tendo ainda desempenhado as funções de Presidente da Mesa da Assembleia Geral até 31.03.2016.
3. Entre outras funções, o autor foi incumbido de elaborar as actas da Assembleia Geral durante doze anos.
4. Por considerar que a acta n.º 11 continha erros e omissões, o autor apôs na mesma à frente da sua assinatura a expressão: “Dou sem efeito a assinatura por concluir erros no texto da acta”.
5. No início do ano de 2016, em data não apurada, o autor recusou a assinatura das actas n.ºs 12, 13, 14, 15 e 16, por considerar que mesmas padeciam de omissões, incorrecções e outros erros.
6. Durante mais de um ano a ré viu-se impossibilitada de proceder ao registo das supramencionadas actas.
7. Em 24.02.2017, o Presidente da Mesa da Assembleia-Geral, (…), convocou os cooperadores da ré para uma reunião ordinária da Assembleia-Geral a realizar em 14.03.2017, pelas 16h30, no auditório “Maestro (…)”.
8. Na convocatória referida em 7. consta da Ordem de Trabalhos o seguinte:
“1. Período antes da Ordem do dia.
2. Apreciação, discussão e votação do Relatório de Administração relativamente às actividades do ano de 2016.
3. Apreciação, discussão e votação das Contas da Gerência respeitantes ao ano de 2016.
4. Apreciação da evolução da questão do registo na Conservatória do Registo Comercial dos actos e factos da vida da (…) que sejam de registo obrigatório bem como das suas implicações.
5. Outros assuntos de interesse da Universidade.
6. Leitura, discussão e votação da ata da sessão.”.
9. Em 14.03.2017, foi realizada a Assembleia-Geral e, na sequência da abordagem ao ponto 4. da ordem de trabalhos, (…) propôs que fosse instaurado processo disciplinar para apreciação da conduta do aqui autor.
10. Por maioria dos votos, a Assembleia Geral aprovou a referida proposta: instauração de um processo disciplinar para apreciação da conduta do autor.
11. O autor não esteve presente nesta reunião da Assembleia-Geral.
12. Em 23.03.2017, o autor enviou à ré carta registada com aviso de recepção com o seguinte teor:
“(…) Ao longo da reunião da última Assembleia-Geral, que teve lugar no dia 14 de Março de 2017, pelas 16h30, e sem que constasse da Ordem de Trabalhos, foram feitas referências graves e infundadas à minha pessoa, designadamente, de ter causado danos à Universidade Setubalense da (…). Tendo em vista proceder judicialmente contra os seus autores, venho requerer a V. Exa. que me seja passada uma cópia integral da ata daquela reunião, de 14 de Março de 2017, devidamente certificada, a fim de ser apreciada para efeitos judiciais”.
13. Em 11.04.2017, a ré recusou o envio da acta da reunião de 14.03.2017.
14. Em 27.07.2017, o autor foi notificado da nota de culpa e do prazo para deduzir a sua defesa.
15. Pelo menos desde 08.08.2017, o autor tomou conhecimento do conteúdo da deliberação tomada na reunião da Assembleia de 14.03.2017.
16. Em 07.09.2017, o autor instaurou a presente acção.
Factos não provados
Com relevância para a boa decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos não compagináveis com os acima indicados, designadamente:
a) O autor teve conhecimento da deliberação tomada em Assembleia-Geral, quase seis meses antes do prazo estabelecido no ponto 16.
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De Direito
Do erro de julgamento por errónea interpretação do art.º 39.º do Código Cooperativo
Defende a apelante, dando de algum modo um diverso enquadramento a questão que já antes suscitara – e por isso dela se conhecerá –, que o assunto deliberado não tinha que constar da ordem de trabalhos, não recaindo portanto na alçada do art.º 39.º, porque a deliberação que sobre ele viesse a ser tomada não tinha relevância jurídica, apresentando-se como juridicamente inócua (dando como exemplo, que pretende similar, a proposta de aprovação pela AG de um voto de louvor).
