Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2603/17.5T8STB.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: NEGÓCIO FIDUCIÁRIO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A alienação em garantia tem como efeito imediato a transferência da propriedade para o fiduciário e a limitação dos poderes inerentes à titularidade do direito – a sua limitação ao fim garantístico – tem natureza meramente obrigacional (artigo 1306.º CC).
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2603/17.5T8STB.E1

Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal
Juízo Local Cível de Setúbal - Juiz 2


I. Relatório
(…), residente na Praceta (…), n.º 7, (…), intentou a presente ação declarativa, a seguir a forma única do processo comum, contra (…), residente na Rua Dr. (…), n.º 15, Bairro dos Pinheirinhos, Nova Sintra, (…), pedindo fosse reconhecido o seu direito de propriedade sobre o prédio sito na Rua Dr. (…), n.º 15, em (…), e o réu condenado a restituí-lo.
Alegou para tanto ser o dono do imóvel, por tê-lo adquirido por compra a (…) – (…), Construções e Investimentos, Lda. que, por seu turno, o havia comprado a (…), filho do demandado. Mais alegou que o réu ocupa o imóvel sem qualquer título que o legitime, recusando-se a proceder à respectiva entrega apesar de para tanto ter sido interpelado, o que justifica a presente demanda.
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Citado, o R. ofereceu contestação e, defendendo-se por excepção, invocou a nulidade do contrato de compra e venda celebrado entre a (…), Lda. e o (…), uma vez que tal negócio visava apenas garantir o reembolso de um empréstimo que em Outubro de 2009 aquela sociedade havia concedido ao contestante, por intercessão do pai dos sócios, à data seu empregador. E quando inesperadamente lhe foi, após o falecimento deste, exigido pelos filhos do falecido a restituição do montante ainda em dívida, recorreu desesperado a empréstimo de terceiros, no âmbito do qual foi celebrado contrato promessa de compra e venda com o autor, enquanto promitente vendedor.
O negócio celebrado com a (…) é nulo, nulidade oponível ao adquirente e aqui autor nos termos do art.º 291.º do CC, uma vez que aquela sociedade não poderia ter feito sua a coisa dada em garantia, por a tal obstar o disposto no art.º 694.º do mesmo diploma legal.
Mais invocou a excepção do abuso de direito, impeditiva do reconhecimento do direito do autor, a quem acusou de se ter aproveitado da situação precária e de grande necessidade do contestante, requerendo finalmente a condenação daquele como litigante de má-fé por ter omitido de forma deliberada factos relevantes para a decisão, alegando outros cuja falsidade bem conhecia.
Convidado a responder às exceções, veio o autor impugnar a factualidade alegada pelo réu em suporte das mesmas, tendo ainda invocado a inoponibilidade em relação a si, atenta a sua qualidade de terceiro de boa-fé, de eventuais vícios que afectassem o negócio celebrado entre a sociedade vendedora e o anterior proprietário.
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Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, prosseguindo os autos com delimitação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova[1].
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença que, na procedência da acção, decretou como segue:
- reconheceu o autor como dono e legítimo proprietário do prédio urbano sito na Rua Dr. (…), n.º 15, da freguesia de S. Sebastião, concelho de (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de (…) sob o número (…);
- condenou o réu a restituir de imediato o imóvel referido em a), ao autor.
- condenou o autor como litigante de má-fé no pagamento de multa que fixou em 6 unidades de conta.
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Inconformado, apelou o réu e, tendo desenvolvido nas alegações as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
1.ª. A Sentença perfilha o entendimento de que, tendo o Recorrente invocado a excepção peremptória de nulidade do Contrato de Compra e Venda, devia ter demandado o comprador e o vendedor para que a acção pudesse produzir os seus efeitos quanto a todas as partes.
2.ª Tendo como base o exposto devia o Tribunal “a quo”, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º do CPC e de acordo com o ali consagrado princípio da gestão processual, ter convidado o Recorrente a chamar à lide quem nela também devia estar, procedendo à regularização da instância e sanando-se assim a falta do indicado pressuposto processual.
3.ª O não cumprimento daquele dever por parte do Tribunal “a quo”, que se traduz na omissão do acto acima indicado, ou seja, a prolação de um despacho que levasse à regularização da instância, tem como consequência uma nulidade processual e desde logo a nulidade da sentença ora recorrida.
4.ª O Recorrente também não se conforma com o decidido na douta sentença quanto à excepção peremptória de nulidade alegada em sede de contestação pelo Recorrente.
5.ª É entendimento do aqui Recorrente que não só houve uma errada interpretação da aplicabilidade do instituto do pacto comissório e da proibição que o mesmo encerra, previsto no artigo 694.° do Código Civil, como ainda dos factos considerados como provados o Tribunal a quo não retirou as consequências jurídicas que se impunham.
6.ª Considera o Recorrente que no caso dos Autos existiu de facto violação do pacto comissório, pois a Sentença no ponto 7. dá como facto assente que “o negócio teve como condição que o réu juntamente com o seu agregado familiar, permanecesse a residir no imóvel e que no dia do pagamento total do valor recebido pelo réu o imóvel ficasse desonerado daquele encargo”.
7.ª Face ao exposto, a excepção peremptória invocada devia ter sido considerada procedente e ter sido aplicada a sanção de nulidade prevista no citado artigo, declarando-se nulo o negócio de compra e venda que transferiu a titularidade do prédio.
8.ª A douta sentença recorrida está inquinada de contradições insanáveis na sua fundamentação e entre ela e a decisão, porquanto, em sede de motivação, o Tribunal a quo considera que o aqui Recorrente “ teve de recorrer a empréstimos, além de que, atento o teor dos documentos, as regras da experiência evidenciam-nos claramente que o recurso a este tipo de negócio ocorre em situações em que as pessoas se encontram em dificuldades financeiras e já sem possibilidade de recurso a crédito de outras entidades”; ainda em sede de motivação “ ...o réu continuou a residir no imóvel, ainda que a título de arrendatário, ficando a suas expensas todos os encargos do imóvel (…)”, circunstância que revelava que o negócio firmado entre as partes era temporário e visava financiar o réu; a sentença continua na sua motivação “a convicção do Tribunal resultou da posição das partes vertida nos respectivos articulados e das regras da experiência, que nos permitem concluir que também o negócio celebrado com o autor, cuja similitude com o contrato celebrado entre o Réu e a (…), Lda é evidente, serviu para colmatar a incapacidade do réu cumprir os termos daquele primeiro acordo e recomprar àquela sociedade o prédio, tanto mais que o valor da compra claramente não corresponde ao valor do imóvel pois, por mais degradado que pudesse estar o prédio, dificilmente teria o valor de € 7.500,00”.
As razões de facto acima expostas não podem servir de fundamento à decisão acolhida pela sentença recorrida, pois a mesma vai no sentido totalmente oposto aquelas.
9.ª O Tribunal a quo devia ter retirado as consequências jurídicas adequadas àquela motivação e que só poderia ser a procedência da excepção peremptória.
10.ª Quanto à questão da legitimidade da posse pelo Recorrente, o Tribunal considerou que o Réu não é legítimo detentor do prédio, e chegou a esta conclusão depois de considerar que “no caso dos autos, resultou provado que o Réu sempre pagou as despesas de água, luz, gás e todas as despesas inerentes ao prédio exercendo sobre o mesmo os poderes inerentes ao proprietário”.
11.ª Ora, ao contrário, para o Recorrente, ficou assente que ao praticar todos aqueles actos reiteradamente ao longo dos anos e sem ter sofrido qualquer alteração apesar das supostas transferências de propriedade que existiram, o Recorrente não agia como mero detentor. O Recorrente teve sempre e ininterruptamente o poder de facto sobre o imóvel, com o animus de o exercer como titular de um direito real sobre o mesmo, pois nunca pretendeu que o negócio celebrado com a (…) envolvesse uma transferência da propriedade da sua casa de morada de família, mas sim que servisse de instrumento ao empréstimo como garantia.
12.ª O recorrente também não se conforma com o entendimento vertido na sentença sobre a questão apreciada quanto ao abuso de direito.
13.ª Considera o aqui Recorrente que fica demonstrado que o Autor, ao comprar o imóvel à (…) Lda. e, concomitantemente, ao ter celebrado o contrato promessa de compra e venda com o Recorrente, e admitindo o Tribunal “a quo” a similitude dos negócios, a necessidade de dinheiro por parte do Recorrente, o escopo do referido negócio, celebrado para satisfazer as necessidades de dinheiro do Recorrente, e o valor extremamente baixo do valor de venda do imóvel ao aqui Autor, € 7.500,00, fica mais que evidenciado que o negócio defraudou as expectativas do Recorrente, que pretendia apenas que o prédio urbano servisse de garantia ao negócio, e que o Autor se aproveitou das fragilidades do Réu, que pela quantia de € 7.500,00 se vê em risco de ficar privado da casa de morada de família, onde desde há muitos anos e até à presente data reside.
Com os transcritos fundamentos concluiu pela procedência do recurso.
Contra alegou o autor, pugnando naturalmente pela manutenção do julgado
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, as questões suscitadas pelo réu apelante e assim submetidas à apreciação deste Tribunal vinculam a indagar se:
i. a sentença recorrida padece do vício da nulidade;
ii. o contrato de compra e venda celebrado entre o anterior proprietário e a alienante ao autor é nulo por violação do disposto no art.º 694.º, importando a nulidade do negócio subsequente;
iii. o autor actua em abuso de direito;
iv. o R. recorrente tem posse oponível ao autor.
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i. das nulidades da sentença
O recorrente imputa à sentença recorrida os vícios da contradição entre os fundamentos e a decisão e excesso de pronúncia, que acarretariam a sua nulidade nos termos previstos nas als. c) e d), segunda parte do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.
Conforme vem sendo reiteradamente afirmado pelos nossos Tribunais, e na esteira do entendimento defendido a propósito da antes vigente alínea c) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC, com conteúdo idêntico à al. c) do n.º 1 do art.º 615.º em vigor, para que ocorra a contradição aqui prevista é necessário que se verifique uma real contradição entre a parte dispositiva da sentença ou do acórdão e os respectivos fundamentos.
A nulidade em causa “...pressupõe um erro lógico na ponta final da argumentação jurídica: os fundamentos invocados apontam num sentido, e, inesperadamente, contra a conclusão decisória que dos mesmos, e dentro da linha de raciocínio adoptada, se esperava, veio-se a optar afinal pela solução adversa”[2].
Sendo o apontado o fundamento da nulidade prevista na predita al. c) do n.º 1 do art.º 615.º, parece evidente, quando se analise a sentença recorrida, que não se verifica tal contradição entre os fundamentos jurídicos invocados e a decisão proferida porquanto, tendo qualificado a venda inicialmente feita pelo vendedor (…) à sociedade (…), que veio a transmitir ao autor/apelado o direito de propriedade sobre o imóvel identificado, como venda fiduciária em garantia, que considerou válida, foi lógica e meramente consequente o julgamento de improcedência da excepção que assentava na nulidade de tal negócio.