No que respeita a este derradeiro fundamento do recurso, afigura-se que quanto foi referido a propósito da excepção da falta de interesse em agir seria bastante para o afastar. Todavia, em respeito pelas conclusões dir-se-á, em reforço, que tal como o apelado faz lucidamente notar nas contra alegações, o citado art.º 39.º, quando sanciona com a nulidade todas as deliberações tomadas sobre matérias que não constem da ordem de trabalhos fixada na convocatória (ressalvado o caso, que para aqui não releva, da deliberação ter sido tomada no seio de uma assembleia universal), não faz qualquer distinção quanto à natureza dos assuntos a tratar, omitindo qualquer ressalva contemplando as deliberações ditas “inócuas ou irrelevantes”.
Conforme se apontou na sentença recorrida, sendo uma pessoa colectiva, são os órgãos da Cooperativa Ré, enquanto centros institucionalizados, que formam a vontade que lhe é juridicamente imputável. Essa vontade, juridicamente irrelevante enquanto não é exteriorizada, assume naturalmente relevância quando é declarada.
A Assembleia Geral, como resulta do disposto no art.º 33.º do Código Cooperativo, é o órgão supremo da cooperativa, sendo as suas deliberações, tomadas nos termos legais e estatutários, obrigatórias para os restantes órgãos da cooperativa e para todos os seus membros.
Nos termos do artigo 23.º dos estatutos da apelante, dentre as competências atribuídas ao Presidente, consta a de “propor e resumir as questões sobre as quais deva incidir qualquer votação e formular as conclusões sujeitas a votação” (cf. ponto 22), competindo ao Vice-Presidente “substituir o Presidente nas suas faltas e impedimentos e colaborar com este nos termos entre ambos acordado” (art.º 24.º).
Na dita assembleia a Vice-Presidente (…) “propôs que fosse instaurado processo disciplinar para apreciação das condutas do senhor cooperador (…) no âmbito do processo conducente à realização dos registos referidos”. Mais consta da respectiva acta que o Sr. Presidente informou adicionalmente ter sido igualmente solicitado àquele cooperador, através de carta registada com a/r, que depositasse na secretaria os documentos da instituição que tinha na sua posse, o que o mesmo nunca fez, tendo a Sr.ª Vice-Presidente proposto que o processo disciplinar fosse instaurado também para apreciação de tal conduta.
Finalmente, tendo sido dito pelo Senhor Presidente da Mesa da AG, no uso das suas atribuições, que “estava para votação a proposta de instauração de um processo disciplinar para apreciação da conduta do senhor cooperadora Dr. (…) no âmbito do processo conducente à realização dos registos, às suas consequências financeiras e bem assim relativo à questão da documentação que tem na sua posse e que, apesar de solicitado para tanto, não depositou na secretaria da Universidade”, foi tal proposta submetida a votação, tendo sido deliberada, por maioria dos votos, a instauração de um processo disciplinar ao autor. Sabe-se finalmente, conforme resulta do acervo factual dado como assente, que tal processo foi efectivamente instaurado.
À luz de tal factualidade afigura-se clara a sem razão da apelante quando defende que a deliberação em causa é juridicamente irrelevante, uma vez que produziu sem dúvida efeitos lesivos na esfera jurídica do autor/apelado, que se viu confrontado com a instauração, em cumprimento da deliberação, de um processo disciplinar, irrelevando para este efeito que o mesmo pudesse ter sido instaurado por iniciativa de outro órgão (e independentemente do seu desfecho, de que aqui não se cura).
Improcedente, pelo que se deixou dito, o derradeiro fundamento recursivo, impõe a confirmação do julgado.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.
As custas são da responsabilidade da apelante.
*
Sumário:
(…)

Évora, 02 de Maio de 2019
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
José Manuel Lopes Barata