Alega ainda o recorrente que a Mm.ª juíza “não retirou dos factos provados as consequências que se impunham” e, fazendo apelo às razões expostas na motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto, nos excertos que transcreveu, diz que a sentença decidiu em sentido totalmente oposto àquelas.
Quanto à primeira imputação – a de que a sentença não extraiu dos factos provados as devidas conclusões – podendo consubstanciar um erro de julgamento, a ser conhecido e corrigido aquando da aplicação do direito aos factos, não estamos perante vício que afecte a validade da mesma, cujas causas se encontram taxativamente previstas nas diversas alíneas do citado n.º 1 do art.º 615.º.
Finalmente, a referência pela Mm.ª juíza na motivação da decisão sobre a matéria de facto a factos presumidos mediante regras da experiência que, no dizer do alegante, conduziriam a decisão de sentido contrário, estamos igualmente perante situação que, podendo conduzir – e tendo conduzido, na versão do recorrente –, a um “error in judicando”, não inquina formalmente a sentença.
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Alega ainda o recorrente, conforme se enunciou, que a sentença é também nula porquanto, tendo a Mm.ª juíza considerado que não se encontrando em juízo os intervenientes no negócio primitivo, designadamente a sociedade (…), que veio a vender ao autor, tal impediria a decisão que viesse a ser proferida de produzir o seu efeito útil normal, não fez uso, ainda assim, dos poderes/deveres que lhe são impostos pela lei, designadamente o de promover oficiosamente pelo suprimento da falta do pressuposto processual indicado.
Tal como o autor configura a situação, estaríamos perante a omissão, por parte de juiz, de um acto que lhe é imposto pela lei – promoção oficiosa da falta dos pressupostos processuais susceptíveis de sanação, como seria o caso da preterição de litisconsórcio, conforme prescreve o n.º 2 do art.º 6.º do CPC – vindo depois o juiz a decidir com esse mesmo fundamento.
Em tal situação verifica-se inicialmente uma nulidade processual – omissão de acto imposto pela lei com relevância para a decisão, a incluir na previsão do art.º 195.º, n.º 1 – seguida de uma decisão que, caso tivesse sido praticado o acto devidamente omitido, em princípio não teria lugar, discutindo-se qual o vício de que padece esta última – se é que padece de algum – e qual o meio de impugnação.
Sobre esta temática tem vindo a debruçar-se o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, que considera existir excesso de pronúncia “Se, apesar da omissão indevida de um acto, o juiz conhecer na decisão de algo de que não podia conhecer sem a realização do acto omitido (ou, pela positiva, conhecer de algo de que só podia conhecer na sequência da realização do acto) (…)”[3], a arguir naturalmente em sede de recurso, entendimento que parece ter sido perfilhado pelo recorrente.
Todavia, no caso em apreço não valerá a pena aprofundar esta temática, uma vez que, a despeito dos considerandos efectuados, a Mm.ª juíza não decidiu com fundamento na alegada preterição do litisconsórcio necessário, pelo que não tiveram tais considerações qualquer influência na decisão recorrida.
Improcede pelo exposto a arguição da nulidade da sentença com o aludido fundamento.
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II. Fundamentação
De facto
É a seguinte a factualidade a considerar na decisão, tal como nos chega da 1.ª instância:
1. Por documento particular autenticado datado de 29/09/2015, que constitui o documento junto de fls. 16 a 19, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, a sociedade (…) – (…), (…) e Investimentos, Lda. declarou vender ao autor, livre de ónus e encargos, pelo preço de € 7.500,00, que declarou ter recebido, o prédio urbano sito na Rua Dr. (…), número 15, na freguesia de S. Sebastião, concelho de (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de (…) sob o número (…).
2. O identificado imóvel encontra-se inscrito, por compra, a favor do autor pela ap. (…) de 2016/07/21, figurando no registo como sujeito passivo a sociedade (…) – (…), (…) e Investimentos, Lda.
3. Pela ap. (…) de 2009/10/28 o prédio havia sido inscrito, por compra, a favor da sociedade (…) – (…), (…) e Investimentos, Lda., constando da inscrição como sujeito passivo (…).
4. Em 09/10/2009, o réu e a sociedade (…) – (…), (…) e Investimentos, Lda., subscreveram o acordo junto a fls. 119 a 122, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, com o seguinte conteúdo:
“Considerando que a primeira acaba de adquirir o prédio mencionado arrendado nos termos do contrato antes celebrado, aditam ao contrato existente, expressamente substituindo tudo o que em contrário conste do primeiro contrato.
“PRIMEIRA: O primeiro é proprietário e legítimo possuidor do prédio urbano sito na rua Dr. (…), n.º 15, Pinheirinhos, (…).
SEGUNDA: O contrato passa a ter a duração especial de 36 meses, período durante o qual o segundo pode adquirir o prédio, a qualquer momento,
TERCEIRA: a renda mensal é de EUR 150,00 por mês (…).
QUINTA: pelo presente contrato a primeira promete vender ao segundo o mencionado prédio prometendo comprá-lo. É condição resolutiva automática da promessa ora ajustada a simples mora ou incumprimento de qualquer dos deveres contratuais ou legais que para a segunda decorrem do arrendamento sobredito.
SÉTIMA:
1. A escritura será marcada pelo segundo (…).
3. A escritura deve ser outorgada nunca após decorridos mais de três anos a contar da data de hoje.
4. O prazo estabelecido no número anterior é impreterível, absolutamente essencial para a primeira, não sendo possível prorrogá-lo, não havendo lugar a mais interpelação admonitória ou qualquer outro mecanismo de prolongamento temporal, salvo acordo expresso e escrito das partes”.
5. Em 29/09/2015 o réu firmou juntamente com o autor o acordo intitulado de “contrato promessa de compra e venda” que constitui o documento constante de fls. 38 a 40, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e no qual se pode ler:
“Cláusula primeira: O promitente vendedor é dono e legítimo proprietário do imóvel melhor identificado no primeiro considerando.
Cláusula segunda:
1- Pelo presente contrato promessa, o promitente vendedor promete e obriga-se a vender ao promitente-comprador ou a quem esta vier indicar, e este promete e obriga-se a comprar livre de quaisquer ónus e encargos, o imóvel identificado na cláusula anterior.
2- A tradição e consequente transferência da posse do imóvel prometido vender processar-se-á na data da outorga da escritura pública objeto do presente contrato promessa e com o recebimento da totalidade do preço por parte da promitente vendedora.
Cláusula Terceira:
1 - o preço para a compra e venda do imóvel é de EUR 19.500,00, o qual, no interesse e de acordo com a vontade das partes, será pago e imputado da seguinte forma:
a) mensalmente, a título de sinal e reforços de sinal, com início a 30 de Outubro de 2015, 11 prestações sucessivas, no valor de EUR 250,00 (…).
2- O promitente-comprador reconhece que é fator determinante do presente contrato de promessa de compra e venda, o recebimento pontual pelo promitente vendedor, das prestações referidas na alínea a) do n.º 1 da cláusula presente.
3- Em caso de incumprimento do promitente-comprador de quaisquer obrigações que para si resultem do presente contrato promessa de compra e venda, poderá o promitente vendedor rescindir unilateralmente o contrato.
Cláusula Quinta: 1- Sem prejuízo do disposto na cláusula antecedente, a escritura pública de compra e venda do imóvel objeto do presente contrato será realizada no prazo máximo de 12 meses a contar da assinatura do contrato.
Cláusula Sétima: 1 – Nada foi convencionado entre os Contraentes, directa ou indirectamente, relacionado com a matéria dos presentes autos, para além do que fica escrito nas suas cláusulas.
6. O prédio identificado em 1. foi transferido para a titularidade da sociedade (…) – (…), (…) e Investimentos, Lda. porque o réu precisava de dinheiro.
7. O negócio teve como condição que o réu, juntamente com o seu agregado familiar, permanecesse a residir no imóvel, e que no dia do pagamento total do valor recebido pelo réu o imóvel ficasse desonerado daquele encargo.
8. O réu reside no prédio urbano referido em 1. desde data não concretamente apurada, porém há muitos anos, com a esposa.
9. O réu sempre pagou as despesas de água, luz, gás, e todas as demais inerentes ao imóvel referido em 1.
10. O réu efetuou diversos pagamentos mensais em cumprimento do acordo firmado e referido em 4), entre Janeiro de 2010 e Novembro de 2013, no montante de € 150,00, no total de € 7.500,00.
11. Como não conseguiu pagar à (…), Lda. o valor acordado para reaver o imóvel, o réu recorreu a (…) para que lhe emprestasse o montante em falta.
12. Nessa sequência, desse acordo, foi celebrado o negócio de compra e venda entre o autor e a (…), Lda. referido em 1), e o acordo referido em 5).
13. Após a celebração dos negócios referidos em 12), o réu continuou a habitar o imóvel, com o acordo do autor.
14. O imóvel tem o valor patrimonial de € 37.332,18.
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B) Factos não provados
Não resultaram provados quaisquer outros factos além dos supra enunciados, não tendo ficado demonstrado, designadamente:
i) O imóvel referido em 1) estava arrendado à mãe do réu e quando a Associação de Moradores (…) e o Instituto Nacional de Habitação iniciou o processo de regularização das habitações daquele bairro, o mesmo foi registado em nome do filho do réu, (…).
ii) A sociedade (…) – (…), (…) e Investimentos, Lda., emprestou a quantia de € 15.000,00 ao réu, a pedido do pai do sócio da mesma, Sr. (…).
iii) A (…) – (…), (…) e Investimentos, Lda., quando o pai do respetivo sócio e patrão do réu faleceu, exigiu o pagamento imediato dos restantes € 7.500,00, com a justificação que iriam proceder a partilhas judiciais.
iv) Quando o réu se socorreu dos serviços de (…) ficou convicto de ter a sua habitação segura e desonerada da dívida.
v) O réu desconhecia que o imóvel havia sido vendido ao autor.
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De Direito
Do pacto comissório vs da alienação em garantia
Tal como correctamente considerado na sentença apelada, a presente acção configura-se como de reivindicação, importando ao caso o disposto no art.º 1311.º do Código Civil[4], por cujos termos “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.”.
Consoante dispõe o art.º 1316, o direito de propriedade adquire-se, dentre os demais modos ali enumerados, por contrato, sendo o momento de aquisição, neste caso, o previsto nos arts. 408.º e 409.º (vide art.º 1317.º al. a)).
Sendo a causa de pedir, nas acções reais, o facto jurídico de que deriva o direito real invocado (art.º o n.º 4 do art.º 581.º do CPC), invocando-se uma aquisição derivada -como ocorre com o contrato de compra e venda- e dado o seu carácter meramente translativo, torna-se necessária a alegação e prova de que o direito existia no transmitente (vendedor). No entanto, quem beneficia de uma presunção fica dispensado de fazer prova do facto a que ela conduz (cfr. art.º 351 n.º 1), cabendo à parte contrária a sua ilisão, mediante prova do contrário (cfr. o n.º 2 do mesmo preceito).
No caso em apreço o autor invocou o referido acto translativo e a inscrição a seu favor, assim beneficiando da presunção consagrada no art.º 7.º do CRP, contrapondo o R. com a invalidade do negócio originário – aquele de que procedia o direito da vendedora –, acarretando a nulidade do negócio subsequente. Para tanto alegou que a venda à (…), Lda se destinava a garantir o pagamento de um empréstimo que lhe havia sido concedido pela mesma sociedade e que, como tal, ao ter restituído a quantia mutuada, ficou convencido que o imóvel, que há muito constitui a casa de morada da sua família, “ficava seguro e desonerado de tal dívida”. Acresce que sendo o escopo daquela venda garantir o empréstimo, não estava a sociedade autorizada a fazer seu o bem dado em garantia, mesmo em caso de incumprimento, por a tal obstar a proibição do pacto comissório.
A alegada excepção não mereceu acolhimento na sentença, como se viu, insistindo o réu nesta via de recurso pela sua procedência.
Da factualidade apurada resulta que a fracção reivindicada, que se encontrava registada a favor de (…), alegadamente filho do recorrente, foi transmitida à dita sociedade (…) mediante negócio translativo celebrado em Outubro de 2009 “porque o réu precisava de dinheiro” (cfr. o ponto 6.). Mais se apurou que “o negócio teve como condição que o réu, juntamente com o seu agregado familiar, permanecesse a residir no imóvel, e que no dia do pagamento total do valor recebido pelo réu o imóvel ficasse desonerado daquele encargo” (cf. o ponto 7). Importa finalmente atentar no facto de, concomitantemente, ter sido celebrado um acordo entre o apelante e a sociedade (…), que as partes reduziram a escrito e denominaram de “contrato de arrendamento com contrato promessa de compra e venda”, nos termos do qual –apesar de ter sido junto aos autos apenas o aditamento, dada a completude da regulamentação nele contida, é possível apreender os contornos dos negócios – a sociedade adquirente deu o referido prédio de arrendamento ao réu pelo prazo de 36 meses mediante o pagamento de uma renda mensal, tendo-se ainda obrigado a vender-lhe o imóvel em qualquer momento dentro daquele período de 3 anos pelo preço fixado de € 16.000,00, tendo-se o réu obrigado a comprá-lo.
À luz da descrita factualidade, a Mm.ª juíza qualificou o negócio assim celebrado como alienação fiduciária em garantia, que considerou válida, insistindo o recorrente que se trata antes do estabelecimento de um pacto comissório, sancionado pela lei civil com a nulidade, afectando a venda subsequente, celebrada entre a referida sociedade (…) e o autor reivindicante.
Diz-nos o art.º 694.º que “É nula, mesmo que seja anterior ou posterior à constituição da hipoteca, a convenção pela qual o credor fará sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir”. Trata-se do pacto comissório em garantia – aquele que está associado a uma garantia típica – podendo ser definido como “o acordo celebrado entre o devedor e o credor para que determinados bens do primeiro ingressem de maneira imediata no património do segundo se, vencido o crédito cuja satisfação aqueles bens salvaguardam, tal crédito não for pago”[5]. No pacto comissório em garantia verifica-se como que uma execução da garantia real fora dos trâmites previstos na lei, visando a proibição legal evitar o aproveitamento da debilidade do devedor e, bem assim, defender o interesse social na sua proliferação[6].
O negócio fiduciário, por seu turno, sendo um negócio atípico, pode ser definido como aquele “…em que o fiduciante aliena ao fiduciário determinado direito, limitando, porém, o exercício dos correspondentes poderes em função de determinado fim que visa prosseguir.”[7] Na alienação em garantia a alienação é funcionalmente dirigida a garantir um crédito que o fiduciante tem para com o titular.
Numa outra formulação, alienação em garantia “é o negócio nos termos do qual um sujeito (prestador da garantia) transmite a outro (beneficiário da garantia) a titularidade de um bem ou de um direito, com a finalidade de garantia de um crédito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinta esta finalidade, a retransmitir-lhe aquela mesma titularidade.”[8] E porque a transmissão da propriedade tem um propósito meramente garantístico, a disponibilidade material do bem pode manter-se no devedor/fiduciante.
Assim definida a alienação em garantia em confronto com o pacto comissório e vistos os factos assentes, afigura-se correcta a qualificação feita na sentença recorrida no que se reporta ao negócio inicialmente celebrado entre a PCI e o réu (não descaracterizado pelo facto do bem alineado se encontrar inscrito a favor de terceiro, alegadamente o filho do devedor/recorrente). Conforme reflecte o acervo factual apurado, por ocasião do empréstimo concedido pela fiduciária ao aqui réu foi transferido para aquela o direito de propriedade sobre o imóvel, sendo o fim garantístico denunciado pela vinculação, mediante contrato promessa simultaneamente celebrado (refere-se no aditamento que a mutuante acabava de adquirir o imóvel), à retransmissão do direito em qualquer momento dentro do convencionado prazo de 3 anos, tão logo se mostrasse paga a quantia então fixada a título de preço, presumivelmente correspondente à quantia mutuada e eventuais juros que tenham sido convencionados (posto que não se logrou apurar o exacto montante do empréstimo), conforme resulta dos termos conjugados do facto assente em 7. e do referido aditamento[9].
Acresce que a disponibilidade do imóvel manteve-se no devedor, formalmente coberta pelo então também celebrado contrato de arrendamento.
Face ao assim estipulado afigura-se, pois, que o negócio celebrado configura uma alienação em garantia, cuja admissibilidade é agora, de forma alargada, reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência[10], figura jurídica todavia estruturalmente diferente do proibido pacto comissório, conforme acentua o STJ, traduzindo-se este na oneração “de um bem do devedor (ou de terceiro), vinculando-o à garantia de um crédito mediante constituição de um direito real de garantia, e estipulando-se que – se ocorrer incumprimento da obrigação e só nesse preciso momento – poderá o titular do direito real de garantia apropriar-se do bem hipotecado, «convertendo» a garantia real em direito de propriedade”, ao passo que naquela ocorre a “imediata alienação de certo bem ao credor - produzindo, naturalmente, tal negócio de venda efeitos reais imediatos, transferindo sem mais a propriedade do bem para a esfera jurídica do comprador – estando, porém, subjacente a tal alienação um pacto «fiduciário» celebrado entre os contraentes, do qual resulta a vinculação do credor/comprador às obrigações de conservação do bem transmitido e de posterior revenda ou retransmissão em benefício do anterior proprietário, logo que o fim de garantia do crédito se mostre exaurido” [11]. Tais estruturais diferenças obstam, conforme também é dito “à directa subsunção daquela categoria normativa no âmbito do art. 694º do CC, cujo programa normativo se dirige – e confina - ao plano das garantias reais das obrigações, vedando ao credor a autotutela que resultaria da faculdade de apropriação da «coisa onerada» no caso – e no momento – em que o devedor não cumprir a obrigação garantida”[12].
Mas se as duas figuras não se confundem, não falta quem defenda que a alienação em garantia só é válida desde que se verifique equivalência entre o valor alienado e o montante da dívida[13].
Cremos, porém, que tal como o STJ equacionou a questão, o que está fundamentalmente em causa é saber se se justifica a realização de “uma verdadeira operação de «extensão teleológica» da proibição contida no citado art.º 694º, de modo a nela incluir situações que, sendo embora, de um ponto de vista jurídico, estruturalmente diferenciadas da hipótese ali prevista, têm com ela alguma conexão funcional relevante: e a admissibilidade de realização de uma tal extensão teleológica da norma proibitiva dependerá naturalmente do balanceamento ou ponderação de todos os interesses envolvidos, tendo particularmente em conta os reflexos que a tese da nulidade da venda ou alienação fiduciária de imóveis – estabelecida com o fito essencial de protecção dos interesses do devedor/vendedor – poderá envolver no plano da tutela do princípio fundamental da confiança e da segurança do comércio jurídico.”.
E nesta ponderação dos interesses em conflito dos diversos intervenientes não pode/deve olvidar-se que a alienação em garantia tem como efeito imediato a transferência da propriedade para o fiduciário e que a limitação dos poderes inerentes à titularidade do direito – a sua limitação ao fim garantístico – tem natureza meramente obrigacional (cf. art.º 1306.º). O alienante sabe que corre o risco de o fiduciário, violando o pacto, vir a transmitir o bem a terceiro na pendência do contrato, mas este não terá modo de saber da existência da convenção fiduciária, confiando naturalmente na definitividade do negócio translativo, para mais nos casos em que se verifique existir a publicidade do registo, pelo que o risco há-de ser em primeira linha assumido pelo fiduciante, que naquele confiou.
Por outro lado, ainda negando a aplicação do regime da nulidade à alienação em garantia quando não se mostre assegurada a equivalência entre o crédito garantido e o bem transmitido, nem por isso o devedor ficará desprotegido nos seus interesses, podendo obter do fiduciário infiel a indemnização pelos danos sofridos decorrentes da violação das obrigações decorrentes do pacto. Acresce que a subtracção da alienação em garantia ao regime da nulidade estabelecido no art.º 694.º para o pacto comissório não implica que o negócio celebrado não possa ser afectado por outros vícios, encontrando-se naturalmente sujeito, se disso for caso, à disciplina dos art.ºs 294.º e 282.º.
De volta ao caso dos autos, cumpre salientar que o réu, invocando embora a nulidade do negócio, que defendeu consubstanciar uma convenção de pacto comissório, em bom rigor não alegou que a sociedade vendedora actuou como um fiduciário infiel ao proceder à venda a um terceiro; pelo contrário, o que se infere dos factos provados sob os pontos 11. e 12. é que não dispondo da quantia em dívida à (…), o recorrente recorreu mais uma vez a um empréstimo, que lhe foi concedido, e que é a causa da transmissão para o aqui autor do direito de propriedade sobre a mesma fracção – transmissão que reveladoramente se deu pela quantia de € 7.500,00, que se encontrava em dívida à (…), conforme resulta do documento titulativo e do cheque cuja cópia se mostra junta aos autos – também aqui com a vinculação do adquirente à retransmissão, o que mais uma vez ficou assegurado pela celebração de um contrato promessa de compra e venda.
À luz dos referidos factos assentes, e tal como a Mm.ª juíza intuiu, apesar de não se encontrarem cabalmente esclarecidos os contornos deste último negócio, as semelhanças com aquele que havia sido celebrado com a (…), designadamente a já a mencionada vinculação do adquirente a uma obrigação de revenda, permitem suspeitar que a alienação do imóvel foi, também aqui, utilizada com um fim garantístico, o que retiraria ao autor a qualidade de terceiro. Todavia, como vimos, tal não é suficiente para invalidar o contrato celebrado, com o que improcedem as conclusões recursivas 4.ª a 9.ª.
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Do abuso de direito
Sustenta o recorrente que, tal como havia alegado, ainda a ter-se o negócio de venda ao autor como válido, verifica-se um exercício abusivo do direito, porquanto, resultou demonstrado que aquele, “ao comprar o imóvel à (…), Lda. e, concomitantemente, ao ter celebrado o contrato promessa de compra e venda com o Recorrente, e admitindo o Tribunal “a quo” a similitude dos negócios, a necessidade de dinheiro por parte do Recorrente, o escopo do referido negócio, celebrado para satisfazer as necessidades de dinheiro do Recorrente, e o valor extremamente baixo do valor de venda do imóvel ao aqui Autor, € 7.500,00, fica mais que evidenciado que o negócio defraudou as expectativas do Recorrente, que pretendia apenas que o prédio urbano servisse de garantia ao negócio, e que o Autor se aproveitou das fragilidades do Réu, que pela quantia de € 7.500,00 se vê em risco de ficar privado da casa de morada de família, onde reside desde há muitos anos e até à presente data”.
Impõe-se referir previamente que apesar da Mm.ª juíza ter deixado consignado em sede de motivação quanto pelo recorrente ficou transcrito, a verdade é que na contestação nada foi alegado quanto aos contornos do negócio celebrado com o autor, cuja invalidade o réu fundou apenas e tão só na nulidade do negócio transmissivo inicial.
Por outro lado, admitindo que os factos provados, conforme se deixou já referido, permitem inferir que também este segundo negócio se perfila como uma alienação em garantia, desconhece-se, porém, o valor do empréstimo concedido ao réu, designadamente se se limitou aos € 7.500,00 entregues à credora (…) ou se foram por aquele recebidas outras quantias. E se, como se disse, não é de arredar que se esteja em presença de um negócio usurário, anulável nos termos do art.º 282.º, a verdade é que a factualidade apurada não permite concluir nesse sentido, desde logo porque, não tendo sido escolhida como causa de invalidade do negócio (no caso o vício que lhe corresponde é o da anulabilidade), não foram alegados factos capazes de revelarem a situação de necessidade de que o autor se teria aproveitado (o que, repete-se, não exclui que possa ter ocorrido).
Quanto ao invocado abuso de direito, diz-nos o art.º 334.º que o exercício de um direito é ilegítimo quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico destes. O abuso, sendo um instituto puramente objectivo, não dependente da culpa do agente nem da verificação de qualquer elemento específico subjectivo, surgindo como concretização da boa-fé, apresenta-se afinal como uma “constelação de situações típicas em que o Direito, por exigência do sistema, entende deter uma actuação que, em princípio, se apresentaria como legítima.”[14] “Dizer que, no exercício dos direitos, se deve respeitar a boa-fé, equivale a exprimir a ideia de que, nesse exercício, se devem observar os vectores fundamentais do próprio sistema que atribui os direitos em causa”.[15]
Uma das modalidades em que se concretiza o instituto, na qual o recorrente integra a conduta do autor/apelado, é a do “venire contra factum proprium”. Esta figura assenta tipicamente na violação do princípio da confiança, podendo basicamente delinear-se como o caso de o direito ser exercido contra alguém que, com base em convincente conduta, positiva ou negativa de quem o podia exercer, confiou em que tal exercício não ocorresse e programou em conformidade a sua actividade. Dir-se-á, nessa hipótese, que o titular do direito opera o seu exercício no confronto de outrem depois de a este fazer crer, por palavras ou actos, que o não exerceria, ou seja, depois de gerar uma situação objectiva de confiança em que ele não seria exercido”[16].
No caso em apreço, apurou-se que o réu, com o acordo do autor, continuou a residir no imóvel o que, à míngua de outros elementos, no limite poderá configurar a celebração de um contrato de comodato, com a consequência do comodatário se encontrar obrigado à restituição da coisa tão logo lhe seja pedida (cf. art.ºs 1129.º e 1137.º, n.º 2), sem que se vislumbre qualquer abuso no pedido de restituição porquanto, como é bom de ver, quem beneficia de um empréstimo não tem/não pode ter uma expectativa legítima no sentido de esperar que o dono da coisa não venha a solicitar a sua entrega.
Por outro lado, e conforme se refere, a nosso ver com acerto, na sentença recorrida, “a única situação de confiança em que efetivamente o autor investiu o réu, foi na de, aquando da liquidação do montante previsto no contrato, poder adquirir o imóvel ou mesmo executá-lo especificamente”, o que parece ainda poder ocorrer, uma vez que não há notícia nos autos do contrato promessa ter sido resolvido.
Deste modo, apresentando-se o autor, na qualidade de proprietário, a exigir a restituição do bem, está a exercer o seu direito sem que, atendendo à escassez dos factos provados, seja detectável qualquer abuso.
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Da posse
De harmonia com o disposto no n.º 2 do art.º 1311.º, havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos termos da lei. Assim, demonstrado pelo demandante o seu direito de propriedade, o réu só poderia obstar ao efeito restitutório fazendo prova de que a coisa lhe pertencia por qualquer título admitido em direito, que tinha sobre ela direito real justificativo da sua posse ou porque detinha a coisa em razão de um direito pessoal bastante.
No caso dos autos já se concluiu pela validade do negócio transmissivo, não sendo o réu titular do direito de propriedade ou outro direito real menor sobre o imóvel reivindicado.
No que respeita ao contrato de arrendamento celebrado com a (…) e cujo prazo de vigência fora fixado em 36 meses, nada foi alegado quanto à sua eventual subsistência, tratando-se ainda de questão não suscitada no recurso.
Subsiste finalmente a arguição de posse que o réu insiste que vem exercendo sobre o imóvel e que obstaria ao pedido restitutório. Vejamos pois da valia deste último argumento.
Nos termos do art.º 1251.º do C.C., posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real. Todavia, a posse sobre uma coisa não se adquire pela mera obtenção do poder de facto sobre ela, sendo de exigir, a par da estabilidade da situação, a intenção, por parte do detentor, de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente aos poderes de facto exercidos.
Ora, na situação que nos ocupa, para lá do facto de o primeiro titular inscrito no registo não ser o autor, mas antes um seu filho, a verdade é que ficou reconhecida a validade dos negócios translativos sucessivamente celebrados. Ademais, pese embora o réu tenha permanecido no imóvel, não deixou de ficar consignado no contrato promessa que subscreveu que “a transferência da posse do imóvel prometido vender processar-se-á na data da outorga da escritura pública objeto do presente contrato promessa e com o recebimento da totalidade do preço por parte da promitente vendedora”, tendo portanto que concluir-se que se encontra na posição, que não desconhecia, de mero detentor ou possuidor por conta de outrem, nos termos da al. c) do art.º 1253.º. É certo que a nossa lei confere ao comodatário a tutela possessória, podendo usar dos meios possessórios mesmo contra o comodante (cf. n.º 2 do art.º 1133.º). Todavia, no caso em apreço, não foi num contrato dessa natureza que o réu fundou a sua defesa, antes pretendendo que a sua posse deriva de um, como vimos insubsistente, direito de propriedade, improcedendo assim este derradeiro argumento recursivo, com a consequente confirmação do decidido.
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III. Decisão
Atento o exposto, acordam os juízes da 2.ª secção cível do tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, confirmando a douta sentença recorrida.
Custas pelo réu/recorrente, sem prejuízo da isenção que lhe foi concedida.
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Évora, 28 de Fevereiro de 2019
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
José Manuel Lopes Barata
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[1] Nos seguintes exactos termos:
“Objecto do litígio: apurar se o autor deve ser reconhecido como proprietário do imóvel sito na Rua Dr. (…), n.º 15, em (…), e se deve o réu ser condenado a restituir o imóvel ao autor”.
“Temas da prova:
a) aferir se o autor adquiriu o imóvel nas circunstâncias alegadas pelo réu na contestação e se encontram reunidos os pressupostos legais para que o contrato possa ser anulado;
b) aferir se o autor litiga com má-fé”.
[2] Acórdão do STJ de 26/4/95, citado no aresto do mesmo STJ de 21/11/2002, processo 02B3271, acessível em www.dgsi.pt.
[3] Blog IPPC, entrada de 28 de Janeiro de 2019, comentário ao acórdão do TRL de RL 23/10/2018 (1121/13.5TVLSB.L1-1), no qual se discutia a repercussão no subsequente despacho saneador sentença de anterior despacho que havia dispensado a realização da audiência prévia. A questão tem vindo a ser frequentemente suscitada a propósito da omissão do despacho de aperfeiçoamento em termos que, cremos, poderem ser transponíveis para a falta de pressupostos processuais sanáveis (cf. acórdão TRL de 15 de Maio de 2014, processo 26903/13.4T2SNT.L1-2 de 15-05-2014 acessível em www.dgsi.pt).
[4] Diploma a que pertencerão as demais disposições que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[5] Isabel de Matos, “O Pacto Comissório” contributo para o estudo do âmbito da sua proibição”, pág. 78.
[6] Idem pág. 73. Trata-se de questão muito controvertida, não faltando quem encontre o fundamento da proibição na defesa do património do alienante enquanto garantia de todos os credores.
[7] Prof. Carvalho Fernandes, “Estudos sobre a simulação”, Quid juris, pág. 247
[8] Catarina Pires, Alienação em garantia, pág. 99.
[9] Cf., versando sobre situação fáctica com semelhanças, acórdão do STJ de 26/4/2018, processo 2073/13.0 TBPVZ.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt
[10] V. Carvalho Fernandes, ob. cit., págs. 243 e seguintes, Isabel de Matos Andrade, ob. cit., págs. 177 e seguintes e, na jurisprudência, por todos, acórdão do STJ de 16/3/2011, processo 279/2002-E1.S1, também citado na decisão recorrida.
[11] Do antes citado acórdão do STJ de 16/3/2011.
[12] Idem.
[13] Neste sentido, Isabel Andrade de Matos, ob. cit., pág. 193; Prof. Januário Gomes, “Assunção Fidejussória de Dívida”, pág. 96. No sentido da nulidade da transmissão atípica em garantia, salvo se for introduzida no negócio disposição que, à semelhança daquela de que emerge a obrigação de restituição que caracteriza o pacto marciano, ponham o devedor a um locupletamento injustificado do credor, obtido mediante a apropriação do bem transmitido, Prof. Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 271.
[14] Na síntese do Prof. Menezes Cordeiro, “Do abuso do direito: estado das questões e perspectiva”, ROA 2005, ano 65, vol. II, acessível on line.
[15] Idem.
[16] Cfr. Ac. do S.T.J., de 20-10-06, proc. O6B2110, em www.dgsi.pt.